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Evolução histórica da inimputabilidade penal

uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe

Evolução histórica da inimputabilidade penal: uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe

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Nem sempre as pessoas consideradas hoje como portadoras de problemas mentais foram interpretadas como enfermas - vítimas de uma doença. Esta visão da loucura como fato médico é relativamente recente na cultura ocidental.

Sumário: 1 – Evolução da loucura na história, 1.1. Pré-história, 1.2. Antiguidade, 1.3. Idade média, 1.4. Idade moderna, 1.5. Idade contemporânea, 1.6. Quadro comparativo; 2 – Evolução da loucura na legislação criminal brasileira, 2.1. O aborígine, 2.2. Características gerais das ordenações, 2.2.1. Conceito, 2.2.2. Origem, 2.2.3. Estrutura, 2.2.4. Matéria criminal e tipos de penas, 2.3. Ordenações Afonsinas (1446-1521), 2.4. Ordenações Manuelinas (1521-1569), 2.5. Código de Dom Sebastião (1569-1603), 2.6. Ordenações Filipinas (1603-1830), 2.7. Código do Império (1830-1890), 2.8. Código Republicano (1890-1932), 2.9. Consolidação das Leis Penais ou Código de Piragibe (1932-1940); Referências bibliográficas.


1. EVOLUÇÃO DA LOUCURA NA HISTÓRIA

            A loucura surge com o homem e o acompanha durante toda a história da sua evolução: é como se esta qualidade de indivíduo fizesse parte da estrutura de qualquer grupo, sociedade ou civilização, seja ela politicamente organizada ou não.

            Nem sempre essas pessoas consideradas hoje como portadoras de problemas mentais foram interpretadas como enfermas - vítimas de uma doença. Esta visão da loucura como fato médico é relativamente recente na cultura ocidental. Tivemos ao longo dos tempos inúmeros outros conceitos para este tipo de mau: trazendo conteúdos religiosos ou morais, poéticos e científicos. Tal evolução é fruto de um longo processo de organização social, gerando diferentes formas de observação e interpretação de seus comportamentos, aliada ao surgimento da ciência teórica no Ocidente pelos filósofos gregos no séc. VI a.C.

            1.1. Pré-História

            Como a história se baseia em documentos escritos, este período que corresponde à primeira etapa da evolução humana, tendo seu início com o surgimento dos primeiros hominídeos, estendendo-se até o aparecimento dos primeiros registros escritos, por volta de 4000 a.C. [01], pode ser estudado hoje graças as pinturas e pequenas esculturas que foram deixados para nós como herança, devido ao modo sensível como observavam a natureza, já que dependiam da caça e da coleta de frutos para sobreviver.

            Para a população primitiva, o louco era visto como um indivíduo diferente, com dons sagrados e atitudes divinas, uma criatura digna de todo o respeito e credibilidade. A loucura era atribuída à ação de forças externas ao corpo humano, como interferência temporária dos deuses sobre o pensamento e ação dos homens. Não sofriam, portanto, qualquer tipo de exclusão, participando normalmente do convívio social.

            A origem da loucura é, portanto, teológica, onde os responsáveis pelos atos que praticassem não eram atribuídos aos homens, mas sim as forças exteriores ao corpo físico. Idéia esta que perdurou durante muitos séculos. A cura, todavia, também seria divina, obtida em templos com cerimônias religiosas. Algumas tribos indígenas americanas chegavam a fazer rituais em adoração a estes indivíduos, demonstrando respeito e veneração.

            1.2. Antiguidade

            Na Antiguidade (4000 a.C. a 476 d.C.) as crises de agitação já começam a ser interpretada com outros olhos, ainda ligadas ao sobrenatural, porém decorrentes de possessões demoníacas, causando medo nos homens e o ódio aos mentalmente enfermos. Começava a nova visão da sociedade para estes indivíduos.

            Não existiam procedimentos ou espaços sociais especificamente para os loucos. Aqueles que tinham a sorte de ter uma família com recursos ficavam isolados nas suas próprias residências, na presença de uma acompanhante, longe dos olhares curiosos, já aos pobres restavam-lhes as ruas onde circulavam livremente e sobreviviam de caridade da população ou fazendo pequenos serviços a particulares, sendo freqüentemente alvos de chacota e de violência da população. 

            O louco já passa a ser considerado um problema, porém de caráter privado ou particular, não cabendo ao poder público fazer qualquer tipo de intervenção, exceto quando eram envolvidos assuntos como invalidação ou anulação de casamento quando um dos cônjuges enlouquecia ou proteção patrimonial de insanos perdulários.

            Alguns dos grandes filósofos de toda a humanidade fizeram referências em seus textos sobre os loucos: Empédocles (490–430 a.C.) tratou da importância das emoções e assinalou que o amor e o ódio eram fundamentais na determinação de alterações do comportamento humano; Platão (429–347 a.C.) propôs que a biografia psicológica do indivíduo fosse escrita a partir dos seus primeiros anos de vida, com base em seu relacionamento com os membros da família e com os educadores, para explicar seu comportamento mais tarde como adulto. Descreveu também dois tipos de demência: causada por deterioração progressiva e irreversível das funções mentais intelectuais, em que a alma apetitiva (instintos) perde o domínio da alma racional; provocada e ou inspirada pelos deuses. Aristóteles (384–322 a.C.) descreveu os afetos: desejo, raiva, medo, coragem, inveja, alegria, ódio e pena.

            No Direito Romano, sua preocupação maior foi adentrar na capacidade civil em relação aos loucos. Mesmo sendo o berço do Direito Privado, encontramos alguns resquícios da norma penal em suas escritas. De acordo com os seus textos históricos, passou a existir uma classificação dos vários tipos de comportamentos dos enlouquecidos: o furiosus, a loucura enraivecida, agitada, com intervalos lúcidos, a dementia ou demens, loucura plena, desequilíbrio total, sem intervalos lúcidos, monomaníaco, a mente captuse e mentis alienatione, alienação da mente, e imbecilitas, louco incapaz de gerir seus próprios bens.

            Em Roma a guarda dos alienados também era entregue aos parentes mais próximos, a diferença vem quanto ao tratamento daqueles que não tinham família. O Poder Público chama para si, pela primeira vez na história, a responsabilidade de tratar destes insanos, mesmo que de forma grosseira: "Furiosis si non possint per necessarios contineri, eo remedio per praesidem obviam eundum est: scilicet ut carcere contineantur" [02].

            Bastante evoluída para a época, também foi à idéia dos romanos de que a punição dos loucos não seria cabível, pois a sua doença, considerado como um castigo dos deuses devido à falta cometida anteriormente ou por livre arbítrio destes, já seria a própria pena. Vejamos as duas correntes que explicavam e defendiam a irresponsabilidade dos loucos por seus atos: para Modestino, o louco era digno de compaixão; para Gaio, faltavam aos loucos a compreensão da realidade.

            Foi, contudo, na Grécia Antiga, que teve início às observações terapêuticas. Hipócrates (460–380 a.C.), médico e professor, considerado por muitos como o pai da medicina, de forma muito rudimentar apresentou pioneiramente uma interpretação de cunho científico para a origem das alienações mentais, resultando na elaboração de uma classificação destes, onde descrevia algumas espécies de forma singular, como a epilepsia, considerada o mal do sagrado.

            Com a chegada do Cristianismo, no final da Antiguidade, criou-se um maior grau de respeito ao louco, passando a ser visto como uma figura "pobre de espírito".

            1.3. Idade Média

            Durante algum tempo na Idade Média (476 a 1453), ainda sob a influência das palavras deixadas por Jesus, a loucura passou a ser tratada com mais tolerância e aceita com maior naturalidade, "como um fato cotidiano, normal, sans peur et sans reproche. O louco participava dos acontecimentos sociais. Durante grande parte da ‘idade das sombras’ a loucura passou despercebida. Era o tempo da loucura livre" afirma Maximiliano Führer [03].

            Porém, a Igreja, baseada em interpretações errôneas das passagens do Novo Testamento, além de fazer com que houvesse um declínio desta mentalidade, retrocedendo para a antiga idéia do misticismo, onde tudo que não poderia ser explicado continha sementes diabólicas e malignas, ainda perseguia aqueles estudiosos que iam de encontro com as idéias divinas, ocasionando um avanço quase que insignificante nesta época, pois muito pouco pode ser feito especificamente pelos doentes mentais. A Igreja também proibiu a entrada de loucos em seus templos, os que não obedeciam eram arrastados pelos padres e seus assistentes para fora da casa do Senhor.

            Estes auto intitulados representantes da divindade na terra, afirmavam que os loucos encontrariam a salvação na própria exclusão, no abandono social, onde sua comunhão estaria numa espécie de reintegração espiritual, no esperar de uma mão que nunca iria se estender. Atitudes estas eram refletidas nas pessoas que acreditavam no desprezo e rejeição destes "irmãos", para a contribuição de um encontro mais rápido com os sãos. "Meu companheiro, diz o ritual da Igreja de Viena, apraz ao Senhor que estejas infestado por essa doença, e te faz o senhor uma grande graça quando te quer punir pelos males que fizestes neste mundo. Por isso, tem paciência com tua doença, pois o Senhor não te despreza por tua doença, e não se separa de tua companhia; mas se tiveres paciência serás salvo, como o foi o lazarento que morreu diante da casa do novo-rico e foi levado diretamente ao paraíso" [04].

            Os delinqüentes endemoniados eram submetidos a tormentos de horríveis suplícios. Alguns eram insultados, perseguidos, apedrejados e chicoteados publicamente, além de serem alvos de maus-tratos com varas de madeira, para outros a expulsão de suas cidades era o castigo, deixando que corressem livremente pelos campos, ou eram-lhes entregues a grupos de mercadores e peregrinos.

            Os loucos foram inicialmente recebidos em hospitais, porém com os anos teve-se início a construção de casas especiais na maior parte das cidades da Europa (Châtelet de Melun, Torre dos Loucos de Caen, Narrturmer da Alemanha, Lubeck ou o Jungpfer de Hamburgo). Fruto da inquietude européia surgiu também a "Nau dos Loucos", barcos construídos para armazenar e transportar todas as cargas insanas, sendo levados de uma cidade para a outra, uma forma simples e fácil de resolver os problemas com seus desequilibrados sociais. Tais viagens tinham um caráter simbólico, tornando-se umas das formas de exílio da época. Segundo relata Michel Foucault em sua clássica obra "História da Loucura" [05], os barcos, em regra, eram para estrangeiros, ficando cada cidade encarregado dos seus cidadãos: "(...) confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca. (...) A água e a navegação têm realmente este papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada". [06]

            Com o desaparecimento da lepra do mundo ocidental nos fins da Idade Média e a não exclusão e o isolamento dos portadores de doenças venéreas, pois pertenceram ao quadro das doenças que exigiam tratamento médico, diferentemente da anterior vítimas da marginalização, a loucura herdava além de toda uma estrutura física de 19.000 leprosários distribuídos por toda a Europa, tratamento dispensado para estes dois males que andavam em paralelo com os insanos, também os valores e imagens ligadas a eles. Lugares estes antes obscuros e sem utilidade, passaram a abrigar loucos, pobres, vagabundos, presidiários e incuráveis de todas as espécies. A loucura seria uma espécie de novo espantalho da sociedade, em sucessão a lepra.

            Em 1409, Valência, o padre Juan Gilabert Jofré fundou o primeiro hospital psiquiátrico da história, com o fim de proteger os doentes mentais dos tratamentos discriminatórios que a sociedade lhes colocavam diariamente.

            1.4. Idade Moderna

            Neste período (1453 a 1789) começam a ocorrer muitas modificações, uma nítida evolução sob a influência dos loucos na vida do cotidiano. Grandes nomes emergem devido ao alto grau de sensibilidade e memoráveis obras, hoje verdadeiros clássicos, conseqüentemente são escritos sob a vida destes insanos, vejamos algumas com breves comentários a respeito que merecem ser lembrado.

            O "Elogio a Loucura" de Erasmo de Rotterdam escrito em 1509, foi uma crítica irônica ao seu tempo, onde a vida e loucura se misturam. Apresentando esta como uma deusa, com vida própria e merecedora de auto louvores, orientava todas as boas ações humanas, como o casamento: já que "nenhuma pessoa seria capaz de se casar por livre e espontânea vontade: quem abriria mão de desfrutar os muitos prazeres da vida para se amarrar para sempre a uma só pessoa em sã consciência? Somente a loucura possibilita que o homem se amarre a uma mulher e que através dela se estabilize"; a infância, "pois a causa das crianças serem tão felizes e verdadeiras, despreocupadas com o que falam seria a ausência total de sabedoria"; a velhice, "pois um homem que entra na velhice e continua sábio provavelmente se enforcará na primeira árvore", seriam responsáveis também pela formação das cidades, governos, religião e justiça.

            A primeira das "Meditações" de René Descartes: "E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, senão talvez me comparando a certos insanos cujo cérebro está de tal forma perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile, que se convencem constantemente de que são reis quando, ao contrário, são muito pobres; de que estão vestidos de ouro e púrpura, quando estão nus, ou que imaginam serem jarras, ou terem um copo de vidro? Mas qual! estes são loucos, e eu não seria menos extravagante se me orientasse por seus exemplos".

            Somente no século XVI ocorre o encontro da medicina com a loucura, pois até então tal elo não existia, e só no século seguinte é que começa o processo de exclusão do indivíduo louco das ruas e do contexto social. A partir deste momento o fato do indivíduo ser louco começa a ser visto como uma doença, passando a ser denominado de doente mental, porém, ainda, de forma muito superficial. Poderíamos então nos perguntar: como se poderia afirmar que uma pessoa era louca antes deste encontro? Tal definição era baseada somente em observações de comportamentos exteriores, sendo a família a principal encarregada de analisar tais mudanças de comportamento.

            Inúmeros estabelecimentos de correção e de trabalho são criados para armazená-los. O problema é que tais casas, como Hospitais Gerais ou Santas Casas não os abrigavam somente, mas também a criminosos, mendigos, vagabundos, prostitutas e demais anti-sociais, com a função de punir a ociosidade e reeducá-los para a moralidade. No entanto a realidade era outra bem diferente: maus tratos, torturas e violência era o que existia nestes locais. A real função de hospital não existia, funcionavam sim como verdadeiros depósitos humanos, retirando da visão social aqueles indivíduos que não se adequassem às normas ditadas como normais e corretas à época.

            1.5. Idade Contemporânea

            A Revolução Francesa (1789 a 1799) aparece neste momento histórico (1789 até nossos dias) como o divisor de águas, pois podemos afirmar que foi no início do séc. XIX o princípio da interpretação da doença como ciência, uma verdadeira revolução científica, trazendo aos insanos um tratamento adequado e saudável, e porque não dizer, humano, movimento este denominado de "Reforma Humanitária do Tratamento dos Insanos".

            Philippe Pinel (1745-1826), sintonizado com os ideais revolucionários franceses de liberdade, igualdade e fraternidade, publica em 1801 o "Tratado médico-filosófico sobre a alienação ou mania", [07] focalizado na psicose maníaca, doença mental mais freqüente a época. Seu trabalho, hoje um clássico, descreveu também uma nova especialidade médica, que viria a ser chamada psiquiatria em 1847, preconizando o tratamento moral para os alienados. Ao ser nomeado para o cargo de médico-chefe do Asilo de Bicêtre, destinado somente a doentes mentais masculinos, e posteriormente para o mesmo cargo no Hospício La Salpêtrière, exclusivo de mulheres, ambos na capital francesa, onde os loucos e criminosos ainda eram reunidos sem qualquer distinção, determinou a abolição das tão usadas correntes, [08] tratando-os como doentes comuns e, somente em casos de crises de agitação e violência aplicar-se-ia a camisa-de-força. Acabou também com a sangria, purgações e vesicatórios (abertura de veias). [09]

            O médico e professor francês foi um dos pioneiros no tratamento de doentes mentais, contemplado como o fundador da psiquiatria e pai da revolução psiquiátrica. Acreditava que a maneira com que os pacientes eram tratados se tornava um fator adicional na produção da insânia, daí sua frase: "O manicômio deve diferir o mínimo possível de uma casa particular". Esta foi sua postura ao dirigir durante muitos anos a Clínica de Munique, Alemanha, onde se buscou oferecer ao doente um ambiente semelhante ao doméstico. Considerou corretamente a doença mental como resultado de tensões sociais e psicológicas excessivas, de causa hereditária, ou ainda originárias de acidentes físicos, desprezando a crendice entre as pessoas e mesmo entre os médicos de que fossem resultados de possessão demoníaca, falha de caráter ou castigo de Deus. Pinel foi o primeiro a distingui os vários tipos de psicose e a descrever as alucinações, o absentismo, dentre outros.

            Reformador de asilos e hospitais franceses, o psicólogo Jean-Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), precursor da psiquiatria científica iniciada por Pinel, funda o primeiro curso para o tratamento das enfermidades mentais e luta pela aprovação da primeira lei de Alienados na França. Trabalho este resultou na Lei de 30 de junho de 1938, determinando, entre outros, a construção de estabelecimentos públicos para os insanos, chamados de asilos, pois o termo "hospital" tinha má fama na época. No mesmo ano escreveu a obra "Des maladies mentales considerées sous les rapponts medical, hygienique et medico-legal", onde definiu uma série de fenômenos psicopatológicos empregados até os dias de hoje, tais como a idiotia, demência e alucinações, diferenciando também a mania (delírio geral ou loucura propriamente dita) das monomanias (loucura parcial).

            Seu trabalho serviu de modelo para muitos países, inclusive o Brasil, influenciando de sobremaneira a criação do Hospício de Pedro II, primeira instituição brasileira de assistência aos doentes mentais. [10] Inaugurado em 8 de dezembro de 1852, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, em uma chácara afastada do centro da cidade, com a presença do Imperador, o Hospício de Dom Pedro II foi construído com dinheiro de subscrições públicas. O edifício em estilo neoclássico, provido de espaços amplos e suntuosos e decoração de luxo, ficou popularmente conhecido como "Palácio dos Loucos". A disciplina, o rigor moral, os passeios supervisionados, a separação por classes sociais [11] e diagnósticos e a constante vigilância do enfermo, materializada arquitetonicamente como um panóptico, representam o nascedouro da psiquiatria no Brasil. [12]

            O livro "Psychiatrie" de 1883, do psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1855-1926), serviu de referência a muitas gerações de especialistas em doenças mentais. O autor isolou as formas básicas da enfermidade psíquica: psicose maníaco-depressiva e demência precoce; promoveu a separação entre demência senil e paralisia geral, além de descrever um tipo de depressão logo após a menopausa, e nos homens depois da idade tardia, vindo a ser conhecida como melancolia. Fundou a psicopatologia, tornando-se base científica do alienismo.

            O austríaco Sigmund Freud [13] (1856-1939) cria a psicanálise como método de tratamento das neuroses de leve ou média gravidade, e faz com que o ato de ouvir não possa jamais se afastar da prática cotidiana em saúde mental. Neuropsiquiatra, professor e cientista por natureza, fica conhecido como "arqueólogo da psique", devido ao seu afã de penetrar nos espaços mais ocultos do ser, um método de investigação psicológica através da procura das tendências ou influências reprimidas no inconsciente do indivíduo e do seu retorno ao consciente pelo processo da analise. Suas idéias popularizam-se em todo o mundo e se impõem como marco no campo da saúde mental.

            Um dos psiquiatras mais discutidos no mundo em razão de seus trabalhos e reflexões desenvolvidos

            Franco Basaglia (1924-1980), psiquiatra italiano, ao assumir a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia em 1961 no norte da Itália, percebeu que a simples humanização dos internos não seria suficiente, era necessário profundas transformações tanto no modelo de assistência psiquiátrica quanto nas relações entre a sociedade e a loucura.

            Acaba com as medidas institucionais de repressão, cria condições para reuniões entre médicos e pacientes e devolve ao doente mental a dignidade de cidadão. O conceito de Reforma Psiquiátrica sofre uma radical transformação: ao invés de reforma do hospital psiquiátrico - um espaço de reclusão e não de cuidado e terapêutica - postula-se a sua própria negação. Uma sociedade sem manicômios, capaz de abrigar os loucos, os portadores de sofrimento mental, os diferentes, os divergentes, uma sociedade de inclusão e solidariedade. Seu livro "A instituição negada", uma obra-prima da psiquiatria contemporânea,

            Neste período histórico surgiram muitas autoridades brasileiras sobre o assunto. Entre médicos, psicólogos e docentes, em cargos políticos ou assumindo diretorias de hospícios, estes profissionais contribuíram para a mudança e evolução do tratamento dos alienados mentais em nosso território, ajudando a escrever a história da loucura local: Teixeira Brandão (1854-1921), Juliano Moreira (1873-1933), Ulysses Pernambucano (1892-1943), Nise da Silveira (1905-1991), Luiz Cerqueira (1911-1984), Wilson Simplício (1924-2001), Oswaldo Santos (1933-2000).

            1.6. Quadro Comparativo

            Período Histórico

            Atribuições à Loucura

            Pré-História

            Sobrenatural (dons santos)

            Antiguidade

            Pré-Cristianismo: Sobrenatural (detenções diabólicas)

            Pós-Cristianismo: Pobre de espírito

            Idade Média

            1º Momento: Fato do cotidiano

            2º Momento: Sobrenatural (detenções diabólicas)

            Idade Moderna

            Doença da mente

            Idade Contemporânea

            Doença da mente (ciência)


2. EVOLUÇÃO DA LOUCURA NA LEGISLAÇÃO CRIMINAL BRASILEIRA

            A lei, como norma geral e abstrata imposta pelo Estado e servindo de exteriorização do comportamento social de época, vem cumprindo seu papel ao longo da história da humanidade: acompanhar a evolução da loucura, regulamentando-a. Optamos neste tópico, por fazer menção especificamente ao desenvolvimento gradativo da legislação brasileira penal e processual penal que dizem respeito ao doente mental, já com alguns resquícios do tema da inimputabilidade, sem, contudo, adentrarmos no assunto propriamente dito onde trataremos mais amiúde no capítulo II deste trabalho.

            2.1. O Aborígine

            Antes da chegada dos desbravadores europeus e a conseqüente extensão da aplicação de suas lei em solo brasileiro, já existia em nosso País o direito penal indígena. Entretanto, não podemos fornecer um preciso conteúdo deste sistema punitivo, muito menos apresentar um rol taxativo com os tipos penais praticados à época do século XVI pelos povos que habitavam o nosso território, em virtude de vários fatores: muitos eram os grupos que aqui existiam, cada qual com diferentes mentalidades e hábitos de vida, gerando uma falta de homogeneidade entre eles; a influência que recebiam de outros aborígines; a frágil organização social; a ausência de documentos escritos narrando suas idéias e costumes; a variedade desarmonizada de textos escritos pelos cronistas. Tamanha é a dificuldade, que na obra "O Direito Penal Indígena", o ilustre professor João Bernardino Gonzaga para dar uma direção em seus trabalhos foi necessário concentrá-lo em uma única tribo: "Tomaremos como base dêste estudo os tupis, que constituíam o grupo dominante e porque principalmente a êles se referem as observações legadas pelos cronistas" [14].

            Fundado em costumes, tradições, convencionalismos, tabus, todas oralmente conservadas e em geral de natureza mística, a prática repressiva nativa em nada influenciou as legislações que aqui vigorariam mais tarde. Os nossos indígenas interpretavam o crime de forma automática, imediata e objetiva, gerando uma condenação independentemente das qualidades e intenções do agente. "A ausência de intenção, por parte daquele que se torna culpado de uma infração, constitui mais pròpriamente circunstância agravante do que escusa. Nada sobrevém por acaso. Logo, como se pode ter dado que tal homem haja sido assim conduzido a praticar sua falta sem querê-la e sem o saber? Seguramente êle já será vítima de um poder oculto, ou objeto de certa cólera que se deve apaziguar, salvo – hipótese ainda mais grave – se esconde em si próprio, à sua revelia, algum princípio malfazejo. Em lugar pois de se sentir tranqüilizado pelo fato de que êle não podia conhecer sua falta no momento em que a cometeu, e que esta em conseqüência, era inevitável, sua inquietação redobra. Torna-se indispensável, agora, procurar (em geral pela adivinhação) o motivo pelo qual êle foi colocado em situação tão perigosa" [15].

            Assim, os loucos, como também as mulheres [16] e as crianças [17], não tinham qualquer tipo de tratamento diferenciado em relação aos demais membros da comunidade indígena, sendo condenados pelos atos insanos que vinham a cometer. Encaravam o estado de perturbação como um momento de manipulação por forças malignas, onde seu corpo estaria dominado por um espírito e sendo usado como mero instrumento para a execução do ato, encontrando-se somente no mundo invisível a sua verdadeira e real causa, portanto, uma condição secundária do crime. As anomalias mentais além de não trazer qualquer efeito em benefício do gentio, era usado em seu desfavor, confirmando as suspeitas a cerca da presença das forças do mal.

            Eram punidos os homicídios, a deserção, o adultério, a perfídia, o roubo, este somente entre tribos ou tabas diferentes, pois já que no mesmo agrupamento tudo era de todos, neste caso o dano ou delito deixa de ser pessoal e se converte numa espécie de crime de Estado. As penas mais severas - de caráter corporal, provações até a morte ou entrega do criminoso para a própria vítima ou parentes seus - eram aplicadas proporcionalmente nos casos de delitos com maior gravidade, por um juiz ou uma espécie de assembléia, constituída em tribunal.

            2.2. Características Gerais das Ordenações

            É de fundamental importância o exame das Ordenações do Reino, pois sendo estas as primeiras leis que vigeram em solo brasileiro, marca-se o início científico da evolução na história da matéria criminal no Brasil. Procuramos fazer uma pequena introdução buscando entendê-las primeiro no contexto geral antes de adentrarmos amiúde na análise de cada uma delas.

            2.2.1. Conceito

            As ordenações nada mais são do que uma compilação de leis, elaboradas a partir da necessidade de suprir contradições e lacunas oriundas do grande número de leis, ordens, alvarás, dentre outros da época.

            2.2.2. Origem

            O direito lusitano teve como espelho o Decreto de Graciano, como é tradicionalmente conhecido. Escrito entre os anos de 1141 e 1150, a este monge do mosteiro de São Félix, na cidade de Bolonha, Itália, deu-se à autoria da primeira reunião didaticamente organizada das coleções canônicas, incorporando ao direito eclesiástico a metodologia do direito romano. Mesmo sendo a obra fruto de sua organização usada com freqüência nas universidades, transformando-se inclusive numa referência para o estudo do Direito Canônico, não se tornou uma compilação legislativa. Vindo esta a ser criada somente em 1234, a mando de Gregório IX, baseada na obra de Graciano e em outras coleções posteriores, chamando-se de Decretais de Gregório IX, ou Decretais. Tendo as ordenações, portanto, como fontes principais o direito romano e o direito canônico, usando largamente sua fundamentação nos preceitos religiosos, onde o crime era confundido com o pecado e com a ofensa moral (direito, religião e moral).

            2.2.3. Estrutura

            Todas as três ordenações (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), vigentes durante todo o período Colonial até 1822, conservavam essencialmente a mesma estrutura, organizadas da seguinte forma: cinco livros (como se fossem os códigos de hoje), estes livros tinham uma certa quantidade de títulos, onde cada um tratava sempre sobre determinado assunto específico (equiparados aos capítulos da atualidade) e cada título tinha vários parágrafos que eram numerados, ordenando o texto (igual aos artigos e parágrafos).

            2.2.4. Matéria Criminal e Tipos de Penas

            A matéria criminal, em todas elas, era tratada sempre no tenebroso Livro Quinto, que admitiam penas severas e cruéis, desproporcionais à falta praticada e sem serem fixadas antecipadamente, ficando ao livre arbítrio do juiz, tais como os tormentos, as mutilações, os degredos, as torturas, os açoites, as marcas de fogo, as capelas de chifres, as infâmias, os confiscos, as multas, dentre outras práticas desumanas.

            A pena de morte não só era permitida como também usada em larga escala, para ser mais exato. Decretada por sentença, preferencialmente se designada através da forca (morte natural), possuindo esta algumas espécies de modalidades: antecedida de torturas (morte natural cruelmente); o corpo do condenado ficava suspenso na forca e putrefazendo-se, até cair podre ao solo do patíbulo com o decorrer do tempo, lá ficando enquanto não era recolhida pela Confraria da Misericórdia, que o fazia somente uma vez por ano, no primeiro dia do mês de novembro (morte para sempre). Existia também a pena capital onde o réu era queimado vivo, até o corpo se reduzir a pó (morte pelo fogo); o condenado depois de morto, era açoitado, queimado ou esquartejado (morte atroz).

            As penas eram reguladas de acordo com a classe social do criminoso, caracterizando uma nítida "desigualdade de classes perante o crime, devendo o juiz aplicar a pena segundo a graveza do caso e a qualidade da pessoa: os nobres, em regra, eram punidos com multa; e aos peões ficavam reservados os castigos mais pesados e humilhantes".

            2.3. Ordenações Afonsinas (1446-1521) [18]

            No período do descobrimento da Ilha de Santa Cruz, posteriormente chamada de Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil, por Pedro Álvares Cabral [19] em 22 de abril de 1500, estava vigorando em Portugal (ou melhor, dizendo, no Império Lusitano), as Ordenações Afonsinas de 1446, contendo 121 títulos. Promulgadas por Dom Afonso V, sua elaboração teve como encarregados iniciais da codificação os chanceleres João das Regras, João Mendes Cavaleiro e Rui Fernandes, ainda no início do século XV, a mando do Rei da Boa Memória. Sendo a primeira compilação oficial portuguesa e o primeiro código da Europa.

            2.4. Ordenações Manuelinas (1521-1569) [20]

            Em 1505 iniciou-se a reforma das Ordenações Afonsinas por ordem de Dom Manuel, então ocupante do trono português, e somente em 1521 foram então estas substituídas pelas Ordenações Manuelinas, elaborada e editada pelo rei lusitano, com 113 títulos e a inclusão de todas as leis extravagantes publicadas e não codificadas desde as ordenações passada.

            As duas ordenações, no entanto, não chegaram a ser aplicada na Terra de Santa Cruz, sendo de uso exclusivo dos portugueses, até porque a colonização só começou a se fazer efetivamente a partir de 1532 com Martim Afonso de Souza. Até este momento, portanto, não havia qualquer tipo de norma escrita regulando os comportamentos da terra recém descoberta. "Regiam então, já havia uma década, as Manuelinas, razão pela qual constitui um equívoco a recorrente afirmação de que as Ordenações Afonsinas foram as primeiras leis vigentes no Brasil colonial. A predominância de um poder punitivo doméstico, exercido desregulamentadamente por senhores contra seus escravos, é facilmente demonstrável, e constituirá remarcável vinheta nas práticas penais, que sobreviverá à própria abolição da escravatura" [21].

            As Ordenações de Dom Manuel foram o primeiro código do mundo a ser publicado pela imprensa.

            2.5. Código de Dom Sebastião (1569-1603)

            Com o passar dos anos, inúmeros diplomas legais avulsos foram publicados. Então, em 1569, Dom Sebastião - o Desejado, então Rei de Portugal [22], pediu a Duarte Nunes de Leão, que fossem todas elas reunidas em uma espécie de coletânea, facilitando desta forma o manuseio e a sua aplicação. Tal trabalho deu origem em 14 de fevereiro do mesmo ano uma Coleção de Leis Extravagantes.

            Neste ponto ocorre uma importante divergência na doutrina. Para alguns estudiosos, a nova coleção juntou-se as Ordenações Manuelinas, existindo apenas uma agregação, não havendo, portanto, revogação. Já para a maioria, como E. Magalhães Noronha, o Código de Dom Sebastião teria sim revogado as Ordenações de Dom Manuel. A segunda hipótese nos parece mais convincente.

            2.6. Ordenações Filipinas (1603-1830)

            Durante a União Ibérica [23], o Rei da Espanha e Portugal, Felipe I, através do ato de 5 de junho de 1595, mandou que fossem compiladas novas ordenações com raízes espanholas. Somente em 11 de janeiro de 1603, as Ordenações Filipinas, promulgadas pelo sucessor do rei, seu filho Dom Felipe II - o Pio, com 143 títulos, vieram revogar as Ordenações Manuelinas, passando a viger em todo o reino português, inclusive no Brasil Colônia até 1830, com o advento do Código Criminal e posteriormente em 1832 com o Código de Processo Criminal do Império, sendo, portanto, o nosso primeiro Código Penal e Processual Penal e também o ordenamento jurídico criminal que mais tempo vigorou no Brasil, mais de dois séculos.

            Esta ordenação acolhia os delitos previstos nas Ordenações Manuelinas e contemplaram vários outros. O louco não estava incluído de maneira especifica na compilação de Felipe II, porém estava aquele indivíduo com desenvolvimento mental incompleto (menoridade), onde a parte final do título CXXXV nos apresenta que o menor de dezessete anos não seria punido com a pena capital (morte natural), ficando ao julgador a incumbência de substituí-la por outra sanção:

            "Quando os menores serão punidos por os delictos, que fizerem - Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte annos, commetter qualquer delicto, dar-se-lhe-ha a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e cinco annos passasse. E se fôr de idade de dezasete annos até vinte, ficará em arbítrio dos Julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E em este caso olhará o Julgador o modo, com que o delicto foi commettido, e as circumstancias delle, e a pessôa do menor; e se o achar em tanta malicia, que lhe pareça que merece total pena, dar-lhe-ha, postoque seja de morte natural. E parecendo-lhe que a não merece, poder-lha-ha diminuir, segundo a qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delicto foi commettido. E quando o delinquente fôr menor de dezasete annos cumpridos, postoque o delicto mereça morte natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe outra menor pena. E não sendo o delicto tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a disposição do Direito Commum".

            2.7. Código do Império (1830-1890)

            Mesmo proclamada a independência política do Brasil em 7 de setembro de 1822, por Dom Pedro I, o Código Filipino continuou em vigor, devido a uma Assembléia Constituinte, onde pelo art. 1º do decreto de 20 de outubro de 1823, foi revigorada a vigência das leis portuguesas, especialmente para o Livro Quinto das Ordenações Filipinas, "enquanto não se organizassem novos códigos ou não fossem revogados aqueles atos legislativos" em tudo que não contrariasse a soberania nacional e o regime brasileiro. Assim, o país herdava de Portugal as normas contidas nas ordenações.

            A Constituição Imperial, outorgada poucos anos depois, em 25 de março de 1824, além de abolir imediatamente todas as penas cruéis pelo dispositivo dos direitos e garantias individuais, expressos no art. 179, XIX, "Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis", exigiu também no art. 179, XVIII, a elaboração de um Código Criminal, "Organizar-se-ha quanto antes um Codigo Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade". Tendo como elaboradores do projeto os parlamentares Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira, foi aprovado o Código Criminal do Império de 1830, sancionado pelo então imperador, através do decreto de 16 de dezembro, e o Código de Processo Criminal em 1832. Podemos afirmar, portanto, que juridicamente o Código Criminal de 1830, além de ser o primeiro código autônomo da América Latina e o primeiro código penal nacional, foi fruto de observância de comando da Constituição Imperial de 1824.

            O Código Penal do Império, que só veio vigorar a partir de 8 de janeiro de 1831, foi o primeiro ordenamento jurídico a acolher a figura dos loucos, mencionados em basicamente dois de seus artigos. O primeiro trazia no corpo de seus parágrafos a taxação da maioridade penal, tendo estes um julgamento especial, como também a exclusão do crime que viessem a cometer: art. 10, § 1° (fixa em 14 anos a maioridade penal); § 2°: não seriam considerados criminosos "os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lucidos intervallos e nelles commetterem o crime".

            Percebemos aqui que a taxação de "criminoso" não existe para estas criaturas especiais, o que há é o tratamento do indivíduo como "doente", sendo necessária a imposição de um tratamento através da medida de segurança. Porém, a lei penal da época de D. Pedro I tinha uma exceção a este respeito. Quando o crime era cometido por loucos em intervalos lúcidos, as autorias criminosas eram-lhes atribuído normalmente, condenados como pessoas consideradas normal.

            No segundo dois eram os destinos dos loucos que cometessem fatos tipificados como crimes, de acordo com o seu art. 12: "os loucos que tiverem commettido crimes serão recolhidos ás casas para elles destinadas, ou entregues ás suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente". Aos "recolhidos", isto é, internados em casas específicas, podem-se interpretar como já sendo uma espécie de medida de segurança; ou eram entregues aos seus respectivos familiares. Esta escolha ficava única e exclusivamente a critério da consciência do magistrado, tendo plena e total liberdade para decidir, ditando a verdade jurídica, sem se vincular a nenhum tipo de regra e sem precisar fundamentar sua íntima convicção [24].

            2.8. Código Republicano (1890-1932)

            Proclamada a República em 15 de novembro de 1889 devido a um golpe militar, Marechal Manuel Deodoro da Fonseca assumiu o comando do país. Um dos primeiros atos tomados pelo chefe do Governo Provisório (1889-1891), foi o banimento da família imperial do país. Em meios a novas aspirações por reforma, Campos Sales, então Ministro da Justiça, conferiu ao conselheiro João Batista Pereira a incumbência da elaboração e organização de uma nova legislação criminal para a recém declarada república. Em poucos meses nascia o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, através do Decreto n.º 847, de 11 de outubro de 1890, com sua vigência para dali a seis meses, após sua publicação, de acordo com o Decreto n.º 1.127, de 6 de dezembro de 1890.

            O Código Penal da República manteve o mesmo tratamento de seu antecessor quanto as tratamento dos loucos: a exclusão do ilícito penal, "colocando a saúde mental como pressuposto para a configuração de crime" [25]. O art. 27 trazia a seguinte escritura: "Não são considerados criminosos: § 1º (nove anos para a maioridade penal), § 3º Os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, fôrem absolutamente incapazes de imputação; § 4º Os que se acharem em estado de completa privação [26] de sentidos e de intelligencia no acto de commeter o crime; § 7º Os surdo-mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação, nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento".

            Percebemos, no entanto, uma discreta, porém importante evolução quantos aos procedimentos de internação dos incapazes por doença mental. Estes continuavam a ser entregues as suas respectivas famílias para os devidos cuidados, ou recolhidos a hospitais de alienados, só que a decisão do juiz, seja para qualquer um destes, teria que vim acompanhado de uma fundamentação, só sendo devido o internamento quando o indivíduo apresentasse perigo à segurança e a ordem pública. "Art. 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues ás suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, se o seu estado mental assim exigir para segurança do publico".

            Com a Proclamação da República, os estados passaram a ter constituições próprias e poderiam também possuir seus códigos de processo penal próprios (poucos, contudo, o tiveram).

            2.9. Consolidação das Leis Penais ou Código de Piragibe (1932-1940)

            Inúmeras foram as críticas em relação ao Código Penal de 1830, dentre elas, a rapidez com que foi elaborada e aprovada, gerando lacunas e imperfeições. Tal insatisfação resultou em um aglomerado de leis penais editadas no decorrer dos anos seguidos em complemento ao omisso código, na tentativa de remendá-lo, muitas delas contraditórias, dificultando ainda mais a solução dos litígios jurídicos, sendo causa de um imenso desconforto e incerteza na sua aplicação: "Era embaraçosa a sua consulta, árdua a obrigação de lidar com elas" [27]. Podemos afirmar, portanto que esta consolidação teve sua gênese na desorganização das leis penais a época.

            Como conseqüência, vários projetos de tentativa de reforma do Código Penal da República vinham sendo elaborados. Tal trabalho não foi paralisado com a Revolução de 1930 e a instauração do Governo Provisório no ano seguinte. De tão elevado que era o número das legislações extravagantes em vigência, o Desembargador Vicente Piragibe elaborou e publicou um livro intitulado "Código Penal Brasileiro, Completado com as Leis Modificadoras em Vigor", contendo quatro livros e quatrocentos e dez artigos, onde reunia todas as leis criminais de seu tempo de forma simples e didática, sendo muito bem recebido por toda a comunidade jurídica. Tamanho foi o sucesso que o então Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, oficializou o trabalho, após o consentimento do autor, como "Consolidação das Leis Penais" através do Decreto n° 22.213, de 14 de dezembro 1932, passando, de forma precária, a ser o Estatuto Penal Brasileiro.

            Piragibe basicamente manteve em sua obra a mentalidade dos códigos passados, onde os loucos não eram considerados criminosos por atos ilícitos que viessem a cometer, senão vejamos: "Art. 27. Não são criminosos: § 1º os menores de 14 annos; § 2º os surdos mudos de nascimento, que não tiverem recebido educação nem instrucção, salvo provando-se que obraram com discernimento; § 3º os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; § 4º os que se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de intelligencia no acto de commetter o crime".

            Como mudança, ouve o restabelecimento no § 1º da maioridade penal aos 14 anos. De novidade percebemos dois pontos importantes: foi afastado o intervalo lúcido como exceção do estado de loucura; quanto à internação, os indivíduos seriam agora alojados em pavilhões especiais de asilos públicos, enquanto eram construídos manicômios criminais. Art. 29. Os individuos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues a suas famílias, ou recolhidos a hospitaes de alienados, si o seu estado mental assim exigir para a segurança do público. Emquanto não possuirem os Estados manicomios criminaes, os alienados delinquentes e os condemnados alienados sómente poderão permanecer em asylos publicos, nos pavilhões que espacialmente se lhes reservem".


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

            FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

            FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da Inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2000.

            GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, Vol. I, Tomo I. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1980.

            GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal Indígena. São Paulo: Max Limonad, 1987.

            LÉVI-BRUHL, Lucien. La Mentalité Primitive. 14ª ed. Paris - França, 1947.

            NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, vol. 1. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

            PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade e Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002.

            SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1996.

            VICENTINO, Cláudio. História Geral. 6ª ed. São Paulo: Spicione, 1996.

            ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003.


Notas

            01 Divisão clássica do período histórico por VICENTINO, Cláudio. História Geral. 6ª ed. São Paulo: Spicione, 1996. Pág. 8.

            02 "Quanto aos loucos, se não puderem ser controlados pelos parentes, deve-se procurar, por intermédio do governador, outra solução: a saber, que sejam encarcerados", tradução de PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade e Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002. Pág. 14.

            03 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da Inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2000. Pág. 16-7.

            04 Impresso pelo Arcebispo Gui de Poissieu, por volta de 1478, representava um ritual da Diocese de Viena, capital da Áustria. FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. Pág. 6.

            05 O livro História da Loucura, sob o título original Folie et déraison, histoire de la folie à l’âge classique, foi escrito em virtude da tese de doutorado, defendida pelo francês Paul-Michel Foucault em 20 de maio de 1961. Era psicólogo, filósofo e professor. Posteriormente ficou-se sabendo que era homossexual e já tinha tentado algumas vezes o suicídio. Morreu precocemente em 25 de junho de 1984 em conseqüência das complicações trazidas pela AIDS, aos 57 anos.

            06 FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. Pág. 11-2.

            07 Título original em francês: Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie. Em sua segunda edição (1809), devido a sua larga experiência prática médica, aliada a sua profunda reflexão sobre a alienação mental, Pinel acrescenta novas páginas em sua obra, trazendo a célebre frase: "... há sempre um resto de razão no mais alienado dos alienados", trazendo a possibilidade da idéia de um tratamento humano, baseado no diálogo, na relação com a família e com os demais doentes, pois a alienação nunca era completa. Pinel colocava o tratamento medicamentoso em segundo plano.

            08 rande parte dos loucos eram mantidos acorrentados em celas úmidas, homens e mulheres, perigosos ou não, alguns deles encadeado a mais de 30 anos.

            09 Prática de extremo sofrimento que levou a morte de um dos fundadores e primeiro presidente na história dos Estados Unidos - George Washington, em 1799.

            10 No Brasil, três eram os destinos dos loucos: ficavam separados da sociedade nas casas de seus familiares, viviam pelas ruas ou trancafiados nos porões da Santa Casa de Misericórdia. Sensibilizado por inúmeras denúncias inspiradas pelos ideais revolucionários franceses, e impressionado com os gritos dos loucos vindo daquele espaço sem nenhuma condição de habitação, D. Pedro II sanciona em 1941, o decreto de criação do hospício.

            11 Pertenciam à primeira classe os indivíduos brancos, moradores da Corte, fazendeiros, funcionários públicos; à segunda, pequenos proprietários, comerciantes, religiosos, profissionais liberais; e à terceira, os escravos pertencentes a um senhor importante. Existia ainda uma outra classe, mais numerosa que as anteriores, destinadas aos indigentes, ou seja, aos pretos ou pardos recém-libertos. Enquanto os pacientes de primeira e segunda classe vivem em quartos individuais ou duplos e se entretêmcom pequenos trabalhos manuais ou jogos, os de terceira trabalham na cozinha, manutenção, jardinagem e limpeza. Paradoxalmente, os últimos se recuperavam com mais facilidade que os primeiros, que, paralisados pelo ócio, perpetuaram-se ma internação.

            12 Em 1856 um relatório acusa sua superlotação devido à entrada indiscriminada de pacientes de todos os estados do território nacional, curáveis e incuráveis, afetados mentalmente ou meros indigentes excuídos. A superlotação faz com que o atendimento se degrade e as imponentes instalações fiquem precárias e descuidadas, configurando-se uma história de decadência. João Carlos Teixeira Brandão assume em 1886 a direção do hospício, mudando seu nome para "Hospício Nacional de Alienados" em 1890. Os cinco anos que antecederam a passagem para o séc. XX foram marcados pelo caos administrativo, resultando em grandes críticas de intelectuais da época.

            13 Sofreu restrições ao entrar na universidade por ser judeu.

            14 GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal Indígena. São Paulo: Max Limonad, 1987. Pág. 14.

            15 LÉVI-BRUHL, Lucien. La Mentalité Primitive. 14ª ed. Paris - França, 1947. Pág. 308-9.

            16 "É comum, entre os povos rudes, cercar-se a mulher de valor místico, por suas funções geradoras, o que às vêzes constitui motivo para nela ver maior fonte de perigos", GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal Indígena. São Paulo: Max Limonad, 1987. Pág. 104.

            17 A maioria dos povos primitivos afirmava que as crianças eram portadoras de almas encarnadas de adultos já falecidos.

            18 O ano exato da promulgação das Ordenações Afonsinas não é unânime entre os estudiosos: 1456 para CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002. Pág. 104; 1447 para ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Pág. 413.

            19 Alguns historiadores defendem que Vicente Pizón esteve no Brasil em 26 de janeiro de 1500, em um local chamado "Ponta de Mucuripe", cerca de dez quilômetros ao sul da cidade de Fortaleza, capital do Ceará.

            20 O ano exato da publicação das Ordenações Manuelinas, revogando as Ordenações Afonsinas também é objeto de discordância entre muitos autores: 1512 para NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal, vol. 1. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Pág. 55; PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade e Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2002. Pág. 28.

            21 ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro: Primeiro Volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Pág. 413.

            22 A época do falecimento de seu avô, o rei Dom João III, em 1557, Dom Sebastião tinha apenas três anos de vida, sendo-lhe nomeado como regente seu tio Dom Henrique, até o jovem rei ter a idade de quatorze anos, início de seu governo.

            23 "A crise de sucessão portuguesa originada com a morte do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e continuada com a morte de seu substituto, o cardeal D. Henrique, sem deixar sucessor direto, resultou na conquista de Portugal por Felipe II, rei da Espanha, em 1580. Apesar da unificação das Coroas, Felipe II tentou preservar a imagem de Portugal, não o tratando como nação conquistada, mas como um país que se uniu à Coroa espanhola", SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1996. Pág. 65.

            24 No nosso direito atual, a Carta Magna de 1988 em seu art. 93, IX, nos ensina que toda decisão deverá ser fundamentada, sendo inclusive, requisito da elaboração da sentença criminal, sob pena de nulidade, de acordo com o art. 381, III e IV e art. 564, III, m do CPP.

            25 FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da Inimputabilidade no Direito Penal. São Paulo: Malheiros, 2002. Pág. 21.

            26 Tais escrituras representavam o texto original. A expressão "completa privação de sentidos e de intelligencia" foi posteriormente profundamente criticada, considerada sua colocação de extremamente infelicidade, gerando confusão e impunidade na sua implicação. O Decreto nº 4.780, de 27 de dezembro de 1923, em seu art. 38 determinou a mudança da antiga expressão pela "completa perturbação de sentidos e de intelligencia", ou seja, havendo a troca dos termos "privação" por "perturbação". Texto aproveitado posteriormente pelo Des. Vicente Piragibe em sua obra criminal.

            27 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal, Vol. I, Tomo I. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1980. Pág. 137.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES FILHO, Marco Antonio Praxedes de. Evolução histórica da inimputabilidade penal: uma abordagem cronológica da loucura na humanidade e seus reflexos na legislação criminal brasileira até o Código de Piragibe. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1017, 14 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8234. Acesso em: 28 mar. 2024.