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Atuação do Poder Legislativo e pandemias

Atuação do Poder Legislativo e pandemias

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É importante avaliar a atuação do Poder Legislativo frente a cenários de emergências sanitárias relevantes. Antes de tratar da situação atual quanto ao combate à covid-19, necessário um passeio histórico, para que possamos tanto visualizar caminhos futuros, quanto compreender as ações no presente momento.

Madeira (2012), em sua monografia sobre as medidas de caráter sanitário adotadas no Brasil para enfrentar a pandemia de gripe A (H1N1) e sua potencial ameaça a direitos e liberdades do cidadão, registra a elaboração pelos técnicos do setor, a partir de 2002, de anteprojetos de lei objetivando “atualizar” nossa legislação sanitária, inclusive quanto ao respaldo legal, para que as autoridades sanitárias possam adotar as medidas de saúde pública preconizadas pelo RSI (Regulamento Sanitário Internacional). Também para ela, existem imperativos jurídicos que justificam a revisão de nossa legislação: “seu anacronismo frente à atual conformação do nosso sistema público de saúde e a falta de instrumentos adequados para que o Estado e a sociedade civil consigam organizar-se no enfrentamento dos riscos à saúde pública” (p. 12).

Diante destas evidências, é interessante e importante avaliar a atuação do Poder Legislativo brasileiro frente a emergências sanitárias relevantes. Antes de tratar da situação atual quanto ao combate a Covid-19, apresento um histórico da atuação, podendo indicar caminhos futuros, tanto quanto compreender as ações no presente momento.

A primeira emergência sanitária de que trato, ocorreu entre 1991 e 2005, sendo a pandemia de cólera. O contexto político e institucional naquele momento era de reforma neoliberal do Estado, recessão econômica, institucionalização recente do SUS e impedimento do Presidente da República (Era Collor). A resposta do Congresso Nacional à pandemia de cólera ocorreu a partir de fevereiro de 1991, passando a serem proferidos crescentes números de discursos na Câmara dos Deputados, com teor de alerta e preocupação com a entrada e disseminação da doença no Brasil. No período inicial da pandemia no país, foi apresentado projeto de lei que tratava da informação à população. Em 1992, houve projeto de teor similar. Contudo, ambos foram arquivados ao final da tramitação, mesmo tendo tido pareceres favoráveis.

No caso da pandemia de cólera, 70% das ações envolviam pronunciamentos, havendo poucas ações fiscalizatórias e pequena produção normativa, sendo que, além dos projetos já mencionados, houve também um projeto que estabelecia a gratuidade nos transportes públicos para agentes de saúde.

A análise dos pronunciamentos no período evidenciou uma atividade parlamentar prolífera, pelo menos nos primeiros momentos da epidemia, caracterizada pela preponderância de alertas, denúncias e manifestações de preocupação com o risco de entrada e alastramento da epidemia no país (ou seu agravamento), acompanhadas ou não de pedidos de providência às autoridades (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

A emergência sanitária decorrida da pandemia de influenza H5N1 (gripe aviária), ocorrida entre 1999 e 2006, ocorreu em um contexto conhecido como legislatura perdida (devido aos escândalos envolvendo o Legislativo), bem como com o SUS, passando por problemas de financiamento. A resposta do Congresso Nacional à pandemia da gripe aviária ocorreu em um período de baixa produtividade legislativa, devido à conjuntura que envolvia uma série de escândalos. O foco de atuação dos parlamentares era outro e a resposta da Câmara à gripe aviária foi caracterizada novamente pela predominância de pronunciamentos, sendo que 60% das ações envolviam a temática de alerta para o problema, denúncia do despreparo do país para o enfrentamento da crise e pedidos de providências.

A mobilização do Parlamento diante do risco de uma pandemia de gripe iniciou-se timidamente na Câmara dos Deputados, em 1999, e assim se manteve até 2003, intensificando-se em 2004 com a piora da situação na Ásia. Os anos de agravamento da crise político-institucional foram, paradoxalmente, aqueles em que os parlamentares mais se mobilizaram com o problema: 80% das ações – inclusive 3 de 4 projetos de lei – se concentraram nos anos de 2005 e 2006 (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

A resposta do Congresso Nacional à pandemia de SARS, ocorrida entre 2003 e 2005, envolvia um contexto político e institucional de pleno exercício de funções e prerrogativas do Congresso Nacional e o SUS, já implantado e consolidado, operava de forma funcional. O Brasil não chegou a registrar casos ao longo desta crise sanitária, entretanto, ela representou risco elevado e chegou a causar impactos econômicos relevantes no nosso país.

Diferentemente das anteriores, a epidemia de SARS encontrou o Congresso Nacional em pleno exercício de suas funções e prerrogativas e sem intercorrências à sua atuação. A mobilização do parlamento brasileiro se fez logo nos primeiros momentos: quinze dias após o alerta da OMS (1º de abril de 2003), a Câmara dos Deputados aprovou requerimento de informação ao Ministro da Saúde sobre medidas de prevenção que se pretendia tomar (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

Durante essa crise, a atuação preponderante ocorreu por parte da Câmara dos Deputados, sendo que mais da metade das ações envolviam pronunciamentos, estes envolvendo a indicação ou pedido de atuação das autoridades sanitárias, incluindo informações disponibilizadas para a população. Apenas um projeto legislativo foi apresentado ao Senado Federal, obrigando companhias de transporte aéreo, ferroviário e rodoviário de passageiros quanto a disponibilização de máscaras cirúrgicas descartáveis para seus usuários.

A proposição foi rejeitada pela Comissão de Assuntos Sociais daquela Casa (para a qual tinha sido distribuída para apreciação em decisão terminativa) depois de sete anos de tramitação, e acabou arquivada (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

A quarta pandemia da qual trato é a de H1N1 (gripe suína), ocorrida entre 2009 e 2010, decorrida de um contexto de pleno exercício de funções e prerrogativas do Congresso Nacional, já durante a vigência do novo RSI, passando o SUS por problemas quanto ao seu financiamento. A resposta do Congresso Nacional a esta crise sanitária envolveu pronunciamentos em 80% das ações, sendo que a análise dos conteúdos revelam temas como a preocupação com o agravamento da crise, preocupações com impactos na produtividade e quanto à atuação do governo. A produção normativa ocorreu por meio da conversão de duas medidas provisórias em lei e pela apresentação de dois projetos de lei, oriundos da Câmara dos Deputados: um tratando de regras emergenciais específicas para combater pandemias no país, e outro a respeito da concessão de licença maternidade por um prazo de 30 dias.

Em síntese, a resposta do Parlamento Federal às emergências sanitárias teve características similares em todas as situações estudadas: foi concentrada nos momentos iniciais e de maior gravidade e, do ponto de vista da produção normativa, insatisfatória. Em todos os casos, o Parlamento reagiu, inicialmente, com a produção de pronunciamentos nos quais os parlamentares manifestavam preocupação quanto à situação e pediam providências e, a seguir, passou a fiscalizar as ações implementadas pelas autoridades sanitárias por meio de requerimentos de informação, convocação de autoridades e audiências públicas (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

O momento atual, no qual passamos pela pandemia do coronavírus, acontece em um contexto político e institucional de instabilidade, podemos dizer que o Poder Legislativo funciona pleno em funções e prerrogativas, mas é inegável a crise institucional e política, a polarização política e a crise econômica. Podemos dizer também que o SUS passa atualmente não só por questão problemática quanto ao financiamento, mas também quanto ao seu funcionamento e sua capacidade infraestrutural frente à demanda pelos seus serviços. A resposta do Congresso Nacional pode ser muito relacionada a períodos anteriormente citados, sendo quase nula e limitando-se a aprovar questões orçamentárias propostas pelo Poder Executivo, tanto quanto a diversas proposições por meio de projetos de leis tratando de questões que permeiam a crise sanitária mas que não necessariamente prosperam ou “atacam” o problema.

Analisando as pautas do Congresso Nacional do período de 11/02/2020 até 23/05/2020, podemos observar que a primeira pauta relativa à pandemia se refere a um crédito extraordinário aos Ministérios da Saúde e Educação, ocorrido em 13/03/2020. Em análise geral, houve relativa demora para atuação, principalmente levando em conta a gravidade da pandemia atual, sendo que muitas das ações parecem ser repetidas, o que pode indicar falta de unidade para tomada de ação em um momento tão crítico.

Dentre as ações existem das mais diversas pautas, muitas estão ainda em tramitação, aguardando despachos ou apreciação, e outras até prontas para pauta no plenário, inclusive, algumas há muito tempo em espera. Dentre as ações, observamos muitas pautadas no viés econômico (abertura de linhas de crédito, lei de recuperação e falências, postergação de pagamentos de títulos, projeto de socorro aos estados, corte de gastos da Câmara dos Deputados, seguro de vida para profissionais da saúde, auxílios e indenizações), em geral, pacotes de ajuda econômica, programas emergenciais de suporte a empregos e de incentivos fiscais.

Apesar de indicar grande número de propostas, que sim, são importantes para o combate à pandemia, estas me parecem mais voltadas a uma preocupação inicialmente econômica do que com o bem-estar da população e combate ao vírus, visando não necessariamente a crise de saúde mas sim a crise financeira, que já batia a porta antes da chegada do corona vírus. Dentre as ações voltadas essencialmente a questão da saúde e combate aos danos da pandemia podemos destacar projetos como o e-Gov, ampliação da validade de receitas médicas, proibição de exportação de respiradores, regulamentação da telemedicina, obrigatoriedade do uso de máscaras em todo país, distribuição de alimentos e equipamentos de proteção (EPIs), auxílios as comunidades tradicionais e a instituições de acolhimento. Vale ressaltar que nem todas as medidas citadas já foram aprovadas, ao contrário, muitas ainda se encontram em processo de tramitação.

Em todos os episódios aqui relatados podemos ver um rápido diagnóstico das necessidades, possibilidades e incapacidades do SUS no combate as pandemias, diagnóstico que parte dos agentes e gestores sanitários e de saúde. A observação de ROMERO e DELDUQUE (2017) que aponta que o Congresso Nacional reagiu as pandemias com uma postura mais política do que propositiva, e que ainda, do ponto de vista da produção legislativa, sua atuação foi incipiente e dissociada das necessidades reais, novamente se constata no período atual. Pode se fazer ressalvas já que evidentemente mais ações foram concretizadas (e até pautadas), incluindo as ações que partem do Poder Executivo (medidas provisórias), já que, a exemplo, muitos créditos extraordinários foram apreciados e aprovados, sendo eles para todas as áreas, mas principalmente ao Ministério da Saúde. Cabe mencionar que tais medidas podem ter relação com o tamanho do problema, e não necessariamente com uma tomada de consciência da importância desta atuação por parte do Poder Legislativo.

Poder-se-ia considerar que a urgência e a flexibilidade com que é demandada a decisão política necessária ao enfrentamento dessas emergências não são compatíveis com os padrões, os ritos e os processos lógico-formais do processo legislativo. Essa, no entanto, não deve ser sequer parte da explicação, uma vez que, mesmo passada a emergência e diante da recorrência de eventos similares, as casas legislativas do Congresso Nacional não se mobilizaram para produzir normas necessárias (ROMERO e DELDUQUE, 2017).

A visão apresentada por ROMERO e DELDUQUE (2017), em seu estudo, consideram que as diferentes conjunturas políticas e institucionais em cada período de pandemia apresentado não refletem, necessariamente, na ação ou inação dos parlamentares do Congresso Nacional. Isso seria mais um reflexo do tratamento político dado pelos mesmos do que devido as conjunturas. Trazendo ao momento atual, o comportamento dos parlamentares reflete também este tratamento político. Entretanto, a conjuntura do momento, de tamanha crise política e institucional, pode representar, sim, uma influência na atuação e respostas da Câmara. A polarização e, principalmente, os movimentos negacionistas atuais, negacionistas da ciência e da veracidade e gravidade da pandemia, negacionistas das recomendações médicas e boas práticas (vide por exemplo a saída de dois Ministros da Saúde em meio a crise) são evidentes influências na atuação de parlamentares e no curso de suas ações.

Enquanto o tratamento político por parte dos parlamentares perdurar, as ações sempre estarão reduzidas a incrementalismos durante períodos de crise, a atividades de baixa produção legislativa, essencialmente limitadas a aprovação de medidas provisórias e ações discursivas, bem como a proposição de projetos que permeiam, mas não atingem, de fato, os problemas enfrentados, ficando sempre após as crises a expectativa de mudanças nas normas sanitárias e de saúde pública para controle de pandemias.

A cada nova crise, contudo, cada vez mais graves e danosas, o medo de uma atuação por parte do poder publico, que “prefere” tratar a doença, e não promover os cuidados à saúde, além de sintonizar sua preocupação e ações (mais ou menos incipientes) conforme o tamanho da gravidade.


Referências bibliográficas

- Congresso Nacional. Pesquisa de dados. Disponível em <https://www.congressonacional.leg.br/pt>. Acessado em 23 de maio de 2020.

- MADEIRA, A. Pandemia de influenza A(H1N1),medidas sanitárias e os direitos e liberdades individuais e coletivas: o caso do Brasil. 2012. 62 p. Monografia (Especialização em Direito Sanitário) – Fundação Oswaldo Cruz, Brasília, DF, 2012.

- ROMERO, L. e DELDUQUE, M. O Congresso Nacional e as emergências de saúde pública. Revista Saúde Soc. São Paulo, v.26, n.1, p.240-255, 2017.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAGUNDES, Otávio Elias Moura. Atuação do Poder Legislativo e pandemias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6178, 31 maio 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82605. Acesso em: 28 mar. 2024.