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A possibilidade de dispensa do pagamento de fiança pela autoridade policial

A possibilidade de dispensa do pagamento de fiança pela autoridade policial

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O Delegado de Polícia pode conceder a dispensa de fiança e a liberdade provisória ao preso em flagrante, quando este não puder arcar com o valor mínimo legalmente estabelecido, diante de sua hipossuficiência econômica.

Introdução

O presente artigo irá realizar um breve esboço acerca do livramento condicional mediante fiança realizada pelo Delegado de Polícia, expondo os ditames instituídos pela Lei Federal n.º 12403/201 e pelo Código de Processo Penal. 

Por fim, analisar-se-á a possibilidade de dispensa do pagamento de fiança ao preso em flagrante, quando este não puder arcar com o valor mínimo legalmente estabelecido, diante de sua hipossuficiência econômica. 


1. O livramento condicional mediante fiança em solo policial

A Lei Federal n.º 12403/2011 provocou relevantes alterações em dispositivos processuais penais atinentes ao tema das prisões provisórias, sendo possível dizer que tais inovações representaram avanço, na medida em que trouxeram uma proposta mais alinhada à Constituição Federal de 1988, aclamando o princípio da não culpabilidade (presunção de inocência, para outros) e a concepção do encarceramento do acusado antes do trânsito em julgado de sua sentença como a excepcionalidade.

Na vigência do Estado Constitucional e Democrático de Direito o encarceramento deve ser visto como “ultima ratio da extrema ratio”, ou seja, conforme pontua Guilherme de Souza Nucci (2014 p. 29), “deve-se ressaltar constituir a liberdade a regra, no Brasil; a prisão, a exceção”.

Para Aury Lopes Júnior, citando Amilton Bueno de Carvalho e Luigi Ferrajoli, o princípio da presunção de inocência, por meio da qual ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, é pressuposto da própria condição humana, sendo decorrência da jurisdicionalidade e da civilidade (apud LOPES, 2017).

Rejeitamos a discussão acerca da distinção prática das expressões “presunção de inocência” e “presunção de não-culpabilidade”, dado que este debate semântico conduz ao risco de posições inconclusas, dizendo que o cidadão passa a ser considerado não-culpado ou invés de presumível inocente, que, ao nosso ver, é um modo mais claro de firmar sua condição.

Esse mesmo posicionamento advém nas lições de Alexandra Vilela (apud BATISTI, 2009, p. 15): “fazer a distinção entre presunção de inocência e presunção de não-culpabilidade revela-se contraproducente, pois retira-se um significado determinativo, favorecendo, assim, soluções arbitrárias no plano aplicativo”.

Entre esses pontos alterados pela Lei Federal n.º 403/2011, a fiança foi um dos institutos que mais modificações sofreu, alterando as hipóteses de sua concessão pela Autoridade Policial. De acordo com a nova redação do art. 322 do Código de Processo Penal, o Delegado de Polícia concederá fiança nos casos de infrações penais cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não suplante o patamar de quatro anos, não mais exigindo que a conduta seja punível com pena de detenção ou prisão simples, como ocorria na antiga redação.

Percebe-se, então, que a fiança, em solo de Polícia Judiciária, independe do modo pelo qual a punição do crime ocorre, do regime de pena a ser aplicado (fechado, semiaberto ou aberto), mas, sim, da pena máxima cominada pelo legislador, adotando-se, tão somente, critério quantitativo de pena.

A liberdade condicional mediante o pagamento de fiança encontra abrigo constitucional entre os direitos e garantias fundamentais ao cidadão no artigo 5º, LXVI da Constituição Federal, pelo qual aduz-se que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança".

Para Renato Marcão (apud ARAÚJO, 2012), existem duas espécies de fiança no Direito brasileiro: "a fiança libertadora, que se presta como contracautela à prisão em flagrante, e a fiança restritiva tratada no art. 319 do CPP". Trataremos neste texto, unicamente, da primeira hipótese.

O Código de Processo Penal, alterado pela Lei Federal n.º 12403/2011, encarregou-se de estabelecer as situações em que o cidadão poderá se livrar solto após sua autuação em flagrante. Assim, configura-se um direito individual, cujo gozo encontra-se condicionado ao cumprimento de exigências legalmente previstas. Desta forma, a hipótese do arbitramento de fiança pela Autoridade Policial e a consequente libertação do autuado não deve ser encarada como uma concessão, ou mesmo, favorecimento à impunidade, como pensam os juridicamente leigos.

Para Nucci (2014, p. 133), o artigo 322 deve ser analisado conjuntamente com o artigo 313, I, ambos do CPP, pois, assim, denota-se a coerência entre esses dispositivos. De um lado, temos a previsão de que apenas será possível a concessão de prisão preventiva aos crimes apenados com pena máxima superior a quatro anos. De outro, será possível ao Delegado de Polícia arbitrar fiança e a consequente liberdade do preso diante de seu recolhimento em face da prática de crimes cuja pena máxima não seja superior a quatro anos, passando a funcionar como uma garantia de seu comparecimento futuro em juízo.

Após a captura do elemento em estado flagrancial, ele deve ser conduzido à presença da Autoridade de Polícia Judiciária, para que essa delibere acerca da situação jurídica posta, realizando preliminar juízo de subsunção típica do fato à norma penal incriminadora e determinando a adoção das formalidades legalmente previstas, tais como: redução a termo das versões apresentadas pelos envolvidos, elaboração de eventuais autos de reconhecimento de pessoa e/ou de objeto, requisição de perícias etc.

Em seguida, após efetuar seu fundamentado etiquetamento penal à conduta perpetrada, o Delegado de Polícia deverá atentar-se ao teto da sanção penal prevista ao crime em tela, para a determinação de qual procedimento deverá ser adotado, a depender da natureza do crime que será, a partir desta “notitia criminis”, investigado.

Em nossa obra "Manifesto pela independência funcional da carreira jurídica de Delegado de Polícia" (2016), propusemos a seguinte classificação, estabelecendo relação entre o tipo penal e seu procedimento investigatório:

1) Crimes de menor potencial ofensivo – correspondem às contravenções penais e os crimes cuja pena máxima não supere dois anos, em razão de sua menor gravidade, é possível uma maior celeridade para a sua apuração, através do procedimento policial investigativo do Termo Circunstanciado de Ocorrência, cujas características estão delineadas no bojo da lei 9099/95;

2) Crimes de médio potencial ofensivo – considera-se de gravidade mediana os crimes cuja pena máxima suplante dois anos, contudo, não avance quatro anos sendo, por isso, possível a concessão de fiança aos presos em flagrante delitivo pelo Delegado de Polícia. Após eventual concessão de liberdade provisória por meio de fiança, o Delegado de Polícia iniciará atividades investigativas que serão encadernadas em Inquérito Policial;

3) Crimes de alto potencial ofensivo – também serão apurados pela via do Inquérito Policial, todavia, correspondem aos crimes em que não será possível a liberdade provisória através da fiança pela Autoridade Policial, por superarem os quatro anos de pena máxima;

4) Crimes de altíssimo potencial ofensivo – aqueles cuja apuração será dada por meio de Inquérito Policial, entretanto, será possível a adoção de procedimentos investigativos especiais, em razão da notável gravidade destes crimes em apuração, tais como: colaboração premiada, infiltração de agentes, interceptação telefônica etc.

Nesta etapa de cognição sumária, mostra-se muito relevante a avaliação da incidência de concurso de crimes, causas de aumento ou diminuição de pena, sendo que a Autoridade deverá buscar o maior incremento ou a maior redução, visando, com isso, preservar a pena máxima a ser aplicada a esta situação, para a partir daí trilhar os caminhos da persecução penal adequados.

No artigo "Fiança, prisão preventiva e a matemática na Lei n.º 12403/2011", os autores Eduardo Cabette e Regina Cabette (2011) postulam pela interdisciplinariedade e a aproximação entre o Direito processual penal e a matémática, através do uso das operações aritméticas e lógicas para a solução da tipicidade processual diante dos casos concretos.

a) Tratando-se de causas de aumento de pena, deve-se trabalhar com o incremento máximo previsto, pois somente assim se chegará à pena máxima abstratamente cominada a determinado delito, sendo esta a baliza para o raciocínio lógico dedutivo já estudado que levará à conclusão da afiançabilidade pelo Delegado ou não ou pela possibilidade ou negativa do cabimento da preventiva;

b) Tratando-se de causas de diminuição de pena, deve-se trabalhar com o abrandamento mínimo previsto, pois somente assim se chegará também à pena máxima abstratamente cominada a certa infração penal, sendo igualmente a baliza para o raciocínio lógico dedutivo acima mencionado.

Para melhor compreensão, tome-se o seguinte exemplo: no crime de estelionato, em sua modalidade simples, previsto no artigo 171 do Código Penal, a pena máxima é de 5 anos, portanto, não é possível ao Delegado de Polícia o arbitramento de fiança. Todavia, em hipótese do mesmo delito ocorrer em sua forma tentada, aplicando-se a redução de 1/3, pois esta é a menor causa de diminuição prevista no artigo 14, parágrafo único, do Código Penal, o teto penal ficará estabelecido em 3 anos e quatro meses. Abaixo, portanto, do patamar permissivo para concessão da liberdade provisória com fiança (ARAÚJO, 2012).

O Delegado de Polícia, enquanto primeiro garantidor dos Direitos Fundamentais do cidadão (seja ele vítima ou investigado), deve nunca olvidar-se da mais absoluta precaução com o respeito às garantias individuais. Isto posto, em vislumbrando que a situação do autuado encaixa-se nos parâmetros instituídos, o benefício deve ser aplicado de imediato pelo Delegado, independentemente da presença de advogado. Estamos diante de "poder/dever da Autoridade de garantir ao preso o direito à fiança, ou minimamente orientá-lo sobre seu direito, o qual, qual cabível, desautoriza o recolhimento do autuado ao xadrez" (ARAGÃO, 2011).

Caso o Delegado de Polícia não proceda desta forma, estará sujeito à responsabilização penal pelo crime de abuso de autoridade, artigo 4º, "e", da Lei Federal n.º 4898/1965, pois estaria levando à prisão quem quer que se proponha ao pagamento de fiança permitida em lei. Além disso, ainda será possível, eventualmente, responsabilização pessoal nas esferas civil e administrativa.

Havendo recusa ou retardamento por parte da Autoridade Policial da concessão de fiança ao preso, esta poderá ser prestada, mediante simples petição, perante o juiz competente que decidirá em 48 horas. O Habeas Corpus também poderá ser manejado como remédio jurídico neste cenário.

Denegar-se-á fiança aos crimes inafiançáveis (art. 323, CPP) e, também, quando repousarem outras causas impeditivas (art. 324, CPP), como no caso da prisão civil de alimentos ou na prisão militar de natureza administrativa ou judicial.

No que concerne ao cálculo da fiança, de acordo com a redação do artigo 325 do Código de Processo Penal, o panorama oferecido ao Delegado de Polícia será de 1 a 100 salários mínimos e, levando em consideração a situação econômica do detido, poderá, ainda, reduzir o montante em até dois terços ou aumentá-lo em até mil vezes.

Para a aferição do valor a ser pago, a Autoridade Policial deverá levar em consideração em seu juízo (art. 326, CPP) a natureza da infração, a importância provável das custas do processo até o seu término, as condições pessoais de fortuna do preso, sua vida pregressa e periculosidade.

A quantia não deverá ser irrisória ou excessiva, fugindo dos parâmetros legais:

A concessão de uma fiança milionária a quem não dispõe de recursos financeiros equivale à negativa da mesma, configurando ônus mais gravoso que a própria prisão preventiva (Se só sai pagando, não sairá nunca!). Por outro lado, a mesma fiança talvez seja proporcional se estipulada para um abastado empresário que, com seus crimes, reiteradamente venha causando danos avaliados em milhões. (ARAÚJO, 2012)

Partindo-se dos valores previstos ao salário mínimo nacional em abril de 2018, ou seja, R$ 937,00, é possível afirmar que as cifras aplicadas à fiança policial podem ser aumentadas até R$ 93.700.000,00 ou mesmo diminuídas a R$ 312,00.


2. A possibilidade dispensa do pagamento de fiança pela Autoridade Policial

Visando conferir a maior eficácia possível aos Direitos Fundamentais do investigado, entende-se, por analogia, ser admissível ao Delegado de Polícia proceder dispensa de fiança, diante da hipossuficiência do cidadão autuado em flagrante delito, em respeito aos ditames dos artigos 326, §1º, I e 350, cominados com o artigo 3º do Código de Processo Penal.

A partir de uma interpretação sistemático-teleológica, postula-se que quando o legislador dispôs no art. 325 do CPP que o valor da fiança será fixado pela “autoridade”, utilizou o termo para referir-se tanto à autoridade judiciária quanto à autoridade policial, pois o legislador, quanto quer tratar de regra genérica para essas duas autoridades, não adjetiva este termo, e quando quer estabelecer uma ou outra, assim o faz, como ocorre no art. 321 do CPP, em relação ao juiz, e no art. 322 do CPP, no que se refere à autoridade policial.

No que tange à expressão “autoridade policial”, entende-se que ela se refere ao Delegado de Polícia de carreira, integrante da Polícia Civil ou da Polícia Federal, sendo os demais policiais “agentes da autoridade”. Neste sentido, advogam Mirabette, Nucci, Bitencourt, Oliveira, Tourinho Filho, entre outros (apud CABETTE; SANNINI, 2017).  Acompanhando este pensamento, ao término do I Seminário Integrado de Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo foi editada a Súmula n.º 2: “a nomenclatura ‘Autoridade Policial’, de que tratam o Código de Processo Penal, a Lei Federal n.º 9099/95 e a legislação correlata, refere-se ao Delegado de Polícia, integrante de carreira jurídica, presidente das atividades de polícia judiciária e dirigente das Polícias Civil e Federal”.

A possibilidade de dispensa da fiança pelo juiz encontra-se insculpida no art. 350 do CPP, pela qual o magistrado poderá conceder a liberdade provisória nestes moldes quando a situação econômica do preso assim indicar. Postula-se que, quando o art. 325, §1º, I remete ao art. 350, o faz não para designar a autoridade que teria a atribuição para dispensa a fiança, pois assim já o teria feito no art. 325, CPP, mas, sim, para sinalizar a condição e procedimento para a dispensa, ou seja, aos verdadeiramente pobres e miseráveis, vedando, deste modo, eventual dispensa de fiança para pessoa de condição financeira abastada (BARBOSA, 2015).

Neste sentido, André Nicolitt (2001, p. 95) entende que “a própria autoridade policial poderá dispensar a fiança e colocar o réu (rectius, indiciado) em liberdade. Tal posição encontra amparo, inclusive numa interpretação histórica, já que na lei 1060/50, antiga redação do art. 4º, a autoridade policial atestava pobreza”. Data vênia, é importante frisar que, em nosso entendimento, a expressão “réu” na fala do autor deveria ser alterada para “indiciado” ou “investigado”, pois não se deve confundir a fase pré-processual investigativa, onde não há que se falar em réu ou acusado, com a processual, na qual efetivamente ocorre a acusação e, por isso, pode-se dizer “réu”.

O apreço aos Direitos Fundamentais do cidadão deve orientar toda e qualquer ação estatal, por isso, não há razão, lógica ou jurídica, que seja capaz de minimamente sustentar tese acerca do impedimento da dispensa da fiança por parte do Delegado de Polícia, quando a situação econômica do autuado assim recomendar. Ora, acatar o contrário seria reforçar (ainda mais) a latente seletividade de nosso sistema penal, pois aquele que poderia arcar com o valor arbitrado, livrar-se-ia solto e, por outro lado, quem não o puder, preso permaneceria.

Uma discrepância teratológica, não havendo nenhum motivo coerente para amparar que o miserável, que não pode arcar sequer com o mínimo estabelecido por lei, deva ser, por esta circunstância, punido, tendo sua liberdade golpeada na fase policial da persecução penal, indo frontalmente de encontro à regra da prisão como “ultima ratio” em nosso sistema de democracia constitucional. Afinal de contas, como disse Bertholt Brecht: “que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?” (apud BARBOSA, 2018, p. 86)

A avaliação da capacidade econômica do indivíduo feita pelo Delegado de Polícia não deve causar estranheza, na medida que o próprio Código de Processo Penal, na forma de seu artigo 32, §2º, aduz que a comprovação de pobreza de alguém poderá ser feita por meio de atestado emitido pela Autoridade Policial. O Código de Processo Penal considera pobre “a pessoa que não puder prover as despesas do processo, nem privar-se dos recursos, indispensáveis ao próprio sustento ou da família”, sendo “prova suficiente da pobreza o atestado da Autoridade Policial em cuja circunscrição reside o ofendido”.

Inclusive, os Tribunais Superiores pátrios e Tribunais estaduais já se debruçaram sobre a questão da análise da condição de pobreza pelo Delegado de Polícia no âmbito do Inquérito Policial, julgados esses dos quais retiramos os seguintes trechos:

  1. A demonstração do estado de miserabilidade pode resultar de quaisquer outros meios probatórios idôneos, além do atestado de pobreza fornecido por autoridade policial competente. (STF – HC 72.328 – Rel. Min. Celso de Mello – DJe 11.12.2009 – p. 29)
  2. Violência presumida. Ação pública condicionada à representação, que foi devidamente oferecida pelas famílias das vítimas. Condição de miserabilidade. Atestado dispensável. Ilegitimidade do Parquet. Falta de interesse de agir. Inocorrência. Inquérito policial. Ausência de vícios. Peça meramente informativa. Caracterização da natureza hedionda do delito. Ilegalidade não demonstrada de pronto. Impropriedade do meio eleito. Crime hediondo, ainda que cometido com violência presumida. Precedentes. Para caracterizar a hipótese de ação pública condicionada à representação, a miserabilidade pode ser aferida pela simples análise das condições de vida da vítima e representantes, não sendo indispensável o atestado de pobreza. Precedente. Omissis. Precedentes do STF e desta Corte. (STJ – HC 24.473 – MS – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU 10.03.2003)
  3. Não se exige formalidades no ato de representação à autoridade policial para que se investigue crime em que tal condição é exigida por lei. Prejudicial afastada. 2-Demonstrada por meio de atestado de pobreza subscrito pelo delegado da área e firmado perante três testemunhas, é o Ministério Publico o titular da ação penal. Prejudicial afastada. 3- Configurada a continuidade delitiva, conta-se o prazo decadencial para a representação da ofendida após a consumação do último ato apontado como criminoso. Prejudicial afastada. 4- Tendo a vítima contraído união estável com terceiro no curso da ação penal ainda não transitado em julgado, há a necessidade de que esta demonstre o seu desejo de ver continuar a ação penal em curso, pois vigorava à época do fato o artigo 107, VII, do CP. A sua falta acarreta a extinção da punibilidade do agente a ser declarada até mesmo ex officio. Precedentes STF. 5- Recurso conhecido e provido. (TJPI – ACr 2008.0001.004172-4 – Rel. Des. Edvaldo Pereira de Moura – DJe 05.11.2009 – p. 9)

Comungando desses entendimentos, o 1º Congresso Jurídico dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, realizado nos dias 17 e 18 de novembro de 2014, editou o Enunciado n.º 6, com o seguinte teor: “O Delegado de Polícia poderá, mediante decisão fundamentada, dispensar a fiança do preso, para não recolhimento ao cárcere do indiciado pobre”.

Sendo assim, em hipótese de autuação de pessoa comprovadamente hipossuficiente em flagrante em que a tipificação penal repouse em delito cuja previsão abstrata de pena máxima não seja superior a quatro anos de prisão, sanção zênite cominada que, teoricamente, comportaria concessão pela Autoridade Policial, esta poderá ser dispensada, diante dos parcos recursos financeiros demonstrados pelo cidadão. Isto porque, a partir de uma mera interpretação sistêmica dos dispositivos processuais penais e teleológica do espírito das normas, tendo em mente da regra constitucional da prisão como exceção, efetivada no plano infraconstitucional  pela Lei Federal n.º 12.403/11, sustenta-se que o Delegado de Polícia, enquanto primeiro garantidor dos Direitos Humanos do cidadão, da legalidade e da Justiça, conforme reconheceu o Ministro Celso de Mello (STF, HC 84.548, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 21/06/2012), não só pode como deve de conceder liberdade provisória ao economicamente hipossuficiente, não obstante, e absurdamente, “data maxima vênia”, ser majoritário na doutrina posicionamento no sentido contrário.

O entendimento encontra guarida no cerne da existência do próprio Estado Democrático de Direito, ou seja, o mais absoluto respeito aos Direitos Fundamentais do cidadão, em especial, ao valor da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil.

Assim, o Delegado de Polícia que, no caso concreto, decidir neste sentido, deverá determinar a dispensa do arbitramento de fiança em solo policial, atestando formalmente a pobreza do agente e determinando a expedição de Alvará de Soltura, providenciando a comunicação à Autoridade Judiciária e demais cerimônias legais pertinentes.


Conclusão

Com o advento da atual Carta Constitucional da República Federativa, o Brasil viu florescer um novo tempo, onde não mais seriam admitidos ataques à democracia e aos direitos individuais. Para tanto, toda estrutura estatal foi compelida à mudança e à adaptação a esses novos ditames.

No entanto, este processo de evolução e adequação não se encontra estanque ou mesmo finalizado, ao contrário, o momento é de estruturação e edificação de um novo modelo estatal brasileiro, no qual o respeito à dignidade humana deve ser a viga mestra e sustentáculo de toda atuação.

Da mesma forma, o arcabouço que compõe a persecução penal também foi conduzido a novos tempos, assumindo contornos garantistas, posicionando-se em defesa das garantias e ao lado do cidadão, não funcionando como aparelho a serviço do Estado, mas sim, empenhando-se na salvaguarda popular e na defesa do Estado Democrático de Direito.

Entretanto, atualmente, nosso ordenamento jurídico processual penal ainda causa, em especial no âmbito da atuação policial, embaraço à efetivação de garantias e direitos fundamentais do cidadão. Dentro de uma democracia constitucional deve-se abandonar a ideia do investigado figurando como mero objeto da investigação, mas como sujeito de direitos. Além dele, a vítima também deve ser protegida, assistida e ter sua voz ouvida, conferindo resposta estatal efetiva às violações, evitando que estas sejam novamente vitimizadas, desta feita pela burocracia morosa e a consequente ausência de tutela aos bens jurídicos.

A posição do Delegado de Polícia no arranjo da persecução penal brasileira coloca-o próximo ao calor dos eventos, impondo rápida, imparcial e precisa análise jurídica quando os envolvidos nos fatos ainda encontram-se severamente atingidos pelos efeitos oriundos da prática delituosa.

As primeiras deliberações exaradas pelas Autoridades Policiais produzirão enormes efeitos na vida das pessoas implicadas (vítimas, testemunhas, investigados etc.). Por essa razão, esses atos administrativos deverão encontrar lastro e fundamentação nos princípios e dispositivos basilares que norteiam o desempenho das práticas oficiais. 

Portanto, o Delegado de Polícia, enquanto estudioso, aplicador da ciência jurídica, garantidor do respeito aos direitos fundamentais do cidadão, integrante das carreiras elementares ao exercício da justiça no Brasil, deve cuidar não somente da pesquisa técnica em sua área de conhecimento, mas, acima de tudo, deve buscar, a todo custo, a concretização diária do Direito no meio social em que se encontra inserido.

O Direito deve servir ao seu povo, entender seus anseios, proteger seus bens jurídicos mais caros, zelar e vigiar para que as garantias fundamentais do cidadão permaneçam intocadas, não permitindo (jamais) retrocessos sociais ou jurídicos de natureza antidemocrática.

Nesta toada, conforme expusemos, não há razão lógica ou jurídica que impeça o Delegado de Polícia de conceder a dispensa de fiança e a concessão de liberdade provisória ao preso em flagrante, quando este cidadão não puder arcar com o valor mínimo legalmente estabelecido, diante de sua hipossuficiência econômica. 

Postular pelo adverso seria fomentar a latente seletividade do sistema penal brasileiro, permitindo que aquele que possui condições de proceder ao pagamento do valor arbitrado seja posto em liberdade e, de outro lado, determinando o encarceramento (ainda que por curto período) de um indivíduo tão somente por este não dispor do montante estabelecido como garantia para seu livramento condicional.


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VERGAL, Sandro. A possibilidade de dispensa do pagamento de fiança pela autoridade policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6181, 3 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82768. Acesso em: 19 abr. 2024.