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Da impossibilidade de celebração de ANPP pela polícia judiciária

Da impossibilidade de celebração de ANPP pela polícia judiciária

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Sabendo que a investigação policial não se destina somente à acusação, mas à reconstrução dos fatos, o inquérito policial continuará sendo promovido pelo delegado de polícia até a reunião de suficientes elementos de informação que permitam desenvolver uma conclusão e, ao dominus litis, formar sua opinio delicti.

Após a entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que acrescentou o artigo 28-A ao Código de Processo Penal e regulamentou, por via legal, o acordo de não persecução penal (ANPP), sobrevieram estudos de autoridades policiais e outros operadores do direito defendendo a possibilidade de o delegado de polícia celebrar o ANPP com o investigado.

Nesse sentido, os ilustres doutrinadores Costa, Hoffmann e Habib defenderam que: (a) a falta de previsão de legitimidade da polícia para a celebração do ANPP, deixandoa restrita ao membro do Ministério Público, “não segue a linha das Regras de Tóquio, diploma internacional de direitos humanos com status hierárquico supralegal”; (b) “a legitimidade concorrente entre membro do MP e delegado de polícia, aliás, já existe em outro importante acordo, qual seja, a colaboração premiada”; (c) “se apenas o membro do MP puder celebrar o acordo, a Polícia Judiciária será obrigada a produzir elementos desnecessários e a se debruçar inutilmente sobre investigações natimortas”; e (d) “o problema do uso despropositado da investigação criminal e a imposição de dispensáveis medidas cautelares se tornará ainda mais grave quando a medida imposta for a prisão”[1].

Entendendo que o debate sobre esse assunto é profícuo, passa-se à análise individualizada desses argumentos doutrinários, para oferecer nova perspectiva ao tema.

Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que as “Regras de Tóquio” (Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade, aprovadas pela Resolução n. 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 14 de dezembro de 1990) não integram o direito brasileiro e não possuem “status hierárquico supralegal”, porque tais “Regras” não consubstanciam tratado internacional que fora incorporado ao direito positivo interno por Decreto Legislativo do Congresso Nacional (CF, art. 49, I), posteriormente promulgado e publicado seu texto por Decreto do Presidente da República.

Em segundo lugar, a legitimidade exclusiva do órgão do Ministério Público para a celebração do ANPP, a par de estar conforme com o artigo 129, inciso I, da Constituição da República, também não desprestigia as “Regras de Tóquio”.

Prevê a integralidade do item 5 desse documento internacional:

“Sempre que adequado e compatível com o sistema jurídico, a polícia, o Ministério Público ou outros serviços encarregados da justiça criminal podem retirar os procedimentos contra o infrator se considerarem que não é necessário recorrer a um processo judicial com vistas à proteção da sociedade, à prevenção do crime ou à promoção do respeito pela lei ou pelos direitos das vítimas. Para a decisão sobre a adequação da retirada ou determinação dos procedimentos deve-se desenvolver um conjunto de critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal. Para infrações menores, o promotor pode impor medidas não privativas de liberdade, se apropriado”[2].

A previsão da “polícia” para a retirada dos “procedimentos contra o infrator” está condicionada à adequação e compatibilidade com o sistema jurídico, ainda devendo ser observados os “critérios estabelecidos dentro de cada sistema legal”.

A Organização das Nações Unidas, por meio do extinto Centro para o Desenvolvimento Social e Assuntos Humanitários (CSDHA), realizou uma interpretação autêntica sobre as “Regras de Tóquio” e esclareceu que “o poder discricionário para retirar os procedimentos contra o infrator deve ser restrito e claramente definido por critérios legais, conforme expressado na regra 5.1. Se algumas condições puderem ser impostas em conjunto com a dispensa da persecução penal, somente as autoridades designadas pela lei devem ter o poder de impô-las” [3].

Sendo assim, a previsão legal do artigo 28-A do Código de Processo Penal de que apenas “o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal” é compatível com o sistema acusatório brasileiro e não representa violação às recomendações internacionais. A possibilidade de celebração desse acordo pela polícia deve ficar restrita aos ordenamentos jurídicos que a preveem expressamente.

Em relação à legitimidade concorrente entre o membro do Ministério Público e o delegado de polícia para o acordo de colaboração premiada, há que fazer distinções importantes.

Enquanto o acordo de não persecução penal é um “negócio jurídico” e uma “medida despenalizadora”, o artigo 3º-A da Lei n. 12.850/2013 descreve a colaboração premiada como “negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova”. Esse é o mesmo sentido que lhe concedeu o Pleno do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus 127.483-PR, Rel. Min. Dias Toffoli.

Segundo Antônio Magalhães Gomes Filho, “os meios de pesquisa ou investigação dizem respeito a certos procedimentos (em geral, extraprocessuais) regulados pela lei, com o objetivo de conseguir provas materiais, e que podem ser realizados por outros funcionários (policiais, por exemplo)”[4].

Havendo naturezas jurídicas diferentes, nada obsta que as demais características desses dois tipos de acordo também sejam diversas, como a legitimidade para a sua celebração. A Lei n. 12.850/2013 expressamente prevê a possibilidade de “negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público”, enquanto a Lei n. 13.964/2019 não o faz em relação ao ANPP.

Além disso, no julgamento da ADI 5.508, ao admitir a formulação de acordo de colaboração premiada pela polícia judiciária, os Ministros do Supremo Tribunal Federal foram unânimes em reconhecer a impossibilidade de disposição, pela autoridade policial, dos poderes de titularidade exclusiva do Ministério Público, como o não oferecimento de denúncia (imunidade).

Em seu voto, o Ministro Dias Toffoli fez a pertinente consideração:

“Por fim, a proposta do benefício do não oferecimento de denúncia (imunidade), previsto no art. 4º, § 4º, da Lei nº 12.850/13, deve ser reservada exclusivamente ao Ministério Público, por derivar diretamente da titularidade da ação penal pública que lhe foi constitucionalmente outorgada. Com efeito, como a autoridade policial poderia dispor do oferecimento da denúncia, se não é titular da ação penal pública? De toda sorte, parece-me não haver divergência a esse respeito, tanto mais que o próprio art. 4º, § 4º, da Lei nº 12.850/13, ao tratar da imunidade, somente se refere ao Ministério Público”.

Apesar de reconhecer a possibilidade de a autoridade policial celebrar acordo de colaboração premiada com o investigado, o Ministro Dias Toffoli acrescentou, em obiter dictum, que “à polícia, entendo eu, não compete negociar as sanções, regime de execução de pena, benefícios”, porque “ela não é função essencial à Justiça, ela é uma função instrumental à Justiça” e apenas “o Ministério Público, como Estado-parte, tem poder negocial”.

A corrente majoritária decidiu pela legitimidade concorrente do delegado de polícia para a formulação do acordo de colaboração premiada, enquanto meio de pesquisa ou de obtenção de provas, sendo certa a “impossibilidade de a autoridade policial inibir o exercício, pelo Ministério Público, das prerrogativas que lhe competem no plano do sistema acusatório” (Min. Celso de Mello).

O Relator Ministro Marco Aurélio acrescentou que “não passa pela cabeça de ninguém imaginar que um delegado de polícia possa, obrigando o Ministério Público e o Judiciário, afastar a oferta da denúncia pelo titular da ação penal”.

Após tal esclarecimento, o Ministro Alexandre de Moraes observou que ele “também não guarda nenhuma divergência com o eminente Ministro-Relator. A autoridade policial não poderá oferecer a concessão de perdão judicial ou acordo de não persecução penal colaborador, no caso da não persecução sem a concordância do Ministério Público, em face da previsão da privatividade da titularidade da ação penal”.

Na mesma senda, o Ministro Roberto Barroso manifestou “que o delegado de polícia pode celebrar acordos de colaboração premiada, desde que isso não interfira com prerrogativas do Ministério Público. (...) Para ficar claro: quando a proposta de acordo ou acordo envolver alguma prerrogativa do Ministério Público - como, por exemplo, o não oferecimento de denúncia ou, talvez, o perdão judicial ou, até mesmo, a redução de dois terços da pena -, eu acho que, em todos esses casos, a anuência do Ministério Público é indispensável”.

De seu turno, os vencidos Ministros Edson Fachin e Rosa Weber foram ainda mais restritivos aos poderes da polícia judiciária, ao entenderem que não pode haver homologação judicial de acordo de colaboração premiada formulado entre a autoridade policial e o investigado, se não houver manifestação obrigatória, vinculante e favorável do órgão do Ministério Público.

Em face desses relevantes fundamentos da ADI 5.508, descabe promover uma analogia entre os acordos de colaboração premiada e de não persecução penal, com a intenção de conferir a mesma legitimidade concorrente entre a polícia judiciária e o parquet.

Além de ter sido abordada a falta de poder negocial do delegado de polícia, que se utiliza da colaboração premiada apenas no interesse da investigação policial, ficou expresso que não pode haver, nesse tipo de acordo, interferência da polícia judiciária nas prerrogativas institucionais do órgão ministerial.

Ocorre que, no acordo de não persecução penal, sempre há a dispensa do oferecimento de denúncia contra o autor do fato, de modo que o ANPP necessariamente implica a disposição de prerrogativa ou poder privativo do Ministério Público.

Tendo em vista que o acordo de não persecução penal possui forte inspiração no direito norte-americano, é interessante notar que a Suprema Corte dos Estados Unidos entende, com fundamento na separação dos poderes, que a responsabilidade de apresentar uma denúncia criminal ou propor um acordo com o delinquente (plea bargain) está sob a “discricionaridade plena” do promotor de justiça[5].

Quanto à alegação de que, sem a legitimidade para a celebração de acordo de não persecução penal, “a Polícia Judiciária será obrigada a produzir elementos desnecessários e a se debruçar inutilmente sobre investigações natimortas”, também não há que conferir razão.

 Nos termos do art. 28-A do CPP, o ANPP só pode ser proposto quando não for caso de arquivamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal. Assim, é recomendável que, antes do acordo de não persecução, haja justa causa para o exercício da ação penal, sob pena de serem formuladas medidas equivalentes a penas restritivas de direitos (prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária), entre outras condições indicadas pelo Ministério Público, contra quem não existem indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal.

Em um segundo momento, a investigação preliminar informará as circunstâncias do crime e contribuirá para o dimensionamento mais justo das medidas indicadas pelo parquet, podendo também servir para justificar o não oferecimento de qualquer acordo, independentemente da pena em abstrato, por não se ter entendido o acordo “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, em casos especialmente reprováveis.

Sabendo que a investigação policial não se destina somente à acusação, mas à reconstrução dos fatos, o inquérito policial continuará sendo promovido pelo delegado de polícia até a reunião de suficientes elementos de informação que permitam desenvolver uma conclusão e, ao dominus litis, formar sua opinio delicti.

Não se cogita que as autoridades policiais realizarão diligências investigatórias inúteis, com desperdício de recursos materiais e humanos, simplesmente porque o órgão ministerial e o indiciado celebraram um acordo de não persecução. Em homenagem à justiça penal restaurativa, o importante é que a vítima estará sendo indenizada, os produtos ou proventos do crime estarão sendo perdidos e o autor do fato estará sendo de algum modo sancionado. Ademais, o ANPP deve ser entendido como possibilidade inibidora de um processo penal, mas não da investigação policial que esclareça a prática delitiva e fundamente posteriores medidas desfavoráveis ao infrator.

Por fim, em relação à possibilidade de serem determinadas medidas cautelares na fase investigatória, sem que sobrevenha processo penal em virtude da celebração de  acordo de não persecução, entende-se não haver qualquer incompatibilidade legal, já que a medida cautelar somente será deferida se existirem elementos do caso concreto que a justifiquem.

Quanto à prisão preventiva, ela será decretada diante “de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada” e, de regra, em face de crimes dolosos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos, de criminosos reincidentes ou se o crime envolver violência doméstica e familiar como garantia das medidas protetivas de urgência (art. 313, incisos I, II e III, CPP), casos em que, de antemão, já não se admitiria a celebração de ANPP.

Diante do que se expôs, pode-se concluir que a legitimidade exclusiva do órgão do Ministério Público para a propositura de acordo de não persecução penal, na forma do artigo 28-A do Código de Processo Penal, não ofende tratados internacionais. Ao contrário, a concessão de legitimidade para a celebração desse acordo à polícia judiciária ofenderia o sistema acusatório, ante a interferência externa nas prerrogativas do Ministério Público e a disposição de poder de titularidade privativa desta instituição essencial à Justiça, uma vez que sempre há a previsão do não exercício da ação penal.

Outrossim, a legitimidade exclusiva do parquet não tem o condão de provocar dispêndio inútil de recursos policiais, porquanto a celebração do ANPP pressupõe a existência de fundados indícios de autoria ou participação delitiva e não ser o caso de arquivamento do procedimento investigatório. Por último, não há incompatibilidade entre o acordo de não persecução penal e a decretação de medidas cautelares no curso do inquérito policial, já que essas providências de natureza processual são determinadas de acordo com a necessidade ao tempo da decisão, conforme o princípio da contemporaneidade.


[1] Disponível em: <www.conjur.com.br/2019-dez-17/academia-policia-acordo-nao-persecucao-penal-tambem-feitodelegado>.

[2] Disponível em: <www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/6ab7922434499259ffca0729122b2d38-2.pdf>.

[3] Tradução do autor. Disponível em: <digitallibrary.un.org/record/486292?ln=en> e em <www.ncjrs.gov/pdffiles1/Digitization/147416NCJRS.pdf>.

[4] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide de (coord.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 309.

[5] MA, Yue. Explorando as origens da ação penal pública na Europa e nos Estados Unidos. Revista do Conselho Nacional do Ministério Público. nº 1. Brasília – junho de 2011. p. 35-36.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Igor Dalmy. Da impossibilidade de celebração de ANPP pela polícia judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6313, 13 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83994. Acesso em: 28 mar. 2024.