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A teoria dos direitos humanos de Beitz e o controle de convencionalidade

A teoria dos direitos humanos de Beitz e o controle de convencionalidade

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Beitz define os direitos humanos como um conjunto de normas que devem regular o comportamento dos Estados, e cujo descumprimento é motivo de preocupação internacional. Tal conceito tem estreita relação com o mecanismo do controle de convencionalidade.

Palavras-chave: Teoria dos direitos humanos. Controle de convencionalidade. Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Sumário: 1. Introdução – 2. A ideia de direitos humanos de Beitz – 3. O controle de convencionalidade – 4. Considerações Finais – 5. Referências bibliográficas.

1. Introdução

Na obra uma ideia dos direitos humanos de Charles R. Beitz (BEITZ, 2012) o autor propõe a elaboração de uma teoria política contemporânea para explicar e justificar a prática dos direitos humanos, tendo como característica central a análise de como essa concepção de direitos humanos se relaciona com a prática internacional desses direitos. O objetivo central do autor é reconstruir a ideia de direitos humanos que está implícita nessa prática.

Segundo Beitz, as visões tradicionais e distorcidas dos direitos humanos colaboraram para o crescimento do ceticismo, pois se identificam muitas divergências entre a teoria e a prática.

Beitz reconhece um duplo desafio em elaborar uma teoria dos direitos humanos consistente em não apenas clarificar o significado e os fundamentos desses direitos, mas elucidar as distintas formas de colocá-los em relação razoável com valores políticos que podem ser conflitantes como aqueles relacionados à tolerância, à identidade cultural e ao autogoverno.

O autor adota uma concepção institucional dos direitos humanos ao compreender que a função central desses direitos é trazer exigências que pesam sobre os Estados e cujo descumprimento é motivo de preocupação internacional.

O presente estudo busca associar essa visão prática na conceituação dos direitos humanos ao mecanismo de controle jurisdicional de convencionalidade das leis proposto por Valerio de Oliveira Mazzuoli. Segundo Mazzuoli (2016), tal controle consiste na “compatibilização vertical das normas domésticas com os tratados internacionais de direitos humanos (mais benéficos) em vigor no Estado” e é uma obrigação fundamentada nos artigos 1º e 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Busca-se compreender se a associação da teoria dos direitos humanos de Beitz ao mecanismo do controle de convencionalidade pode garantir uma maior efetivação dos direitos humanos em âmbito interno.

2. A ideia de direitos humanos de Beitz

O conceito de direitos humanos é objeto de estudo de muitos teóricos e filósofos não só no campo jurídico[1]. Charles Beitz, um dos teóricos políticos contemporâneos de maior importância, traz relevante contribuição à teoria dos direitos humanos na obra La idea de derechos humanos (2012).

O desenvolvimento de sua teoria está embasado em duas observações: a de que os direitos humanos se tornaram uma elaborada prática internacional e na constatação de que o discurso e a prática dos direitos humanos podem gerar o que ele chamou de ceticismo paralisante.

A referida prática internacional se desenvolveu ao longo dos anos, desde a Segunda Guerra Mundial, de várias formas e por meio do direito internacional, das instituições globais e regionais de proteção e das numerosas organizações não governamentais (ONGs), por exemplo. Já o ceticismo paralisante é identificado pelo menosprezo dos direitos humanos como fundamentos para a ação política e pode ser identificado, por exemplo, pela imprecisão a respeito da quantidade de interesses protegidos pelos direitos humanos, pela dificuldade de a doutrina contemporânea compreender os direitos humanos como universais em um sentido significativo, bem como em razão dos custos potenciais de atuar de maneira consistente na proteção desses direitos frente às suas violações.  

Para o autor, o que contribui para o crescimento do ceticismo são as visões tradicionais e distorcidas dos direitos humanos, pois se identificam muitas divergências entre a teoria e a prática.

Essas visões tradicionais e equivocadas são a naturalista e a contratualista. Segundo a teoria naturalista, os direitos humanos herdam suas principais características dos direitos naturais e, resumidamente, consistiriam em direitos possuídos por todos os seres humanos em razão da sua humanidade. O principal problema ressaltado por Beitz dessa visão naturalista seria o não enquadramento de diversos direitos humanos já consagrados na prática internacional, a exemplo dos direitos econômicos e sociais, que envolvem um conjunto específico de sociedades, detentoras de um sistema jurídico mínimo, com desenvolvimento de trabalho e economia, bem como de instituições com a finalidade de prover bens coletivos essenciais.

A teoria contratualista, por sua vez, dá um passo à frente e não apenas reflete sobre a natureza e as circunstâncias da vida, mas propõe uma análise sobre a diversidade social e jurídica para conceituar os direitos humanos como sendo as normas que são ou poderiam ser objeto de um acordo intelectual entre os membros de culturas cujos valores morais e políticos são diferentes. Esse acordo pode ser entendido de diversas maneiras, o autor analisa duas delas. A primeira, que ele denomina de “núcleo comum”, compreende que os direitos humanos seriam o núcleo de direitos básicos comuns a todas as culturas, consistiriam num mínimo denominador comum. Uma segunda forma de entender esse acordo intelectual se daria por meio de um “consenso sobreposto”, a partir do qual direitos humanos seriam um conjunto de normas globais comuns que serviriam de intepretação para que qualquer cultura as pudessem aceitar segundo suas próprias doutrinas religiosas, filosóficas e morais.

À semelhança da teoria naturalista, a concepção contratualista, para Beitz, traz inaceitáveis limitações ao conceito de direitos humanos, na medida em que são direitos humanos somente aqueles acordados ou compartilhados por todas as sociedades.

Beitz, então, propõe um enfoque diferente, que ele descreve como sendo prático, pois parte da observação de que os direitos humanos são uma prática global e, como um primeiro conceito, define direitos humanos como um conjunto de normas que regula o comportamento dos Estados, associado a um conjunto de modos ou estratégias de ação capazes de agir naquelas situações em que constatadas violações a esses direitos. Os direitos humanos, portanto, são diretrizes para as instituições domésticas, cuja satisfação é de interesse internacional.

Nesse ponto, identificamos uma estreita ligação entre essa compreensão dos direitos humanos e o mecanismo do controle de convencionalidade, que, em última análise, promove a responsabilização dos Estados por violações a direitos humanos previstos nos tratados e convenções internacionais dos quais seja signatário e, mais, em sua vertente difusa, protege e promove tais direitos sem a intervenção direta das Cortes Internacionais, conforme será explanado a seguir.

3. Controle de convencionalidade

O controle de convencionalidade é definido por Sidney Guerra como um novo dispositivo jurídico fiscalizador que promove duplo controle de verticalidade, significa dizer que as normas internas de um país devem estar compatíveis tanto com a Constituição – controle de constitucionalidade –, quanto com os tratados internacionais ratificados pelo país: controle de convencionalidade (GUERRA, 2013).

Sobre o assunto, é importante esclarecer que existem dois modelos de controle de convencionalidade das leis: um internacional, levado a efeito, de modo coadjuvante ou complementar, pelas cortes internacionais e outro, interno, manejado pelos juízes e tribunais nacionais em primeiro plano. O autor Valerio Mazzuoli propõe estudo inédito sobre o segundo modelo, exatamente por ser prioritário e exercido de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados e em vigor no país, com a interpretação (se eventualmente existente) que deles faz a Corte Interamericana de Direitos Humaod, segundo sempre o princípio pro homine de solução de antinomias, ou seja, aplicando, no caso concreto, a norma mais benéfica ao ser humano sujeito de direitos (MAZZUOLI, 2016).

O Brasil está inserido no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, que é formado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em São José, na Costa Rica, e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, nos Estados Unidos da América.

Enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos, segunda corte especializada em direitos humanos – a primeira foi a corte europeia – é o órgão judicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e desempenha as funções consultiva[2] e contenciosa[3], a Comissão tem a competência, nos termos do artigo 44, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) para receber as petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado Parte.

O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Decreto Presidencial nº 678, de 11/11/1992 e, em 10/12/1998, depositou, junto ao Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), nota reconhecendo a jurisdição obrigatória da Corte, podendo ser processado em ações de responsabilidade internacional por violações de direitos humanos e obrigando-se, assim, a implementar suas decisões.

O tratado conhecido como Pacto de San José da Costa Rica é hoje o principal diploma de proteção dos direitos humanos nas Américas em razão de sua abrangência geográfica, que atinge vinte e quatro Estados, pelo catálogo de direitos civis e políticos que ostenta e pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados (RAMOS, 2016). É dele que se extrai o fundamento para o controle de convencionalidade, mais especificamente dos artigos 1º e 2º, que estabelecem:

Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos

1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.

2. Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Artigo 2º - Dever de adotar disposições de direito interno

Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

Significa dizer que a prática dos direitos humanos, especialmente as decisões e pareceres consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentro do sistema regional de direitos humanos, pode servir de parâmetro para aferir a validade de uma norma jurídica em âmbito interno. A maior efetividade dos direitos humanos estaria no reconhecimento de que é dever do Estado signatário dos tratados de direitos humanos garantir sua aplicação, bem como a compatibilização de seu ordenamento jurídico àqueles preceitos. 

Enquanto o controle de constitucionalidade é aquele em que se afere a compatibilidade vertical entre a lei e as normas constitucionais, o controle de convencionalidade avalia a compatibilização vertical das leis com os tratados de direitos humanos vigentes no país, situação que ganha especial relevância na hipótese de determinada norma adequar-se aos preceitos constitucionais, mas mostrar-se incompatível com o texto de algum tratado internacional de direitos humanos.

À semelhança do controle de constitucionalidade, o de convencionalidade pode efetivar-se por via difusa, ou seja, em âmbito interno, pelos tribunais pátrios, quando avaliam a compatibilidade das normas tanto com a constituição, quanto com os tratados e convenções internacionais. É nesse aspecto que associar o conceito de direitos humanos de Beitz como uma prática internacional torna-se inovador, no sentido de proporcionar, em âmbito interno, ou seja, sem a interferência ou atuação direta das Cortes Internacionais, maior promoção e proteção aos direitos humanos.

4. Considerações Finais

Com o objetivo de afastar o ceticismo em relação aos direitos humanos, provocado, em grande medida, pelas teorias naturalista e contratualista, que trazem inaceitáveis limitações ao conceito de direitos humanos, Beitz propõe uma teoria política contemporânea cuja principal característica é aferir como a concepção de direitos humanos se relaciona com a prática internacional desses direitos.

Partindo dessa análise, Beitz define direitos humanos como um conjunto de normas que regula o comportamento dos Estados, associado a um conjunto de modos ou estratégias de ação capazes de agir em situações de violações a esses direitos. Os direitos humanos, portanto, são diretrizes para as instituições domésticas, cuja satisfação é de interesse internacional.

É exatamente em âmbito internacional que se formam as bases do controle de convencionalidade, pois se trata de mecanismo que promove a compatibilização das normas domésticas aos tratados e convenções internacionais. Tal compatibilização se dá tanto na responsabilização do Estado brasileiro por violações a direitos previstos nos documentos internacionais dos quais seja signatário, ou seja, em processos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quanto, em âmbito interno, quando os juízes domésticos deixam de aplicar normas incompatíveis com os tratados e convenções internacionais. A aplicação do controle de convencionalidade traz, portanto, dupla aferição para as normas jurídicas, que passam a ser avaliadas constitucionalmente e convencionalmente.

Dessa forma, o caminho inverso, proposto por Beitz, na conceituação dos direitos humanos não a partir de parâmetros pré-definidos, como os propostos pelas tradicionais concepções naturalistas e contratualistas, mas tendo por base a prática internacional já consolidada dos direitos humanos, à exemplo do sistema regional americano de direitos humanos, pode levar a uma maior efetivação desses direitos em âmbito interno por meio do controle de convencionalidade pela via difusa, ocasião em que uma violação de direitos humanos pode ser evitada mediante o reconhecimento da invalidade da norma por incompatibilidade frente a um tratado internacional de direitos humanos ratificado pelo Brasil.

5. Referências

BEITZ, Charles. La idea de los derechos humanos. Madrid: Marcial Pons, 2012.

DULCE, María José Fariñas. Los derechos humanos desde una perspectiva socio-jurídica. Derechos y libertades: Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, año 3, n. 6, 1998, p.355-376. Disponível em:<https://e-archivo.uc3m.es/handle/10016/1343#preview>. Acesso em: 30 jul. 2020.

GUERRA, Sidney. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o controle de convencionalidade. São Paulo: Atlas, 2013.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

PAREKH, Serena. Hannah Arendt and the challenge of modernity: a phenomenology of Human Rights. New York: Routledge, 2008.

RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48, jun. 1997. Disponível em: <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RCCS48.PDF>. Acesso em: 30 jul. 2020.


[1] A exemplo de Hannah Arendt (PAREKH, 2018), Boaventura de Sousa Santos (1997) e María José Fariñas Dulce (1998).

[2] Convenção Americana de Direitos Humanos: Artigo 64:

1. Os Estados membros da Organização poderão consultar a Corte sobre a interpretação desta Convenção ou de outros tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. Também poderão consultá-la, no que lhes compete, os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires.

2. A Corte, a pedido de um Estado membro da Organização, poderá emitir pareceres sobre a compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os mencionados instrumentos internacionais.

[3] Convenção Americana de Direitos Humanos: Artigos 63 e artigos 66 a 69.



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