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Retomada das atividades docentes de forma remota e emergencial na pandemia

direito de imagem, direitos autorais, deveres e obrigações

Retomada das atividades docentes de forma remota e emergencial na pandemia: direito de imagem, direitos autorais, deveres e obrigações

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Como fica a proteção da imagem – incluída também a voz – de docentes e alunos no ensino à distância? O aluno pode desligar câmera e microfone? O que é protegido por direito autoral? A instituição de ensino tem direito de usar a aula? Essas e outras dúvidas são abordadas no artigo.

Diante do cenário mundial decorrente da pandemia, que impôs diversas modificações de hábitos, costumes, atividades profissionais e econômicas, o ensino igualmente passa por profundas alterações, o que demanda de todos os agentes envolvidos uma série de adaptações e cuidados. Escolas e universidades deverão repensar a logística necessária, preservando a qualidade do ensino e a igualdade de acesso a todos os alunos; professores e técnicos em educação repensarão sua forma de trabalho, adequando-se a novas ferramentas e novas modalidades de diálogo entre pares, alunos e sociedade, alunos experimentarão novas formas de ensino e de interação com colegas, professores e a escola.

O desafio que nos foi apresentado por sindicatos de docentes do ensino público federal é analisar o impacto dessas alterações profundas no cotidiano do professor, em especial no que toca à implantação do ensino remoto, educação à distância, aulas virtuais, ou qualquer outra forma que se denomine o trabalho não presencial através da rede mundial de computadores. Esse impacto será analisado, da forma mais didática e pragmática possível, sobre os seguintes ângulos:

  • a obrigação ao desempenho das atividades inerentes ao cargo público e sua compatibilização com o direito do docente a condições mínimas para ao exercício das mesmas;
  • a proteção da imagem – incluída também a voz -  dos envolvidos, em especial docentes e alunos;
  • a proteção da produção intelectual
  • os cuidados com direitos autorais de terceiros na apresentação e elaboração de aulas e outras ferramentas de ensino remoto;
  • compatibilização entre a liberdade de ensino e a transmissão (ou gravação) das aulas;

Importante fazer um alerta antes de passarmos às perguntas e respostas : essa análise é estritamente jurídica. Em se tratando de orientações relativas a atividades docentes que envolvem aspectos relevantíssimos (didática, currículo, avaliação, métodos de ensino, etc) é fundamental compatibilizar as orientações aqui contidas com as recomendações de natureza pedagógicas.

SUMÁRIO

1. EAD ou ensino remoto? Uma mescla dos modelos já existentes

2. O professor pode ser opor a exercer suas atividades remotamente?

3. A Administração tem obrigação de disponibilizar meios para viabilizar aulas e atividades remotas?

4. Como fica a proteção da imagem – incluída também a voz - dos envolvidos, em especial docentes e alunos?

5. O aluno pode se opor à gravação?

6. A câmera e o microfone devem estar obrigatoriamente ligados?

7. O aluno pode gravar a aula?

8. Qual a consequência do uso indevido da imagem?

9. Aulas são protegidas por direitos autorais?

10. O que é protegido por direito autoral?

11. Direito autoral pode ser vendido ou cedido integralmente?

12. A instituição de ensino tem o direito de usar livremente uma aula por conta do pagamento mensalmente feito ao professor?

13. Os cuidados com direitos autorais de terceiros na apresentação e elaboração de aulas e outras ferramentas de ensino remoto

14. Como posso proteger a minha produção intelectual?

15. Compatibilização entre a liberdade de ensino e a transmissão (ou gravação) das aulas

16. Qual a consequência da violação de direito autoral?

17. Condições de trabalho – “professor 24 horas”

18. Como mensurar o tempo de preparação de aulas, orientação e demais atividades?

19. SUGESTÕES de consulta


1. EAD ou ensino remoto? Uma mescla dos modelos já existentes

 Escapa ao propósito dessa cartilha uma análise conceitual dos diversos modelos ou formatos de ensino não-presencial[i]. Ainda assim, algumas considerações breves são necessárias, justamente por conta do ineditismo do momento atual e pela expressa autorização pelo Ministério da Educação (MEC) para, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em cursos regularmente autorizados, por atividades letivas que utilizem recursos educacionais digitais, etc. Como se vê, a Portaria 544, de 16.7.2020, do MEC não transforma o ensino presencial em ensino à distância. Além disso, o MEC delegou às instituições de ensino (IEs) as adequações curriculares e disponibilização de recursos aos alunos de modo a permitir o acompanhamento das atividades letivas. 

Convêm lembrar que a educação a distância (EAD) tem expressa previsão na Lei de diretrizes  e base da educação nacional (Lei 9394/96), sendo que seu artigo 80 encontra-se hoje regulamentado no Decreto 9057/17. A EAD não é livremente autorizada a qualquer instituição de ensino, sendo necessário um credenciamento específico, uma estrutura física adequada, espaço para desenvolvimento de algumas presenciais (avalições, estágios, práticas, defesa de trabalhos, etc) e diversos outros aspectos previstos na legislação de regência que permitem distinguir a EAD do ensino tradicional presencial.

A retomada das atividades de ensino de maneira virtual por conta da pandemia impôs uma ruptura completa na forma a que estávamos habituados com o aprendizado, pesquisa e extensão. O simples fato de as aulas agora passarem a ser virtuais não permite afirmar que a educação passou a ser toda pelo modelo EAD. Portanto, a adoção de atividades remotas, como regra, implica na criação de um modelo mesclado, ou seja, não é mais presencial, mas tampouco corresponde à EAD na forma como regulada. Isto exigirá muita ponderação, compreensão e parcimônia quanto ao uso de novas ferramentas sem a devida capacitação, da parte de todos os envolvidos, sejam estes os docentes, os alunos e as instituições.

Partindo-se do pressuposto de que a pandemia traz uma profunda alteração no ensino presencial, impondo uma maior utilização das ferramentas digitais, é preciso refletir sobre as implicações que daí advirão sobre outros aspectos da vida e direitos, tais como direitos à imagem e à produção intelectual.


2. O professor pode ser opor a exercer suas atividades remotamente?

A posse em cargo público é um importante instituto jurídico, cabendo recordar sua definição legal e os efeitos dela decorrentes:

Art. 13 da Lei 8112/90 (RJU): A posse dar-se-á pela assinatura do respectivo termo, no qual deverão constar as atribuições, os deveres, as responsabilidades e os direitos inerentes ao cargo ocupado, que não poderão ser alterados unilateralmente, por qualquer das partes, ressalvados os atos de ofício previstos em lei.

A relação de trabalho do docente federal titular de cargo não tem natureza contratual (como ocorre no setor privado e, no ensino federal, com os professores visitantes e substitutos, que firmam um contrato temporário de prestação de serviços). A relação do docente federal é de natureza estatutária, vale dizer, decorre de previsão legal, o que impede que haja alteração das obrigações e direitos de forma individual entre o professor e a universidade. Os limites, deveres e direitos são os previstos de forma geral para o servidor (Lei 8112/90) e aos integrantes da carreira (Lei 12.772/2012).  Além disso, como decorrência da autonomia prevista no artigo 207 da Constituição, a relação de trabalho docente observará também as normas internas de cada instituição federal de ensino, como ocorre, por exemplo, em relação às regras dos concursos, progressões funcionais, limites de valores para percepção de bolsas de pesquisa ou extensão, etc.

Com isso, resta estabelecida uma premissa básica: não há espaço para negociar individualmente o estabelecimento de novas obrigações ou direitos com a universidade ou instituto. Evidentemente, isso não implica em desconsiderações de situações individualmente vivenciadas pelo docente e seu impacto na prestação de suas atividades. A legislação é aberta a situações individuais, criando mecanismos para isso, que são aplicadas de forma igual a todos, quando necessário. Enquadram-se nessa hipótese as licenças para tratamento de saúde, afastamentos para estudo, etc.

A retomada das aulas de forma virtual ou presencial é, portanto, uma decisão institucional e não individual. Isso, contudo, não implica em ignorar as individualidades, já que professores podem estar mais ou menos familiarizados com informática e possuírem – ou não – uma estrutura mínima (computadores, celulares e internet banda larga), outros apresentam alguma restrição de saúde, enfim. Não se pode desprezar o fato de que o modelo previsto na legislação de educação à distância não corresponde exatamente às alternativas encontradas para continuidade do ensino durante a pandemia, o que, portanto, cria uma lacuna normativa que deverá ser preenchida pelo bom senso e pela aplicação dos princípios gerais e de direitos e garantias individuais.


3. A Administração tem obrigação de disponibilizar meios para viabilizar aulas e atividades remotas?

Sim, devem ser viabilizadas por parte da administração pública as condições para que alunos e docentes possam acompanhar as atividades de ensino à distância, o que incluiu especialmente uma capacitação. Sugerimos que o professor que não dispuser de estrutura necessária ou que apresente alguma limitação de saúde que lhe impeça as atividades de forma remota formalize essa circunstância junto à chefia imediata (em geral o chefe de departamento). Essa comunicação é fundamental para registrar a boa-fé do servidor, evitando que suas dificuldades sejam equivocadamente interpretadas como desídia.

Caso seja tecnicamente impossível o fornecimento de condições para que docentes desempenhem em sua residência as atividades, deverão ser encontradas soluções alternativas que garantam acesso a algum local na própria universidade ou instituto federal com estrutura adequada para a transmissão das atividades, sempre tendo em conta as medidas de contingenciamento impostas pelas autoridades públicas e eventuais restrições de saúde do servidor (grupo de risco, comorbidades, etc).


4. Como fica a proteção da imagem – incluída também a voz -  dos envolvidos, em especial docentes e alunos?

Direito à imagem e direitos autorais não se confundem. O direito à imagem é um direito de personalidade previsto nos incisos V e X do artigo 5º da Constituição brasileira e é inerente a qualquer pessoa, independentemente de idade ou nacionalidade. O artigo 20 do Código Civil é claro ao dispor que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Logo, qualquer gravação, publicação ou divulgação de aulas pressupõe a concordância dos envolvidos. No caso específico da transmissão e gravação de aulas e outras atividades de ensino remoto, não há necessidade de que essa concordância seja formalizada individualmente e por escrito, desde que fique claro que a pessoa foi alertada da gravação, da finalidade a que se propõe e da alternativa de se opor à exposição de sua imagem. Nesse último caso, havendo oposição, qualquer divulgação deverá ser previamente editada de maneira a que imagem desautorizada não apareça na transmissão.

Dicas práticas sobre a utilização de imagens:

  • Incluir nos planos de ensino, de forma clara, que as atividades síncronas e assíncronas poderão ser gravadas para utilização restrita aos fins a que se destina aquela disciplina específica, facultando-se ao aluno seu direito de não ser gravado ou filmado, mediante expressa manifestação;
  • Incluir de maneira clara no material produzido e durante a própria transmissão das atividades síncronas, o alerta escrito e verbal de que é proibida a utilização daquelas imagens sem expressa autorização;


5. O aluno pode se opor à gravação?

Sim. O aluno que se opõe à gravação terá a liberdade, obviamente, de desativar sua câmera de computador. Mas mesmo que não o faça e tenha, de forma expressa, registrado sua vontade de não ser gravado, não poderá o material ser disponibilizado sem a devida edição, suprimindo sua imagem e sua voz.


6. A câmera e o microfone devem estar obrigatoriamente ligados?

Não se pode impor a ninguém a obrigação de ser filmado ou gravado contra sua vontade. Portanto, docente e aluno podem desligar câmeras e microfones durante a aula, ainda que isso possa causar algum prejuízo no desenvolvimento da aula ou de certa forma dificultar a avaliação. A utilização do chat é uma alternativa, já que a opção de desligar a câmera e o microfone não dispensa o aluno da presença na aula.


7. O aluno pode gravar a aula?

A gravação ou fotografia de trechos da aula com a finalidade exclusiva de anotação do conteúdo para posterior utilização própria pelo aluno em seus estudos tem expressa autorização legal (art. 46, IV da Lei 9610/98). Porém, é expressamente vedada sua publicação sem a autorização dos demais envolvidos (alunos e professores), o que inclui compartilhamento pela internet, WhatsApp, etc.


8. Qual a consequência do uso indevido da imagem?

A utilização indevida da imagem sujeita o violador à responsabilização na esfera civil (reparação dos prejuízos financeiros) como também na esfera penal, conforme o uso que for dado à imagem e seu propósito, podendo ser a hipótese enquadrada nos crimes contra a honra  (calúnia, difamação e injúria), por exemplo.

Quando o uso indevido se destinar a fins econômicos ou comerciais, o prejuízo sofrido é presumido, ou seja, independe de prova (Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça: Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais).


9. Aulas são protegidas por direitos autorais?

Como regra, sim. As aulas são protegidas por direitos autorais na medida em que decorrem de um estudo, do intelecto e da criatividade, sendo o docente considerado seu ‘autor’. Dessa forma, não pode um professor reproduzir a aula de algum colega sem sua autorização, como tampouco pode copiar os exercícios e demais figuras, gravuras e tabelas preparadas por terceiro sem sua expressa anuência.

Porém, nem tudo que se usa ou se diz em aula é uma obra autoral. Exemplo: explicar aos alunos a lei da gravidade não torna o professor autor da mesma. O que está protegido, neste caso, não é a teoria, mas a forma literária ou artística pela qual o conteúdo científico é transmitido. Justamente para clarear essa situação, a LDA explicita eu seu art. 7º, §3º : No domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial.


10. O que é protegido por direito autoral?

O conceito de obra autoral é amplo, ficando sujeito às inovações e  invenções de novas formas de manifestação do espírito humano. A Lei 9610/98 (Lei dos direitos autorais – LDA) lista alguns exemplos de criações protegidas por direitos autorais, como também de situações que não se sujeitam à proteção:

Exemplos de obras protegidas por direitos autorais – art. 7º da LDA

Não são objeto de proteção como direitos autorais – art. 8º da LDA

I - os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;

II - as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza;

III - as obras dramáticas e dramático-musicais;

IV - as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma;

V - as composições musicais, tenham ou não letra;

VI - as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;

VII - as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;

VIII - as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;

IX - as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;

X - os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;

XI - as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;

XII - os programas de computador;

XIII - as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

I - as ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais;

II - os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos ou negócios;

III - os formulários em branco para serem preenchidos por qualquer tipo de informação, científica ou não, e suas instruções;

IV - os textos de tratados ou convenções, leis, decretos, regulamentos, decisões judiciais e demais atos oficiais;

V - as informações de uso comum tais como calendários, agendas, cadastros ou legendas;

VI - os nomes e títulos isolados;

VII - o aproveitamento industrial ou comercial das ideias contidas nas obras.


11. Direito autoral pode ser vendido ou cedido integralmente?

É preciso distinguir as duas faces da proteção dos direitos autorais: A Lei 9610/98 (Lei dos direitos autorais – LDA) explicita essa duplicidade em seu artigo 22: Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou. [1] direito moral: corresponde à criação e originalidade da obra e o direito moral que seu autor tem em ser eternamente reconhecido como sendo criador.  Esse direito moral não pode ser transmitido e não prescreve. Assim, ainda que já tenha caído em domínio público, Shakespeare sempre será o autor de Hamlet, assim como a autoria de Dom Casmurro sempre será de Machado de Assis. [2] o aspecto patrimonial, a seu turno, envolve a titularidade da obra e sua exploração econômica, o uso, a licença, a edição, etc.  O direito patrimonial da autoria pode, portanto, ser cedido de forma onerosa ou gratuita, de forma integral ou parcial.

Chega-se assim a um ponto polêmico: o pagamento de uma remuneração pela instituição de ensino a torna autora da obra?


12. A instituição de ensino tem o direito de usar livremente uma aula por conta do pagamento mensalmente feito ao professor?

Partindo do pressuposto que as obras protegidas por direitos autorais são frutos da criatividade e originalidade da mente humana - e isso se torna bem evidente nos vínculos educacionais (a universidade não entra na sala de aula, quem entra é a pessoa do docente) -  parece-nos difícil argumentar que a autoria de aulas virtuais seja de uma pessoa jurídica.

Logo, a face moral da autoria é claramente da professora ou professor responsável por aquele trabalho que será transmitido ou gravado. Contudo, do ponto de vista patrimonial, a situação é mais complexa, pois é possível que o uso da obra tenha sido autorizado pelo autor e muitas vezes seja objeto de contratação específica com o empregador, onde é estabelecido valor (pode ser o salário mensal), o prazo, a forma de utilização, etc (VIEIRA, 2003[ii]). Eventual ajuste de cessão de uso da obra deve ser formal, por escrito e seu caráter oneroso é  presumido. Na falta de ajuste quanto aos efeitos patrimoniais, esses permanecem intactos, ou seja, são exclusivos do autor.

O fato de uma universidade pagar remuneração mensal para que o professor produza aulas e outras obras autorais deve ser visto com cautela, pois não se está nem diante de uma usurpação indevida do direito autoral, tampouco, com uma cessão irrestrita de direitos patrimoniais ao empregador ou ente público. Quando a remuneração é paga com esse propósito, a “teoria da disposição funcional” sustenta que os aspectos patrimoniais sejam temporariamente cedidos ao “pagador”. “Terminado o contrato de trabalho, por motivo justo ou sem motivação, os direitos que já eram do empregado permanecem com ele. A empresa não poderá mais usar a obra sem autorização. É como se aquela licença de uso pela empresa existente na vigência do contrato de trabalho encerrasse com a demissão (PINHEIRO, 2016[iii]). Ilustrativa, nesse sentido, a decisão do Tribunal Superior do Trabalho que condenou uma instituição privada a reparar os prejuízos decorrente da utilização indevida de aulas preparadas por ex-empregada sua (TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, 2013[iv]):

 A utilização de material didático pela empresa sem a correspondente autorização pela empregada, reproduzindo-o e distribuindo-o após a extinção do contrato de trabalho, gera para a autora o direito à indenização. Na espécie se ressalta que o contrato de cessão de direitos autorais vinculava-se ao relacionamento profissional - empregada e empregadora -, permitindo a transferência total dos direitos da divulgação das apostilas e vídeo-aulas da reclamante em favor da ré. De sorte que com a extinção do contrato de trabalho exsurgiu novo enquadramento jurídico donde a continuidade da reprodução parcial ou integral do material didático enseja a necessidade de prévia e expressa autorização por parte da autora da obra intelectual (art. 29, inciso I, da Lei nº 9.610/98).  PROCESSO Nº TST-RR-270900-94.2007.5.09.0004 – Relator MINISTRO VIEIRA DE MELLO FILHO

Portanto, com base nessa teoria, entendemos que as aulas produzidas para o prosseguimento das atividades de forma virtual podem ser usadas pelas instituições de ensino para que elas prestem suas finalidades de ensino público, sem que isso gere ao professor qualquer direito à reparação financeira. Contudo, esse uso do material está restrito àquela disciplina específica, no semestre específico,  não podendo a instituição usar essa mesma aula em outros anos e de forma irrestrita.


13. Os cuidados com direitos autorais de terceiros na apresentação e elaboração de aulas e outras ferramentas de ensino remoto

A preparação de aulas virtuais ou remotas e a preparação de material didático que será transmitido via internet exige um cuidado muito grande, em dois especiais sentidos: PROTEGER OS AUTORES de materiais usados nas aulas e PROTEGER O AUTOR da aula.

Ao preparar seu material, o professor deve ficar atento aos direitos autorais sobre materiais usados por ele. Fotografias, figuras, músicas, vídeos, ainda que disponibilizados gratuitamente pela internet, estão protegidos por direitos autorais. Lembramos que o uso de representações teatrais e execuções musicais para fins didáticos é legalmente permitido no artigo 46, VI da LDA. Portanto, é importante certificar-se se o material que se pretende usar esteja liberado para uso e sempre informar a autoria e a fonte.  Outro cuidado que se deve ter é quanto à possibilidade de que o material já esteja em domínio público, de forma que seu uso estará liberado, desde que referida a autoria.

Recomendamos a consulta aos materiais indicados ao final do trabalho contendo orientações bastante didáticas quanto ao uso de outras obras.


14. Como posso proteger a minha produção intelectual?

A originalidade de uma obra não pressupõe registro. Logo, alguém pode ser o autor de uma obra sem que ela tenha sido registrada. A vantagem do registro é a proteção daí decorrente e a facilidade de comprovar a data de criação.

Atualmente, existem algumas plataformas na rede mundial que auxiliam no registro gratuito de obras. A Creative Commons é uma dessas ferramentas que viabiliza o registro de obras e atua para que as regras de utilização dos conteúdos disponibilizados estejam claras, pois, quando se pesquisa um conteúdo no ambiente virtual, nem sempre estão claras suas normas de utilização e possibilidades de reprodução. São licenças gratuitas e fáceis de usar e que fornecem para o autor uma forma simples e padronizada de conceder autorização para que a obra possa ser utilizada. O autor pode dizer para todos que estão interessados em fazer o uso de sua obra como ela poderá ser utilizada, sem a necessidade de contratar um advogado ou um intermediário (PREVEDELLO, 2015[v]).


15. Compatibilização entre a liberdade de ensino e a transmissão (ou gravação) das aulas

A forma como serão divulgadas as aulas virtuais e demais atividades didáticas depende, em grande parte, da vontade do professor. O fato de as instituições de ensino transmitirem, em tempo real, ou gravarem as aulas para posterior utilização pelo aluno em ambiente ou plataformas controladas, nos parece dentro da permissão decorrente própria finalidade das instituições e dentro das atribuições decorrentes da relação funcional. Haveria abuso se a instituição de ensino compartilhasse na internet as aulas sem a devida autorização do autor. Nesse caso, haveria uma utilização indevida tanto da imagem como do direito autoral. Porém, o professor é livre para disponibilizar sua aula em canais como Youtube, por exemplo, devendo apenas ter o cuidado de incluir os alertas e autorizações que deseja  sejam observados quando do uso.

Reitera-se que as aulas, bem como o material de apoio produzido pelo professor estão protegidos pelo direito autoral.

Assim, o fato de a aula estar disponibilizada em ambiente ou plataforma virtual, não autoriza que a Administração ou o aluno compartilhem ou preparem qualquer tipo de manual ou publicação para repassar a colegas ou outros alunos, apropriando-se indevidamente do trabalho do professor. O mesmo vale, por exemplo, para trabalhos apresentados por alunos em sala de aula, os quais estão também protegidos.


16. Qual a consequência da violação de direito autoral?

Violação de direito autoral traz consequências de diversas ordens, a começar pelo âmbito penal, pois é  tipificado como crime pelo artigo 184 do Código Penal, podendo a pena variar conforme o intuito (visando o lucro, por exemplo) e o modo de disseminação da obra usurpada.

Além disso, o responsável pela violação está sujeito a reparar o prejuízo causado por conta de seu ato, na esfera civil. Nesse caso, aplica-se a regra geral de reparação  pela prática de atos ilícitos prevista no Código Civil (artigos 186 e 927).

Em se tratando de violação de direito autoral cometida por servidor público, o mesmo poderá ainda estar sujeito à responder na esfera administrativa, por violação ao dever de observar as normas legais e regulamentares (art. 116 da Lei 8112/90 – RJU), sem prejuízo de outro enquadramento legal, conforme destinação ou a forma pela qual ocorreu o uso indevido da obra alheia.


17. Condições de trabalho – “professor 24 horas”

A transformação do formato das aulas presenciais deve vir acompanhada de um grande cuidado com os agentes envolvidos, sejam eles docentes ou servidores de equipes de apoio. Esse cuidado  diz respeito não apenas às questões de direito de imagem ou autorais, envolvendo também direitos sociais e proteção à saúde do trabalhador.

A partir da experiência já existente da EAD alguns estudos já analisaram e diagnosticaram os problemas e distúrbios mais frequentemente enfrentados por docentes nessa modalidade (BARROS, s.d.[vi]), os quais são importantes indicativos para que seja dada especial atenção à saúde física e mental dos docentes. Alguns exemplos problemas levantados são:

  • Questões ergonômicas: é presumível que nem todas as residências disponham de condições adequadas de trabalho, sobretudo quanto à postura, o que pode trazer impactos negativos à saúde;
  • Saúde mental: ansiedade e angústia com os novos desafios poderão ser sentidas de maneira completamente diversa por cada docente, de forma mais evidente, é claro, para docentes mais antigos e com menor familiaridade com tecnologias novas;
  • Sobrecarga de jornada: não havendo controle de jornada em tele trabalho, é preciso que o docente crie hábitos e mecanismos de controle para não se transformar no “professor 24 horas”. Da mesma forma, a instituição de ensino deve estar pronta a responder e proteger o d
  • ocente no caso de queixas infundadas que poderão surgir por parte de alunos (como por exemplo: - mandei uma mensagem no chat e o professor não me respondeu!). A instituição deve ouvir sempre o professor, se apropriar dos fatos e ter a compreensão de que o tempo do professor não pertence integralmente ao trabalho.


18. Como mensurar o tempo de preparação de aulas, orientação e demais atividades?

A substituição das aulas presenciais por educacionais digitais, como já visto no início, não significa uma transformação total de todos os cursos presenciais em cursos EAD. No EAD, por exemplo, existe a figura do tutor, o qual contribui muito com a elaboração e divulgação de materiais aos alunos. Porém, essa não será a realidade em diversas IFES, de maneira que provavelmente recairá sobre os professores essas atribuições de preparação das aulas.

A legislação atual do ensino federal já prevê limites de hora-aula, justamente para preservar as demais atividades, como a preparação, orientação, avaliação, etc. Porém, o novo modelo suscita alguns questionamentos importantes, sobretudo quando há uma predileção pela adoção de aulas assíncronas. Essas aulas previamente preparadas pelo professor, sem transmissão em tempo real, serão computadas na carga horária do docente? Talvez para docentes com Dedicação Exclusiva essa preocupação não faça tanto sentido, mas, para professores de 20 ou 40 horas seja mais relevante. Como mensurar o tempo gasto com preparação de aulas assíncronas?  O tempo de duração dessas aulas equivalem à hora-aula para fins de verificação da jornada mínima em sala de aula? Estes questionamentos exigirão uma avaliação atenta por parte das Comissões Permanentes de Pessoal Docente (CPPD), sindicatos, conselhos de unidade e demais instâncias envolvidas. Há, portanto, uma lacuna legislativa que deverá ser suprida a partir da aplicação de princípios gerais, sempre preservando o interesse da sociedade (alunos em especial) de forma compatibilizada com os direitos sociais e de personalidade (direitos de imagem e autorais) dos docentes.


19.SUGESTÕES de consulta:

Sugerimos, abaixo alguns links com materiais muito práticos sobre a temática, incluindo orientações, vídeos e palestras.


Notas

[i] MOREIRA, José António e SCHLEMMER, Eliane. Por um novo conceito e paradigma de educação digital onlife - Revista UFG, 2020, V.20, 63438 - https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/63438/34772

[ii] VIEIRA, Eleonora Milano et al. Educação a distância e direitos autorais. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6521

[iii] PINHEIRO, Luciano Andrade e PANZOLINI, Carolina Diniz. Direito Autoral do empregado autor - Breve estudo de caso . Migalhas, 2016, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/pi-migalhas/242136/direito-autoral-do-empregado-autor-breve-estudo-de-caso

[iv] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 270900-94.2007.5.09.0004 – vide notícia: http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/professora-recebera-r-384-mil-por-video-aulas-transmitidas-apos-fim-do-contrato

[v] PREVEDELLO, Clarissa Flekl et al. Direito Autoral na Produção de Materiais Didáticos para a Educação a Distância: reflexões para a utilização na era da informação. Revista Thema, 2015, disponível em http://periodicos.ifsul.edu.br/index.php/thema/article/view/298

[vi] BARROS, Veronica Altef. O trabalho do docente virtual: análise jurídica das condições de trabalho decorrentes do sistema de educação a distância. S.D, disponível em https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwi3kNuymqAhVTIrkGHW36Bw4QFjAAegQIBRAB&url=http%3A%2F%2Fpublicadireito.com.br%2Fconpedi%2Fmanaus%2Farquivos%2Fanais%2Fbh%2Fveronica_altef_barros.pdf&usg=AOvVaw2t1CBWOppiv1Wy_ZxDCaEH



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORDAS, Francis Campos. Retomada das atividades docentes de forma remota e emergencial na pandemia: direito de imagem, direitos autorais, deveres e obrigações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6261, 22 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84668. Acesso em: 29 mar. 2024.