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Inovação do poder (dever) de lançamento, conturbação e confusão entre os poderes fiscal e disciplinar quando apuram o enriquecimento ilícito.

Art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/92

Inovação do poder (dever) de lançamento, conturbação e confusão entre os poderes fiscal e disciplinar quando apuram o enriquecimento ilícito. Art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/92

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Ao usar informações prestadas no ajuste anual do imposto de renda para aprofundar as investigações sobre enriquecimento ilícito de agente público, o poder disciplinar deverá observar as regras legais, sob pena de abuso de poder do direito de investigar.

De início, cabe ressaltar que a instauração de investigações disciplinares ou criminais faz parte do microssistema do direito sancionador, onde o agente público se submete aos deveres e proibições elencadas na lei e em seu estatuto funcional como medida de preservar a boa prestação dos serviços.

Dessa forma, o poder disciplinar, como prática de qualquer ato promovido pelo Poder Público, se submete ao princípio da legalidade, como condição sine qua non de validade jurídica de seus atos.

O servidor público que exerce suas atribuições poderá responder pelos seus atos nas instâncias civil, penal e administrativa (art. 121, da Lei nº 8.112/90). Essas responsabilidades possuem características próprias, sofrendo gradações vinculadas às condutas ilícitas no exercício das atribuições funcionais ou em razão delas, possibilitando a aplicação de diferentes penalidades e de liturgias legais que variam de instância para instância. 

Sucede que existe outra instância que se imbrica com a esfera disciplinar quando a mesma se digna a investigar o servidor público pela prática de suposto ato de improbidade, com base no art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92.

Ou seja, quando o poder disciplinar investiga o servidor público na esfera tributária, em especial no tipo descrito no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92 (enriquecimento ilícito), onde verifica a vida fiscal do contribuinte servidor se vincula às normas de direito tributário, aplicáveis ao caso concreto.

Isso porque a investigação tributária percorrida na esfera disciplinar visa verificar se o servidor no exercício de suas atribuições legais, ou em razão delas, adquiriu bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução ou a renda auferida pelo mesmo (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), ou seja, ela necessariamente irá percorrer normas e regulamentos inerentes ao direito tributário. 

Inobstante o fato de o contribuinte ser servidor público, o poder disciplinar, por ser uma investigação patrimonial, deve ser regida (regido) pelas normas fiscais, para fins de procedibilidade disciplinar, visto que o ordenamento jurídico tributário não poderá ser desprezado.

Não há como se dissociar as normas e os procedimentos elencados na legislação tributária, quando se trata de investigação patrimonial de servidor público. 

Apesar de ser uma infração disciplinar o enriquecimento ilícito do servidor público, quando o poder disciplinar possui a necessidade de aprofundar as investigações utilizando-se das informações prestadas à Receita Federal na transmissão do ajuste anual do imposto de renda, necessariamente, deverá observar as regras legais que regem a matéria, sob pena da prática de atos movidos por abuso de poder do direito de investigar, em face do total desprezo aos direitos e garantias dos contribuintes

Essa conclusão é um desdobramento lógico quando se trata de verificar as normas, manuais e legislação tributária do contribuinte servidor público, para fins de tipificação da evolução patrimonial ou desproporcional à renda do investigado. 

Ao se adentrar na esfera tributária/fiscal, o poder disciplinar terá que se submeter às regras de competências e de procedimento legal vinculado à Receita Federal, poder este competente para instituir normas e procedimentos legais que devem ser observadas, sob pena de ineficácia e ineficiência da persecução disciplinar. 

A regra legal aplicável à investigação sub examem, a toda evidência, jamais poderá ser descartada ou inobservada, pois a Administração Pública submete-se ao princípio da legalidade de seus atos. 

Exemplo claro do que fora afirmado é quando a Administração pratica negócio jurídico de locação de imóvel, contrato tipicamente privado. Nessa caso, ela passa a ser regida pelo direito privado, abrindo mão de sua supremacia de poder público, desnecessária para aquele negócio jurídico. 

Nesse sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça – STJ:

“LOCAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA DE ALUGUÉIS ATRASADOS EM FACE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. NÃO INCIDÊNCIA DO DECRETO N.º 20.910/32. AÇÃO EXTINTA SEM JULGAMENTO DE MÉRITO. CITAÇÃO VÁLIDA. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL. OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO. NÃO CONFIGURADA. 

1. O Decreto 20.910/32 regula relações jurídicas tipicamente de Direito Público e, portanto, não deve reger as relações jurídicas de direito privado, nas quais a Administração atua sem as prerrogativas que lhe são inerentes.

2. O negócio jurídico ora sob o exame locação de imóvel é tipicamente de direito privado e, portanto, o fato de o Locatário ser a Administração Pública não basta para que preponderem os ditames específicos de direito público em detrimento das normas de direito privado, inclusive as atinentes à prescrição.

3. A citação válida interrompe o prazo prescricional, ainda que promovida em processo posteriormente extinto sem julgamento do mérito, salvo se o fundamento legal da extinção for o previsto no art. 267, incisos II e III, do Código de Processo Civil.

Aplicando-se à espécie as regras de direito privado, interrompida a prescrição, o curso desta volta a correr por inteiro 05 (cinco) anos a partir do último ato do processo que a interrompeu, a teor do disposto no art. 173 c.c. o art. 178, § 10, inciso IV, do Código Civil e não pela metade 2 anos e meio na forma prevista no Decreto n.º 20.910/32. 5. Recurso especial conhecido e provido.” [1]

Por oportuno, sobre a aplicação dos ditames de Direito Privado nos contratos privados celebrados entre o Particular e a Administração Pública, vale ressaltar as consagradas lições doutrinárias de Helly Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, verbis:

“A Administração Pública pode praticar atos ou celebrar contratos em regime de Direito Privado (Civil ou Comercial), no desempenho normal de suas atividades. Em tais casos ela se nivela ao particular, abrindo mão de sua supremacia de poder, desnecessária para aquele negócio jurídico. É o que ocorre, p. ex., quando emite um cheque ou assina uma escritura de compra e venda ou de doação, sujeitando-se em tudo às normas do Direito Privado. [...]” [2]

“A) A Administração pratica inúmeros atos que não interessa considerar como atos administrativos, tais:

a) atos regidos pelo Direito Privado, como, por exemplo, a simples locação de uma casa para nela instalar-se uma repartição pública. O Direito Administrativo só lhe regula as condições de emanação, mas não lhes disciplina o conteúdo e correspondentes efeitos.” [3]

“A expressão contratos da Administração é utilizada em sentido amplo, para abranger todos os contratos celebrados pela Administração Pública, seja sob regime de direito público, seja sob regime de direito privado. E a expressão contrato administrativo é reservada para designar tãosomente os ajustes que a Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para a consecução de fins públicos, segundo regime jurídico de direito público. 

Costuma-se dizer que, nos contratos de direito privado, a Administração se nivela ao particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da horizontalidade e que, nos contratos administrativos, a Administração age como poder público, com todo o seu poder de império sobre o particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da versatilidade. ” [4]

Da mesma forma, quando o ilícito for tipicamente direito penal, a responsabilidade do servidor decorrerá da prática de infrações penais (art. 123, da Lei nº 8.112/90), e a Administração Pública se utilizará de normas e de princípios aplicáveis à hipótese jurídica investigada, remetendo ao Ministério Público para a instauração da ação penal cabível, na forma dos artigos 154, parágrafo único e 171 da Lei nº 8.112/90.

A remessa do processo disciplinar ao Ministério Público deve ocorrer após a conclusão, em decorrência da observância dos princípios da legalidade, do devido processo legal e da presunção de inocência. 

Todavia, embora se consagre o princípio da independência das instâncias, há situações em que, uma vez decididas no processo penal repercutem nas instâncias civil e administrativa, afastando-se a autoria e negado o fato do ilícito penal, o resultado do juízo criminal produzirá efeitos no âmbito disciplinar (art. 126, da Lei nº 8.112/90 e art. 935 do Código Civil).

Igualmente, quando o ilícito investigado for o fiscal, para fins de procedibilidade disciplinar as aludidas esferas do direito (disciplinar e tributário) se imbricam e tornam-se indissociáveis (por necessitar da constituição definitiva do crédito tributário para apuração se houve, ou não, variação patrimonial ou de rendas, com os vencimentos do servidor público) objetivando a busca da verdade real, além de serem obrigatórias às regras de competência e de legalidade.

A norma jurídica estabelece critérios de direitos e garantias em todas as esferas como forma de disciplinar a alteração do poder persecutório estatal, bem como dotar os investigados de prerrogativas que são indelegáveis as quais, se não forem observadas, nulificam toda a investigação ante o abuso de poder do Estado. 

Dessa forma, se for investigado ilícito fiscal do servidor público para fins de subsunção no tipo do enriquecimento ilícito, a esfera disciplinar deverá observar a regra de competência e de aplicação das normas legais pertinentes à matéria investigada, em especial a CRFB/88 (limites do poder de tributar do Estado e a isonomia tributária), o Código Tributário Nacional – CTN, resoluções e portarias da Receita Federal.

O sistema tributário brasileiro é formado por um sistema de outorga de competência não só para criar a regra matriz de incidência tributária, mas também para fazer surgir todas as demais que prescrevem a fiscalização e arrecadação de tributos. 

Destaque-se que a competência tributária para efetuar o lançamento de ofício, após a constituição do crédito tributário, é da autoridade administrativa tributante, de forma indelegável, consoante lição do artigo 7º, do CTN: 

“Art. 7º - A competência tributária é indelegável, salvo as atribuições das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas, em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público e outra, nos termos do §3º, do art. 18 da Constituição”.

Sendo indelegável a competência tributária, a primeira indagação que se deve ter como alça de mira é se o poder disciplinar possui a competência de invadir as atribuições das funções dos Auditores da Receita Federal, a fim de preconizar por possíveis lançamentos fiscais (?)

Essa é uma situação frequente na atualidade, onde as corregedorias, de forma ilegal e totalmente açodada, vêm atropelando as regras voltadas ao sistema tributário e, em face da não observância da competência legal, passam a devassar a vida fiscal do contribuinte servidor público, sem poderes para tal fim. 

Na verdade, a fiscalização da Receita Federal do Brasil, munida de um mandado de procedimento fiscal, possui a competência tributária indelegável de fiscalizar o imposto de renda do contribuinte servidor público.

Frise-se que a competência vem descrita, de forma expressa, pelo já citado artigo 7º, do CTN, e não pode possuir interpretação elástica ou expansiva, em face da própria descrição da norma legal.

Não existe previsão para a delegação de tal poder às corregedorias locais quando elas se arvoram em “poder tributário disciplinar”, sem respaldo na legalidade.

Em sendo assim, o artigo 142, do CTN, destaca a competência da autoridade administrativa tributária para efetuar lançamentos de ofício, após o devido processo legal.

Compete única e exclusivamente ao auditor fiscal da Receita Federal do Brasil verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinando os atos inerentes à matéria tributável, bem como identificar e calcular o valor do montante do tributo devido e, se for o caso, identificado o sujeito passivo, propor a aplicação da penalidade legal.

Apesar de o CTN não definir qual autoridade administrativa possui tal poder legal, deixando para a lei de cada ente político a incumbência de fazê-lo, a Lei nº 10.593/2003, em seu art. 6º, I, “a”, atribui, em caráter privativo, aos ocupantes de cargo de Auditor da Receita Federal do Brasil, a competência para constituir, mediante lançamento, o crédito tributário.

Cabendo ressaltar, no entanto, que o Decreto nº 6641, de 10 de novembro de 2008, estabeleceu as atribuições dos cargos da carreira de Auditor da Receita Federal, na forma do seu anexo.

O art. 2º, do Decreto nº 6.641, de 10 de novembro de 2008, fixa, em caráter privativo, as atribuições dos ocupantes do cargo efetivo citado:

“Art. 2º. São atribuições dos ocupantes do cargo de AuditorFiscal da Receita Federal do Brasil:

I - no exercício da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil e em caráter privativo:

a) constituir, mediante lançamento, o crédito tributário e de contribuições;

b) elaborar e proferir decisões ou delas participar em processo administrativo-fiscal, bem como em processos de consulta, restituição ou compensação de tributos e contribuições e de reconhecimento de benefícios fiscais; executar procedimentos de fiscalização, praticando os atos definidos na legislação específica, inclusive os relacionados com o controle aduaneiro, apreensão de mercadorias, livros, documentos, materiais, equipamentos e assemelhados;

c) examinar a contabilidade de sociedades empresariais, empresários, órgãos, entidades, fundos e demais contribuintes, não se lhes aplicando as restrições previstas nos arts. 1.190 a 1,192  do Código Civil e observado o disposto no art. 1.193 do mesmo diploma legal;

d) proceder à orientação do sujeito passivo no tocante à interpretação da legislação tributária; e

e) supervisionar as demais atividades de orientação ao contribuinte; e

f) em caráter geral, exercer as demais atividades inerentes à competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil.” 

Portanto, o Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil é a autoridade pública federal responsável pela administração tributária e aduaneira da União Federal. Possui como atribuição principal, na qualidade de autoridade administrativa, fiscal, tributária e aduaneira, a função de presidir os procedimentos de fiscalização dos tributos federais, culminando com o lançamento do crédito tributário, de forma privativa e exclusiva (competência).

Se por um lado existe a competência privativa da citada autoridade administrativa, o certo é que existem normas tributárias que foram estabelecidas para trazer a segurança jurídica tanto para à administração tributária, quanto para o contribuinte, pois não podem pairar responsabilidades para o sujeito passivo da relação tributária com o fisco eternamente.

E o princípio da decadência do direito de lançamento fiscal estabiliza a relação do contribuinte com o fisco, imutalizando a situação fiscal do contribuinte.

Não existe exceção a essa regra, pois o princípio da isonomia tributária exige o mesmo tratamento para todos os contribuintes, inclusive para os agentes públicos, que recebem os seus rendimentos pagos pelo ente de direito público.

Em sendo assim, não compete à Comissão que compõe a sindicância patrimonial efetuar lançamentos tributários dos servidores públicos investigados, por não possuir atribuição legal.

Para evitar a conturbação e a confusão que vêm ocorrendo na atualidade, compete ao membro da Comissão Disciplinar ou da Sindicância Patrimonial representar a autoridade fiscal compete para que ela, privativamente, faça o devido lançamento tributário, visto à sua total incompetência funcional, após o devido processo legal de fiscalização.

Na prática, as Comissões Patrimoniais ou Disciplinares estão cometendo abuso de poder, pois, apesar de não possuírem competência legal para efetuarem a fiscalização do imposto de renda do servidor investigado, criam critérios distintos ao que vem estabelecido pelas normas da Receita Federal e pelo próprio Código Tributário Nacional - CTN.

Isso porque, quando o servidor apresenta sua declaração anual de imposto de renda ao fisco e, na forma do art. 13, da Lei nº 8.429/92, encaminha cópia da mesma ao ente público vinculado, a Receita Federal possui como dever legal, prazo para efetuar a devida conferência e, constatando alguma incoerência ou ilegalidade nas mesmas, de ofício, compete-lhe promover a devida fiscalização.

Ou seja, somente a Receita Federal é que possui esse poder privativo, de fiscalização da declaração de rendas do contribuinte, servidor público ou não, deixando de delegar tal competência para a esfera correicional do contribuinte servidor público investigado, mesmo que se trate da hipótese de investigação de pseudo enriquecimento ilícito tipificado como funcional (art. 9º, VII, da Lei 8.429/92).

Em sendo assim, é dever do poder disciplinar, após estudos preliminares, representar para a Receita Federal cumprir seu munus legal e verificar se há ou não o enriquecimento ilícito do agente público e seu eventual tributo a ser recolhido.

Como não possui a competência legal para fiscalizar ou alterar os dados fornecidos e transmitidos na declaração de rendas do servidor público, as comissões dos processos ou procedimentos disciplinares, jamais poderão se arvorar da competência privativa da Receita Federal para lançar tributos e declarar que houve variação patrimonial a descoberto ou incompatível com a renda recebida pelo servidor, em razão de sua função pública.

Na verdade, a atribuição do poder disciplinar é conferida pelo art. 143, da Lei nº 8.112/90, assim descrito:

“Art. 143 - A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa”.

Utilizando-se sua atribuição legal, a autoridade disciplinar, se constatar irregularidade funcional, deve promover a pronta investigação para conferir ao servidor acusado o devido processo legal e a ampla defesa.

Verificando o recebimento de “propina” ou de vantagem ilícita além daquelas hipóteses descritas no art. 9º, inc. I II, III, IV, V, VI, VIII, IX, da Lei nº 8.429/92, a Comissão Disciplinar, utilizando-se dos critérios objetivos, vinculando a produção de prova e da verdade real, enquadrará o acusado em seu suposto enriquecimento ilícito, vinculado a um ato funcional comissivo ou omissivo.

Sucede que, não encontrando indício de irregularidade funcional, ou recebimento de vantagem ilícita, geralmente o poder disciplinar se arvora, de forma irregular, e sem competência tributária, em poder fiscal, promovendo uma verdadeira devassa fiscal nas declarações de rendas do servidor investigado, no afã de encontrar algo que não foi identificado pela Receita Federal em períodos decadentes ou não, com esteio no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92.

Ao proceder dessa forma, estar-se-á configurada a conturbação ou a confusão jurídica entre poder fiscal e poder disciplinar.

A conclusão fica cristalinamente comprovada e demonstrada quando o poder disciplinar que faz às “vestes” do poder fiscal, usurpando a competência que ela não possui e se “transforma” em instância fiscal única, sem direito de recurso.

Constatando-se, assim, que há inconsistências na declaração de renda do servidor público, o poder disciplinar deve encaminhar ao poder fiscal, via representação, a situação tributária do contribuinte investigado, para que o poder compete possa cumprir o seu munus legal (Receita Federal do Brasil).

Isso tudo dentro do prazo decadencial (5 anos), ou seja, se ainda puder ser alterada e fiscalizada o período da declaração de rendas do servidor investigado, diga-se de passagem, de qualquer cidadão, lícito será o encaminhamento de representação disciplinar para a Receita Federal iniciar a competente fiscalização.

Sabe-se que a prescrição e a decadência são causas de direito especiais da extinção da obrigação tributária, aplicando-se a todos os contribuintes, inclusive ao servidor público investigado na esfera disciplinar.

A decadência, como já visto anteriormente, atinge o próprio direito substantivo, enquanto a prescrição atinge o direito formal.

O art. 173, do CTN estabelece que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, nos seguinte[s] termos:

“Art. 173 - O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;

II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.

Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento”.

Já a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos contados da data da sua constituição definitiva do crédito tributário (cf. art. 174, do CTN).

E, em nome da segurança jurídica, as relações de direito não se colocam livres dos efeitos do transcurso do tempo. Por mais relevantes que sejam os argumentos em contrário, o certo é que o transcurso do tempo pode criar, modificar ou extinguir direitos das pessoas que participam das relações jurídicas diversas.

Geralmente a decadência é uma forma extintiva de obrigação de constituição de crédito tributário, ou seja, da perda da faculdade do sujeito ativo da relação tributária agir sobre o sujeito passivo (contribuinte).

Pela decadência, o poder tributário perde a condição de constituição do crédito, na forma do art. 156, V, CTN.

Sobre o tema, Leandro Paulsen [5] averba:

“Por força do art. 156, V, do CTN, a prescrição extingue o crédito tributário. Em razão disso, e. g., o pagamento de crédito prescrito é indevido, ensejando repetição conforme se pode ver na nota do art. 165, inc. I, do CTN. Esta peculiariedade da prescrição em matéria tributária nos leva ao entendimento de que se equipara à decadência quanto a tal efeito, de modo que se enseja o reconhecimento de ofício pelo Juiz em Execução Fiscal”.

Por essa razão, a Receita Federal não poderá mais fiscalizar o contribuinte ou alterar as informações prestadas pelo mesmo em suas declarações anuais de rendas, em face do transcurso do tempo.

Não podendo mais ser fiscalizado tributariamente (constituição do crédito tributário), a declaração de rendas prestada anualmente ficará protegida pelo instituto da decadência (imutabilidade).

Desse modo, o não lançamento dentro do prazo decadencial extingue o crédito tributário do mundo fático, ainda que não constituído no mundo jurídico.

Assim, quando o poder disciplinar promover “fiscalização”, ou direcionar investigação patrimonial a períodos já decadentes tributariamente, estará criando uma situação jurídica inusitada e vedada pelo ordenamento jurídico.

Inusitada pelo fato de, ao tempo em que a autoridade administrativa tributária competente não pode mais se manifestar sobre o lançamento do crédito tributário, de forma ilegal o poder disciplinar se  traveste em órgão revisor do poder fiscal, por revisitar os valores declarados anteriormente nas declarações de rendas do servidor investigado.

Isso porque, como o poder disciplinar procede a “revisão” dos informes fiscais do servidor investigado, mesmo já exaurido o tempo de “revisão” ou de alteração da respectiva declaração de rendas anteriores aos 5 (cinco) anos legais de que trata a decadência, acaba por criar uma situação de excepcionalidade não prevista no CTN para o contribuinte servidor.

Temos um sistema híbrido de fiscalização, onde a esfera competente, à fiscal, após o decurso do tempo decadencial, não poderá mais alterar o que foi declarado pelo contribuinte para fins tributários/fiscais inerentes as declarações anuais de rendas do servidor investigado disciplinarmente, ao passo que a esfera incompetente (poder disciplinar) ultrapassa a barreira temporal de forma ilegal.

Se a esfera competente (tributária) não poderá rever tais informes anuais de rendas do servidor investigado, jamais poderá o poder disciplinar alterar tais informações para “fiscalizar” período já decadente.

Tal confusão está sendo verificada nas sindicâncias e nos processos administrativos disciplinares de uma maneira geral é exatamente por: a) a esfera disciplinar não possuir poder legal de fiscalização fiscal do servidor público; b) deve o poder disciplinar representar ao poder fiscal competente para a regular fiscalização do servidor investigado; c) se operar a decadência, o servidor não poderá ser investigado para fins tributários, ficando prejudicada a verificação se houve ou não variação patrimonial incompatível com a renda recebida; d) a sindicância patrimonial não possui poder para efetuar lançamento tributário ou “fiscalizar” declarações de rendas do servidor público; e e) verificada a inconsistência da declaração de rendas do servidor público, e não estando prescrita ou decadente a mesma, o poder disciplinar possui o dever de representar ao poder fiscal para fins de verificação de um possível enriquecimento ilícito.

Essa é a conclusão lógica da regra de competência, onde o poder de lançamento, ou de revisão das declarações de renda do servidor contribuinte é exclusiva do Auditor da Receita Federal do Brasil, de forma indelegável e privativa.

É necessário ao servidor prejudicado procurar socorro no manto protetor do Poder Judiciário, para que seja resolvida a presente confusão causada pelo poder disciplinar, que se arvora do direito de invadir a competência do poder fiscal.

A instituição de tratamento desigual entre contribuintes, em razão de ocupação profissional (servidor público) é inconstitucional, em face da isonomia tributária (art. 150, inc. II, da CRFB/88), pois, ao ser verificado o prazo decadencial do lançamento tributário, o contribuinte do imposto de renda não poderá ter a sua declaração de rendas revista ou refiscalizada, mesmo que seja servidor público. Em sendo assim, o poder disciplinar deve se limitar ao escopo de competência e respectivas regras tributárias, face ao que vem estabelecido no art. 150, II, da CRFB/88:

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II -  instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”

O princípio da isonomia tributária estabelece que o contribuinte seja tratado de forma uniforme, não podendo haver qualquer distinção em razão de ocupação profissional. [6]

Dessa forma, os direitos e deveres tributários serão iguais para todos os contribuintes, inclusive os servidores públicos e os demais contribuintes, que possuem na decadência a estabilização de suas situações fiscais.

Assim, operando-se o fenômeno da decadência ou da prescrição, ela atinge a todos os contribuintes de uma maneira geral, inclusive os servidores públicos investigados em processos disciplinares.

Da mesma forma, somente o poder tributante é que poderá alterar, privativamente, os valores lançados nas declarações de rendas dos contribuintes, servidores públicos ou não.

No entanto, o que se verifica na situação jurídica aqui enfrentada é que o poder disciplinar, apesar de utilizar da regra tributária para verificar se há indício de enriquecimento ilícito do servidor público investigado, quando se trata de prescrição e de decadência aplicadas pelo poder fiscal, em face de regramento jurídico, se desvincula de tal preceito legal, de modo que uma mesma relação jurídica é tratada de forma que não enseje prazos prescricionais e decadenciais uniformes, totalmente anti-isonômica.

Pois bem, a primeira consideração que se deve fazer é que a isonomia tributária não admite o tratamento diferenciado pelo poder disciplinar.

A interpretação do poder disciplinar é que a prescrição e a decadência começam a fluir quando a Administração Pública toma conhecimento de irregularidade funcional, na forma do art. 142, da Lei nº 8.112/90.

Essa interpretação é equivocada, pois, com o advento do art. 13, da Lei nº 8.429/92, a posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração de bens e valores que compõe o seu patrimônio privado, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente.

Essa declaração de bens será anualmente atualizada, respondendo o agente público a pena de demissão, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, se recusar a prestar declarações dos bens, dentro do prazo determinado.

Com essa exigência legal, o poder público possui o acesso amplo às declarações de rendas feitas pelo servidor público anualmente em seu ajuste do imposto de renda, ocorrendo a devida transparência na gestão da res publica, por meio de declaração dos bens e valores que compõem o patrimônio privado do servidor público.

Havendo recusa do servidor público, ele poderá, em tese, ser demitido, após o devido processo legal, com a utilização dos meios que lhe asseguram a ampla defesa e o contraditório.

Dito isto, é de se observar que, quando o poder disciplinar recebe ou toma ciência da pseudo prática de um possível enriquecimento ilícito, ao invés de identificar se houve o ato comissivo ou omissivo formal capaz de demonstrar se houve um incremento financeiro para o servidor, resolve devassar as declarações de rendas dos seus subordinados, no intuito de estabelecer um possível ilícito fiscal e financeiro que comprove as suspeitas.

Aí surge a confusão e conturbação, pois quando a esfera disciplinar se imiscuiu na esfera fiscal do servidor público, ela não poderá criar critérios diversos de contagem de prescrição e de decadência quando se trata de “fiscalização” do que fora declarado pelo contribuinte investigado na instância disciplinar, em seu ajuste anual de imposto de renda.

Ao se utilizar dos critérios fiscais, estabelecidos nas normas e nos regulamentos da Receita Federal, o poder disciplinar não poderá desconsiderar os prazos e as prescrições estabelecidas no CTN e nos regulamentos da Receita Federal, porque não será dado um tratamento desigual entre contribuintes, em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida (art. 150, da CRFB/88).

Isso porque o contribuinte que não ocupa cargo ou função pública teria tratamento diferenciado do contribuinte servidor ou agente público? 

Seria constitucional tal distinção?

Ora, quando e tratar de uma investigação que utilizar de regras fiscais, vinculadas à verificação do servidor público como contribuinte do imposto de renda, não resta dúvidas de que tanto o critério de fiscalização utilizado pelos Regulamentos, Normas e pelo CTN deverão ser observados pela esfera disciplinar, por ser inconstitucional a mitigação de direitos e deveres do contribuinte do imposto de renda, que possuem na isonomia tributária o mesmo tratamento. 

Em assim sendo, prescrita ou decadente o exercício fiscal, não há como ressuscitá-la na esfera disciplinar para se fazer retificações ou novos lançamentos, diferentes dos já declarados à Receita Federal quando do ajuste anual do imposto de renda do contribuinte, sem competência ou poder para tal fim. 

Nesse passo, ao ser imutabilizada a declaração de rendas pelo transcurso do tempo, não há como alterá-la na esfera disciplinar, para que o servidor público tenha a sua declaração oficial prestada de uma forma à Receita Federal e outra Declaração de Renda, glosada ou utilizada pelo poder disciplinar, após o prazo decadencial das mesmas. 

O poder disciplinar somente poderá investigar as declarações de rendas do servidor público que não estejam decadentes, e assim mesmo através de representação fiscal à autoridade fazendária, quando se tratar da hipótese jurídica descrita no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92, que possui o poder privativo de lançar e de fiscalizar os tributos e as declarações de rendas, glosada ou utilizada pelo Poder Disciplinar, após o prazo decadencial das mesmas. 


PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA E A SEGURANÇA JURÍDICA NÃO PERMITEM O PODER DISCIPLINAR REJEITAR AS NORMAS TRIBUTÁRIAS QUANDO SE TRATAR DE INVESTIGAÇÃO PATRIMONIAL

Quando se tratar de investigação patrimonial ligada ao imposto de renda do servidor público, o poder disciplinar não poderá deixar de seguir as normas do Direito Tributário, inclusive no que pertine o respeito dos prazos, da competência e dos critérios de interpretação.

É nesse norte que, quando a esfera correicional disciplinar entender por bem rever a declaração de renda do servidor investigado, a Administração Pública não poderá causar a confusão e a conturbação que vem promovendo, visto que vem subtraindo os prazos e entendimentos fiscais tributários correspondentes, inerentes ao que vêm estabelecidos no CTN e nas normas de fiscalização tributária para deturpar tal legislação e aplicar a Lei nº 8.112/90 e demais normas disciplinares.

Apesar de ser investigada uma infração disciplinar ligada a um pseudo enriquecimento ilícito, se a mesma estiver vinculada a verificação das informações lançadas no imposto de renda (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), prevalecem às normas do direito tributário, que possuem uma liturgia legal totalmente diversa da que vem sendo utilizada pelo poder correicional. 

Além dessa situação jurídica ferir o princípio da isonomia tributária, viola também o princípio constitucional da proteção da confiança.

Consectariamente, o princípio constitucional da proteção da confiança – conquanto dimensão subjetiva da segurança jurídica – se revela como instrumento idôneo a impedir intervenção do Poder Público que possam comprometer direitos, esvaziando-os substancialmente, notadamente quando estes já merecerem a tutela estatal.

Ademais, reclama ainda um elevado grau de respeito aos efeitos concretos e já consolidados de atos pretéritos praticados pelas instituições políticas, administrativas e judiciais. 

As relações jurídicas constituídas sob a égide do direito tributário, capazes de regular as normas que vigoram na relação do Estado como os seus contribuintes, não podem ser afastados ou desprezados quando eles possuam vínculo com o Poder Público, quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo com as normas tributárias e preservar, assim, em respeito à ética do direito, e à confiança dos cidadãos/servidores nas ações do Estado. 

Por pertinente, é de se abrir parênteses para destacar a aguda observação de J.J. Gomes Canotilho: [7]

“Estes dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia  de estabilidade jurídica, segurança de orientação e confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante ‘qualquer acto’ de ‘qualquer poder’ - legislativo, executivo e judicial.” (g.n.)

Não pode o próprio Estado desrespeitar a confiança dos administrados, como defendido por Valter Shuenquener Araújo: [8]

“(...) o princípio da proteção da confiança precisa consagrar a possibilidade de defesa de determinadas posições jurídicas do Judiciário pelo Executivo. Ele tem como propósitos específicos preservar a posição jurídica alcançada pelo particular e, ainda, assegurar uma continuidade das normas do ordenamento. Trata-se de um instituto que impõe freios e contra um excessivo dinamismo do Estado que seja capaz de descortejar a confiança dos administrados. 

Serve como uma justa medida para confinar o poder das autoridades estatais e prevenir violações dos interesses de particulares que atuaram como esteio na confiança.”

Nessa vertente, o art. 2º, incs. VIII e IX, da Lei nº 9.784/99, veda a adoção de atos públicos que viole adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados:  

“Art. 2º - A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

[...]

I – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;

II - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

Esse entendimento não é estranho à experiência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que já fez incidir o postulado da segurança jurídica em diversas questões, inclusive naquelas envolvendo relações de direito público (MS 24.268/MG, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes – MS nº 24.927/RO, Rel. Min. Cesar Peluzo).

O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal deixou assente no Mandado de Segurança[9] sobre a obrigatoriedade da observância da segurança jurídica.

“(...) 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. (...).”

Como subprincípio constitucional, a segurança jurídica estabiliza as relações jurídicas que envolvam o poder público com os particulares e com os seus servidores, fazendo com que surja o princípio da confiança com uma consequência lógica das situações criadas administrativamente.

O fator tempo é de suma importância nessa relação jurídica do poder público com os administradores ou servidores.

Assim, constituída uma relação jurídica por muitos anos, a mesma deve ser observada, sob pena de ofensa aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. 

Nesse aspecto, registra Humberto Ávila: [10]

“[o] objeto da segurança jurídica normalmente é qualificado como abrangendo as consequências jurídicas de atos ou de fatos: há segurança jurídica quando o cidadão tem a capacidade de conhecer e de calcular os resultados que serão atribuídos pelo Direito aos seus atos. Essa é a constatação geral. Como o princípio da segurança jurídica se dirige aos três Poderes, as sua aplicação pode dizer respeito a uma norma geral, legal ou regulamentar, a um ato administrativo ou a uma decisão administrativa ou judicial. Nesse sentido, os ideais de confiabilidade e de calculabilidade, baseados na sua cognoscibilidade, vertem sobre cada um desses objetos.”

A segurança jurídica de acordo com Humberto Ávila, traduz-se na exigência de um ordenamento jurídico protetor de expectativas e garantidor de mudanças estáveis (“confiabilidade”), bem como na possibilidade de o cidadão conseguir prever, com alto grau de determinação (certeza relativa), o conteúdo das normas a que já está sujeito (‘determinabilidade”), e em medida razoável de profundidade e extensão, as consequências jurídicas que serão atribuídas a seus atos e que, segundo o ordenamento jurídico, devem ser implementadas de modo a privilegiar o princípio da confiança legítima. 

A intangibilidade de situações subjetivas geradas pela estabilidade e credibilidade das relações jurídicas estabelecem a base do princípio da proteção da confiança. 

O magistério de José Joaquim Gomes Canotilho [11], ao tratar dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito, ensina: 

“[e]m geral, a segurança jurídica está conexionada com elementos subjetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e a previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a proteção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas” (g.n.)

É de se ver que a competência tributária é indelegável (art. 7º, do CTN), cabendo à autoridade tributária (art. 142, do CTN), e a mais nenhuma outra, efetuar lançamentos de ofício, a fiscalização das obrigações tributárias do servidor público fica a cargo do Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil e de mais nenhuma outra autoridade fiscal e disciplinar. 

Verificando indícios de irregularidade fiscal do servidor público, se não estiver decadente o período investigado, o Poder Disciplinar deverá promover a representação para fins fiscais, para que o agente público competente (Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil) possa fazer a devida fiscalização. 

Paulo Barros de Carvalho [12], sobre o tema averba:

“Aquele que o parágrafo único do art. 194 quer exprimir é que as pessoas públicas ou privadas que ele enumera devem acatar o regular exercício das competências que as autoridades administrativas recebem da legislação tributária”.

Não há como o poder disciplinar se arvorar da competência exclusiva e privativa do poder fiscal, e refiscalizar as declarações de rendas do servidor público para fins de verificação de um possível enriquecimento ilícito de que trata o inc/ VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92. 

Os prazos e procedimentos e competências fiscais, estabelecidos no Código Tributário Nacional devem ser observados (art. 194, do CTN), pois o pseudo enriquecimento ilícito estaria sendo derivado de uma insubsistente declaração de rendas prestada à Receita Federal, e que possui prazo legal (5 anos) para efetuar a devida conferência da regularidade fiscal do contribuinte, servidor público ou não. 

O que não mais poderá ocorrer é o que vem acontecendo, onde o servidor contribuinte possui determinada declaração anual de rendas prestada ao órgão competente (Receita Federal) e não fiscalizado, no prazo legal, a mesma se torna imutável e corresponde a realidade tributária da mesma, e mesmo assim, o poder disciplinar, sem competência legal, resolve “fiscalizar” as informações ali descritas, e faz uma verdadeira “autuação”, alterando o escopo da mesma, com a finalidade de demonstrar a pseudo variação patrimonial incompatível com a renda recebida pelo servidor investigado. 

Em sendo assim, o servidor público fica com a declaração oficial apresentada à Receita Federal, que serve para todos os fins de direito, como correta e, para a esfera correicional disciplinar, ela é revista, pouco importando se o período já se encontra ou não refutado pela decadência. 

Tal posicionamento do Poder Disciplinar fere os princípios da isonomia tributária, da legalidade, da razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica, dentre outros. 

O artigo 2º, da Lei nº 9.784/99, ademais, estabelece como obrigação do Poder Disciplinar: 

“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

I - atuação conforme a lei e o Direito;

II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei;

III - objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades;

IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;

V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição;

VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público;

VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão;

VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;

IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio;

XI - proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei;

XII - impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;

XIII - interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.”

Em se tratando de competência tributária, ela é irrenunciável e privativa da Receita Federal, não havendo também previsão para que o poder disciplinar tenha competência concorrente. 

Sendo irrenunciável a competência, o artigo 11, da Lei nº 9.784/99 assim estabelece: 

“Art. 11. A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos.”

Por ser exclusiva (privativa) a competência da Autoridade Administrativa (Auditor da Receita Federal do Brasil), não pode ser objeto de delegação para o poder disciplinar, como estipulado no art. 13, inc. III, da Lei nº 9.784/99: 

“Art. 13. Não podem ser objeto de delegação:

I - a edição de atos de caráter normativo;

II - a decisão de recursos administrativos;

III - as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade.”

A autoridade fiscal é a única que possui poder de fiscalização tributária, em face do que vem estabelecido no Código Tributário Nacional – CTN, somente ela é que pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Nesse sentido, dispõe o artigo 116 e seu parágrafo único do CTN: 

“Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

(...)

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”

Por estarmos sob a égide do Estado de Direito, vigora o estado de confiança e sendo assim não há como se subtrair a competência exclusiva do poder fiscal, definida em lei, para que haja a competência concorrente do Poder Disciplinar, sem a mínima determinação legal. 

Essa usurpação da competência do poder disciplinar fere o princípio da isonomia tributária (art. 150, II, da CRFB/88), bem como o princípio da confiança: 

Nesse sentido destacou o Ministro Cezar Peluso, na ACO nº 79, Pleno, DJe de 28.05.12, que: 

“[a] fonte do princípio da proteção da confiança está, aí, na boa fé do particular, como norma de conduta, e, em consequência, na ratio iuris da coibição do venire contra factum proprium, tudo o que implica vinculação jurídica da Administração Pública às suas próprias práticas, ainda quando legais na origem. O Estado de Direito é sobremodo Estado de confiança.”

A proteção da confiança enquanto um valor constitucional de origem ético-jurídica e enquanto proteção subjetiva do princípio da segurança jurídica desautoriza o poder disciplinar a exercer o seu imperium de desconstituir ou anular situações tributárias desconformes com o postulado da legalidade administrativa, quando revestidas de aparência de legalidade e de boa-fé, assim consolidadas no tempo por inércia do próprio ente público que os originou ou lhes deu causa. 

O poder disciplinar, ao tempo que não possui atribuição tributária para desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constituíveis da obrigação tributária (parágrafo único, art. 115, CTN); também não poderá “constituir o crédito tributário” após 5 anos, constados do que vem estabelecido no art. 173, I e II, do CTN, visando desconstituir declarações de rendas de servidor público investigado.

Eis a dicção do art. 173, do CTN: 

“Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;

II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.

Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento.”

O prazo decadencial de 5 (cinco) anos após a apresentação da declaração anual de rendas do contribuinte é extremamente razoável, e a sua revisão ou fiscalização, pelo poder competente (fiscal) não pode ser, em tese, ad eternum e muito menos se vincular a prazos de prescrição e de decadência da esfera disciplinar (total ausência de normativa legal). 

Assim, tem-se uma dupla ilegalidade flagrante: (i) a ausência de atribuição legal do poder disciplinar; e (ii) a desconsideração do prazo decadencial que rege a relação tributária do servidor público com o fisco. 

Estando a mesma “imortalizada” pelo transcurso do tempo, não há como o poder disciplinar pretenda revê-la ou revalorá-la; 

A inércia do poder disciplinar não pode acarretar em usurpação da esfera fiscal. 

O ato administrativo já praticado pela autoridade competente produz todos os efeitos dele esperados, especialmente em matéria fiscal, que é a competência é privativa da Receita Federal. 

Tomando-se partida da consagrada concepção de Pontes de Miranda sobre os planos de existência, validade e eficácia dos fatos jurídicos, anota-se que o poder fiscal não pode ser subvertido pelo poder disciplinar, onde as declarações anuais de rendas que não estejam decadentes pelo transcurso do tempo, somente podem ser revisadas ou fiscalizadas pelo Auditor da Receita Federal do Brasil investido do mandado de procedimento fiscal, obviamente autorizado para tal fim.

Jamais a esfera disciplinar estará apta a se imiscuir na relação tributária fiscal do servidor público com a finalidade de demonstrar um pseudo enriquecimento ilícito. 

Ainda que se pudesse considerar o ato administrativo disciplinar como válido, em tese, por estar apurando a infração funcional de enriquecimento ilícito (tipificado no inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), deve respeitar no processo administrativo os limites e a competência fiscal quando verifica as declarações de rendas do servidor investigado que não estejam decadentes. 

Destaca-se, por outro lado, que tal situação jurídica viola o princípio da confiança, qualificado pelo Min. Gilmar Mendes como derivativo do princípio da segurança jurídica, vigente nas relações entre os administrados e a Administração, sejam pautadas na ética jurídica.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF vem reafirmando a essencialidade do princípio da confiança como uma garantia insuprimível que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, fere e condiciona o exercício, pelo poder público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade da própria medida restritiva de direitos, revestida, ou não, de caráter punitivo. 

Apesar do art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92, estabelecer que a aquisição para si ou para outrem, no exercício de cargo ou de função pública, de bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou a renda do agente público, ensejando o enriquecimento ilícito, em tese, se o poder disciplinar for analisar as declarações de renda correspondentes, a Administração Pública não possui competência legal para desconsiderar os lançamentos feitos nos ajustes do investigado perante a Receita Federal, devendo também respeitar o prazo decadencial dos mesmos. 

Por essa razão, não estando decadentes as aludidas declarações de rendas, o caminho legal a ser perseguido pela esfera disciplinar será a de representar para que a Receita Federal fiscalize as aludidas declarações anuais de rendas, na forma, competência e nos prazos previstos na legislação tributária. 

A inércia do poder disciplinar consolida a situação de fato do servidor de que não poderá ser fiscalizado se já operou o prazo decadencial de verificação de seus informes anuais de rendas declaradas à Receita Federal. 


O princípio da duração razoável do processo administrativo ou judicial encontra-se encartado na Constituição Federal/88 desde a Emenda Constitucional nº 45/2014, que incluiu o inciso LXXVII ao artigo 5º.

É que nesses casos não pode ser subtraída a competência fiscal tributária para se instituir processo administrativo disciplinar que não respeite a competência privativa da Receita Federal, e os prazos estabelecidos como limites para a investigação tributária/fiscal do contribuinte, incluindo nesse contexto, o servidor público, em face do princípio da isonomia tributária.

Vigem, portanto, os princípios da boa-fé, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da necessária estabilização das relações públicas e sociais, que autorizam o reconhecimento de que o poder disciplinar não pode se furtar de observar um prazo razoável para a revisão de atos tributários ou administrativos dos quais já tenham produzido efeitos jurídicos para os administrados, neles incluídas as declarações de rendas transmitidas para a Receita Federal. 

É certo que a atuação do Poder Disciplinar, como do próprio Estado, deve pautar-se pela legalidade, o qual a doutrina dominante vincula à configuração do regime jurídico administrativo. 

Derivativo do princípio da legalidade, o princípio da autotutela  impõe à Administração Pública o dever de anular/invalidar os seus próprios atos  quando eivados de vício ou, ainda, revogar aqueles que não se compatibilizem com a conveniência e oportunidade para a realização do interesse público. 

O princípio da autotutela se encontra sedimentado no Supremo Tribunal Federal, notadamente nas Súmulas números 346 e 473.

No entanto, a legalidade não pode ser entendida apenas de forma estrita e dissociada de sua adjetivação constitucional.

É notório que a legalidade deve conectar-se aos princípios vigentes do Estado Democrático Constitucional de Direito.

E parte da própria Constituição Federal/1988, o respeito, a segurança jurídica, a manutenção da confiança, prevendo a prescritibilidade como regra e a imprescritibilidade como exceção. 

Nesse quadrante, segue a lição de Almiro do Couto e Silva [13], para quem “a segurança jurídica é um valor constitucional que se qualifica como subprincípio do princípio maior do Estado de Direito, que é o da legalidade. Segurança jurídica e legalidade são, sabidamente, os dois pilares de sustentação do Estado de Direito”.

Ao se admitir que o prazo de 5 (cinco) anos, a contar do dia seguinte ao da transmissão da declaração de rendas do servidor à Receita Federal, seja apenas para que enseje o prazo decadencial fiscal, o que vem decidindo o poder disciplinar que possibilita praticar atos de “fiscalização”, sem competência legal e de forma serôdia, fere de morte o princípio da segurança jurídica e a consequente proteção à confiança, in casu, aquela depositada pelo servidor público, cuja boa-fé é presumida, no ato formal quando transmite seus dados fiscais a esfera fiscal. 

É necessária a proteção devida e amparada nos princípios vetores que norteiam a Administração Pública, inscritos no art. 37, da CRFB/88, e o processo administrativo às relações jurídicas estabilizadas pelo transcurso do tempo durante o qual o próprio poder público manteve-se inerte. 

Registre-se que o tema é pedra singular do Estado de Direito sob forma de proteção à confiança. 

É o que destaca Karl Larenz, 14 que tem na consecução da paz jurídica um elemento nuclear do Estado de Direito material e também vê como aspecto do princípio da segurança o da confiança: 

“O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar (...) é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica.”

Com esse foco, o Supremo Tribunal Federal [14] vem fundando sua jurisprudência para a manutenção da verificação da aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança: 

“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVIMENTO DERIVADO. SUBSISTÊNCIA DO ATO ADMINISTRATIVO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA.

1. O Supremo Tribunal Federal, em algumas oportunidades, e sempre ponderando as particularidades de cada caso, já reconheceu a subsistência dos atos administrativos de provimento derivado de cargos públicos aperfeiçoados antes da pacificação da matéria neste Tribunal, em homenagem ao princípio da segurança jurídica. Precedentes.

2. O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.

3. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula 512/STF).

4. Agravo interno a que se nega provimento.”

Até mesmo em casos que violem a Constituição, mas que já produziram efeitos jurídicos por muitos anos, a situação excepcional permite em nome dos princípios da razoável duração do processo, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, sejam convalidadas: 

“Agravo regimental no mandado de segurança. 2. Direito Administrativo. 3. Concurso público. Prazo de validade. Suspensão do curso do prazo de validade dos certames por ato administrativo do TJ/MT. Retomada do curso do prazo após mais de dois anos, com a consequente nomeação dos aprovados no certame. 4. Decisão do CNJ que declarou a nulidade do ato e determinou a exoneração dos servidores nomeados em período posterior àquele previsto no art. 37, III, da CF. 5. Situação excepcional. Exercício das funções públicas por mais de dez anos. 6. Presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública. Demora na tramitação dos feitos administrativos e judiciais relacionados aos fatos. Princípio da razoável duração do processo, da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima. 7. Agravo regimental a que se nega provimento.” [15]

No mesmo sentido: [2]

“DIREITO ADMINISTRATIVO. SEGUNDO AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONCURSO PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. EXCEÇÃO TEORIA FATO CONSUMADO. 

1. A desconstituição do ato de promoção do impetrante representa clara violação aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima, situação que se enquadra na excepcionalidade reconhecida no julgamento do RE 608.482-RG.

2. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não houve fixação de honorários advocatícios (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula 512/STF). 

3. Agravo interno a que se nega provimento.”

E, ainda: [18]

“3. Princípios da segurança jurídica e da confiança legítima. Necessidade da estabilização das relações jurídicas.

Se os representantes do poder disciplinar não observarem a regra de competência legal do poder fiscal, e ultrapassarem prazos (decadencial) e informações constantes nas declarações anuais de rendas dos servidores, que somente poderão ser retificadas ou desconsideradas pelos Auditores da Receita Federal após a devida fiscalização, como vem ocorrendo na atualidade, irão cometer o crime de abuso de poder, por violar de forma expressa os artigos 25 [19] e 33 [20], da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.


AS ALTERAÇÕES DAS DECLARAÇÕES DE RENDA DOS CONTRIBUINTES SOMENTE SE CONSOLIDAM PELA RECEITA FEDERAL APÓS A CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO – SÚMULA 24/STF, INCLUSIVE PARA FINS DE VERIFICAÇÃO DO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DO SERVIDOR PÚBLICO A QUE ALUDE O INC. VII, DO ART. 9º, DA LEI Nº 8.429/92 

Ainda que se trate de fiscalização tributária, o Poder Público não poderá promover a transgressão das restrições e das garantias constitucionais estabelecidas em favor dos contribuintes, servidor público ou não.

Impõe-se relembrar que o poder persecutório estatal, por mais relevante que seja instaurado, deve preservar os direitos instituídos em favor daqueles que sejam investigados, servidor público ou não, sendo garantido pelo ordenamento constitucional brasileiro a invalidade das provas produzidas de forma ilegítima e as provas ilícitas. A Constituição Federal/88 tornou inadmissíveis, no processo judicial ou administrativo, as provas inquinadas de ilicitude ou de ilegitimidade.

Cabe esclarecer que as provas no presente contexto devem ser produzidas perante o processo administrativo tributário, visto que ele possui autonomia frente o processo administrativo disciplinar, processos civil e penal, dentre outros quando se trata de fiscalização das declarações de rendas do servidor contribuinte.

Sabe-se que o processo tributário é um termo amplo que engloba o estudo do procedimento administrativo tributário (fase oficiosa), processo administrativo tributário (fase contenciosa administrativa) e processo judicial tributário (fase contenciosa judicial), sendo a esfera fiscal a única que possui a competência legal para constituir o crédito tributário de forma definitiva.

A esfera penal já pacificou o entendimento que o Ministério Público não pode denunciar o contribuinte por crime contra a ordem tributária, somente após a decisão final do poder fiscal, que constituir definitivamente o crédito tributário.

Por ser crime material de dano, para cuja consumação é necessária a produção do resultado previsto no tipo “suprimir ou reduzir tributos”, necessário se faz que a esfera fiscal lance definitivamente o crédito tributário para que a instância criminal possa proceder à devida investigação.

É uma questão de procedibilidade, sem que com isso se diga que há violação a independências das instâncias.

Mesmo sendo independentes as instâncias, elas se comunicam quando o ilícito investigado for o mesmo para fins de possibilitar as devidas responsabilizações dos servidores investigados nas esferas competentes.

Não resta dúvida que tanto no crime de sonegação fiscal, quanto na hipótese de enriquecimento ilícito do servidor público (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), o delito é material, de dano, para cuja consumação é necessária a produção do resultado previsto no tipo “suprimir ou reduzir tributos”.

A Lei nº 8.137/90, ao definir crimes contra a ordem tributária econômica, define em seu artigo 2º:

“Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal; [...]”

Define o artigo 3º, inciso II, da citada Lei nº 8.137/90, o crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-Lei nº 2.848/40, o enriquecimento ilícito (inc. II), consistente na exigência, solicitação ou recebimento, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, mas em razão dela, de vantagem indevida, verbis:

“Art. 3° Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no  Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal (Título XI, Capítulo I):

(...)

II - exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

(...)”

Destarte, percebe-se que, conforme definição legal dos crimes contra a ordem tributária (supressão ou redução de tributos), estes possuem sua consumação com a efetiva produção desse resultado. [21]

Note-se que somente no processo administrativo fiscal é que se pode cogitar em supressão ou redução do tributo após o lançamento tributário definitivo (constituição do crédito tributário). 

É patente que não há como negar a influência direta (procedibilidade) do processo administrativo tributário nos delitos contra a ordem tributária, visto que sem a constituição definitiva do crédito tributário, não haverá a demonstração de supressão ou redução de tributos.

Hodiernamente, é imperiosa que a instância fiscal comprove a efetiva lesão ao erário público com a comprovada supressão ou redução do tributo, não sendo suficiente para a instauração da ação penal a mera lavratura do auto de infração.

O princípio da independência das instâncias administrativa e penal não autoriza a que se impute ao contribuinte a prática de crime de natureza fiscal antes mesmo de que haja o esgotamento do processo tributário, com a demonstração definitiva (irrecorrível) da existência do débito (crédito tributário definitivo), que resultou da lavratura do auto de infração. É uma condição objetiva de punibilidade. [22]

Destarte, é inquestionável, pois, a interdependência entre as mencionadas instâncias (penal e tributária), em face do elemento normativo do tipo estar vinculado ao lançamento definitivo do crédito tributário como condição objetiva de punibilidade.

Desse modo, a conclusão definitiva da instância fiscal demonstrará ou não a comprovação da materialidade do crime, consectário lógico da ação ou omissão do contribuinte.

Nesse viés, foi consolidada a Súmula Vinculante nº 24/STF, que pacifica inexistirem os crimes elencados nos incisos do artigo 1º da Lei 8.137/90, antes do lançamento do tributo:

“Súmula 24/STF: Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990, antes do lançamento definitivo do tributo”.

De uma maneira geral, as atividades ilícitas do servidor público que reduzam ou suprimam tributos, fruto de sonegação fiscal ou de enriquecimento ilícito, se encaixam no presente contexto.

Tem-se que, por ser o enriquecimento ilícito um delito tributário, o entendimento do art. 142, do CTN, compete à autoridade fiscal efetuar o lançamento, consolidando o crédito tributário existente desde a ocorrência do fato gerador, até o valor do tributo devido.

Deve-se reconhecer que a desproporcionalidade entre a evolução patrimonial e a renda do servidor, mesmo se entendendo que ocorra a inversão do ônus da prova, incumbindo o servidor público de demonstrar a origem lícita desses recursos, o certo é que o poder disciplinar não possui competência legal para desconstituir ou alterar o que consta na declaração de rendimentos do contribuinte servidor [23]

Considerando que para configurar a improbidade administrativa é preciso que se esteja demonstrado patrimônio a descoberto ou renda incompatível com a função pública, conclui-se que, inobstante ser um tipo descrito no art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92 (enriquecimento ilícito), é, por si só, um delito tributário, e deve, por questões de procedibilidade (competência), ser investigado pelo poder fiscal, com a finalidade de se investigar as declarações de rendas tidas como suspeitas.

  Apesar do art. 8º do Decreto nº 5.483/2005 estabelecer que, “ao tomar conhecimento de fundada notícia ou de indícios de enriquecimento ilícito, inclusive evolução patrimonial incompatível com os recursos e disponibilidades do agente público, nos termos do art. 9º da Lei nº 8.429, de 1992, a autoridade determinará a instauração de sindicância patrimonial, destinada à apuração dos fatos”, se for investigada a declaração de renda do servidor público, compete privativamente ao poder fiscal tal atribuição. [24]

Tratando-se de procedimento de ofício, que não se confunde, substitui ou condicionam o processo administrativo disciplinar, regido pelas disposições específicas da Lei nº 8.112/90, instrumento legal no qual se apura as infrações funcionais imputadas ao servidor público, é de se observar se haverá ou não a necessidade de fiscalizar-se as declarações de rendas do investigado, que não  estejam decadentes ou prescritas.

São as seguintes hipóteses de enriquecimento ilícito em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades públicas:

[...] I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;

II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado;

III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;

IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades;

V - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem;

VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei;

VII - adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público;

VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade;

IX - perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza;

X - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado;

XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei;

XII - usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.

Não resta dúvida que o poder disciplinar estará apto para investigar se houve enriquecimento ilícito do servidor público nas hipóteses descritas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VIII, IX, X, XI, XII, todos do artigo 9º, da Lei nº 8.429/92.

Contudo, se o poder disciplinar investigar a hipótese jurídica descrita no inc. VII, do citado artigo, terá que se utilizar das informações ficais do servidor, onde somente a Receita Federal poderá fiscalizar (investigar) se os bens estejam desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do investigado, em período não prescrito ou decadente, por ser indelegável tal atribuição legal.

Não é franqueado ao poder disciplinar a faculdade de “devassar” a vida fiscal do servidor público, “fiscalizando” suas informações prestadas à Receita Federal, e arquivadas no órgão público correspondente (art. 13, da Lei nº 8.429/92) visto faltarlhe competência legal para se transformar em poder fiscalizador tributário.

O art. 198, §1º, II, do CTN autoriza o compartilhamento de dados fiscais pela Receita Federal no âmbito da Administração Pública para subsidiar processo administrativo destinado a prática de infração disciplinar (enriquecimento ilícito), independente de autorização judicial, por certo não transfere ou delega sua competência fiscal para o âmbito do poder disciplinar.

É muito importante essa observação, pois o compartilhamento de dados fiscais de maneira reservada transmitido para a Receita Federal, visando subsidiar processo administrativo disciplinar em face de servidor público contribuinte do imposto de renda, com vistas à verificação de prática de enriquecimento ilícito, onde se investigará eventual ilícito material (inc. VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/92), deve o poder disciplinar representar ao poder fiscal para que o mesmo efetue a devida fiscalização tributária (verifique se há bens cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público), visando identificar se há ou não inconsistências nas declarações de rendas apresentadas.

Destarte, mesmo que se investigue a prática de ato de improbidade inerente ao enriquecimento ilícito, a situação jurídica inserida no inc. VII, ensejará uma verdadeira fiscalização tributária, onde serão revistas todas as informações transmitidas nas declarações de rendas do servidor público, não possuindo o poder disciplinar competência legal para efetuar tal atribuição de verdadeira “revisão” dos dados fiscais respectivos.

Por outro lado, a prática do enriquecimento ilícito, segundo o art. 118 do CTN, não exime a tributação obtida em razão da atividade ilícita, porquanto a definição do fato gerador do tributo é interpretada com abstração da validade jurídica do ato praticado, ou do seu objeto, consoante lição do Supremo Tribunal Federal: [25]

“EMENTA Habeas corpus. Penal. Processual penal. Crime contra a ordem tributária. Artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90. Desclassificação para tipo previsto no art. 2º, inciso I, da indigitada lei. Questão não analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Supressão de instância. Inadmissibilidade. Precedentes. Alegada atipicidade da conduta baseada na circunstância de que os valores movimentados nas contas bancárias do paciente seriam provenientes de contravenção penal. Artigo 58 do DecretoLei nº 6.259/44 - Jogo do Bicho. Possibilidade jurídica de tributação sobre valores oriundos de prática ou atividade ilícita. Princípio do Direito Tributário do non olet. Precedente. Ordem parcialmente conhecida e denegada. 1. A pretendida desclassificação do tipo previsto no art. 1º, inciso I, para art. 2º, inciso I, da Lei nº 8.137/90 não foi analisada pelo Superior Tribunal de Justiça. Com efeito sua análise neste ensejo configuraria, na linha de precedentes, verdadeira supressão de instância, o que não se admite. 2. A jurisprudência da Corte, à luz do art. 118 do Código Tributário Nacional, assentou entendimento de ser possível a tributação de renda obtida em razão de atividade ilícita, visto que a definição legal do fato gerador é interpretada com abstração da validade jurídica do ato efetivamente praticado, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos. Princípio do non olet. Vide o HC nº 77.530/RS, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 18/9/98. 3. Ordem parcialmente conhecida e denegada”.

A sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa (Princípio do no olet) foi admitido pelo STF desde o HC nº 77.530/RS, Relator Min. Sepúlveda Pertence (DJ 18/9/98), onde foi registrado:

“EMENTA: Sonegação fiscal de lucro advindo de atividade criminosa: "non olet". Drogas: tráfico de drogas, envolvendo sociedades comerciais organizadas, com lucros vultosos subtraídos à contabilização regular das empresas e subtraídos à declaração de rendimentos: caracterização, em tese, de crime de sonegação fiscal, a acarretar a competência da Justiça Federal e atrair pela conexão, o tráfico de entorpecentes: irrelevância da origem ilícita, mesmo quando criminal, da renda subtraída à tributação. A exoneração tributária dos resultados econômicos de fato criminoso - antes de ser corolário do princípio da moralidade - constitui violação do princípio de isonomia fiscal, de manifesta inspiração ética.”

Os rendimentos auferidos pelo servidor público como contribuinte do Imposto de Renda auferidos de atividade ilícita não declaradas se constitui em infração fiscal com desdobramentos para a esfera disciplinar.

Sobre o que foi dito é de se registrar o presente julgamento do STF: [26]

“Agravo regimental em habeas corpus. 2. Crime contra a ordem tributária (omitir informação das autoridades fazendárias). 3. Imposto de Renda da Pessoa Física. Rendimentos oriundos de atividade ilícita não declarados. 4. Inocorrência de afronta ao princípio da garantia contra a autoincriminação. 5. Obrigação de declarar os recursos. 6. Jurisprudência da Corte. 7. Ausência de constrangimento ilegal. 8. Negativa de provimento ao agravo regimental.”

A competência privativa da Receita Federal (indelegável), conforme o disposto os artigos 7º e 142, ambos do CTN, a subtração dessa competência originária viola o juízo natural, no caso da hipótese descrita no inc. VII, do art. 9º da Lei nº 8.429/92.

O princípio do juízo natural, materializado em dois incisos do art. 5º, da Constituição Federal/88, assim dispostos:

“Art. 5º.

(...)

XXXVI – não haverá juízo ou tribunal de exceção.

(...)

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Tal disposição é plenamente aplicável ao processo administrativo disciplinar. [27]

Estabelece o princípio sub oculis uma jurisdição administrativa diretamente localizada para o devido processo legal e para a isonomia, equânime, realizado em qualquer grau de jurisdição, por uma autoridade administrativa legalmente competente.

O juízo natural do processo administrativo disciplinar é a autoridade administrativa competente para instaurá-lo e julgá-lo, na forma dos ditames legais e constitucionais vigentes.

Contudo, em se tratando de verificação de enriquecimento ilícito a que alude o art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92, por se tratar de delito tributário material de dano, cuja consumação se verifica no tipo “suprimir ou reduzir tributos” necessita da constituição definitiva do crédito tributário.

Nessa toada, a autoridade disciplinar deverá aguardar a decisão definitiva do poder fiscal, o único competente para efetuar a fiscalização pretendida pelo órgão correicional.

Com a evolução do constitucionalismo democrático, identificou-se o fortalecimento do princípio do juízo natural, onde a competência administrativa para determinadas situações jurídicas é única, não se admitindo o compartilhamento.

Nesse contexto, compete à lei definir o critério de competência de cada esfera do direito.

É por isso mesmo que se revela de essencialidade inquestionável a função da lei, cujas prescrições – necessárias e insubstituíveis , desde que fundadas em critérios gerais, abstratos, impessoais e apriorísticos, ajustam-se, em face da própria natureza do instrumento a que aderem, às exigências do postulado do Juiz Natural.

O poder disciplinar não poderá substituir o poder fiscal para fins de estabelecer se as declarações de rendas dos servidores públicos prestados à Receita Federal são ou não inconsistentes, e que a mesma poderá investigar períodos já prescritos ou decadentes, na hipótese descrita no inc. VII, do art. 9º da Lei nº 8.429/92.

É notório que deverá ser observada regra fiscal aplicada à espécie, única competente para fiscalizar as declarações de rendas do contribuinte servidor público.

E a finalidade do princípio do juiz natural foi definida magistralmente pelo Supremo Tribunal Federal - STF[24] ao definir que “o princípio do Juízo – que traduz significativa conquista do processo penal liberal, essencialmente fundado em bases persecutórias do Estado e representa importante garantia de imparcialidade dos juízes e tribunais”.

Tem, enfim, caráter dúplice a garantia do juízo natural, que é manifestado com a proibição de juízes e tribunais extraordinários e com impedimento à subtração da causa ao juízo, tribunal, ou esfera competente. Não pode julgar o poder disciplinar instrumento para verificar se nas declarações de rendas de seus servidores ocorre à hipótese de enriquecimento ilícito a que alude o art. 9º, inc. VII, da Lei nº 8.429/92.

As conclusões dessas regras brasileiras levam a definição de que juiz natural é o próprio juiz constitucional, ou seja, aquele juiz que é criado pela lei e cujas regras de competência vêm nela definidas a priori, em observância a CRFB/88, que reafirma o pacto da República Federativa do Brasil com o primado do Estado Democrático de Direito e com os princípios referentes aos Direitos Humanos (art. 1º e 4º da CRFB/88).

Conclui-se que os fatos em apuração no processo administrativo disciplinar, que envolvam verificação, através de fiscalização, das informações prestadas ao poder fiscal, quando da declaração de ajuste do imposto de renda, somente poderão ser alteradas, ou fiscalizadas pelo poder competente, que é o fiscal (competência indelegável), através do competente mandato de procedimento fiscal correspondente.


Notas

[1] STJ, Rel. Min. Laurita Vaz, REsp nº 685.717/RO, 5ª T., julgado em 4.02.2010.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25. ed., São Pulo: Malheiros Editores, 2008. 

[4] PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 10. ed. São Pulo: Atlas, 1998, p. 207.

[5] Leandro Paulsen, Direito Tributário, Constituição e Código Tributário a Luz da Doutrina e da Jurisprudência, Livraria do Advogado Editora, 7ª edição, 2ª  tiragem, Porto Alegre, 2005, p/ 123.

[6] “(...) 1 – O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal, consagrou o princípio da isonomia tributária, que impede a diferença de tratamento entre contribuintes em situação equivalente, vedando qualquer distinção em razão de trabalho, cargo exercidos (...)” (STF, Rel. Min. Maurício Corrêa, RE 236.881/RS, 2ª T., DJ 26/04/2002) e ainda: “(...) 3-A isonomia tributária (CF, art. 150, II, torna inválidas as distinções entre contribuintes ‘em razão de ocupação profissional ou função por eles exercido’, máxime nas hipóteses nas quais, sem qualquer base axiológica no postulado da razoabilidade, engedrase tratamento discriminatório em benefício da categoria de Oficiais de Justiça estaduais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente”(STF, Rel. Min. Luiz Fux, ADI 4276/MT, Plena, DJ 18/09/2014).

[7] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa: Almedina, 1998, p; 250.

[8] ARAÚJO, Valter Shuenquener. O princípio da proteção da confiança: uma forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói-RJ: Impetus, 2009, p. 159).

[9] STF, Rel. Min. Gilmer Mendes, Ms nº 22.357/DF, Pleno, DJ de 5.11.2004.

[10] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 144. 

[11] CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998, p. 250.

[12] Paulo Barros de Carvalho, Curso de Direito Tributário, 8ª edição, Saraiva, SP, 1996, p. 366.

[13] SILVA, Almiro do Couto e. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro o Direito da Administração Pública de Anular seus próprios Atos Administrativos: o prazo decadencial do art. 54 do processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado. Numero 2. Salvador:  2005).

[14] LARENZ, Karl; Derecho Justo – Fundamentos de Ética Jurídica. Madri: Civitas, 1985, p. 91). 

[15] STF, Rel. Min. Roberto Barroso, ARE nº 861595 AgR/MT, 1ª T., DJ de 22.05.2018.

[16] STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, MS nº 30662/AgR/DF, 2ª T., DJ de 6.09.2017.

[17] STF, Rel. Min, Roberto Barroso, ARE 950586 AgR/BA, 1ª T., DJ de 19.06.2019.

[18] STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, RE nº 636553/RS, Pleno, DJ de 26.05.2020. 

[19] Art. 25.  Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.

[20] Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

[21] “(...) os crimes tributários são de natureza material, uma vez que sua consumação se dá não com a conduta de declaração falsa ou omissão de dados, mas com a ocorrência do resultado consistente na supressão ou redução do tributo. E não há tributo sem que a autoridade administrativa, após o devido processo legal, constitua o crédito em termos definitivos. 6. Nesse contexto, a justa causa deve ser aferida no momento da apresentação da exordial, já que os elementos indiciários de autoria e prova da materialidade devem lastrear a admissão da acusação. Em outras palavras, a condição objetiva de punibilidade não pode ser preenchida depois de iniciado o processo penal. (...)” (STF, Rel. Min. Roberto Barroso, RCL 31.194 MG, 1ª T., dec. Monocrática, DJ 3/12/2018).

[22] “Em princípio, atesto que a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia condição objetiva de punibilidade. Em outras palavras, não de pode afirmar a existência, nem tampouco fixar o montante da obrigação tributária até que haja o efeito preclusivo da decisão final administrativa. Vale ressaltar que, a partir do precedente firmado no HC 81.611/DF, firmou-se nesta Corte jurisprudência no sentido de que o crime contra a ordem tributária (art. 1º, I a IV, da Lei 8.137/1990) somente se consuma com o lançamento definitivo. É que, em razão da pendência de recurso administrativo perante as autoridades fazendárias, não se pode falar de crime. Uma vez que essa atividade persecutória funda-se tão somente na existência de suposto débito tributário, não é legítimo ao Estado instaurar processo penal cujo objeto coincida com o  de apuração tributária que ainda não foi finalizada na esfera administrativa”. (STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, HC 102.477, voto do Min. Gilmar Mendes, 2ª T., DJ 10/8/2011).

[23] “Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Matéria criminal. Crime contra a ordem tributária. Ausência de constituição definitiva do crédito tributário. Trancamento da ação penal por inexistência de justa causa. Súmula Vinculante nº 24. Pretendida absolvição sumária. Impossibilidade. Agravo regimental não provido. 1. A ausência de constituição definitiva do crédito tributário inviabiliza o desenvolvimento válido da persecução criminal, acarretando o trancamento da ação penal por ausência de justa causa, o que não impede o oferecimento de nova denúncia (ou aditamento da já existente) após o exaurimento da via administrativa, a teor do disposto na Súmula Vinculante nº 24” (STF, Rel. Min. Dias Toffoli, ARE 1.047.419 Agr, 2ª T., DJ 23/4/2018. E ainda: “É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade do exaurimento da via administrativa para a validade da ação penal, instaurada para apurar infração aos incisos I a IV do art. 1º da Lei 8.137/1990. (...) 2. A denúncia ministerial pública foi ajuizada antes do encerramento do procedimento administrativo fiscal. A configurar ausência de justa causa para a ação penal. Vício processual que não é passível de convalidação. 3. Ordem concedida para trancar a ação penal.”(HC 100.333, rel. Min. Ayres Britto, HC 100.333, 2ª T., DJ 19/10/2011); “Com efeito, revela-se juridicamente inviável a instauração de persecução penal, mesmo na fase investigatória, enquanto não se concluir, perante órgão competente da administração tributária, o procedimento fiscal tendente a constituir, de modo definitivo, o crédito tributário. Enquanto tal não ocorrer, como sucedeu neste caso, estarse-á diante de comportamento desvestido de tipicidade penal (RTJ 195/114), a evidenciar, portanto, a impossibilidade jurídica de se adotar, validamente, contra o (suposto) devedor, qualquer ato de persecução penal, seja na fase pré-processual (inquérito policial), seja na fase processual (“persecutio criminis in judicio”), pois – como se sabe – comportamentos atípicos (como na espécie) não justificam, por razões óbvias, a utilização, pelo Estado, de medidas de repressão criminal.” (STF, Rcl 10.644 MC, Rel. Min. Celso de Mello, dec.  Monocrática, 14/4/2011, DJE 74.

[24] “(...) a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é uníssona no sentido de que o crédito tributário somente se faz constituído após a conclusão do procedimento administrativo. Assim, não se pode apontar a suposta reiteração na omissão de pagamento de tributos, quando estes ainda não foram constituídos em definitivo. Ademais, a Súmula Vinculante 24 determina que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1o, incisos I a IV, da Lei no 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. Com esse entendimento, é imperioso constatar que procedimentos administrativos em trâmite, considerados pelo STJ como condutas reincidentes ou reiteradas, não podem ser equiparados às condenações criminais com trânsito em julgado.” (STF, HC 136.843 MC, Min. Ricardo Lewandoswsky, dec. Monocrática, DJ 7/2/2017).

[25] (HC 94240, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª T.,  julgado em 23/08/2011, DJ 13/10/2011)

[26] STF, Rel. Min. Gilmar Mendes, HC 158.976 Agr, 2ª T., DJ 28/02/2019.

[27] Cf. Miranda, Gustavo Senna. Princípio do Juiz Natural e sua aplicação na Lei de Improbidade Administrativa, SP, RT, 2006, p/ 80; NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na União Federal, 5ª ed., SP, RT, p/ 66.

[28] STF, Rel. Min. Celso de Mello, HC 69.601/SP, 1ª T., DJ 18/12/1992.


Autor

  • Mauro Roberto Gomes de Mattos

    Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

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MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Inovação do poder (dever) de lançamento, conturbação e confusão entre os poderes fiscal e disciplinar quando apuram o enriquecimento ilícito. Art. 9º, VII, da Lei nº 8.429/92. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6256, 17 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84670. Acesso em: 28 mar. 2024.