Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/8568
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Delineamento do dano ambiental

o mito do dano por ato lícito

Delineamento do dano ambiental: o mito do dano por ato lícito

Publicado em . Elaborado em .

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. MEIO AMBIENTE E RECURSOS AMBIENTAIS: 2.1.MEIO AMBIENTE COMO BEM AUTÔNOMO; 2.2 OS RECURSOS AMBIENTAIS; 2.3 – REGIME JURÍDICO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS AMBIENTAIS - 3. DANO AMBIENTAL EM SENTIDO AMPLO (AO MEIO AMBIENTE) E DANO AOS RECURSOS AMBIENTAIS (SENTIDO ESTRITO) - 4. DANO AMBIENTAL PRIVADO - 5. A QUESTÃO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO: RESOLUÇÃO PELO PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE: 5.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS; 5.2. PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE; 5.3. PRINCÍPIOS QUE INFLUENCIAM NA INTERPRETAÇÃO DA TOLERABILIDADE: 5.3.1. Princípio da Indisponibilidade do Meio Ambiente; 5.3.2. Princípio do Desenvolvimento Sustentável; 5.3.3. Princípio da Prevenção; 5.3.4. Princípio do Limite; 5.4. O MITO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO - 6. CONCLUSÃO


RESUMO

Neste trabalho foi enfrentada, com base nos princípios de Direito Ambiental a questão do dano ambiental por ato lícito, visando demonstrar que em verdade, por força da Constituição Federal, não há que se falar em licitude nas ações que venham a romper o equilíbrio do meio ambiente mediante atos danosos.

Para tanto, fez-se a diferenciação do meio ambiente como bem autônomo, dos recursos ambientais, analisando-se separadamente os danos causados a cada um destes elementos autônomos.

Por fim, utilizando-se do princípio da tolerabilidade, dentre outros, defendeu-se a tese de que, uma vez rompido o equilíbrio ambiental, ocorre a ilicitude decorrente diretamente do Texto Constitucional.


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo visa traçar considerações e delineamento sobre o dano ambiental, principalmente no que diz respeito à questão do dano por ato lícito.

Para enfrentamento do tema é necessário que se estabeleça com precisão o conceito de meio ambiente e recursos ambientais, dano ambiental em sentido amplo (dano ao meio ambiente), estrito (dano aos recursos ambientais) e dano ambiental privado ou a terceiro (dano em ricochete), traçando-se como linha mestra do raciocínio o princípio da tolerabilidade do meio ambiente, pautado este pelos princípios constitucionais da indisponibilidade, do desenvolvimento sustentável, da precaução/prevenção e princípio do limite.

Com esteio nestes princípios, pretender-se-á sustentar que, em verdade, a questão do dano ambiental por ato lícito ou autorizado é um mito, pois, uma vez extrapolados os limites aqui apontados, necessariamente o ato lesionador do meio ambiente deverá ser considerado ilícito, não gerando controvérsia sobre a indenização do dano.


2. MEIO AMBIENTE E RECURSOS AMBIENTAIS

2.1.MEIO AMBIENTE COMO BEM AUTÔNOMO

A primeira questão a ser enfrentada é o conceito de meio ambiente como bem autônomo, além de deixar-se evidenciado sua diferenciação do conceito de recursos ambientais.

Como em qualquer matéria no ramo do Direito, o ponto inicial para o estudo da questão deve necessariamente ser a Constituição Federal, que em seu art. 225 estabelece, que todos ‘têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida....".

Percebe-se do Texto Maior que o Constituinte erigiu o meio ambiente como bem autônomo eminentemente relacional, pois ao mencionar ser direito de todos tê-lo ecologicamente equilibrado reconheceu a necessidade de interação entre os seus elementos (recursos ambientais, como ar, água, solo, fauna, flora, cultura, trabalho, etc.) de forma a ser mantida a qualidade ambiental como condição da qualidade de vida, objetivando repelir qualquer agressão que proporcione desequilíbrio deste bem.

Também deste artigo retiram-se outras considerações de extrema importância para compreensão do tema, as quais são muito bem apontadas por Fiorillo (2002, p. 103), decorrentes da sistematização constitucional da matéria:

"O dispositivo estabelece quatro concepções fundamentais no âmbito do direito constitucional ambiental, a saber:

a) indica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos;

b) estabelece a natureza jurídica do bem ambiental como sendo de uso comum do provo e essencial à sadia qualidade de vida, criando, portanto, pela primeira vez em nosso país, um terceiro gênero de bem que não é público e muito menos privado;

c) determina tanto ao Estado (Poder Público) como à sociedade civil (coletividade) o dever, para ambos, de preservar, bem como defender os bens ambientais;

d) assegura não só para quem está vivo nos dias de hoje (presentes gerações) como para aqueles que virão (futuras gerações) a existência real dos bens ambientais em nosso país." (grifos do autor)

Note-se que a Constituição Federal não chegou a definir o que é meio ambiente – a não ser de forma indireta. Mas, em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional, já havia esta definição, estabelecida pelo art. 3º da Lei nº 6.938/1981, que foi integralmente recepcionada pela nova ordem, dispondo ser este "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;".

Extrai-se do artigo citado que a noção legislativa de meio ambiente seguiu a mesma esteira da Constituição Federal e estabeleceu este como bem eminentemente relacional, decorrente da interação de vários elementos existentes (físicos, químicos e biológicos) e das condições, leis, interações e influências destes no abrigo, permissão e regulação da vida em todas as suas formas.

Em uma primeira leitura, chega-se a ter a impressão que a definição legal levou em conta tão-somente o meio ambiente natural, esquecendo-se do meio ambiente cultural, artificial e também do trabalho. Contudo, impõe-se levar em consideração que ao ser estabelecido em lei que o meio ambiente "permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas", é perfeitamente englobável neste conceito as demais facetas de meio ambiente, por serem decorrência das relações humanas, já que o homem é uma das formas de vida existente no planeta.

Ademais, a conjugação da Lei nº 6.938/81 com a Lei nº 7.346/85 e art. 225 da Constituição Federal, levam à conclusão de que o meio ambiente não tem somente o aspecto natural (os bens naturais, como o solo, a atmosfera, a água, a vida), mas também o artificial (espaço urbano construído) e cultural (a interação do homem ao ambiente, como urbanismo, o zoneamento, o paisagismo, os monumentos históricos, o meio ambiente do trabalho, assim como os demais bens e valores artísticos, estéticos, turísticos, paisagísticos, históricos, arqueológicos, etc.) (MAZZILLI, 2001, p. 133).

Infere-se, assim, que foi reconhecido o meio ambiente como bem autônomo, baseado justamente em sua característica relacional e ultrapassando a noção de mera soma dos recursos ambientais, sejam naturais (solo, água, fauna, flora, etc.) ou artificiais (patrimônio histórico, cultural, etc.).

Esclareça-se que ao ser mencionada a questão relacional nestas definições, pretende-se afirmar que ela consiste justamente na característica principal do meio ambiente: a relação entre seus vários elementos (recursos naturais, artificiais, culturais, etc.), buscando-se sempre o equilíbrio (art. 225, da CF: ‘Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado...’), não se confundindo o todo com as partes que o compõem.

Na busca desta noção do meio ambiente como bem autônomo, é de extrema importância que seja feita a diferenciação entre este e os recursos ambientais. Para isto, optou-se por utilizar a terminologia adotada por Milaré (2001, p. 68) denominando-se os seus componentes (água, solo, fauna, flora, prédio histórico, etc.) como recursos ambientais e não bens ambientais, já que este segundo termo é ambíguo e utilizado na doutrina ora para denominar o meio ambiente como bem autônomo, ora para denominar seus componentes (como fauna, flora, ar, etc.).

Sob nossa ótica, ao adotar-se a terminologia de recursos ambientais não se desconhece que estes, em si mesmos, podem e são bens jurídicos – pois protegidos/tutelados por uma norma jurídica. Mas, visa-se com isto apenas a depuração na linguagem evitando-se a adoção de termo ambíguo, o que deve ser evitado ao máximo em qualquer ciência, não sendo diferente no estudo do Direito.

Na diferenciação entre estes dois conceitos – meio ambiente e recursos ambientais – é esclarecedora a lição de Benjamim (1993, p. 75):

"(...) o meio ambiente, embora como interesse (visto pelo prisma da legitimação para agir) seja uma categoria difusa, como macrobem jurídico é de natureza pública. Como bem – enxergado como verdadeira universitas corporalis – é imaterial, não se confundindo com esta ou aquela coisa material (floresta, rio, mar, sítio histórico, espécie protegida etc.) que o forma, manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que compõem a realidade ambiental (Carlos Dorta). Assim, o meio ambiente é bem, mas bem como entidade que se destaca dos vários bens materiais em que se firma, ganhando proeminência, na sua identificação, muito mais o valor relativo à composição, característica ou utilidade da coisa do que a própria coisa (Paolo Maddalena). Uma definição como esta de meio ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as coisas, por exemplo) que, sem si mesmas, também são bens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável"

Desta forma, percebe-se com clareza da lição do mestre que o meio ambiente é um macrobem autônomo em relação aos demais recursos ambientais, não se confundindo com estes e possuindo regime jurídico e tutela própria.

Na mesma esteira de entendimento e também com grande propriedade é a lição de Antunes (2002, p. 200), que estabelece ser o meio ambiente um bem jurídico autônomo e unitário, não confundível com os recursos ambientais, não sendo um simples somatório destes. O meio ambiente resulta da supressão de todos os seus componentes e adquire uma particularidade jurídica que é derivada da própria integração ecológica destes elementos.

Portanto, o meio ambiente não é um bem corpóreo; ao contrário é incorpóreo e imaterial (MIRRA, 2002, p. 12), além de indisponível, detendo regime jurídico próprio e autônomo em relação aos recursos ambientais que o compõem.

Neste sentido é a lição de Rui Carvalho Piva, ao sustentar que o bem ambiental (que preferimos denominar meio ambiente) é um valor difuso e imaterial, sendo que a imaterialidade afasta qualquer tipo de bem material da discussão em torno da identificação deste bem (PIVA, 2000, p. 152).

Encerrando-se estas considerações, pode-se adotar como conceito de meio ambiente aquele elaborado por José Afonso da Silva, que, ao nosso ver, é o mais completo e adequado (2002, p. 20): "O meio ambiente é, assim, a integração do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas."

2.2 OS RECURSOS AMBIENTAIS

O legislador pátrio ao tratar sobre ‘recursos ambientais’ no art. 3º, V, da Lei nº 6.938/81 dispôs serem eles "a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora."

Ao invés de definir, o legislador elencou quais são os recursos ambientais, e dentre eles incluiu a ‘atmosfera’ e ‘os elementos da biosfera’. Ora, levando-se em conta que a biosfera é a "zona de transição entre a terra e a atmosfera, no interior da qual as formas de vida da terra são comumente encontradas. Consiste na porção externa da geosfera e na parte mais baixa da atmosfera." (Dicionário de Direito Ambiental, 2003, p. 89) e que a atmosfera é a massa de ar que envolve a terra, é fácil verificar que tudo o que existe entre "o céu e a terra" – usando-se a expressão popular – pode ser considerado recurso ambiental.

E este deve ser mesmo o enfoque, pois, por ser o meio ambiente um macrobem relacional (superando os recursos ambientais em si e relacionando-os de forma equilibrada), tudo o que influencie nesta relação, permitindo, abrigando e regendo a vida em todas as suas formas deve ser considerado como bem ambiental.

Desta forma, devem ser considerados bens ambientais: o prédio de valor histórico ou arquitetônico (meio ambiente artificial); o animal silvestre (meio ambiente natural); o maracatú nordestino ou a capoeira (meio ambiente cultural), dentre inúmeros outros que poderiam aqui ser elencados.

Conforme será desenvolvido no próximo item, os recursos ambientais, dependendo do caso – ao contrário do meio ambiente, que é incorpóreo/imaterial e indisponível – podem ser corpóreos/materiais (árvore, animal silvestre, etc.) ou incorpóreos/imateriais (ecossistema), disponíveis (árvore com autorização de corte) ou indisponíveis (caça de animal silvestre).

Para que não haja dúvida da necessidade de separação entre tais conceitos – meio ambiente e recursos ambientais – observe-se a seguinte lição de Piva (2000, p. 138):

"A separação dos conceitos de bem ambiental e de recursos ambientais, que aqui vamos considerar como sendo todos os demais bens jurídicos, de qualquer natureza, ou seja, privados, públicos, coletivos, materiais e imateriais, capazes de proporcionar equilíbrio ecológico ao meio ambiente, representa uma vigorosa particularidade técnica da aplicação da norma neste particular ramo do direito, que é o Direito Ambiental."

Arriscando um conceito sobre a matéria, pode-se dizer que recursos ambientais são bens jurídicos naturais, artificiais ou culturais, corpóreos ou incorpóreos, que integrem ou tenham qualquer relação, influência ou interação com o meio ambiente.

2.3 – REGIME JURÍDICO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS AMBIENTAIS

Ao tratar sobre meio ambiente na Constituição Federal, o art. 225 dispõe ser este ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida’, além de impor ao ‘Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Como o constituinte utilizou a expressão ‘bem de uso comum do povo’, prevista no Código Civil de 1916 e replicada no de 2002, impõe-se verificar qual o regime jurídico deste tipo de bem naquele primeiro diploma que estava em vigor à época da promulgação da Carta Magna.

Caio Mário da Silva Pereira (1997, p. 280) ensina que os bens de uso comum do povo são aqueles que embora pertencentes a um ente público, estão franqueados a todos, tais como mares, rios, estradas, ruas, praças, sendo inalienáveis e imprescritíveis. Via de regra, podem ser utilizados de forma franqueada, sem restrições e sem ônus, embora a realização de pagamento não descaracterize esta natureza (p. ex: pedágio cobrado nas estratadas).

Ora, da simples leitura do referido artigo percebe-se que a Constituição quando tratou do meio ambiente atribuiu a titularidade a todos indiscriminadamente e a ninguém particularmente, nem mesmo ao Poder Público e muito menos a qualquer pessoa física ou jurídica de direito privado. Nem mesmo a coletividade deste momento histórico é proprietária deste bem, sendo ela mera detentora em prol das presentes e futuras gerações.

Impõe-se, assim, tomar cautela para não fazer uma interpretação retrospectiva, de forma a interpretar a Constituição com base nos conceitos previstos na legislação anterior, inovando o mínimo possível, conforme adverte Luiz Roberto Barroso (1996, p. 66 e 67) ao mencionar que se deve "rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo (...)"

Portanto, parece-nos que pretender aplicar ao meio ambiente a visão privada do Código Civil, seja o de 1916, seja de 2002, é um equívoco, pois esta não se coaduna com a visão moderna da teoria dos direitos difusos que ganhou força com a Constituição Federal de 1988.

É esta a lição de Fiorillo (2003, p. 49-50):

"Dessa forma, em contraposição ao Estado e aos cidadãos, ao público e ao privado, iniciou-se no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, uma nova categoria de bens: os bens de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida. Esses bens não se confundem com os denominados bens públicos, tampouco com os denominados bens particulares (ou privados).

Sob esse enfoque, surge a Lei Federal n. 8.078, de 1990, que, além de estabelecer nova concepção, vinculada aos direitos das relações de consumo, cria, a partir da orientação estabelecida pela Carta Magna de 1988, a estrutura infraconstitucional que fundamenta a natureza jurídica de um novo bem, que não é público e não é privado: o bem difuso.

Criado no plano mais importante do sistema jurídico, como já aludido, pela Constituição Federal de 1988, o direito difuso passou a ter clara definição legal, com evidente reflexo na própria Carta Magna, configurando nova realidade para o intérprete do direito positivo.

Aludido bem, definido como transindividual, tendo como titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I, da Lei n. 8.078/90), pressupõe, sob a ótica normativa, a existência de um bem ‘de natureza indivisível’, ou seja, um bem que ‘não pode ser fracionado por sua natureza, por determinação de lei ou por vontade das partes’, conforme nos ensina a ilustre Profa. Maria Helena Diniz."

Não se pode, desta forma, atribuir ao bem difuso a qualidade de bem público propriamente dito, pois este não está no patrimônio de qualquer ente público, ao contrário, é pertencente à toda coletividade, e não só das presentes, mas também das futuras gerações.

Fiorillo (2003, p. 53) traça como critério diferenciador entre o bem público e o bem difuso a titularidade, sendo que o primeiro tem como titular o Estado (ainda que deva geri-lo em função e em nome da coletividade), ao passo que o de natureza difusa repousa a sua titularidade no próprio povo, tanto que eventuais indenizações decorrentes de lesões a estes bens têm natureza diversa: a indenização do bem público volta-se aos cofres do ente prejudicado; a indenização do bem difuso, ao fundo de defesa dos direitos difusos (Lei n. 7.347/85, art. 13).

Em assim sendo, o primeiro elemento do regime jurídico do meio ambiente é de que o mesmo é um bem difuso, não pertencente nem ao Estado, nem ao particular, mas sim à coletividade, representada pelas presentes e futuras gerações, sendo todos estes detentores de tal bem.

Outro elemento caracterizador deste regime jurídico é o da indisponibilidade, matéria esta que será desenvolvida com maior profundidade mais adiante.

Também característica do meio ambiente é sua insuscetibilidade de apropriação, seja pelo próprio Estado, seja pelos particulares, fato este decorrente diretamente do princípio da indisponibilidade.

Em conclusão, o regime jurídico do meio ambiente como bem autônomo – sem prejuízo de outras características a serem mais exploradas – é o de bem difuso de uso comum do povo, incorpóreo, indisponível e insuscetível de apropriação.

Situação diversa é a que diz respeito do regime jurídico dos recursos ambientais, pois, neste caso, cada um considerado individualmente pode ter um regulamento próprio, não havendo necessariamente um regime jurídico único para todos eles, tendo como único traço comum a impossibilidade de seu uso ser lesivo ao meio ambiente como bem autônomo.

Ocorre que, os recursos ambientais individualmente considerados podem ter regime inclusive de direito privado, como é o caso das árvores que, segundo o Código Civil (art. 79) são consideradas bens móveis e assim que removidas – com o devido licenciamento – podem ser livremente comerciadas.

De igual maneira um prédio histórico ou com valor arquitetônico relevante – ainda não tombado – não perde sua condição de propriedade particular, podendo ser alienado, hipotecado, locado, usado, desde que isto não influencie em sua característica histórica ou arquitetônica.

Ora, é possível afirmar-se que uma árvore, isoladamente, ou um conjunto restrito delas ou ainda o prédio histórico mencionado, é bem de uso comum do povo, indisponível, insuscetível de apropriação, etc.? A resposta é negativa, pois ambos – mesmo considerados como recursos ambientais – têm regime de direito privado com titularidade pertence a uma pessoa – física ou jurídica – particular.

Essencial, assim, a diferenciação entre meio ambiente e recursos naturais, pois somente o primeiro é difuso, de uso comum do povo, indisponível e insuscetível de apropriação, e os demais seguem regime jurídico próprio a ser analisado caso a caso.

Desta maneira, alguns recursos ambientais são plenamente apropriáveis e utilizáveis – desde que esta apropriação não leve à apropriação individual (exclusiva) do meio ambiente – nos termos da lição de Mirra (2002, p. 38):

"Na mesma ordem de idéias, não podem os particulares pretender apropriar-se do meio ambiente como bem imaterial, ou seja, como conjunto de condições, relações e interdependências que condicionam, abrigam e regem a vida. O que pode eventualmente ser apropriado, o que pode eventualmente ser utilizado pelos particulares, sobretudo para fins econômicos, são determinados elementos corpóreos que compõem o meio ambiente e os bens ambientais (como as florestas, os solos, as águas, em certos casos os exemplares da fauna e da flora, determinados bens móveis e imóveis integrantes do patrimônio cultural) e, mesmo assim, como se verá a seguir, de acordo com condicionamentos, limitações e critérios previstos em lei e desde que essa apropriação ou utilização dos bens materiais não leve à apropriação individual (exclusiva) do meio ambiente como bem imaterial."

Nada obsta, portanto, que certo recurso ambiental (p. ex: as árvores existentes fora de áreas de preservação permanente e reserva legal ou o prédio de valor histórico) tenha regime jurídico de direito privado e outros (p. ex: a caça) sejam regidos por regime de direito público.

Desta forma, na "concepção de microbem ambiental, isto é, dos elementos que o compõem (florestas, rios, propriedade de valor paisagístico etc.), o meio ambiente pode ter o regime de sua propriedade variado, ou seja, pública e privada, no que concerne à titulariedade dominial." (LEITE, 2003, p. 85)

Com base nestas assertivas é possível reconhecer que a indisponibilidade existente no meio ambiente não é aplicável imediatamente ao caso dos recursos ambientais, pois a estes pode ser aplicada indisponibilidade total (p. ex: em relação à impossibilidade de apropriação do ar atmosférico ou à vedação à caça, com raras exceções), restrita (p. ex: em relação à pesca que é vedada em alguns períodos nos rios, bem como mediante certos petrechos) e até mesmo nenhuma (p. ex: nos casos de florestas na propriedade fora da área de preservação permanente e reserva legal que pode ser suprimida mediante simples ato administrativo autorizativo, ressalvadas as espécies protegidas).

Não se conclua, contudo, que em decorrência de alguns recursos ambientais deterem esta condição de regime privado, poderá o proprietário utilizar-se do mesmo a seu juízo, de forma irresponsável, pois além de ser imperioso o exercício da função social e ambiental da propriedade, a utilização de tais recursos está limitada à atividade sustentável de forma a não prejudicar o macrobem a que ele faz parte: o meio ambiente.

Nestes casos, como bem adverte Mirra (2002, p. 48), o regime jurídico do meio ambiente adotado no Brasil, além de direcionar-se aos recursos ambientais que pertencem a todos indivisível e indistintamente (p. ex: ar, praias, etc.), incide igualmente sobre todos os elementos corpóreos configuradores do seu substrato material, qualquer que seja a sua titularidade, e em relação a todas as atividades ou práticas que de alguma forma estão relacionadas com o meio ambiente e com os bens ambientais, para orientá-los e condicioná-los – uns e outras – à preservação da qualidade ambiental propícia à vida.

Esclarecendo-se ainda mais, afirma-se com certeza que a limitação de utilização destes recursos ambientais pelos seus titulares – sejam eles entes públicos ou privados – é justamente aquela pautada pela legalidade e pela não influência negativa sobre o meio ambiente. O que permite concluir que é vedada a utilização de recursos ambientais de forma a influenciar negativamente no meio ambiente como macrobem autônomo, por ser este bem difuso, indisponível e insuscetível de apropriação.

Justamente em razão destas limitações que atingem indistintamente a todos os recursos ambientais – de forma a que sua utilização seja racional e não prejudique o bem maior, meio ambiente – a doutrina vem procurando configurar outra categoria de bens – os bens de interesse público – na qual estão inseridos tanto bens pertencentes a entidades públicas quanto particulares. Ficam eles subordinados a um regime jurídico mais rígido em relação à intervenção estatal e de tutela pública, surgindo aí duas categorias, os de circulação controlada e os de uso controlado (SILVA, 2002, p. 83).

É este aspecto que estabelece identidade no regime jurídico dos bens ambientais, qual seja: os mesmos podem ser utilizados por seus titulares – sejam particulares (solo, árvores fora de áreas protegidas, prédio histórico, etc.), públicos (área pública, minas, etc.) ou à coletividade (ar, praias, etc.) – desde que esta utilização não se mostre nociva ao meio ambiente como bem autônomo (macrobem).

Firmadas estas bases, passa-se à análise da questão do dano ambiental e suas espécies.


3. DANO AMBIENTAL EM SENTIDO AMPLO (AO MEIO AMBIENTE) E DANO AOS RECURSOS AMBIENTAIS (SENTIDO ESTRITO)

A análise do dano ambiental é questão extremamente complexa e tormentosa pois, não raras vezes, envolve-se conflitos entre bens e interesses de difícil conciliação (progresso X conservação do meio ambiente), isto quando não permeada por interesses e ideologias conflitantes que em nada colaboram para a elucidação da problemática.

O nosso ordenamento jurídico não dispõe expressamente sobre o conceito de dano ambiental. Contudo, o art. 3º, II e III, da Lei nº 6.983/81, dispõe sobre os conceitos de degradação e poluição, nos seguintes termos:

"Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a)prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

b)criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;

c)afetem desfavoravelmente a biota;

d)afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

e)lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões estabelecidos;"

Para se buscar um conceito para o dano ambiental, importante registrar a diferença entre o dano ambiental em sentido amplo e dano ambiental em sentido estrito. Francis Caballero (apud, MILLARÉ, 2001, p. 422) ensina a distinção ao dizer: "Deve-se distinguir entre dois tipos de danos ecológicos: o dano ecológico em sentido amplo, isto é, tudo o que degrada o meio ambiente, e o dano ecológico em sentido estrito, isto é, a degradação dos elementos naturais".

Tal diferenciação é essencial para a compreensão do tema, pois, se é gasto tempo e esforço na distinção de meio ambiente e recursos ambientais, é justamente porque tal diferença tem relevância quando se tratar de danos ambientais.

Firma-se então a terminologia de que dano ambiental em sentido amplo é aquele que atinge o meio ambiente como bem autônomo – cujas características e regime jurídico já foram explorados – e dano ambiental em sentido estrito é aquele que atinge algum recurso ambiental, cujo tratamento jurídico também foi delineado acima.

Neste ponto, impõe-se ainda fazer mais uma distinção que será desenvolvida adiante: entre dano ambiental – seja amplo ou restrito – e dano ambiental privado (dano pelo meio ambiente ou em ricochete).

O dano ambiental é aquele que atinge o meio ambiente como bem autônomo (sentido amplo) ou um recurso ambiental (sentido estrito). Já dano ambiental privado é aquele prejuízo causado às pessoas ou seus bens por meio de algum recurso ambiental (água, ar, solo), como elemento condutor. O meio ambiente e os recursos ambientais aparecem, assim, como vetores responsáveis pela ligação entre o fato danoso e os danos causados ao patrimônio de particulares ou pessoas de direito público (MIRRA, 2002, p. 69), esta é a razão de ser também chamado de dano em ricochete.

Esta divisão também é denominada de dano público (dano ambiental em sentido amplo) quando atinge o bem de uso comum do povo, de natureza difusa, atingindo um número indefinido de pessoas e dano particular (dano em ricochete, dano pelo meio ambiente, etc.), quando envolve o patrimônio individual das vítimas (BARBARULO, 2004, p. 250).

A autonomia destes dois direitos foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (MILARÉ, 2001, p. 423), no seguinte acórdão: "Dano contra o meio ambiente: rompimento de tanque construído precariamente, ocasionando um derrame de lama fétida e poluentes – Irrelevância do fato de a empresa ré ter indenizado alguns proprietários, porque, indubitavelmente, não foram eles os únicos atingidos – Ação civil pública que, outrossim, não se confunde com uma ação qualquer de responsabilidade civil por danos causados a particulares".

O dano ambiental privado será desenvolvido com maior profundidade no próximo item deste trabalho.

Estabelecidas estas diferenciações, pode-se concluir que o dano ambiental em sentido amplo é aquele ocorrido em relação ao bem jurídico meio ambiente. Para tanto, adota-se a conceituação estabelecida por José Rubens Morato Leite (2003, p. 104):

"Da análise da lei brasileira, pode-se concluir que o dano ambiental deve ser compreendido como toda lesão intolerável causada por qualquer ação humana (culposa ou não) ao meio ambiente, diretamente, como macrobem de interesse da coletividade, em uma concepção totalizante, e indiretamente, a terceiros, tendo em vista interesses próprios e individualizáveis e que refletem no macrobem."

Para realçar ainda mais o conceito de dano ambiental, recorde-se a definição de meio ambiente como bem estritamente relacional de seus componentes (recursos ambientais), sendo que a tutela constitucional busca o equilíbrio nesta relação. Portanto, pode-se considerar que toda vez que ocorra desequilíbrio na relação entre os recursos ambientais provocada por ação humana, ocorre dano ambiental.

Além disto, qualquer outra lesão que leve à perda da qualidade ambiental como um todo, deve ser considerada dano ambiental em sentido amplo.

Assim, não podemos concordar com a autora Ângela Barbarulo (2004, p. 259) quando sustenta "nem toda alteração negativa do meio ambiente pode ser qualificada como poluição ou dano", por haver o conceito de dano ambiental na legislação ficado indefinido.

Ora, se houve perda na qualidade do meio ambiente (alteração negativa) é inexorável que houve dano ambiental. O que pode ocorrer, conforme o caso, são alterações que não se mostrem degradantes desta qualidade, nos termos da lição de José Afonso da Silva (2002, p. 31-32):

"(...) não é toda poluição que se torna condenável. Poluição sempre existiu e sempre existirá, mas, para ser considerada como tal, a modificação ambiental deve influir de maneira nociva ou inconveniente, direta ou indiretamente, na vida, na saúde, na segurança e no bem-estar da população, nas atividades sociais e econômicas da comunidade, na biota ou nas condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente." (grifo nosso)

Não se quer com isso defender o imobilismo da sociedade ou do meio ambiente – o que seria irreal – mas também não se pode sustentar que todas as mudanças ocorridas são benéficas a ele (MACHADO, 2003, p. 326).

Por fim, é de se destacar a questão dos danos ambientais em sentido estrito – danos aos recursos ambientais – pois, uma vez haver ocorrido lesão a estes, necessária é a devida reparação.

Conforme apontado anteriormente, os bens ambientais, ainda que dotados de regime próprio a cada especificidade, seja público ou privado, têm em comum o fato de serem bens de interesse público, na estrita dimensão de sua influência no meio ambiente.

Assim, sempre que houver lesão a estes bens ambientais decorrentes de ato ilícito – a questão do ato lícito será analisada posteriormente – será necessária a reparação, pois houve dano a um bem juridicamente tutelado.

Ressalte-se que neste sentido não se pode deixar de reconhecer que tais bens revelam interesse à toda coletividade, pois são componentes do macrobem denominado meio ambiente que é de uso comum do povo.

Por tais motivos, cabível também nestes casos a ação civil pública e a remessa de indenização ao Fundo de Direitos Lesados.

Na mesma esteira de entendimento, não merece aplausos a seguinte decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

"AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Dano ambiental – Açude em propriedade rural – Restilo escoado por curso d´água que causou a morte de peixes – Estrago ambiental que refoge do campo da tutela desta ação – Ausência de interesse público – Caso de dano privado – Carência decretada – Recurso provido para esse fim. Não configura dano ambiental reparável por meio de ação civil pública, a destruição de ecossistema localizado em propriedade particular de pequenas dimensões, e sem extensão gravosa de ecossistema localizado em propriedade particular de pequenas dimensões, e sem extensão gravosa a vizinhos" (TJSP – Ap. Cív. n. 243.333-1 – 7ª Câm. Dir. Públ. – Rel. Des. Walter Moraes – j. em 12.8.1996 – v.u.)

Ora, a visão que prevaleceu no referido acórdão não parece ser a mais acertada, pois, havendo dano a recursos ambientais – que, como dito, são bens de interesse público – decorrente de ato ilícito, houve dano à coletividade e portanto passível de reparação.

É até mesmo possível que não tenha havido dano ao meio ambiente como bem autônomo, mas, ainda assim, necessária a reparação do dano ao bem ambiental atingido e adequada é a ação civil pública para tal.


4. DANO AMBIENTAL PRIVADO

O dano ambiental privado, também designado como dano ambiental particular, dano pelo meio ambiente ou dano em ricochete, é aquele em que a lesão além de atingir um recurso ambiental ou o meio ambiente como bem autônomo, atinge também o patrimônio de um ente público ou privado – seja ele proprietário ou não do recurso ambiental atingido.

Portanto, trata-se de prejuízo sofrido em patrimônio de particular ou pessoa de direito público decorrente de lesão a recursos ambientais de seu patrimônio, ou conduzidos por recursos ambientais que não estão em seu patrimônio, mas que o venham a lesar (p. ex: poluição conduzida pelo ar causando dano em pintura de veículo ou outro bem).

Não se trata, em verdade, de genuíno dano ambiental, mas sim de dano a patrimônio de pessoa ou pessoas identificáveis que de forma indireta restaram prejudicadas pela lesão ocorrida.

É o caso dos danos sofridos por pescador ribeirinho que teve sua renda diminuída em razão de acidente ambiental que levou à mortandade de peixes em determinado curso d´água decorrente de poluição causada por terceiro (MIRRA, 2002, p. 69). Nesta hipótese há um dano imediato causado no meio aquático e outro mediato na esfera patrimonial do referido pescador.

A princípio tal categoria de danos não mereceria qualquer análise apartada da categoria de danos prevista no Código Civil. Ocorre que, por força do art. 14, § 1º da Lei nº 6.938/81 a diferenciação ganha relevância, pois ali está previsto que "o poluidor é obrigado, independentemente da existência de culpa, indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por usa atividade."(grifos nossos)

Extrai-se do dispositivo em questão que também os danos causados por poluidor a terceiros (dano ambiental privado) rege-se pela responsabilidade objetiva, fugindo à regra da responsabilidade subjetiva consagrada na doutrina tradicional do Direito Civil.

Exemplo de dano ambiental privado pode ser extraído de acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, no qual consignou-se o seguinte: "O proprietário rural que causa danos à lavoura do vizinho, pela aplicação aérea de herbicida, está obrigado a indenizar os prejuízos efetivamente causados, pelo valor da colheita perdida, descontados, porém, os gastos para a realização da colheita." (ap. 444/83 – j. 07.11.83 – rel. Des. Rui Garcia Dias)

Trata-se de verdadeiro caso de dano ambiental privado, em que o proprietário de terreno lindeiro buscou indenização a patrimônio particular seu, atingido por ato caracterização de degradação ambiental. Nada impediria que – paralelo a este fato e em ação civil pública independente – fosse exigida a reparação do meio ambiente com a devida descontaminação do solo, além de indenização pelos danos causados.

Por fim, encerrando-se as considerações sobre o dano ambiental privado, urge ressaltar que – conforme o caso – poderá este tratar-se de lesão a direito individual homogêneo (art. 81, III, do CDC), como nos casos de lesão ao patrimônio de uma comunidade inteira de pescadores pela mortandade de peixes decorrentes de poluição. Várias são as conseqüências daí advindas, inclusive com possibilidade de ajuizamento de ação coletiva e legitimação dos órgãos estabelecidos em lei (Ministério Público, Pessoas Jurídicas de Direito Público, associações, etc.).


5. A QUESTÃO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO: RESOLUÇÃO PELO PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE

5.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Após o desenvolvimento do conceito de meio ambiente e de dano ambiental em sentido amplo e estrito, surge para enfrentamento a questão do dano ambiental decorrente de ato lícito, a qual é passível de resolução pela aplicação do princípio da tolerabilidade, devidamente delineado e pautado por outros princípios constitucionais como o da indisponibilidade do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável, da prevenção/precaução e finalmente do limite.

5.2. PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE

Ao ser analisado o Texto Constitucional em seu art. 225 e parágrafo primeiro, I, II e VII, é possível perceber que o Constituinte preocupou-se sobremaneira com o equilíbrio ecológico como um todo e também de processos ecológicos e ecossistemas.

No caput do referido dispositivo constou expressamente ser direito de todos que o meio ambiente seja "ecologicamente equilibrado", e no parágrafo primeiro inciso I que incumbe ao Poder Público "preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas".

Além disto, no inciso II, dispôs ser necessário "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País", protegendo "a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade" (inciso VII).

A razão de tanta preocupação decorre de ser noção pacífica que o meio ambiente possui um certo nível de tolerabilidade a agressões, pois "nem todo atentado ou agressão ao meio ambiente e seus elementos causa necessariamente um prejuízo à qualidade ambiental. O próprio meio ambiente é capaz de suportar pressões adversas; ele pode defender-se até um certo ponto, um limite, além do qual ocorre degradação." (MIRRA, 2002, p. 100)

Decorre então do regime constitucional que, além de considerar o meio ambiente como bem autônomo eminentemente relacional, o Texto Maior reconhece também que ele deve manter o equilíbrio nesta relação entre os recursos ambientais, surgindo ainda como princípio implícito delineador deste equilíbrio a tolerabilidade do bem jurídico a agressões que, uma vez ultrapassadas, passa a caracterizar dano ao mesmo.

Como bem ressalta Álvaro Luiz Valery Mirra, "o princípio de tolerabilidade, compreendido na sua exata significação, longe de consagrar um direito de degradar, emerge, diversamente, como um mecanismo de proteção do meio ambiente, tendente a estabelecer um certo equilíbrio entre as atividades interativas do homem e o respeito às leis naturais e aos valores culturais que regem os fatores ambientais condicionantes da vida."

Por isto, parece partir de pressuposto falso a discussão se há ou não um direito de poluir, sem o qual a sociedade ficaria estagnada impossibilitada de progredir. Ora, não se trata de direito ou não de poluir, trata-se isto sim de utilizar-se dos recursos ambientais até o limite da tolerabilidade, de forma a que não haja perda da qualidade ambiental, até porque direito de poluir nunca existirá por tratar-se o meio ambiente de bem indisponível.

Outra observação de extrema relevância feita por Mirra (2002, p. 104) é a de que "a capacidade de absorção e reciclagem do meio ambiente de que se cogita aqui não pode ser confundida com a capacidade de regeneração do meio ambiente. Aquela primeira consiste na aptidão do meio atingido de digerir de certo modo imediatamente e sem dano os rejeitos que lhe são submetidos, de resistir às perturbações impostas; a segunda representa a capacidade do meio ambiente de recuperar-se quando é desequilibrado por alguma perturbação, supondo um prejuízo já ocorrido, em que o limite de tolerabilidade foi ultrapassado".

Não se desconhece ser extremamente complexo conhecer, estabelecer, encontrar ou avaliar este limite de tolerabilidade. Contudo, o mesmo deve ser avaliado caso a caso, pautando-se principalmente pelo equilíbrio entre os recursos ambientais, pois, uma vez rompido este, com certeza houve violação à tolerabilidade ambiental.

Exemplo do princípio da tolerabilidade é o de despejo de esgoto em rio caudaloso, em pequena quantidade, após tratamento primário que o livre dos elementos mais nocivos à saúde e ao meio ambiente. Neste caso, é perfeitamente possível através de análises químicas e físicas verificar se o corpo receptor (rio) está conseguindo absorver aqueles rejeitos sem que haja prejuízo às suas condições naturais.

Além da análise caso a caso, é necessário reconhecer que a matéria dá margem a discricionariedade de interpretação, razão pela qual merece ser delineada também por outros princípios de fundamento constitucional, para que chegue-se ao fim buscado pela Carga Magna: a proteção ao meio ambiente.

Por fim, conforme adverte Mirra (2002, p. 108) como "conseqüência dessa orientação política expressamente encampada pelo ordenamento jurídico brasileiro tem-se, sem dúvida, que o limite de tolerabilidade das agressões ao meio ambiente, para caracterização do dano ambiental nos casos concretos, deve ser averiguado com todo cuidado e atenção no que se refere ao ponto máximo aceitável de intervenção, em confronto com a capacidade de resistência do meio receptor e determinadas perturbações, merecendo ser prestigiada, cada vez mais, a idéia de prudência e precaução na identificação do limite e, cada vez menos, a de tolerância".

5.3. PRINCÍPIOS QUE INFLUENCIAM NA INTERPRETAÇÃO DA TOLERABILIDADE

5.3.1. Princípio da Indisponibilidade do Meio Ambiente

Quando o constituinte originário determinou no art. 255 ser dever do Poder Público e da sociedade defender o meio ambiente para "as presentes e futuras gerações" já deixou consignado de forma expressa o princípio da indisponibilidade, pois as presentes gerações são meras detentoras deste bem em prol das futuras.

Além disto, a indisponibilidade do meio ambiente também decorre da sua qualidade pública de uso comum do povo (GOMES, 2003, p. 183).

Desta forma, é princípio constitucional basilar do Direito Ambiental a indisponibilidade do meio ambiente como macrobem, não podendo qualquer ente – seja público ou privado – dele dispor a ponto de causar-lhe degradação ou perda da qualidade ambiental.

5.3.2. Princípio do Desenvolvimento Sustentável

A existência de um conflito entre o desenvolvimento da sociedade e a conservação do meio ambiente levou estudiosos de inúmeras áreas a questionar sobre a possibilidade ou não de compatibilização entre estes dois valores essenciais à preservação da raça humana.

Após muita discussão e embates chegou-se à concepção de que uma faceta não poderia prevalecer sobre a outra sendo necessário encontrar o ponto de equilíbrio entre as duas, surgindo assim a noção de desenvolvimento sustentável.

Em verdade, a adoção de caminho em direção a apenas um destes valores, seja a preservação do meio ambiente com estagnação do desenvolvimento, seja o desenvolvimento sem a preservação do meio ambiental com certeza levará à decadência da sociedade em que vivemos.

Por isto, é "falso, de fato, o dilema ‘ou desenvolvimento ou meio ambiente’, na medida em que, sendo um fonte de recursos para o outro, devem harmonizar-se e complementar-se" (MILARÉ, 2001, p. 42).

Verificando todos estes aspectos o Constituinte, no art. 170, IV e VI, ao tratar sobre a ordem econômica colocou em pé de igualdade a "livre concorrência" e a "defesa do meio ambiente", deixando de forma evidente o princípio do desenvolvimento sustentável – que por tal motivo tem assento constitucional – já que este configura-se justamente por ser o ponto de equilíbrio entre estes dois valores.

Desta forma, a livre iniciativa passou a ser pautada – dentre outros valores – também pela preservação ambiental, tendo seu âmbito de atuação restringido, por força da indisponibilidade do meio ambiente como macrobem.

Após toda esta análise, surge-se novamente – também dentro do princípio do desenvolvimento sustentável – a palavra chave: equilíbrio. Equilíbrio em duas faces, uma fora e outra dentro do meio ambiente como bem autônomo estritamente relacional. A primeira faceta é a do equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente (desenvolvimento sustentável). A segunda, é a de que o desenvolvimento econômico não pode romper o meio ambiente equilibrado (equilíbrio entre as relações dos recursos ambientais).

5.3.3. Princípio da Prevenção

A ocorrência de dano ambiental já demonstra de forma antecipada a falha do aparelho estatal em sua principal função em termos de meio ambiente: a preventiva.

Nesta matéria – mais do que em qualquer outra – deve-se evitar "correr atrás do prejuízo", se é que é possível correr atrás do prejuízo, já que se deve isto sim buscar-se o lucro, que em termos ambientais é a preservação.

Sabe-se que a reparação de um dano ao meio ambiente é extremamente difícil – quando não impossível – e por isto todos os esforços devem ser feitos para evitar que ele aconteça.

Por tais razões, um dos pilares do Direito Ambiental é o princípio da prevenção, que visa evitar a ocorrência de prejuízo ao meio ambiente. O princípio nº15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), dispõe:

"Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente."

Portanto, o princípio da prevenção está proximamente ligado à questão da certeza científica de que a atividade causa ou não dano ambiental, conforme ensina Paulo Affonso Leme Machado (2003, p. 64):

"A primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de dano ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza científica do risco ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos especialistas? Devem, portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e estrangeiras sobre a matéria. Chegou-se a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental? A existência de certeza necessita ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção."

Importa ressaltar que o princípio da precaução é contrário a comportamentos apressados, precipitados, improvisados e à rapidez insensata e vontade de resultado imediato. Não se trata, por evidente de tentativa de procrastinar o desenvolvimento ou prostrar-se diante do medo, nem se elimina a audácia saudável. Busca-se, isto sim, a segurança do meio ambiente e a continuidade da vida (MACHADO, 2003, p. 67).

Note-se que, o princípio da prevenção decorre diretamente da Carta Magna (art. 225), "haja vista a inserção de vários mecanismos preventivos do dano ambiental, como a) o dever de exigência do estudo prévio de impacto ambiental pelos órgãos públicos ambientais; b) a previsão de participação popular em audiência públicas, permitindo a discussão prévia à aprovação de atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente; c) o dever estatal de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; d) o dever estatal relativo à preservação – que só se alcança com a prevenção – dos processos ecológicos essenciais; e) a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético, bem como a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético" (GOMES, 2003, p. 188-189).

Assim, tratando-se de princípio constitucional, nem mesmo a legislação e muito menos a Administração Pública podem contrariá-lo, de sorte que, qualquer ato precipitado que possa causar dano ao meio ambiente é passível de declaração de nulidade judicialmente por afrontar a Carta Magna.

5.3.4. Princípio do Limite

O princípio do limite é um princípio do Direito Ambiental Constitucional extraído do art. 255, § 1º, V, da Constituição Federal, segundo o qual o Poder Público deve "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente".

Decorre-se daí que o Poder Público deve impor limites a estas atividades que potencialmente podem causar danos ambientais, de forma a assegurar o equilíbrio ecológico.

É decorrência deste princípio as limitações levadas a efeito pela Administração Pública quando estabelece quantia de poluentes máximos (padrões de qualidade ambiental) a serem emitidos por carros, fábricas, etc.

Também é aplicação deste princípio a limitação máxima de temperatura para retorno aos rios de água utilizada no resfriamento da produção industrial.

A fixação destes limites têm ligação extremamente estreita com o princípio da tolerabilidade, pois somente poderão tais poluentes retornarem ao meio ambiente na medida em que este – sem sofrer danos – possa absorvê-los.

De igual maneira o princípio da precaução tem pautamento com o estabelecimento destes limites (ANTUNES, 2002, p. 37), pois não se sabendo de antemão qual a tolerabilidade máxima do meio ambiente àquelas substâncias ou alterações, deve a administração seguir a corrente mais restritiva, evitando-se assim o dano ambiental.

Seu conceito foi estabelecido por Paulo de Bessa Antunes com a seguinte redação: "Princípio do Limite é o princípio pelo qual a Administração tem o dever de fixar parâmetros para as emissões de partículas, de ruídos e de presença de corpos estranhos do meio ambiente, levando em conta a proteção da vida e do próprio meio ambiente".

5.4. O MITO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO

Tudo o que já foi exposto neste trabalho dá lastro para o enfrentamento da discussão a respeito do dano ambiental por ato lícito, sem que isto signifique que foi possível esgotar a matéria – o que não nos propomos a fazer.

A diferenciação levada a efeito inicialmente sobre o meio ambiente como bem autônomo e os recursos ambientais, além da distinção entre dano ambiental em sentido amplo (dano ao meio ambiente), em sentido estrito (dano aos recursos ambientais) e dano ambiental privado (dano pelo meio ambiente), será de extrema importância para o entendimento do problema.

Chegada a hora de tentar-se demonstrar que a questão do dano ambiental em sentido amplo por ato lícito, em verdade, é um mito, pois, uma vez ultrapassado o limite da tolerabilidade apresentado acima, não há que se falar em licitude da conduta pois esta necessariamente violou a ordem constitucional e merece repreensão.

De todas as perspectivas expostas acima, percebe-se de forma clara que não há que se falar em atividade lícita quando ocorrido ou por ocorrer dano ao meio ambiente como bem autônomo, pois a indisponibilidade constitucional deste impede que qualquer norma ou ato infraconstitucional adquira validade em nosso ordenamento jurídico.

Portanto, ultrapassado o limite da tolerabilidade do meio ambiente – o qual tem sede constitucional – já houve violação à Constituição Federal, instrumento jurídico máximo nacional, e portanto ilícita se tornou a conduta de quem provocou o dano.

É irrelevante que tenha o agente sido previamente autorizado pela Administração Pública ou tenha agido dentro de padrões previamente estabelecidos por esta. Quaisquer destes atos são absolutamente nulos por haverem contrariado diretamente a Constituição Federal.

Esta concepção é defendida pelo Professor Paulo Salvador Frontini (1995, p. 399): "Se é, em princípio, lícito o uso do meio ambiente, o abuso nessa utilização ultrapassa os limites da licitude, entrando na área do antijurídico. Assim, o abuso na utilização de qualquer de seus componentes passa a qualificar-se como agressão ao meio ambiente."

É certo que grande parte da doutrina não enfrenta a questão sob este enfoque, preferindo sustentar que há responsabilização por ato lícito em razão da indisponibilidade do meio ambiente. Contudo, entendemos que uma vez percebida esta violação da Constituição Federal a tarefa do aplicador do direito torna-se muito mais embasada, afinal, está calcada no instrumento de maior hierarquia em nosso ordenamento jurídico.

Independentemente sob qual perspectiva o problema seja analisado, o que importa ressaltar é que não tem o Poder Público disponibilidade sobre o meio ambiente, e justamente em razão disto é destituída de validade a autorização ou licença concedida a atividade que venha degradá-lo.

Em outras palavras: "A licença ambiental não libera o empreendedor licenciado de seu dever de reparar o dano ambiental. Essa licença, se integralmente regular, retira o caráter de ilicitude administrativa do ato, mas não afasta a responsabilidade civil de reparar. A ausência de ilicitude administrativa irá impedir a própria Administração Pública de sancionar o prejuízo ambiental; mas nem por isso haverá irresponsabilidade civil" (MACHADO, 2003, p. 343).

Assente-se ainda que, nestes casos, além da responsabilização de quem praticou o ato é possível também a responsabilização do poder público por haver sido co-autor do dano.

O que não se pode admitir – com a devida vênia – é a argumentação da professora Ângela Barbarulo desenvolvida no seguinte sentido (2004, p. 257):

"Em outros países existe a responsabilidade objetiva em determinadas áreas de poluição ambiental, porém não se aplica em todos os casos, sem qualquer possibilidade de distinção e admissão de fatores excludentes ou diminuintes da responsabilidade. Tem de ser considerado também que a adoção da teoria do risco integral no âmbito da responsabilidade civil pelo dano ambiental iria causar riscos incalculáveis para o empresário, que não poderia mais confiar em licenças válidas concedidas pelos órgãos administrativos."

Ora, se o meio ambiente é bem indisponível, é evidente que não poderia haver a administração concedido licença, ainda mais válida, que permitisse o dano ambiental. Ademais, pior do que "causar riscos incalculáveis para o empresário" seria remeter estes riscos à toda a coletividade – das presentes e futuras gerações – numa verdadeira conduta de privatizar os lucros e socializar os prejuízos.

Portanto, se o empresário exerceu uma atividade que causou dano ao meio ambiente como macrobem – esteja ela ou não previamente autorizada ou licenciada – é evidente que deverá proceder para a reparação/recuperação e indenização dos danos causados.

Merecedora de aplausos, assim, a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina a seguir descrita: "Ao poluidor responsável por fato lesivo ao meio ambiente descabe invocar a licitude da atividade ensejada pela autorização de autoridade competente. A responsabilidade no âmbito da defesa ambiental é objetiva." (Ap. Civ. 40.190, da 1ª Vara da Comarca de Biguaçu, 4ª Câm. Civ. – TJSC – j. 14.12.1995 – Rel. Des. Alcides Aguiar. Grifos nossos)

Ainda dentro do tema do dano ambiental em sentido amplo (ao meio ambiente) por ato lícito, impõe-se analisar a questão das atividades desenvolvidas dentro dos padrões de poluentes previamente estabelecidos pela Administração Pública.

O raciocínio a ser adotado é idêntico: sendo indisponível o meio ambiente, é completamente irrelevante que a conduta esteja embasada em norma administrativa estabelecedora de padrão ambiental, pois o que se deve analisar é se a conduta, no caso concreto, ultrapassou ou não o princípio da tolerabilidade.

Deve-se levar em conta que "a existência das normas de emissão e os padrões de qualidade representam uma fronteira, além da qual não é lícito passar. Mas, não se exonera o produtor de verificar por si mesmo se sua atividade é ou não prejudicial" (MACHADO, 2003, P. 332).

Tratado sobre o dano ao meio ambiente como bem autônomo, resta para análise a questão do dano ambiental em sentido estrito (danos aos recursos ambientais).

Saliente-se que esta modalidade decorrente de ato ilícito já foi abordada anteriormente, havendo ficado consignado que em razão dos recursos ambientais serem considerados bens de utilidade pública na medida em que influem na qualidade do meio ambiente (macrobem), dever ser indenizados e recuperados toda vez que a atividade lesiva seja vedada.

O que se põe para discussão não é este caso, mas sim, se é possível ocorrer dano aos recursos ambientais decorrente de ato lícito. Em outras palavras, se o autor da lesão estiver munido de autorização ou licenciamento para a atividade, pode ele ser obrigado a reparar aquela lesão ou obrigado a indenizá-la?

A resposta nestes casos nos parece negativa. Ocorre que tratando-se de exploração de recursos naturais pautada pela legislação e devidamente autorizada pela atividade administrativa não se pode falar em lesão ao bem ambiental, pois a atividade está amparada pelo Direito.

É importante frisar que estamos tratando de "danos" aos recursos ambientais isoladamente, e não danos ao meio ambiente (bem autônomo/macrobem). Assim, se a atividade de exploração dos recursos ambientais for lícita e autorizada, e constatado no caso concreto que a mesma não está causando danos ao meio ambiente como bem autônomo, não há que se falar em danos por ato lícito.

Note-se que o limite destas atividades – exploração dos recursos ambientais – é justamente aquele de influência direta no conceito relacional de meio ambiente: se tal atividade não romper o equilíbrio ambiental, não há que se falar em dano ambiental.

Contudo, uma vez rompido este equilíbrio, não se trata mais de dano ambiental em sentido estrito (dano aos recursos ambientais), mas sim de dano ambiental ao próprio meio ambiente (em sentido amplo), o qual não pode ser violado por qualquer ato, seja lícito ou ilícito.

Entender de forma contrária – ser passível de reparação as lesões aos recursos ambientais por ato lícito – seria decretar a estagnação total da sociedade pois é impossível desenvolver qualquer atividade sem que haja exploração dos recursos ambientais.

É por isto que nenhuma vedação há em desmatamentos autorizados em acordo com a lei ambiental, exploração de minérios, pesca com autorização e em locais permitidos, etc.

Não se confunda esta questão com a exigência de recuperação do meio ambiente degradado prevista no art. 225, § 2º, da CF, para os casos de exploração de recursos minerais, pois trata-se aí de reparação efetiva do meio ambiente e não somente do bem ambiental.

A última faceta do dano ambiental por ato lícito ainda não tratada é a referente aos danos ambientais privados (em ricochete).

O problema não apresenta maiores questionamentos quando a atividade exercida que veio a causar danos a terceiros conduzidos pelo meio ambiente é ilícita: não há qualquer dúvida sobre a necessidade de reparação.

A complexidade da questão aparece no momento em que a atividade exercida está dentro dos padrões exigidos e ainda assim vem causando danos ao terceiro.

Nestes casos, também entendemos ser necessário averiguar se aquela atividade está causando dano ambiental em sentido amplo ou estrito. Se os danos causados forem em sentido amplo (dano ao meio ambiente como macrobem), entendemos que o ato é somente pseudo-lícito, pois contraria diretamente a Constituição Federal e portanto é passível de cessação, além de reparação pelos fatos já ocorridos.

Contudo, se os danos causados estão apenas atingindo recursos ambientais – e indiretamente – também patrimônio de terceiro, a análise importa em maior profundidade.

Nestes casos, baseando-se no princípio da eqüidade, afigura-se injusto que certo empreendedor – ainda que agindo dentro de padrões pré-estabelecidos – imponha prejuízos a terceiro decorrentes de sua atividade.

É o caso da vizinhança de fábrica que emita fuligem como rejeito de seu processo produtivo, causando danos decorrentes do acúmulo destes materiais nos bens existentes no local ou desvalorização de seus imóveis em razão deste incômodo. Ainda que tal atividade seja licenciada e não tenha extrapolado o princípio da tolerabilidade (não havendo assim dano ao meio ambiente), poderão eles exigir indenização da empresa além de adoção de meditas que diminuam o problema.


6. CONCLUSÃO

Espera-se que com estas considerações tenha sido possível se não esclarecer, pelo menos contribuir um pouco para o entendimento desta categoria jurídica tão complexa que é o dano ambiental.

Não se pode olvidar, contudo, que a visão de meio ambiente não pode ser descontextualizada da sociedade, pois apesar de ser extremamente necessária a sua conservação, de nenhuma valia ela terá enquanto ainda tivermos nossos irmãos e irmãs passando fome e excluídos de todos os benefícios daí advindos.

A pobreza é um dos maiores fatores de poluição ambiental (FIORILLO, 2002, p. 112), e deve ser combatida pois qual o significado ou glória das vitórias ambientalistas enquanto existir trabalho escravo, exploração sexual infantil, miséria, fome, etc.?

A busca desta qualidade ambiental – não se pode esquecer – necessariamente deverá passar pela resolução ou enfrentamentos destes problemas, sob pena de nunca ser possível encontrar o equilíbrio tão esperado, já que um dos principais componentes do meio ambiente continuará em desequilíbrio: o homem.


BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.

BARBARULO, Ângela. Concretização do Dano Ambiental e a Teoria do Risco Integral. In: Direito Ambiental – Enfoques Variados. Coord. Bruno Campos Silva. Franca – SP, Lemos & Cruz, 2004.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo, Saraiva, 1996.

BENJAMIM, A. H. V. (coord). Dano Ambiental, prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2003.

_________. Tutela do meio ambiente em face de seus aspectos essenciais: os fundamentos constitucionais do Direito Ambiental. In: Ação Civil Pública – Lei 7.347 – 15 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002.

FREIRE, William e Daniela Lara Martins (coordenadores). Dicionário de Direito Ambiental. Belo Horizonte, Editora Mineira, 2003.

FRONTINI, Paulo Salvador. Meio ambiente, sua natureza perante a lei e sua tutela – Anotações jurídicas em temas de agressão ambiental. Legitimidade do Ministéiro Público, órgão do Estado, para agir em juízo. Em Ação Civil Pública: Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação / coor. Édis Milaré.

GOMES, Luís Roberto. O Ministério Público e o Controle da Omissão Administrativa – O Controle da Omissão Estatal no Direito Ambiental. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003.

LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo, extrapatrimonial. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2003.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 2003.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. São Paulo, Saraiva, 2001.

MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001.

__________. Ação Civil Pública por Dano ao Ambiente. In: Ação Civil Pública – Lei 7.347 – 15 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002.

MIRRA, Álvaro Luiz Valery Mirra. Ação Civil Pública e A Reparação do Dano ao Meio Ambiente. São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2002.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume I. São Paulo, Editora Forense, 1997.

PIVA, Rui Carvalho. Bem Ambiental. São Paulo, Editora Max Limonad, 2000.

SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo, Malheiros, 2002.


Autor

  • Luciano Furtado Loubet

    Luciano Furtado Loubet

    Pós-Graduado em Direito Ambiental pela UNIDERP – Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul. Ex-Juiz de Direito no Estado do Acre. Especialista em Direito Tributário pelo IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUBET, Luciano Furtado. Delineamento do dano ambiental: o mito do dano por ato lícito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1095, 1 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8568. Acesso em: 26 abr. 2024.