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A diminuição do controle estatal no século XXI.

Uma nova distribuição do poder na era digital

A diminuição do controle estatal no século XXI. Uma nova distribuição do poder na era digital

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Os Estados nacionais vêm perdendo a capacidade de controle ao longo do tempo em decorrência dos avanços informáticos, frente ao crescente poder das grandes empresas de tecnologia da informação.

1. INTRODUÇÃO

O conceito de Estado é uma construção bastante complexa que assume diferentes características e significados a depender do contexto histórico. Para a finalidade deste artigo abordaremos o conceito de Estado a partir de uma perspectiva sociológica trazida por Max Weber como “aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – este, o ‘território’ faz parte da qualidade característica –, reclama para si (com êxito) o monopólio da coação física legítima (...)”. Essa dimensão do Estado só pode ser compreendida a partir das relações de dominação. Segundo o autor: 

“O Estado, do mesmo modo que as associações políticas historicamente precedentes é uma relação de dominação de homens sobre homens, apoiada no meio da coação legítima (quer dizer, considerada legítima)”.  

Para que este controle se realize, o Estado se organiza a partir de suas instituições que administram e comandam uma nação. Neste sentido é importante trazer a discussão acerca da relação entre Estado e Mercado. A separação que se constrói destas duas categorias não pode ser colocada num campo de contradição. No entanto, longe de querer reduzir os aspectos destes conceitos e compreendendo que muitas vezes eles estão intricados, abordaremos o Estado enquanto instituição que concentra a esfera política pertencendo à coletividade e o mercado enquanto esfera econômica que atende precipuamente interesses privados. Segundo REIS: 

“a compreensão da matriz constitutiva do Estado carece de uma narrativa sobre as relações entre as dinâmicas materiais e relacionais da sociedade, por um lado, e entre estas e as dinâmicas institucionais por outro (...) Acresce que devemos considerar o Estado como a mais complexa entidade institucional- chamar-lhe-ei a instituição das instituições – e que, como tal, dispõe de uma singular espessura organizacional e de uma forte capacidade de retroação sobre as circunstâncias que lhe deram forma e razão de ser. Assim sendo, encontra-se rapidamente uma relação intrínseca entre Estado e mercado, e não a antinomia que frequentemente nos é sugerida”. 

Neste sentido, o artigo da professora e advogada Ana Frazão sobre em que medida a economia depende do direito, ao analisar os processos históricos, demonstra que o surgimento dos mercados estruturados como temos hoje só foi possível a partir da regulação jurídica e dos seus instrumentos indispensáveis para a atividade econômica como os contratos, sociedades, títulos de crédito. Isso mostra o quanto o Estado foi fundamental neste processo, pois segundo Max Weber, o modelo de mercado exigia um direito racional, que pudesse garantir previsibilidade e segurança à atividade econômica. 

Esboçado sobre qual perspectiva estamos abordando o conceito de Estado e a sua relação com o mercado, discutiremos a interferência que as empresas da área de Tecnologia da Informação, por meio da Internet – juntamente com as tecnologias que a usam como plataforma – causam na relação da sociedade com as instituições componentes do Estado, além de trazer reflexões de como a era digital e os novos surgimentos têm possibilitado novas formas de dominação que vai além dos homens sobre os homens, mas também das máquinas sobre os homens. 

Este trabalho tentará fazer uma breve explanação histórica sobre como o Estado possibilitou o surgimento dos computadores e da internet, como essas invenções influenciaram fortemente na formação da sociedade atual e, por fim, como a internet vem sendo usada por corporações e particulares para minar as bases do poder estatal.


2. RELAÇÃO ENTRE ESTADO E MERCADO

O Estado tal qual como concebemos atualmente é resultado de um longo processo histórico marcado por várias disputas que teve como um de seus aspectos principais a frequente redefinição das fronteiras entre as esferas pública e privada. Esses conceitos tiveram diferentes significados ao longo do tempo e na transição do período Medieval para o Moderno não havia uma separação clara entre essas duas dimensões. Segundo Nobert Elias essas palavras só atingem seu significado pleno quando aplicadas a sociedades dotadas de extensas divisões de funções. O autor, ao tratar sobre o processo de formação do Estado, coloca que:

“o desenvolvimento do que hoje chamamos de ‘economia nacional’ desenvolveu-se a partir da ‘economia privada’ das Casas Feudais governantes(...) não havia no princípio distinção entre o que mais tarde foi separado como rendas e despesas ‘públicas’ e ‘privadas’. A renda dos suseranos originava-se principalmente da produção das possessões de sua família ou do domínio; as despesas da corte, tais como caçadas (...) eram custeadas por essa renda, exatamente da mesma maneira que o custo relativamente baixo com a pequena administração que então havia, com soldados mercenários, se necessário (...). A medida que mais e mais terras caíam nas mãos de uma única Casa reinante, o gerenciamento da renda e das despesas, da administração e defesa das propriedades, tornaram-se cada vez mais difíceis para um único indivíduo.” 

O que entendemos como máquina governamental surgiu a “partir do que conhecemos como corte privada” (ELIAS, pg.102) . O Estado Moderno, que é marcado por um processo de despersonalização em decorrência da complexificação e aumento das relações sociais, do desenvolvimento técnico científico e das necessidades que surgiram, passou a atender as demandas não de interesses individuais, mas dos interesses de muitos associados interdependentes.

Contemporaneamente, as formas de cooperação entre o mercado e o poder público mais representativas são as concessões de serviços públicos, onde o Estado concede a um ente privado a capacidade de realizar uma atividade que seria primariamente uma de suas atribuições, com uma contrapartida financeira para a empresa concessionária. O exercício dessa modalidade de cooperação público-privada remonta a períodos remotos. Como exemplo, podemos nomear as companhias de exploração das terras recém descobertas do Novo Mundo . No Brasil esse tipo de parceria está regulada por vasto regramento derivado do artigo 175 da Constituição Federal, que estabelece que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. A Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, regulamentou o dispositivo constitucional deixando claro que o Estado mantém o seu poder sobre o serviço concedido. Esse desequilíbrio de poder a favor do Estado pode ser depreendido a partir da leitura dos trechos da Lei destacados abaixo:

“Art. 29. Incumbe ao poder concedente: I - regulamentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação; Art. 30. No exercício da fiscalização, o poder concedente terá acesso aos dados relativos à administração, contabilidade, recursos técnicos, econômicos e financeiros da concessionária. Art. 35. Extingue-se a concessão por: II - encampação;” 

De uma forma mais ampla a Lei 12.529 de 30 de novembro de 2011 em seu artigo 1º “dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso de poder econômico.” Interessante notar a preocupação com a territorialidade para aplicação da Lei, conforme estabelece o Art. 2º: 

“Art. 2º Aplica-se esta Lei, sem prejuízo de convenções e tratados de que seja signatário o Brasil, às práticas cometidas no todo ou em parte no território nacional ou que nele produzam ou possam produzir efeitos. § 1º Reputa-se domiciliada no território nacional a empresa estrangeira que opere ou tenha no Brasil filial, agência, sucursal, escritório, estabelecimento, agente ou representante.”

A regulamentação estatal não é exercida como um meio de limitar a atividade empresarial, mas principalmente para fomentar uma justa competição e o benefício da sociedade, já que a busca pela otimização dos resultados das empresas nem sempre coincide com os valores de “liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso de poder econômico”.

Várias invenções que causaram grande impacto na vida das pessoas só se tornaram realidade a partir do exercício do poder estatal para a canalização de verbas, recursos materiais e humanos. O economista William H. Janeway explica que, no contexto norteamericano, “o governo exerce um papel crítico na inovação provendo recursos para a pesquisa por meio de instituições como DARPA [Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa] e NIH [Institutos Nacionais de Saúde], pela alavancagem do poder de compra pelo tesouro nacional e pela criação de políticas que encorajam o investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento.” Na prática, seria como se houvesse um processo de socialização do investimento e dos riscos por meio do Estado cujos resultados podem ser utilizados pela iniciativa privada. 


3. DESENVOLVIMENTO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: BREVE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA

A internet surge a partir de pesquisas militares que foram desenvolvidas durante a Guerra Fria. Com o fim da 2ª Guerra Mundial, o mundo passou por um processo de polarização marcado pela divisão antagônica de ideologias completamente diferentes. Por um lado, os Estados Unidos exerciam controle e influência sobre os países capitalistas e do outro a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas exerciam domínio sobre os países socialistas. Era uma verdadeira disputa sobre o domínio e controle dos países significando a imposição ideológica política e econômica. 

Na década de 1960, os dois blocos sabiam que um ponto fundamental para esse processo de conquista e dominação era a necessidade de controle dos meios de comunicação. Por esse motivo, e temendo que ataques russos às bases militares pudessem trazer a público informações sigilosas, as forças armadas dos Estados Unidos idealizaram um modelo de troca e compartilhamento de informações que permitiam de forma descentralizada. A primeira rede de computadores ficou conhecida como “Advanced Research Projects Agency Network” (ARPANET) e funcionava como um sistema conhecido como chaveamento de pacotes, que é um sistema de transmissão de dados em rede de computadores no qual as informações são divididas em pequenos pacotes, que por sua vez contém trechos dos dados e endereços do destinatário e informações que permitiam a remontagem remota da mensagem original.

Ou seja, a internet é o resultado de uma fusão singular de estratégia militar, grande cooperação científica, iniciativa tecnológica e inovação contracultural. A partir do momento que se tornou possível o empacotamento de todos os tipos de mensagens, inclusive de som, imagens e dados, criou-se uma rede que era capaz de comunicar sem utilizar centros e controle (CASTELL, pg. 82). 

O desenvolvimento da rede mundial de computadores ocorreu de forma paralela ao desenvolvimento dos próprios computadores. Manuel Castell em sua obra A sociedade em rede realiza um resgate histórico e trás quais foram as experiências e criações mais marcantes e que revolucionaram o mundo tecnológico. Não negligenciando os antecessores industriais e científicos da tecnologia da informação com base em microeletrônica antes de 1940, foi durante a II Guerra Mundial e posteriormente que se deram as principais descobertas tecnológicas em eletrônica: o primeiro computador programável e o transistor, fonte da microeletrônica que possibilitou o processamento de impulsos elétricos em velocidade rápida e que conhecemos como chip. Em 1957 surge o primeiro circuito integrado que foi inventado por Jack Kilby que se juntou ao empresário Bob Noyce, fundador da Fairchild e que fabricou pela primeira vez estes circuitos. Esta iniciativa ocasionou uma explosão tecnológica e em apenas três anos os preços dos semicondutores caíram 85% e nos dez anos seguintes a produção aumentou 20% sendo que 50% da produção teve fins militares. O avanço gigantesco na microeletrônica em todas as máquinas ocorreu em 1971 quando o engenheiro da Intel Ted Hoff inventou um microprocessador, que é o computador com um único chip. Esta descoberta levou em 1975 o engenheiro Ed Roberts a construir uma caixa de computação nomeada como “Altair” que foi um computador de pequena escala construído com um microprocessador. O “Altair” serviu de base para o Apple 1 e o Apple 2 que foi o primeiro microcomputador de sucesso comercial idealizado por Steve Wozniak e Steve Jobs. 

A partir disso surgem as principais empresas da área de tecnologia da informação que só aumentaram seu capital ao longo dos anos. Em 1976 com três sócios e um capital de US$ 91 mil dólares, a Apple Computers alcançou em 1982 a marca de US$ 583 milhões de vendas, anunciando a era da difusão do computador. A reação da IBM foi rápida, em 1981 ela introduziu no mercado sua versão do microcomputador com o nome de computador pessoal. Uma condição fundamental para o surgimento dos microcomputadores foi preenchida com o desenvolvimento de um novo software adaptado que adaptaram o BASIC para operar a máquina Altair, desenvolvido por Bill Gates e Paul Allen, criadores da Microsoft. 

Toda a capacidade de desenvolvimento de redes só se tornou possível aos grandes e importantes avanços na área de telecomunicações e das tecnologias de integração de computadores em rede que ocorreram ao longo da década de 70. As telecomunicações foram revolucionadas pela combinação das tecnologias de “nós” (roteadores e comutadores eletrônicos) e novas conexões (tecnologias de transmissão). Além disso, avanços importantes em optoeletrônica (transmissão por fibra ótica e laser) e a tecnologia por pacotes digitais promoveram um aumento surpreendente da capacidade das linhas de transmissão. Em 1956 os primeiros cabos transatlânticos podiam transportar cinquenta circuitos de voz compactada. Já em 1995 os cabos de fibras óticas podiam transportar 85 mil destes circuitos. Esta capacidade de transmissão com base em optoeletrônica, combinadas com arquiteturas avançadas de comutação e roteamento, como ATM (modo de transmissão assíncrono) TCP/IP (protocolo de controle de transmissão/ protocolo de interconexão) é a base da Internet e foram as condições que possibilitaram o acesso maior de cada vez mais pessoas à rede mundial de computadores.

O atual estado do desenvolvimento tecnológico permite a conexão à internet a partir de quase todo o território nacional e virtualmente toda a área urbana do Brasil. Os computadores hoje se apresentam de diversas formas, mais notadamente como smartphones, que, no fim de 2017, existem em quantidade equivalente à própria população do país. Além disso, estamos vivendo a aurora da era dos computadores pulverizados, que já podem ser encontrados também em eletrodomésticos, carros, roupas, brinquedos etc. Ainda em 1991, Mark Weiser previu a vindoura onipresença dos computadores, que já é realidade, em seu artigo “The computer for the 21st century”:

“Hundreds of computers in a room could seem intimidating at first, just as hundreds of volts coursing through wires in the walls did at one time. But like the wires in the walls, these hundreds of computers will come to be invisible to common awareness. People will simply use them unconsciously to accomplish everyday tasks.” 

Tal estado de competência tecnológica permitiu a implantação de ideias que já eram desenvolvidas nos departamentos de matemática e ciências de computação das universidades há algumas décadas, tais como a inteligência artificial, big data e internet das coisas. 


4. A REVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: IMPACTOS PARA A SOCIEDADE

O que surgiu a partir de uma tentativa de sucesso de estabelecer um maior controle e segurança para o Estado transcendeu o alcance deste e revolucionou toda a tecnologia da informação transformando inclusive o que entendemos como espaço e ampliando a capacidade de ação dos que começaram a utilizar estas redes. Hoje, a computação e a internet mudaram a forma como as pessoas se comunicam e se relacionam, como fazem compras, como fiscalizam o Estado e como são fiscalizadas, entre vários outras aspectos. 

A principal característica da popularização da internet foi o acesso a grandes quantidades de informação para o público em geral. As informações que antes estavam restritas às grandes bibliotecas, meios acadêmicos ou empresariais passaram rapidamente ao domínio do grande público, o que por si só traz o potencial para reduzir significativamente a disparidade de conhecimento entre os membros da sociedade.

Além disso, a rede mundial de computadores permitiu a manifestação de ideias de uma forma antes impossível. Se em outras épocas apenas os detentores de meios de comunicação impressa, canais de rádio ou televisão podiam disseminar suas ideias e ideais, de uma forma bastante concentrada e muito pouco democrática, já que poucos falam para muitos, a internet se tornou uma plataforma onde todos falam para todos. Apesar de ser, de fato, um meio mais democrático de manifestação do pensamento, não faltam críticas ao fato de haver disseminação de informações falsas ou de opiniões baseadas nessas informações inverídicas. Parte desse fenômeno ocorre em virtude de natural despreparo de parte dos criadores de conteúdo na rede. Outra parte se origina a partir de uma vontade de manipular o ideário coletivo – e a esse ponto voltaremos a tratar logo à frente.

Com respeito às interações entre o Estado brasileiro e seus cidadãos, a internet serviu como plataforma para uma relação de maior transparência fiscal. Foram criados dispositivos legais tais como a Lei da Transparência (Lei Complementar 131/2009) e a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Essas leis permitem a fiscalização do próprio Estado pelos cidadãos de uma forma que não seria possível antes do advento da internet.


5. ESTADO, PODER E DOMINAÇÃO: A INTERNET COMO FERRAMENTA PARA A IMPLANTAÇÃO DE UM ESTADO POLICIAL 

Um dos elementos principais para entender de que forma se constrói o controle do aparato estatal sobre os indivíduos é o conceito de poder. De acordo com o filósofo Michel Foucault (1978, pg. 182 apud FERREIRINHA, RAITZ, pg. 369) o poder não está localizado em uma instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por contratos jurídicos ou políticos:

“Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam (...) Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício.”

Segundo Max Weber o conceito de poder é definido enquanto probabilidade de um ator impor sua vontade, mesmo contra a resistência deste enquanto a dominação pode ser definida pela probabilidade que tem o senhor de contar com a obediência dos que, em teoria, deve obedecê-lo. A diferença entre poder e dominação está em que, no primeiro caso, o comando não é necessariamente legítimo, nem a obediência forçosamente um dever; no segundo, a obediência se fundamenta no reconhecimento por aqueles que obedecem, das ordens que lhes são dadas. As motivações da obediência permitirão construir uma tipologia da dominação. 

Com o advento da Era da Internet surgiram fenômenos que trás novas reflexões sobre as relações de poder e dominação. Como falaremos a seguir, a internet que é uma rede mundial de computadores foi desenvolvida de forma colaborativa e só atingiu o alcance que tem hoje graças à cooperação científica, iniciativa tecnológica e movimento de contracultura de jovens engajados com a possibilidade de difusão da informação. O seu desenvolvimento foi possível em virtude da maneira que foi criada: de forma colaborativa, descentralizada e aberta. 

A difusão do conhecimento e da informação, que inicialmente foi idealizada como algo positivo tem mostrado sua face perversa: os usuários muitas vezes são bombardeados com informações falsas, tem seus dados explorados de forma descontrolada ficando completamente vulneráveis à que tipo de conteúdo será disponibilizado, dado que as grandes empresas que atuam nesta área tem grande capacidade de controle do que está sendo compartilhado. Mesmo com todos os esforços dos estados para regular os “comportamentos” deste novo mercado, com criação de legislação especializada tem se mostrado muito complexo estabelecer os limites e ainda fazer com que eles sejam respeitados. 

Como citado acima, vemos que o poder é algo que transcende a esfera da atuação estatal e diz respeito à capacidade de exercer influência e domínio. Percebe-se que esta capacidade de controle sobre os usuários tem sido realizada de forma muito mais sofisticada, pois o acesso a tantas informações e a capacidade de traçar um perfil sobre cada pessoa acaba influenciando as opiniões, direcionando o consumo e minando a capacidade de escolha que muitas vezes estão limitadas pelas empresas que monopolizam as principais informações.


6. REVOLUÇÃO, INTERNET E TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

A partir da criação de uma rede mundial de computadores o mundo passa por uma revolução nas dinâmicas da comunicação, esta que é um dos elementos fundamentais que possibilitou o desenvolvimento humano. Segundo RECUERO a primeira grande revolução na comunicação aconteceu quando o homem desenvolveu a linguagem. A partir do progresso da linguagem escrita foi possível o desenvolvimento científico, a possibilidade do conhecimento ultrapassar a barreira do tempo inclusive a noção de espaço foi reconfigurada. Estamos diante de uma mudança que traz com ela a necessidade da criação de conceitos que consigam abarcar e explicar os novos fenômenos. Ainda segundo a autora:

“O paradigma do pensamento linear está sendo superado por um novo. A informação passa a constituir a matéria-prima de nossa sociedade, fonte não apenas de capital, mas também de poder. E um espaço inteiramente constituído de informação, como a Internet, passa a ter um papel central nessa nova sociedade, tanto em termos de circulação de capital, como em termos de reconfiguração do espaço e das relações sociais. Este espaço, denominado por muitos como ciberespaço, ou espaço virtual é o cerne da revolução desta virada de século. O ciberespaço é um não-lugar. Não concreto, não físico, mas real.”

Para CASTELL o cerne da transformação que estamos vivendo na revolução atual refere-se às tecnologias da informação, processamento e comunicação. A tecnologia da informação é para a revolução o que as novas fontes de energia foram para as revoluções industriais sucessivas, do motor à eletricidade. Quanto ao surgimento da economia informacional global o autor destaca que: 

“se caracteriza pelo desenvolvimento de uma nova lógica organizacional que está relacionada com o processo atual de transformação tecnológica, mas não depende dele. São a convergência e a interação entre um novo paradigma tecnológico e uma nova lógica organizacional que constituem o fundamento histórico da economia informacional”.

A internet modifica a relação do homem com o tempo e o espaço. Uma comunicação imediata, massificada e interativa que possibilita o compartilhamento de informação em tempo real, o desenvolvimento de plataformas que modificam inclusive o funcionamento dos mercados que passam a fazer parte de uma economia extremamente globalizada onde a capacidade de regulação se torna cada vez mais complexa tem sido um fator importante nas mudanças das relações sociais e econômicas.

A popularização da computação pessoal e da internet tornou possível um maior controle do Estado sobre a vida dos cidadãos. No Brasil, por exemplo, são utilizadas urnas eletrônicas para coleta de votos nas eleições desde 1996 e o envio da Declaração de Renda para a Receita Federal é obrigatoriamente feito pela internet. A partir de 2017, foi iniciada a emissão de Carteira Nacional de Habilitação virtual. Esses exemplos ilustram algumas das formas que o Estado se utiliza da Tecnologia da Informação para aumentar seu poder de fiscalização sobre as pessoas com objetivos diversos, desde o provimento de eleições com apuração mais baratas, evitar fraudes em pagamentos de impostos ou facilitar a vida dos motoristas. 

Além deste controle exercido pelo Estado o contrário também acontece. Com a aprovação da Lei nº 12.527 de 18 de novembro de 2011 o congresso nacional dispôs sobre a regulação do acesso à informação, direito constitucionalmente garantido pela CF de 88 em seu artigo 5º, inciso XXXIII possibilitando maior transparência e acesso por parte do cidadão. No artigo 3º, inciso III consta que os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: III- utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação. 

Esta legislação contribuiu para que as instituições criassem mecanismos por meio de páginas da Internet como Facebook, Twitter e sites próprios que comunicassem seus suas atividades e fornecessem inclusive informações sobre utilização do dinheiro público, desenvolvimento de políticas e possibilitou aos usuários cobrar maior transparência dos atos da administração pública e cobrar mais transparência de forma que assegure uma relação mais aberta. 


7. INTERNET: UMA PLATAFORMA DE LIBERTAÇÃO DA SOCIEDADE

Com o desenvolvimento da Internet marcada por uma rede horizontal de comunicação interativa os usuários começaram a perceber sua capacidade de autonomia e um local para poder exercer a própria individualidade. 

A revolução contracultural que chega com a Era Digital só foi possível pelo seu processo de criação ao se tratar de uma rede mundial de computadores desenvolvida de forma colaborativa e descentralizada partindo do entusiasmo de vários atores sociais pertencentes e não pertencentes ao aparato estatal que viam o potencial de um espaço de compartilhamento de informação e conhecimento e que transmitia os anseios daqueles que participam e não apenas de um grupo pequeno de pessoas. 

Vários movimentos libertários surgiram a partir da proposta de “recuperação” do controle e do poder com a filosofia de resgate e da autonomia como uma espécie de anarquismo da era digital. O ciberativismo segundo VEGH (2003, pg. 71 apud SANTOS, pg. 3) compreende a utilização da Internet por movimentos politicamente motivados com o com o intuito de alcançar suas tradicionais metas ou lutar contra injustiças que ocorrem na própria rede (GURAK, LOGIE, 2003; MCCAUGHEY, AYERS, 2003 apud SANTOS). Surge em 1980 quase que paralelamente ao surgimento da Internet, a primeira comunidade de ciberativistas quando um grupo de ativistas ao redor do mundo, fazendo parte da Peacenet utilizavam listas de e-mail para distribuir informações sobre direitos e conciliar discussões internacionais. Quando a internet passa a se popularizar, a partir da segunda metade da década de 1990 é que de fato ela passa a ser uma grande rede de compartilhamento e troca de informações mais acessível ao público em geral. Inicialmente no Japão e logo após nos Estados Unidos surgem sites e bate-papos temáticos onde os usuários podiam trocar imagens e mensagens sobre algum assunto, conhecido como imageboards (uma das características destes imageboards é que os usuários tinham a possibilidade de colocar ou não seus nomes nas postagens, no entanto quando não colocado o site preenchia automaticamente com o nome anonymous). 

A partir desta maior interatividade e da mobilização de grupos formados por pessoas com ideologias e propósitos iguais surge uma organização conhecida como “Anonymous”. Em 2006, vários usuários se articulam em torno de uma coletividade que se posicionava e agia com determinados objetivos como, por exemplo, a identificação de pedófilos. Com o passar do tempo, assumiram objetivos mais globais que colocaram em xeque os sistemas de segurança de vários países ao compartilhar informações sigilosas dos governos. Outro exemplo de um grupo que compartilhava informações de suma importância sobre assuntos sensíveis tanto de governos quanto de empresas foi o Wikileaks, uma organização transnacional sem fins lucrativos, com sede na Suécia que publica em sua página documentos, fotos e informações confidenciais de fontes anônimas.

Uma das inovações tecnológicas que permitiu a maior autonomia dos usuários são as criptomoedas. Elas são um meio de troca que utiliza a criptografia para assegurar transações e criação das novas unidades de moedas. Em 2009 em um Fórum de criptografia, um usuário que se identificou com o pseudônimo Satoshi Nakamoto lançou a rede bitcoin que revolucionou as transações monetárias por não ser necessário intermediários, como os Bancos. O Bitcoin “é uma nova moeda digital experimental que permite pagamento instantâneo para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo que utiliza tecnologia peerto-peer (P2P) para operar sem autoridade central: a gerência de transações e a emissão de dinheiro é executada coletivamente pela rede. Bitcoin Core é o nome do software open source que habilita o uso desta moeda."

Esta autonomia e maior liberdade em alguns aspectos trouxeram muitos benefícios e facilidades para o cotidiano das pessoas, mas não foram apenas vantagens. No ciberespaço pode ser encontrado todo tipo de informação, desde fóruns de pessoas dispostas a cometerem atentados como os “blackmarkets”, que comercializam vários produtos considerados ilegais em muitos países, como drogas, armas e até mesmo órgãos. Falaremos a seguir sobre a internet como plataforma de práticas criminosas e as dificuldades do Estado em conter tais práticas na rede. 


8. INTERNET: UMA PLATAFORMA PARA A PRÁTICA CRIMINOSA

O tipo de informação que está disponível na Internet de forma fácil e rápida existe na surface web ou “web da superfície”. Neste local encontram-se todas as páginas que podem ser indexadas por um buscador comum como o Google, Bing e Yahoo. Alguns estudos apontam que esta parte da Internet corresponde há apenas 4% de tudo que está disponível na rede. O lado oculto, que não está ao alcance de todos e que se estima ser 500 vezes maior que a surface é a Deep Web ou “web profunda”. Trata-se de um espaço na rede em que as informações não estão indexadas nos buscadores podendo conter todo tipo de dados. Estas estimativas não podem ser realmente levantadas, pois como os sites não estão indexados não é possível de serem rastreados como na superfície.

Não existe uma única forma de acessar a Deep Web porque ela é composta de várias redes separadas que não conversam entre si. A rede mais conhecida é o Tor (the onion router), que é um software de anonimato de código aberto que permite maior segurança pra quem navega na rede. Com os browsers utilizados na surface web é possível que o IP do usuário seja rastreado em todas as atividades realizadas pela Internet, mas com o Tor, esta informação é escondida. Para atingir a anonimidade, esses programas enviam todas as informações através de uma série de roteadores ao redor de toda a rede, de modo a esconder a fonte e o receptor destes dados. Apesar de todos estes mecanismos, não existe nenhuma garantia da completa anônimidade associada a esses serviços, pois estes continuam suscetíveis à análise de tráfego. Além do Tor, existem outras redes como a Freenet, que é uma plataforma peer-topeer de comunicação anti-censura que utiliza um sistema de arquivos distribuído descentralizado e tem uma suíte de código livre para publicação e comunicação na web sem censura.

Na Deep Web existem redes secretas de comunicação conhecidas como Dark net ou Dark Web, onde podem ser encontrados usuários que alimentam o chamado “blackmarket”. Nestes locais são comercializadas armas, drogas, órgãos, pornografia infantil, redes de estelionato, entre outros matérias ilegais. Em decorrência da estrutura da deep web e da dificuldade de identificar os usuários tais tipos de crimes se mostrado cada vez mais difíceis de serem contidos. Outro desafio é quanto a dificuldade de submissão à jurisdição, primeiro pela complexidade em identificar os IPs e saber onde estão estes criminosos e segundo porque muitas vezes se tratam de crimes praticados em “águas internacionais”.

Além dos crimes cometidos por usuários existem os crimes cometidos pelas grandes empresas de tecnologia que comprometem o funcionamento dos mercados de maneira saudável e prejudicam a economia. Nos dias de hoje, existe um termo pouco difundido conhecido como “Net States” que mostram a nova dimensão do poder em seus mais variados grupos e formas que são frutos da Era Digital.

“Net-states are digital non-state actors, without the violence. Like nationstates, they’re a wildly diverse bunch. Some are the equivalent to global superpowers: the Googles, the Facebooks, the Twitters. Others are mere gatherings of pranksters, like Lulzsec (whose sole purpose for action is “for the lulz—the laughs). Others still are paramilitary operations, such as GhostSec, an invite-only cyberarmy specifically created to target ISIS. There are also hacktivist collectives like Anonymous and Wikileaks. Regardless of their differences in size and raison d’etre, net-states of all stripes share three key qualities: They exist largely online, enjoy international devotees, and advance belief-driven agendas that they pursue separate from, and at times, above, the law.”

Empresas como Google e Facebook que tem milhares de usuários pelo mundo, por meio da utilização do big data que é o acesso a um grande conjunto de dados armazenados acaba coletando informações e a partir delas sugerem alternativas que orientam a escolha dos usuários e comprometem a capacidade e possibilidade de uma escolha livre por parte dos consumidores. O mundo virtual pode se apresentar para alguns como um locus de liberdade e autonomia como já foi dito. No entanto esse local de liberdade só se concretiza quando os usuários tem conhecimento para acessar a rede além do que é sugerido na surface web. As grandes empresas que podem limitar o acesso às informações disponíveis na internet superficial, se utilizam de vários mecanismos como predileção de notícias, anúncios, rankeamento de conteúdos de pesquisa que acabam favorecendo algumas empresas em detrimento de outras colocando em risco preceitos como a livre concorrência gerando mercados monopolizados que detêm o domínio de dados.


9. CONCLUSÃO

Ficou demonstrado então que a Internet propícia novas formas de exercício de poder que alteraram - e continuarão alterando - a relação entre estado, empresas e socidade. O estado ainda detém o poder de fiscalização dos atos dos cidadãos sob alguns aspectos. Por outro lado, existe uma nova gama de possibilidades para o cometimento de crimes que exige do Estado aperfeiçoamento e corpo técnico especializado para conseguir identificar e realizar a contenção de determinadas práticas. A sociedade também exige maior transparência do Estado e de sua relação com as empresas.

No que diz respeito ao controle dos Estados e da regulação sobre as principais empresas da área de tecnologia da informação observamos uma dificuldade ainda maior pois, elas possuem domínio sobre os dados, estes que são considerados na atualidade tão importantes que merecem atenção especial quanto ao seu gerenciamento e administração em decorrência da sua importância do ponto de vista econômico, que podem ser transformadas em informações úteis e indispensáveis para a atividade econômica. 

Diante do que foi exposto percebemos que vivemos em um momento histórico em que está acontecendo um reequilíbrio de poder entre estado, empresas e sociedade. Ainda não é possível afirmar com certeza a favor de qual dessas partes se dá a nova distribuição de forças, até porque estamos falando de um fenômeno multidimensional cujas consequências finais ainda não podem ser imaginadas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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