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Repressão aos atos de pirataria no mar: uma abordagem com foco em possibilidades

Repressão aos atos de pirataria no mar: uma abordagem com foco em possibilidades

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Trata-se de artigo que visa a abordar, objetivamente, as principais questões jurídicas afetas à repressão dos atos de pirataria no mar.

Antes mesmo da previsão do Jus Gentium (Direito das Gentes), em sua acepção moderna, um pirata sempre foi considerado um fora da lei, um hosti humani generis. Antigamente, havia o entendimento que um ato de pirataria fazia com que o pirata perdesse a proteção de seu Estado natal e até mesmo a sua nacionalidade. O navio pirata não mais poderia alegar que estaria sob a proteção de determinada bandeira estatal[1]. Hoje, alguns fundamentos mudaram, mas o que nunca vai mudar é o fato do ato praticado no contexto da pirataria ser um crime internacional e o pirata ser considerado um “inimigo” de todos os Estados, podendo ser julgado em qualquer lugar.

 

A repressão à pirataria evoluiu de uma prática com fundamento no Costume Internacional para uma prática com fundamento no Direito Internacional positivado[2]. Ou seja, inicialmente era costumeira e obrigatória para todos os Estados, passando a ser convencional e obrigatória para todos os Estados contratantes. Porém, conforme demonstrado acima, caso um Estado não tenha ratificado uma convenção que preveja a repressão à pirataria, isto não o exime da responsabilidade de reprimir tal prática hedionda. Muito antes dos modernos tratados terem sido ratificados, a pirataria sempre foi uma ofensa para o Direito das Gentes. Esse sempre foi o fundamento que os Estados Unidos da América[3] utilizaram para reprimir a pirataria.

 

Em Direito Internacional, a permissão para que qualquer Estado possa punir um criminoso, não importando a sua nacionalidade ou a do bem jurídico atingido, que tenha cometido um “delito internacional”, em qualquer local, é chamada de competência universal. Destaca-se que o princípio da competência universal[4] tem previsão expressa no Código Penal (artigo 7º, II, “a”). Se o fato envolver embarcações[5] brasileiras em alto-mar, não há necessidade do conceito de pirataria e nem do princípio da competência universal para aplicar a lei penal pátria (art. 5º, § 1º, do Código Penal).

 

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), a partir do seu artigo 101, define e aborda a pirataria[6]. Observa-se que a pirataria é um conceito afeto a um conjunto de atos que, por sua vez, podem ser amoldados em normas penais do Direito interno. Na inteligência dos artigos 58 e 101 da CNUDM, para que ocorra a pirataria, o ato deve ter ocorrido fora dos limites do Mar Territorial, ou seja, na Zona Econômica Exclusiva ou no alto-mar. É justamente isto que diferencia um roubo ocorrido no Mar Territorial de um ato de pirataria análogo cometido em alto-mar.

 

Em pesquisas realizadas nos repositórios de jurisprudência pátria, não foram encontrados julgados se manifestando em relação à possibilidade ou não da aplicação da legislação penal para a punição de atos caracterizadores da pirataria. Porém, apesar de não haver um tipo penal com o nome de “pirataria”, não se vislumbra nenhum óbice para aplicar o ordenamento jurídico caso os atos de pirataria se subsumam em crimes de roubo, homicídio, lesão corporal, extorsão mediante sequestro, entre outros. Nessa esteira, as doutrinas internacionalista e criminalista pátrias, ao abordarem o tema “princípio da competência universal”, não levantam nenhum óbice à responsabilização penal pela prática dos atos que venham a ocorrer no contexto da pirataria.

 

Parece ser esse o entendimento do legislador pátrio (Senador Romeu Tuma), na justificativa do Projeto de Lei do Senado nº 216/2009, ao considerar que o futuro tipo penal de “pirataria é espécie de crime patrimonial, especialmente agravado pela concomitante ofensa à segurança do transporte marítimo ou fluvial, estabelece penas um tanto superiores às previstas para o furto ou o roubo, cuidando, ainda, de ressalvar a imposição das penas correspondentes à violência eventualmente praticada”. E também afirma que “no mérito, entendemos que a inovação proposta é salutar e contribuirá para o aperfeiçoamento da legislação penal. De fato, a ação de piratas possui especificidades que justificam o seu tratamento de forma autônoma pelo Código Penal”.

 

Ora, se a justificativa da criação do tipo penal é somente para punir com uma pena maior do que as penas dos tipos penais já existentes, pode-se concluir que não há nenhum óbice em, na falta daquele, punir eventual ato caracterizador da pirataria com os tipos penais existentes. Infelizmente, não é incomum deparar-se com o mito,  fruto da adoção de entendimentos aplicáveis em outros países, de que seria necessário criar um tipo específico de “pirataria”, a fim de possibilitar a atuação com fundamento na jurisdição universal.

 

Com a devida licença, acredita-se que o citado mito não deve prosperar por vários motivos. Antes da previsão na CNUDM, um ato de pirataria sempre foi considerado um crime internacional pelo Direito Internacional não escrito. Se isso não bastar, qualquer tentativa de tipificar penalmente um ato de pirataria, fora do conceito de pirataria previsto na CNUDM, não terá nenhuma validade internacional. Ainda, a pirataria não pode ser encarada como um crime, mas sim um conjunto de atos que, se praticados na ZEE ou no alto-mar, irão caracterizá-la. Por fim, conforme já demonstrado, se estes atos puderem ser amoldados a tipos penais já existentes, não haverá nenhum óbice para que haja a responsabilização criminal e consequente julgamento.

 

Não é a prática de um crime chamado pirataria que irá permitir a aplicação do princípio da competência universal, mas a prática, além dos limites do mar territorial, de um dos diversos atos que ocorreram dentro do contexto da pirataria e que, por sua vez, podem ser amoldados a tipos penais já existentes.

 

Pode-se imaginar um país que não possua o princípio da competência universal em seu ordenamento jurídico. Nesse caso, não haveria previsão para que um ato de pirataria cometido por uma embarcação estrangeira contra outra embarcação estrangeira fosse julgado por seus tribunais. Porém, observa-se que a própria CNUDM prevê, no seu artigo 105, a competência universal dos tribunais para o julgamento de atos de pirataria. A partir da ratificação da CNUDM e sua posterior internalização no ordenamento jurídico, se esta for necessária no citado país hipotético, a norma convencional passará a fazer parte do seu Direito interno, não havendo mais justificativa para a não atuação de seus tribunais.

 

Apesar dos atos de pirataria só ocorrerem na ZEE ou no alto-mar, no caso da Somália, com o consentimento do seu Transitional Federal Government, o Conselho de Segurança das Nações Unidas editou diversas resoluções (1816 de 02JUN2008, 1838 de 07OUT2008, 1846 de 02DEZ2008, 1851 de 16DEZ2008, entre outras) que permitiram a entrada no Mar Territorial somaliano para a repressão desses atos.  Essas resoluções tinham como escopo permitir que os Estados engajados nas operações pudessem perseguir e capturar os piratas em águas territoriais e, no caso da resolução 1851, até em terra firme. Independentemente de uma resolução do Conselho de Segurança, para os casos não previstos na CNUDM, entende-se que qualquer ação poderia ser tomada com a autorização do Estado costeiro envolvido.

 

Como existe a discussão, nem sempre jurídica, sobre a necessidade ou não de legislação interna permitindo que as autoridades locais julguem piratas, tribunais e legislaturas de alguns países são relutantes em estabelecer jurisdição sobre eventos que ocorreram fora do Mar Territorial. As saídas encontradas foram criar tribunais especiais para os atos de pirataria, como o do Quênia, ou enviar os piratas capturados para países que tenham interesse em julgá-los.

 

Mesmo que seja possível alcançar um procedimento que atenda a todos os ordenamentos jurídicos ao lidar com a situação dos piratas capturados, a ação naval internacional parece se preocupar mais em apenas impedir e interromper a pirataria do que gastar recursos e tempo para conduzir os piratas a países com o fim de julgamento, haja vista não ser esta a missão de todas as marinhas.

 

Em 2012, a representação brasileira junto à ONU transmitiu[7] ao Secretariado a posição de que o Brasil possui a base legal suficiente para a prevenção e repressão dos atos de pirataria.

 

“Brazil vehemently condemns acts of piracy wherever they may occur. Our domestic legislation features the necessary elements to prosecute suspects of crimes classified as relating to acts of piracy. The Brazilian Penal Code criminalizes, under its article 157, armed robbery in all national jurisdiction, both at sea and on land.

 Brazil has also incorporated into its domestic legislation the United Nations Convention on the Law of the Sea, which establishes that all States have the obligation of cooperating in the repression of piracy and may exercise universal jurisdiction over crimes related to acts of piracy committed on the high seas.”

 

Recapitulando, o princípio da jurisdição universal, previsto no art. 7º, II, "a", do Código Penal, é resultado do fato de que a repressão aos fatos criminosos deve merecer a atuação de todos os países, mormente em relação aos crimes que afetem a humanidade e, em virtude de sua natureza, exijam cooperação entre os Estados, seja qual for a nacionalidade do agente ou o local da prática do crime.

 

Assim, internacionalmente, pode-se identificar duas correntes: 1ª) de que a aplicação do princípio em tela necessita que cada país tipifique o crime de pirataria; ou 2ª) haja vista o princípio da jurisdição universal, há como aplicar a legislação penal da forma como se encontra aos atos que ocorram no contexto da pirataria, sem necessidade de legislação específica.

 

Conforme exposto, verifica-se que a República Federativa do Brasil é, expressamente, partidária da segunda corrente. A questão parece encontrar-se pacificada e o mito da necessidade de um crime de “pirataria” deve ser afastado.

 


[1] Pelo artigo 104 da CNUDM, a perda da nacionalidade do navio ou da aeronave pirata não é obrigatória e, de certa forma, irrelevante. O que importa é a consagração do princípio da competência universal, com a previsão de atuação efetiva por qualquer Estado, conforme prevê o artigo 105.

[2] Convenções, tratados, acordos, entre outros atos internacionais.

[3] A Constituição dos Estados Unidos da América prevê em seu artigo I, seção 8 que: “The Congress shall have Power [...] to define and punish piracies and felonies committed on the high seas, and offences against the Law of Nations”. O Congresso americano exerceu este poder mediante a promulgação 18 USC 1651, que estipula: “Whoever, on the high seas, commits the crime of piracy as defined by the law of nations, and is afterwards brought into or found in the United States, shall be imprisoned for life”.

[4] Também conhecido como Princípio da Justiça/Jurisdição Universal ou Cosmopolita.

[5] De acordo com a CNUDM, a pirataria pode ser praticada também contra aeronaves.

[6] Para o melhor entendimento do tema Pirataria, recomenda-se a leitura dos artigos 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 110 e 111, todos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

[7] Conforme a carta S/2012/177 do Secretário-Geral das Nações Unidas. Disponível em: https://undocs.org/en/S/2012/177


Autor

  • Antonio Carlos Fernandes da Silva Filho

    Oficial do Quadro Técnico da Marinha do Brasil. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Internacional pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Marítimo pela Escola de Guerra Naval. Pós-graduado (lato sensu) em Direito Privado pela Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Cursado em Direito aplicado às Operações Navais (Instituto Internacional de Direito Humanitário). Cursado em Direito Internacional do Mar (Centro de Direito Internacional). Cursado em Direito Internacional dos Conflitos Armados (Escola Superior de Guerra).

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