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Os meandros da sujeição passiva do espólio na execução fiscal no atual contexto jurisdicional

Os meandros da sujeição passiva do espólio na execução fiscal no atual contexto jurisdicional

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A despeito da existência das prerrogativas materiais e processuais, as procuradorias fiscais enfrentam dificuldades com a cobrança da dívida ativa em face do espólio, devido a insuficiência de informações nos respectivos cadastros.

      Atualmente, é de considerar-se alguns notórios posicionamentos que abarcam a execução fiscal em relação a sujeição passiva do espólio. O fato é que tais situações poderão ocasionar a morosidade na efetividade ao prosseguimento do feito. Assim, levando-se em consideração a interpretação sistemática da legislação e sob o amparo doutrinário passamos a tecer algumas considerações que refletem na celeridade processual.

 

 

Na ciência jurídica, conceitua-se espólio como o

 

ente despersonalizado que representa a herança, em juízo e extrajudicialmente. Realmente, o espólio não dispõe de personalidade jurídica (não é, portanto, pessoa jurídica), mas tem capacidade para titularizar relações jurídicas, como é o exemplo das relações trabalhistas e previdenciárias, além das relações consumeristas e tributárias[1]

 

 

Ademais, é cediço que enquanto não providenciado o inventário judicial ou extrajudicial (art. 610 e seguintes do Código de Processo Civil), inexistindo, portanto a figura de seu representante legal qualificada na pessoa do inventariante,

 

o espólio será representado pelo administrador provisório, a pessoa que se encontra na posse dos bens da herança; com a nomeação do inventariante, será ele o representante do espólio, salvo se for dativo, caso em que a representação caberá a todos os herdeiros, que deverão ser intimados. A parte será o próprio espólio, mas todos os sucessores precisarão ser intimados (art. 75, §1º) (destaque original).[2]

 

Outrossim, na seara tributária, o Código Tributário Nacional atribui, por ficção jurídica, a qualidade de “pessoa” ao espólio, impelindo-o diretamente a responsabilidade pelas dívidas contraídas pelo de cujus até a abertura da sucessão (art. 131, III), ao passo que tal responsabilidade recairá sobre a pessoa do inventariante durante o inventário ou arrolamento e até a partilha dos bens (art. 134, IV), transferindo a sujeição passiva tributária aos sucessores a qualquer título e ao cônjuge meeiro acaso remanesçam dívidas surgidas após definir o aquinhoamento ou a distribuição dos bens[3]

 

 

Neste esteio, considerando o intento do legislador em assegurar o efetivo recebimento do crédito fazendário, dispôs no art. 4º da Lei nº 6.830/80 o verbo “poderá”, permitindo o direcionamento facultativo da execução fiscal em face do espólio, do inventariante (agindo como responsável nos termos da lei) e dos sucessores a qualquer título (art. 4º, III, IV, V), de modo a capilarizar a solvibilidade do tributo, sobretudo dos entes despersonificados (espólio, massa falida, pessoas jurídicas dissolvidas irregularmente), cuja legitimação passiva depende de sua efetiva transcrição na Certidão da Dívida Ativa.[4]

 

Todavia, por força do princípio da saisine[5], no tocante a responsabilidade do espólio pelas dívidas do de cujus (art. 131, III, CTN), por vezes não se obtém facilmente a identificação daqueles que deverão responder pelo crédito fazendário (herdeiros e inventariante), sobretudo em cidades interioranas, cujo formalismo inerente ao processo de inventário/arrolamento é culturalmente distante da realidade das pessoas.

 

Por conseguinte, torna-se um esforço hercúleo para as procuradorias dos entes federados, notadamente as municipais, bem como suas respectivas administrações fazendárias, localizarem os aludidos responsáveis tributários para darem concretude ao pagamento do tributo devido em nome daquelas ficções jurídicas.

 

Com efeito, ciente desta notória adversidade estrutural, o legislador não exigiu a previsão do "inventariante" ou "representante legal" do espólio a compor o polo passivo da ação fiscal.

 

Neste diapasão, dispõem os §§1º e 2º do art. 6º da mesma lei que a Certidão de Dívida Ativa - CDA fará parte integrante da petição inicial como se fosse um único documento, de modo que a exordial se valerá das informações contidas na CDA.

 

Ainda, o inciso I do art. 202 do CTN informa que o termo de inscrição da Dívida Ativa deverá indicar obrigatoriamente "o nome do devedor e, sendo o caso, o dos corresponsáveis, bem como, sempre que possível, o domicílio ou a residência de um e de outros."

 

Nota-se que não há a exigência da presença do "endereço correto do representante da massa patrimonial" ou tampouco a comprovação da existência de inventário/arrolamento com a consequente qualificação das pessoas indicadas.

 

Ocorre que, a despeito dessas premissas legais, alguns tribunais pátrios vêm entendendo ser imprescindível, além da identificação do espólio como devedor principal, a qualificação do inventariante e herdeiros e demais elementos não previstos no art. 202 do CTN e na norma prevista no §5º do art. 2º da Lei nº 6830/80, sob pena de extinção do feito em razão da insubsistência de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (art. 485, IV, CPC), neste sentido, e.g.,

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução Fiscal – Polo passivo ocupado pelo espólio, sem indicação do inventariante ou de qualquer outra pessoa capaz de receber a citação – Determinação para que a Municipalidade suprisse a falta, indicando o processo de inventário, arrolamento de bens, certidão de óbito ou a pessoa do inventariante, com a devida qualificação – Impossibilidade de prosseguimento da execução fiscal em face desse executado – Temeridade na prática de atos inúteis – Municipalidade que, conquanto obrigada a cobrar seus créditos, não está isenta do dever processual de instruir adequadamente o feito – RECURSO DESPROVIDO.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2265501-53.2018.8.26.0000; Relator (a): Henrique Harris Júnior; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Osasco - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 12/03/2020; Data de Registro: 16/03/2020)

Em outros termos, as exigências pontuadas nos arestos supra, impondo a Fazenda Pública a promoção de emenda da petição inicial para fazer incluir elementos que não são exigíveis sequer na CDA, transpareceria, data máxima venia, um ato jurisdicional contrário à essência contida no art. 4º do CPC, notadamente no que tange ao princípio da solução integral do mérito.

 

 Outrossim, os argumentos propugnados naquelas decisões no afã de garantir, em suma, a segurança da fase expropriatória para, ao fim e ao cabo, evitar o risco de possíveis nulidades e a perpetração de atos processuais inúteis, conquanto louvável, não possui o condão de alicerçar requisitos não previstos em lei.

 

Destarte, devido ao fato das fazendas públicas exequentes não possuírem, por mais das vezes, informações acerca do representante legal do espólio executado (elemento do qual, repise-se, é prescindível pela lei), a citação deverá recair sobre quem se apresentar como legítimo representante do espólio (herdeiro, cônjuge supérstite, etc) ou como atual possuidor do respectivo imóvel - quando o objeto da exação versar sobre IPTU, cuja sujeição passiva alberga a figura do possuidor do imóvel e, portanto, responsável tributário (art. 4º, V da Lei nº 6.830/80 c/c arts. 34 e 124, II do CTN) - de tal sorte que eventual mácula processual deverá ser alegada oportunamente pelo interessado, podendo a citação ocorrer, inclusive, via edital, caso as tentativas citatórias anteriormente promovidas no feito expropriatório fiscal não se mostram possíveis (neste sentido, cf. TJSP;  Apelação Cível 1503679-87.2017.8.26.0405; Relator (a): Eutálio Porto; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Osasco - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 21/06/2018; Data de Registro: 21/06/2018).

 

Tal entendimento encontra-se igualmente presente nos tribunais, demonstrando uma nítida divergência jurisprudencial a respeito do tema, in verbis.

APELAÇAO CÍVEL - Execução fiscal - IPTU e taxas dos exercícios de 2012 a 2014 - Extinção da ação sem resolução do mérito por ausência de indicação da qualificação e endereço do representante legal do espólio - Impossibilidade - Providência dispensável - Possibilidade do prosseguimento da execução fiscal contra o Espólio - Sentença reformada - Recurso provido. (TJSP;  Apelação Cível 1509118-79.2017.8.26.0405; Relator (a): Eutálio Porto; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Osasco - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 26/02/2019; Data de Registro: 26/02/2019)

 

EXECUÇÃO FISCAL – IPTU – Exercícios de 2011 a 2015 – Município de Osasco – Extinção em primeiro grau, à luz do artigo 485, IV, do CPC/15 – Propositura em face do espólio - Não indicação do inventariante ou herdeiros, para a realização do ato citatório – Desnecessidade - Elementos informados que se mostram suficientes para o prosseguimento do feito - Inteligência do art. 6º "caput" e § 1º, da Lei nº 6.830/80 - Precedentes C. Corte - Sentença reformada – Apelo da municipalidade provido. (TJSP;  Apelação Cível 1514678-02.2017.8.26.0405; Relator (a): Silva Russo; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de Osasco - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 14/03/2019; Data de Registro: 18/03/2019)

 

 

Portanto, conclui-se haver um certo descompasso entre o desígnio do legislador contido no direito positivo tributário, ao imputar a responsabilidade tributária ao espólio, atribuindo-lhe personalidade jurídica fictícia a fim de facilitar e tornar exequível o trabalho arrecadatório da Fazenda Pública, dada a sabida dificuldade em se identificar a contento os herdeiros e o inventariante, cuja circunstância é lastreada na perceptível resistência  daqueles em regularizar a universalidade patrimonial do de cujus, e o crescente posicionamento pretoriano contrário, inadmitindo execuções fiscais que padecem das informações inerentes do inventariante e sucessores, conferindo a tais dados o caráter básico para a constituição e regular processamento do feito (art. 485, IV, CPC), conquanto não sejam estes os requisitos essenciais da Certidão de Dívida Ativa, a qual compõe a exordial do feito fiscal (art. 202, CTN c/c arts. 2, §5º e 6º, §1º, Lei nº 6.830/80).

 


[1] FARIAS, C.C. ROSENVALD, N. Curso de direito civil. V. 7. São Paulo: Atlas, 2015. p.33

[2] GONÇALVES, M.V.R. Direito processual civil esquematizado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[3] SABBAG, E. Manual de direito tributário. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[4] THEODORO JUNIOR, H. Lei de execução fiscal: comentários e jurisprudência. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[5] Concebido pelo direito francês, tal princípio consiste, em suma, na transmissão automática e imediata de todo conjunto patrimonial pertencente ao autor da herança (de cujus) aos seus herdeiros, consagrado em nosso direito no art 1.784 do Código Civil. Cf. FARIAS, C.C. ROSENVALD. Op.cit. p. 63-64.


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