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A educação e a proteção ao deficiente

A educação e a proteção ao deficiente

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Entenda um pouco mais sobre a decisão do Ministro Dias Toffoli, do STF, que suspendeu o decreto do governo federal que instituiu a Política Nacional de Educação Especial, e incentiva a criação de escolas e classes especializadas para pessoas com deficiência.

I – ADI 6.590

O ministro Dias Toffoli, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu, no dia 1º de dezembro, o decreto do governo federal que instituiu a Política Nacional de Educação Especial e incentiva a criação de escolas e classes especializadas para pessoas com deficiência.

O julgamento se deu em liminar na ADI 6.590.

Segundo o decreto, a União, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios, deveria implementar programas e ações para garantir os direitos à educação e ao atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. O decreto também incentiva a criação de escolas e classes especializadas e escolas e classes bilíngues de surdos.

O Partido Socialista Brasileiro (PSB), autor da ação, afirma que, apesar de sua finalidade declarada, o decreto teria como real objetivo discriminar e segregar os alunos com deficiência, ao prever o incentivo à criação de escolas e classes especializadas para esse grupo. Segundo o PSB, esse modelo provocaria discriminação e segregação entre os educandos com e sem deficiência, violando o direito à educação inclusiva.

O magistrado afirmou que a norma "fragiliza o imperativo da inclusão de alunos com deficiência" e deu uma decisão liminar (provisória) para sustar os efeitos do texto.

Os demais ministros decidirão na sessão virtual que começa no próximo dia 11 se mantêm o entendimento do ministro Toffoli.

O decreto nº 10.502/2020  foi assinado pelo presidente Jair Bolsonaro em 30 de setembro de 2020 em uma cerimônia que contou com a presença de diversos ministros e com o discurso da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O ministro Toffoli ressaltou que a Constituição não proíbe a existência de classes e escolas especializadas, mas que a medida não pode ser adotada como regra.

Segundo o magistrado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional expressa a excepcionalidade da medida de exclusão e estabelece como primeira hipótese a matrícula de todos os alunos no sistema geral.

“Salta aos olhos o fato de que o dispositivo trata as escolas regulares inclusivas como uma categoria específica dentro do universo da educação especial, como se houvesse a possibilidade de existirem escolas regulares não-inclusivas”, frisou.

O ministro argumentou que a educação inclusiva não significa a implementação de uma nova instituição, mas a adaptação do sistema de educação regular a fim de reunir todos os alunos na mesma proposta de ensino.

Para o ministro Toffoli, é “problemática” a previsão de implementação de escolas bilíngues de surdos na condição de ensino regular para quem faz uso da Libras.

O ministro justificou que a pressa em analisar individualmente a ação, se justifica devido à proximidade do início de um novo ano letivo, que “pode acarretar a matrícula de educandos em estabelecimentos que não integram a rede de ensino regular, em contrariedade à lógica do ensino inclusivo”.


II – O ARTIGO 205 DA CF E DIVERSOS DIPLOMAS DE PROTEÇÃO AO DEFICIENTE

O artigo 205 define a educação como um direito de todos, que garante o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Estabelece a igualdade de condições de acesso e permanência na escola como um princípio. Por fim, garante que é dever do Estado oferecer o atendimento educacional especializado (AEE), preferencialmente na rede regular de ensino. A isso se some a Emenda Constitucional nº 59/2009, que tornou obrigatória a educação para todas as crianças de 4 a 17 anos até 2006, garantindo o acesso legal, gratuito e compulsório na educação pré-escolar.

Nessa linha de pensar, tem-se:

O artigo 8º da Lei nº 7.853/1989 proíbe a discriminação contra pessoas com deficiência no ambiente escolar. Embora a exclusão escolar seja uma realidade, não há dados claros que demonstrem condenações com base nessa legislação.

Portaria do Ministério da Educação (MEC) nº 1.793 : recomenda a inclusão de conteúdos relativos aos aspectos éticos, políticos e educacionais da normalização e integração da pessoa portadora de necessidades especiais nos currículos de formação de docentes.

A Lei nº 9.394 – Lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) : define educação especial, assegura o atendimento aos educandos com necessidades especiais e estabelece critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial para fins de apoio técnico e financeiro pelo poder público.

Decreto nº 3.298 : dispõe sobre a Política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência. A educação especial é definida como uma modalidade transversal a todos os níveis e modalidades de ensino.

Resolução CNE/CEB nº 2 : institui as diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Afirma que os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizarem-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos.

Lei nº 10.436 : dispõe sobre a Língua brasileira de sinais (Libras). Reconhece a língua de sinais como meio legal de comunicação e expressão, bem como outros recursos de expressão a ela associados.

Portaria MEC nº 2.678 : aprova o projeto da grafia braille para a língua portuguesa, recomenda seu uso em todo o território nacional e estabelece diretrizes e normas para a utilização, o ensino, a produção e a difusão do Sistema Braille em todas as modalidades de ensino.

Portaria nº 3.284:  dispõe sobre os requisitos de acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência, para instruir os processos de autorização e de reconhecimento de cursos e de credenciamento de instituições.

Programa universidade para todos (PROUNI):  programa do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo em instituições privadas de educação superior, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes. Pessoas com deficiência podem concorrer a bolsas integrais.

Programa de acessibilidade no ensino superior (Programa incluir) : propõe ações que garantem o acesso pleno de pessoas com deficiência às instituições federais de ensino superior (ifes). O programa tem como principal objetivo fomentar a criação e a consolidação de núcleos de acessibilidade nessas unidades, os quais respondem pela organização de ações institucionais que garantam a integração de pessoas com deficiência à vida acadêmica, eliminando barreiras comportamentais, pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação.

Decreto nº 5.626 : regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Dispõe sobre a inclusão da Libras como disciplina curricular; a formação e a certificação do professor, instrutor, tradutor e intérprete; o ensino de língua portuguesa como segunda língua para alunos surdos e a organização da educação bilíngue no ensino regular.

Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) : recomenda a acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, a implantação de salas de recursos multifuncionais e a formação docente para o atendimento educacional especializado (AEE).

Decreto nº 6.094 : implementa o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, que destaca a garantia do acesso e permanência no ensino regular e o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos para fortalecer a inclusão educacional nas escolas públicas.

Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva: documento de grande importância, fundamenta a política nacional educacional e enfatiza o caráter de processo da inclusão educacional desde o título: “na perspectiva da”. Ou seja, ele indica o ponto de partida (educação especial) e assinala o ponto de chegada (educação inclusiva).

Decreto legislativo nº 186 : aprova o texto da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e de seu protocolo facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. O artigo 24 da Convenção aborda a educação inclusiva.

Decreto nº 6.571/2008, que confere recursos dobrados do FUNDEB para alunos alvo da educação especial.

Decreto executivo nº 6.949 : promulga a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo.

Resolução MEC CNE/CEB nº 4 : institui as diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na educação básica, modalidade educação especial. Afirma que o AEE deve ser oferecido no turno inverso da escolarização, prioritariamente nas salas de recursos multifuncionais da própria escola ou em outra escola de ensino regular.

Plano nacional dos direitos da pessoa com deficiência (Plano viver sem limite) : no art. 3º, estabelece a garantia de um sistema educacional inclusivo como uma das diretrizes. Ele se baseia na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que recomenda a equiparação de oportunidades. O plano tem quatro eixos: educação, inclusão social, acessibilidade e atenção à saúde. O eixo educacional prevê:

• Implantação de salas de recursos multifuncionais, espaços nos quais é realizado o AEE;• Programa escola acessível, que destina recursos financeiros para promover acessibilidade arquitetônica nos prédios escolares e compra de materiais e equipamentos de tecnologia assistiva;• Programa caminho da escola, que oferta transporte escolar acessível;• Programa nacional de acesso ao ensino técnico e emprego (Pronatec), que tem como objetivo expandir e democratizar a educação profissional e tecnológica no país;• Programa de acessibilidade no ensino superior (Incluir);• Educação bilíngue – Formação de professores e tradutores-intérpretes em Língua Brasileira de Sinais (Libras);• BPC na escola.

Decreto nº 7.611 : declara que é dever do Estado garantir um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e em igualdade de oportunidades para alunos com deficiência; aprendizado ao longo da vida; oferta de apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação, entre outras diretrizes.

Nota Técnica MEC/SEESP/GAB nº 06 : dispõe sobre avaliação de estudante com deficiência intelectual. Estabelece que cabe ao professor do atendimento educacional especializado a identificação das especificidades educacionais de cada estudante de forma articulada com a sala de aula comum. Por meio de avaliação pedagógica processual, esse profissional deverá definir, avaliar e organizar as estratégias pedagógicas que contribuam com o desenvolvimento educacional do estudante, que se dará junto com os demais na sala de aula. É, portanto, importantíssima a interlocução entre os professores do AEE e da sala de aula regul

Decreto nº 7.750 : regulamenta o Programa um computador por aluno (PROUCA) e o regime especial de incentivo a computadores para uso educacional (REICOM). Estabelece que o objetivo é promover a inclusão digital nas escolas das redes públicas de ensino federal, estadual, distrital, municipal e nas escolas sem fins lucrativos de atendimento a pessoas com deficiência, mediante a aquisição e a utilização de soluções de informática.

Parecer CNE/CEB nº 2 Site externo: responde à consulta sobre a possibilidade de aplicação de “terminalidade especifica” nos cursos técnicos integrados ao ensino médio: “O IFES entende que a ‘terminalidade específica’, além de se constituir como um importante recurso de flexibilização curricular, possibilita à escola o registro e o reconhecimento de trajetórias escolares que ocorrem de forma especifica e diferenciada

Plano nacional de educação (PNE): define as bases da política educacional brasileira para os próximos 10 anos. A meta 4, sobre educação especial, causou polêmica: a redação final aprovada estabelece que a educação para os alunos com deficiência deve ser oferecida “preferencialmente” no sistema público de ensino. Isso contraria a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, a Constituição federal e o texto votado nas preparatórias, que estabelecem a universalização da educação básica para todas as pessoas entre 4 e 17 anos em escolas comuns – sem a atenuante do termo “preferencialmente”.

Portaria interministerial nº 5 Site externo: trata da reorganização da Rede nacional de certificação profissional (Rede Certific). Recomenda, entre outros itens, respeito às especificidades dos trabalhadores e das ocupações laborais no processo de concepção e de desenvolvimento da certificação profissional.

Artigo 7º da Lei nº 12.764/2012 que prevê uma multa de 3 a 20 salários-mínimos como punição para o gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência.

Decreto nº 8.368/2014, norma regulamentadora da referida Lei, determina ao Ministério da Educação a aplicação da referida multa no âmbito dos estabelecimentos de ensino a ele vinculados e das instituições de educação superior privadas, observado o procedimento previsto na Lei nº 9.784/1999. (art. 5º, parágrafo 1º). O mesmo Decreto determina ainda que o órgão público federal que tomar conhecimento da recusa de matrícula de pessoas com deficiência em instituições de ensino vinculadas aos sistemas de ensino estadual, distrital ou municipal deverá comunicar a recusa aos órgãos competentes pelos respectivos sistemas de ensino e ao Ministério Público. (art. 7º) Por fim, o Brasil dispõe que, levando em consideraçã

Lei nº 13.146 – Lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (LBI): o capítulo IV aborda o direito à educação, com base na Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, que deve ser inclusiva e de qualidade em todos os níveis de ensino; garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras. O AEE também está contemplado, entre outras medida

Lei nº 13.409 : dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. As pessoas com deficiência serão incluídas no programa de cotas de instituições federais de educação superior, que já contempla estudantes vindos de escolas públicas, de baixa renda, negros, pardos e indígenas. O cálculo da cota será baseado na proporcionalidade em relação à população, segundo o censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Decreto nº 8.368/2014, norma regulamentadora da referida Lei, determina ao Ministério da Educação a aplicação da referida multa no âmbito dos estabelecimentos de ensino a ele vinculados e das instituições de educação superior privadas, observado o procedimento previsto na Lei nº 9.784/1999. (art. 5º, parágrafo 1º). O mesmo Decreto determina ainda que o órgão público federal que tomar conhecimento da recusa de matrícula de pessoas com deficiência em instituições de ensino vinculadas aos sistemas de ensino estadual, distrital ou municipal deverá comunicar a recusa aos órgãos competentes pelos respectivos sistemas de ensino e ao Ministério Público. (art. 7º)

Em síntese: A legislação sobre educação inclusiva no Brasil vigente tem seu marco na Constituição Federal de 1988, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente (“ECA”) - Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989; na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (“LDB”) - Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996; na Lei da Língua Brasileira de Sinais (“Libras”) - Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002; na Lei do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (“FUNDEB”) - Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007; na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (“CDPD”) e no seu Protocolo Facultativo, ratificados em 2008; na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista - Lei nº 12.764/2012; no Plano Nacional de Educação - Lei nº 13.005/2014; e na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência ou “LBI”) - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; e em um amplo arcabouço normativo infralegal construído, que veio sendo aperfeiçoado com a chegada da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil.

A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e a levou, em 2015, a ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5357) no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando o § 1º do artigo 28 e artigo 30, caput, da LBI. Esses dispositivos impuseram o dever de disponibilizar recursos necessários para a garantia da educação inclusiva, sem a obrigação de pagamento de custos adicionais pelos alunos com deficiência e em processos seletivos para ingresso e permanência em cursos oferecidos pelas instituições de ensino superior e de educação profissional e tecnológica. O STF confirmou no julgamento da ADI o entendimento de que a educação inclusiva é um direito indisponível dos cidadãos brasileiros e que deve ser garantido na sua integralidade, com todos os recursos de acessibilidade necessários. Ainda que uma organização privada o faça em complementariedade, deverá o fazer da mesma forma, ou seja, ofertando todos os apoios necessários, não podendo cobrar valores adicionais em razão da deficiência, sob pena de configurar discriminação.

A educação é um direito público subjetivo que se vincula aos conceitos de cidadania e dignidade, e que tem crianças e adolescentes em idade escolar como titulares, como reafirmou, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 888.81541/RS, de relatoria do Min. Roberto Barroso, em relação ao tema do homeschooling: “1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar. 2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos. (...) ”

Tudo isso foi “rasgado” pelo diploma normativo que foi objeto de análise pelo STF.

O direito a um sistema educacional inclusivo como premissa para a realização do direito à educação inclusiva ganhou status constitucional no Brasil.

O Decreto nº 10.502/2020, ao tratar do tema da educação, não respeita essa diretriz constitucional e faz a distinção sobre “escolas especializadas” que se destaca a seguir, já de antemão equivocada por ter que todas as escolas serem inclusivas, como já se sabe: “Art.2.º (...) VI - escolas especializadas - instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas.

O Decreto nº 10.502/2020 retrocede tanto do ponto de vista dos direitos quanto da política pública educacional inclusiva que vinha sendo implementada no Brasil, deturpando conceitos e abrindo espaço para mudança da lógica de financiamento e funcionamento do sistema. É certo que ainda há necessidade de melhoria no sistema educacional inclusivo, mas isso não acontecerá se os esforços forem vertidos para retirar das escolas regulares a obrigação de inclusão, fortalecendo as escolas especializadas conforme o sistema anteriormente vigente.

É evidente a inconstitucionalidade do Decreto 10.502/ 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, assinado pelo presidente da República. 

O Decreto 10.502/20 incentiva a segregação, incentiva a exclusão, incentiva uma forma antidemocrática de convivência, ferindo a Constituição que privilegia e põe como preferencial a inclusão.

Ensinava André de Carvalho Ramos (Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89), que a  primazia da norma mais favorável ao indivíduo implica reconhecer conforme esclarece a doutrina que

“(...) nenhuma norma de direitos humanos pode ser invocada para limitar, de qualquer modo, o exercício de qualquer direito ou liberdade já reconhecida por outra norma internacional ou nacional. Assim, caso haja dúvida na interpretação de qual norma deve reger determinado caso, impõe-se que seja utilizada a norma mais favorável ao indivíduo, quer seja tal norma de origem internacional ou nacional.”

O direito à educação inclusiva reconhecido com status constitucional impôs ao Estado Brasileiro o dever positivo de sua efetivação por meio da garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. Laís de Figueirêdo Lopes e Stella Camlot Reicher (A inconstitucionalidade do Decreto 10.502/20 sobre a educação especial), em parecer, já expuseram os vícios de tal norma típica secundária.

A conclusão trazida é a que segue:

“A educação inclusiva é um direito público subjetivo; o atendimento educacional especializado não pode substituir o ensino regular; a liberdade de escolha das famílias e de atuação das instituições de ensino encontra limitação no cumprimento da legislação vigente; os princípios da primazia da norma mais favorável, da proibição de retrocesso em direitos humanos e da proibição da proteção insuficiente devem ser respeitados; e atos normativos que versem sobre políticas públicas acerca das pessoas com deficiência impõem a necessidade de sua consulta prévia”.


III – UM DECRETO NÃO TEM PODER DE INOVAR

O Decreto em discussão afronta a Lei nº 9.394 – Lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB) que define educação especial, assegura o atendimento aos educandos com necessidades especiais e estabelece critérios de caracterização das instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial para fins de apoio técnico e financeiro pelo poder público.

Vai além dela. 

O decreto não tem poder de inovação no ordenamento jurídico.

O ministro Toffoli observou que o decreto, que tem por objetivo regulamentar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996), inova no ordenamento jurídico, porque não se limita a pormenorizar os termos da lei regulamentada, mas promove a introdução de uma nova política educacional nacional, com o estabelecimento de institutos, serviços e obrigações que, até então, não estavam inseridos na disciplina da educação do país.

Entre os italianos, Ranelletti, além de outros, entende que o caráter especifico da lei, no sentido material, está na novidade ou modificação (“novità), e não na generalidade, se bem que seja esta uma característica habitual trazida à norma jurídica.

Ranelletti, com razão, nega o caráter de lei às regras que o Estado regula a sua própria atividade, por lhe parecer que não produzam efeito jurídico em relação a terceiros.

Ao lado da generalidade é, sem dúvida, elemento intrínseco, inapartável da lei, a modificação do direito preexistente alterando situações jurídicas anteriores. A novidade de que falou Ranellleti.

Ora, no Brasil, não ocorre no ato administrativo normativo (decreto), mas somente na lei, generalidade e novidade.

Aliás, dita o artigo 5º, inciso II, da Constituição, quanto ao princípio da legalidade e da reserva de lei, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou não fazer senão em virtude de lei.

A lei que se fala é formal e material de modo que é ato normativo oriundo de reserva do Parlamento.

Há, para o caso, uma supremacia e preeminência de lei formal.

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha.


IV – O ATENDIMENTO ESPECIALIZADO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

O ministro salientou que a Constituição Federal garante o atendimento especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, e que, ao internalizar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por meio do Decreto Presidencial 6.949/2009, o país assumiu um compromisso com a educação inclusiva, "ou seja, com uma educação que agrega e acolhe as pessoas com deficiência ou necessidades especiais no ensino regular, ao invés de segregá-las em grupos apartados da própria comunidade".

Essa mesma Convenção, introduzida no Direito pátrio com status de norma constitucional, possui como princípios:

• O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas

• A não-discriminação

• A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade

• O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade

• A igualdade de oportunidades

• A acessibilidade

• A igualdade entre o homem e a mulher

• O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

Trago o artigo 24 da CDPD: “Artigo 24. Educação. 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos: a) O pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana; b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais; c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre. 2.Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que: a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência; b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem; c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas; d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.”

O que é deficiência? A Convenção nos dá a resposta.

“Artigo I. Para os efeitos desta Convenção, entende-se por: 1. Deficiência O termo "deficiência" significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social. 2. Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência a) o termo "discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais”

Busca-se a inclusão. A regra geral é que todos os investimentos e esforços de recursos financeiros, humanos e de gestão de política pública devem ser no sentido de garantir a educação inclusiva no sistema educacional regular. O atendimento educacional especializado, enquanto forma de apoio à inclusão educacional plena, não deve substituir a escola regular que é onde a educação inclusiva acontece. Este compromisso vem sendo cada vez mais reforçado como se verá adiante.

Para tanto, ensinam Romeu Kasuki Sassaki(Artigo 24. Educação. In RESENDE, Ana Paula Crosara; VITAL, Flavia Maria de Paiva. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – Versão Comentada. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008. P. 101):

“A inclusão escolar é o processo de adequação da escola para que todos os alunos possam receber uma educação de qualidade, cada um a partir da realidade com que ele chega à escola, independentemente de raça, etnia, gênero, situação socioeconômica, deficiências, etc. É a escola que deve ser capaz de acolher todo tipo de aluno e de lhe oferecer uma educação de qualidade, ou seja, respostas educativas compatíveis com as suas habilidades, necessidades e expectativas. Por sua vez, a integração escolar é o processo tradicional de adequação do aluno às estruturas físicas, administrativa, curricular, pedagógica e política da escola. A integração trabalha com o pressuposto de que todos os alunos precisam ser capazes de aprender no nível pré-estabelecido pelo sistema de ensino. No caso de alunos com deficiência (intelectual, auditiva, visual, física ou múltipla), a escola comum condicionava a matrícula a uma certa prontidão que somente as escolas especiais (e, em alguns casos, as classes especiais) conseguiriam produzir”.

Ora, um mero decreto não pode superar uma Convenção Internacional sobre o tema.

Também a Lei Brasileira de Inclusão, Lei 13.146 de 2015, assegura e promove, “em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. E diz que toda a pessoa com deficiência “tem direito à igualdade de oportunidades como as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”.

Ao deferir a liminar, o relator verificou que o decreto poderá fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino. Também assinalou que a proximidade do início de um novo período letivo pode acarretar a matrícula de educandos em estabelecimentos que não integram a rede de ensino regular, em contrariedade à lógica do ensino inclusivo.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A educação e a proteção ao deficiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6365, 4 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87189. Acesso em: 28 mar. 2024.