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Ainda sobre a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) - proposta de reflexão crítica

Ainda sobre a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) - proposta de reflexão crítica

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Levará algum tempo para se descobrir quais serão os efeitos concretos das muitas mudanças ocorridas na legislação trabalhista. A certeza que se tem, todavia, é a de que princípios protetivos da classe trabalhadora foram mitigados sem muitos alardes.

Há uma certa percepção generalizada no pensamento social da esquerda que, influenciado pelo “Contribuição à Crítica da Economia Política[1]” (1859) de Marx, crê que irá reduzir o problema do direito a uma mera expressão, ou superestrutura, dos movimentos econômicos. O direito é o reflexo ou projeção da dominação econômica, cuja expressão jurídica mais importante é a da propriedade privada.

Seria a partir da contribuição de Pashukanis, no contexto da Revolução Russa, que se constataria como o Direito, mais do que uma expressão de dominação político ideológica do estado capitalista, está antes no próprio DNA do modo de produção: não é só resultado das alterações societárias produzidas pela indústria, pelo trabalho assalariado e a conformação do estado nacional, mas é elemento que garante a própria reprodução societária capitalista. Neste sentido, o direito tal como o conhecemos, é especificamente capitalista, afirmará Pashukanis. Institutos jurídicos, tais como a noção de sujeito de direito e a existência de um Estado Nacional que garanta segurança jurídica para as operações econômicas, exige que não se reduza o alcance do estudo das leis ao âmbito de sua inserção na história e na sociedade, mas produza também discussões sobre o direito positivo em si.

Certamente, levará algum tempo para se descobrir quais serão os efeitos concretos das muitas mudanças na legislação trabalhista durante o inverno do ano de 2017, no Brasil. Um estudo mais acurado das mudanças legislativas deve ter como premissa o contexto político associado ao golpe de estado e à construção de uma maioria parlamentar que propiciasse a retirada de direitos sem a devida reação dos trabalhadores do Brasil.

A dura e amarga verdade é que o trabalho insalubre a ser exercido pela mulher grávida (art. 394 CLT), a jornada de 12 por 36 igualmente em ambientes de insalubridade, a formalização do bico por meio do trabalho intermitente, ou a relativização do princípio da irredutibilidade salarial (art. 444 CLT), entre outros, foram discutidas, aprovadas e convertidas em lei numa velocidade até então não vista, e sem a reação à altura dos trabalhadores e, especialmente, dos sindicatos. Não houve sequer tempo para que as próprias instituições do estado capitalista assimilassem as mudanças: enquanto, via de regra, a vacatio legis da lei (como no código civil de 2002 ou o código de processo civil de 2015) durou 1 ano, o tempo entre a publicação e vigência da reforma trabalhista foi de apenas 180 dias.  

Ainda que o objetivo destes comentários seja o de discutir a reforma legislativa de um ponto de vista estritamente jurídico, fica evidente como as mudanças procuraram mostrar-se como suposto meio de tolher o desemprego e modernizar as relações no trabalho. Falsificação do problema nos dois casos. Com relação à urgência, observa-se que a mesma esteve longe de atender a reais necessidades de mudanças/reformas, ao menos no que tange aos interesses dos trabalhadores. Para ficar com dois exemplos: o capítulo da CLT acerca de saúde e segurança do trabalho, que disciplina os efeitos do trabalho sob condições insalubres (calor, frio, contatos com radiação, agentes biológicos, etc.), data ainda dos anos 1970, enquanto os estudos sobre o tema avançaram bastante nos últimos anos. Todavia, em nada foram mudadas as normas da CLT. E deverão ser mantidas, inclusive, as resoluções do MTE acerca do tempo de exposição, grau de insalubridade, espécies de agentes associados ao adoecimento no trabalho etc. Por outro lado, o adicional de penosidade do trabalho, previsto na CF/88 no art. 7º XXIII, ainda carece de regulamentação, mas, pelo visto, passou ao largo das preocupações do legislador.

Como se sabe, antes da queda da presidenta Dilma, o governo estabeleceu um movimento sinuoso e equívoco, no sentido de procurar conciliar os interesses entre o governo e os setores da burguesia ainda indecisos quanto à exigência da derrubada pelo golpe de estado. Foi neste contexto em que se deu a nomeação de Levy, um liberal nomeado ministro da economia. O que se esquece é que Dilma igualmente sinalizou ataques que, de certa forma, prenunciaram artigos de lei mudados pela reforma trabalhista. Esteve em pauta no governo uma definição legislativa para tema que vinha sendo tratado pela jurisprudência trabalhista, em face do vazio legislativo – trata-se da possibilidade de ampliação da terceirização, não só desenvolvida na atividade meio, mas agora desenvolvida na atividade fim da empresa. 

Outra discussão que já havia sido encampada pelo governo derrubado envolve as normas das Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho. Até então a negociação coletiva (que é a realizada entre sindicato patronal e de trabalhadores ou entre sindicato de trabalhadores e empresa) não poderia estipular normas com menos direitos do que o previsto em lei. O art. 611-A  muda este panorama:

''Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:

I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;

II – banco de horas anual;

III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;

IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a lei 13.189, de 19 de novembro de 2015;

V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;

VI – regulamento empresarial;

VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho;

VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;

IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;

X – modalidade de registro de jornada de trabalho;

XI – troca do dia de feriado;

XII – enquadramento do grau de insalubridade;

XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;

XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo;

XV – participação nos lucros ou resultados da empresa.

§ 1º No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação.

§ 2º A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico.

§ 3º Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo.

§ 4º Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula compensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito.

§ 5º Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos. ''

Observe-se que a Reforma reitera, em mais de um artigo, o princípio da intervenção mínima à autonomia coletiva. Isto está expresso no art. 8º, § 3º da CLT, igualmente reformado. Pelo requisito, o Judiciário deveria se ater a observar os requisitos formais da norma coletiva de trabalho se omitindo quanto ao mérito. Um sindicato poderia autorizar a contratação de mão de obra infantil, observados os requisitos formais de elaboração da norma coletiva?

Seja como for, ainda no governo Dilma, houve resistência nas ruas, culminando em grandes atos no largo da batata (SP) contra as reformas. Aqueles movimentos não tinham clareza ou convicção de que o governo do partido dos trabalhadores estava em risco, mas, por outro lado, revelaram-se suficientes para intimidar o governo a engavetar o chamado projeto ACE (acordo coletivo especial, apoiado pela CUT), bem como não passar o projeto da terceirização. Por que, então, um pacote de ataques aos direitos dos trabalhadores, desta vez feito por um governo com zero popularidade, foi concretizado com tanta facilidade e sem resistência?

Talvez aqui não haja exagero na afirmação do Juiz do Trabalho, Jorge Souto Maior, de que a reforma trabalhista de 2017 poderia ser reduzida em uma única norma fundamental – fica extinto o direito do trabalho no Brasil. Cobrança de honorários de sucumbência ao reclamante trabalhador, fim da contribuição sindical, possibilidade (ainda que em casos por ora restritos) de arbitragem na justiça do trabalho, a rescisão contratual por mútuo acordo, o fim a ultraatividade das normas coletivas do trabalho que deixam de integrar de forma permanente o contrato de trabalho; ataques ao quanto entendido e sumulado pelos tribunais superiores e regras draconianas de produção de súmulas parecem expressar um movimento inverso na história, de reaproximação do direito do trabalho com o direito civil, do direito processual do trabalho ao direito processual civil, do século XXI ao século XIX. 

Um contrato de trabalho não deveria guardar a mais pálida coincidência com um contrato entre particulares, como um contrato de comodato ou compra e venda. A margem de escolha de um trabalhador face a seu empregador não deveria ser encarada sob o viés do pacta sunt servanda. O princípio protetor que reconhece a vulnerabilidade e hipossuficiência do trabalhador face ao empregador parece ter sido mitigado. Talvez aqui o caso mais emblemático seja o do trabalho intermitente, um bico oficial altamente precarizado em que o empregado registrado não tem assegurado por até um ano o salário, o trabalho e os benefícios previdenciários.

Temos muito o que estudar e averiguar, particularmente sobre os impactos da reforma trabalhista nos tribunais, a postura dos juízes e das cortes superiores com função de unificar nacionalmente a jurisprudência. Muitas normas serão submetidas ao crivo de constitucionalidade pelo STF. Súmulas deverão ser moduladas e canceladas. A única certeza é a de que apenas uma força material que se baseie na mobilização popular poderá reverter a atual situação defensiva do movimento de trabalhadores no Brasil, incluindo a revogação da Lei 13.467/17.


BIBLIOGRAFIA

HOMERO, Batista Mateus da Silva. “Comentários à Reforma Trabalhista” - Ed. Revista dos Tribunais

MARX, Karl. "Contribuição Para Crítica da Economia Política" - Ed. Expressão Popular


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Paulo Henrique de Oliveira Marçaioli. Ainda sobre a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) - proposta de reflexão crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6375, 14 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87370. Acesso em: 28 mar. 2024.