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Breves notas sobre o DIP financing na recuperação judicial após a Lei 14.112/2020

Breves notas sobre o DIP financing na recuperação judicial após a Lei 14.112/2020

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DIP financing é um mecanismo de investimentos em uma empresa em recuperação judicial para custeio de sua operação rotineira, como salários, fornecedores e demais despesas administrativas, e possibilitar seu reerguimento.

Entrou em vigor a Lei 14.112/2020, que alterou substancialmente a lei de falências e recuperação judicial e extrajudicial no país (Lei 11.101/2005) com o objetivo de modernizá-la para potencializar o soerguimento de empresas em crise. Sua aprovação é oportuna porque poderá dar mais fôlego para aqueles que estão sufocados em suas atividades empresariais em tempos de pandemia.

A lei incorporou entendimentos dos Tribunais Superiores, trouxe novidades já incentivadas pela doutrina, modernizou o texto e detalhou antigos e novos institutos.

Para melhor compreensão das novidades, é bom ter em mente que a recuperação judicial objetiva viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Este é o teor do inalterado art. 47 da lei.

Mas a recuperação judicial somente será permitida àquelas empresas que se mostrem viáveis e em condições de recuperar sua atividades. Se seu reerguimento revelar-se impossibilitado, o destino não será o deferimento da recuperação, mas a falência.

A falta de liquidez no caixa é uma das principais causas da crise empresarial, e uma ótima forma de superar a deficiência financeira e planejar seu reestabelecimento é com dinheiro novo (fresh money), por meio de aporte para garantir o giro da atividade.

É nesse momento que entra em cena o DIP Financing, cuja aplicação foi adaptada no Brasil. Esse nome é dado ao financiamento ou injeção de recursos para a empresa superar crise passageira e ter êxito na recuperação judicial iniciada. Sua finalidade é manter o capital de giro da atividade para que possa custear seus funcionários, fornecedores, despesas operacionais e, assim, planejar sua nova gestão para recuperar sua saúde e se manter no mercado.

Mas o que é o tal “DIP”?

Para entender melhor será necessário voltar às origens. Esse instituto norte-americano foi inspirado nas disposições do Chapter 11 do Bankruptcy Code[1] dos Estados Unidos e se trata de uma abreviação da expressão “debtor-in-possession” (devedor em posse, em livre tradução). Pela legislação americana, a partir da distribuição do pedido passa a existir apenas uma massa de bens da empresa em crise (chamado de estate[2]), tornando-se a devedora apenas possuidora de tais bens. A lei permite que esta massa financie suas operações com novos créditos que terão preferência em relação aos anteriores.

Esse tipo de injeção financeira já era possível na legislação brasileira, de forma não expressa, e por isso coube aos Tribunais o aperfeiçoamento de sua aplicação casuística no país.

O uso do nome do instituto no Brasil se dá pelo fato de sua aplicação se dar durante o período em que se tramita a recuperação, em similitude ao rito americano, embora haja notáveis diferenças práticas  - como ausência de “massa de bens” por aqui ou pelo fato de a recuperação americana se encerrar na aprovação do plano, e não no prazo do art. 61 da lei falimentar.

A rigor, por aqui também não há a mudança de propriedade para posse pelo só processamento, como ocorre nos EUA. Apesar disso, a doutrina continua utilizando o mesmo nome para o instituto.

Trazendo para a prática nacional, para o financiamento se tornar atrativo é necessária a criação de garantias e ferramentas para que o agente financiador seja estimulado, o que diminui seu risco e reduz o custo do crédito. Uma forma eficiente de realizar este desiderato é conferir maior privilégio às garantias do financiador para que seu pagamento não seja objeto da própria recuperação.

Em outras palavras, o agente financiador precisa ter prioridade no recebimento de seu crédito para que tenha interesse e certeza de que haverá devolução do investimento mesmo que esteja emprestando a uma empresa em crise.

A importância do estímulo tem outras boas consequências. Mais do que garantir os custeios ordinários da atividade empresarial, o financiamento também é um sinal de que o investidor acredita na empresa, o que auxilia na futura aprovação do plano de recuperação ao conferir confiança aos credores de que há viabilidade na atividade, o que eleva a importância de se aguilhoar esta modalidade de investimento.

O caput do art. 49 , que fora mantido, exclui os novos créditos dos efeitos da recuperação judicial, haja vista que a ela se sujeitam os créditos existentes na data do pedido. Isso permite que o financiador cobre seu crédito imediatamente em caso de não pagamento. Mas isso, por si, não é suficiente para estimular este investimento porque cobrar não é garantia de recebimento.

Além, até a Lei 14.112/2020, os artigos 66 e 67 da Lei 11.101/2005 eram solitários ao tratar sobre esse financiamento, ainda que de forma rasa:

Art. 66. Após a distribuição do pedido de recuperação judicial, o devedor não poderá alienar ou onerar bens ou direitos de seu ativo permanente, salvo evidente utilidade reconhecida pelo juiz, depois de ouvido o Comitê, com exceção daqueles previamente relacionados no plano de recuperação judicial.

Art. 67. Os créditos decorrentes de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, inclusive aqueles relativos a despesas com fornecedores de bens ou serviços e contratos de mútuo, serão considerados extraconcursais, em caso de decretação de falência, respeitada, no que couber, a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei.

Parágrafo único. Os créditos quirografários sujeitos à recuperação judicial pertencentes a fornecedores de bens ou serviços que continuarem a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial terão privilégio geral de recebimento em caso de decretação de falência, no limite do valor dos bens ou serviços fornecidos durante o período da recuperação.

Da leitura do art. 66 se percebe que, após a distribuição do pedido, para oferecer garantias a financiamentos o devedor deverá demonstrar a utilidade da operação e contar com autorização judicial, após ouvido o comitê, ressalvados os casos já relacionados no plano de recuperação.

Por outro lado, do art. 67 e seu parágrafo são extraídos dois estímulos a quem pretende fornecer crédito à empresa em recuperação: o recebimento dos valores fora do concurso de credores (extraconcursalidade) e possibilidade de os créditos quirografários serem reclassificados para créditos com privilégio geral, no limite do montante fornecido.

Apesar de a lei conferir a extraconcursalidade a estes novos créditos, não há relevância na recuperação judicial pelo simples fato de esta prioridade somente ter importância no caso da decretação da falência. Não haveria aplicação dos benefícios enquanto tramita a recuperação.

Em outras palavras, não se trata de uma verdadeira garantia porque o investidor não quer que haja a falência; logo, quem financia não pretende gozar deste “privilégio” porque inexoravelmente pressupõe que a empresa tenha falido, fracassada a recuperação.

Para além, com base apenas no texto legal não haveria como impedir que estes valores investidos fossem utilizados para pagamento dos antigos credores, o que inibe o financiamento.

O que se vê é que a legislação não era suficiente para estimular ou atrair com robustez investimentos durante a recuperação judicial. Por isso, a Lei 14.112/2020 introduziu a Seção IV-A, com o título Do Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial, com os artigos 69-A até 69-F, com a intenção de melhorar seu regramento:

Art. 69-A. Durante a recuperação judicial, nos termos dos arts. 66 e 67 desta Lei, o juiz poderá, depois de ouvido o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos.’

Art. 69-B. A modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta Lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado.

Art. 69-C. O juiz poderá autorizar a constituição de garantia subordinada sobre um ou mais ativos do devedor em favor do financiador de devedor em recuperação judicial, dispensando a anuência do detentor da garantia original.

§ 1º A garantia subordinada, em qualquer hipótese, ficará limitada ao eventual excesso resultante da alienação do ativo objeto da garantia original.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica a qualquer modalidade de alienação fiduciária ou de cessão fiduciária.

Art. 69-D. Caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores de que trata esta Seção, o contrato de financiamento será considerado automaticamente rescindido.

Parágrafo único. As garantias constituídas e as preferências serão conservadas até o limite dos valores efetivamente entregues ao devedor antes da data da sentença que convolar a recuperação judicial em falência.

Art. 69-E. O financiamento de que trata esta Seção poderá ser realizado por qualquer pessoa, inclusive credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo do devedor.

Art. 69-F. Qualquer pessoa ou entidade pode garantir o financiamento de que trata esta Seção mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.

O que se espera é que a inovação possa conferir mais segurança ao agente financiador, barateamento do crédito e estimulo ao aumento de operações. Destacarei alguns pontos iniciais.

O art. 69-A inclui a previsão expressa de financiamento do devedor, com autorização judicial, prevendo garantias ao agente financiador como oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros.

No art. 69-B se garante ao financiador, que de boa-fé já tenha desembolsado recursos, o direito da manutenção da extraconsursalidade de seus créditos ainda que haja modificação por recurso da decisão autorizativa da contratação.

Já o art. 69-C autoriza a concessão de garantias subordinadas sobre ativos já onerados por penhor e hipoteca -  excepcionando a hipótese de alienação ou cessão fiduciárias -, mesmo sem a anuência do credor original.

Também deve ser destacado o teor do art. 69-D que dispõe que caso a recuperação judicial seja convolada em falência antes da liberação integral dos valores de que tratam os artigos da seção, o contrato de financiamento será considerado automaticamente rescindido. Esta novidade foi alvo de críticas em razão do risco de se prejudicar antigos credores. Todavia, o viés teleológico que se deve ter em vista é o estímulo a esta modalidade de financiamento, com o fim de assegurar a viabilidade da empresa, garantindo empregos, ainda que haja algum risco aos antigos credores.

Além, os arts. 69-E e 69-F autorizam que o financiamento do devedor seja realizado por qualquer pessoa, inclusive credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, familiares, sócios e integrantes do grupo do devedor, ao passo que permite que qualquer pessoa ou entidade pode garantir o financiamento mediante a oneração ou a alienação fiduciária de bens e direitos, inclusive o próprio devedor e os demais integrantes do seu grupo, estejam ou não em recuperação judicial.

Por fim, elevando os privilégios, a nova lei alterou o art. 84 para inserir os créditos oriundos de relações da Seção IV-A em segundo lugar da preferência dos extraconcursais (inciso I-B), mantendo a preferência em relação aos créditos classificados ordinariamente no art. 83. Anteriormente os créditos do art. 67 figuravam no último inciso do art. 84 na ordem de preferência dos extraconcursais.

As alterações legislativas sem dúvida modernizam o regramento para fomentar os investimentos em empresas em processo de recuperação, mas somente com o tempo será possível aferir os impactos da nova lei.


[1] https://www.law.cornell.edu/uscode/text/11/chapter-11

[2] Bankruptcy Code. Chapter 11. §1115 (b) Except as provided in section 1104 or a confirmed plan or order confirming a plan, the debtor shall remain in possession of all property of the estate.


Autor

  • Thomaz Carneiro Drumond

    Procurador do Estado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em direito Empresarial, Administrativo, Tributário e Processo Civil. Presidente da Comissão de Direito Processual Civil e da Comissão de Direito Empresarial, da OAB/AC. Advogado Sócio de Drumond Leitão Torres Advogados - http://www.dlt.adv.br . www.linkedin.com/in/thomazdrumond

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DRUMOND, Thomaz Carneiro. Breves notas sobre o DIP financing na recuperação judicial após a Lei 14.112/2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6418, 26 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88124. Acesso em: 28 mar. 2024.