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A penhora do dinheiro e a crise da execução

A penhora do dinheiro e a crise da execução

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Qualquer pessoa que trabalhe com o direito certamente já pode observar e padecer com o alto índice de ineficácia do processo de execução. De há muito é corrente, no vocabulário forense, a expressão "ganhou mas não levou". As partes passam anos debatendo seus direitos no processo cognitivo e, quando finalmente obtém uma manifestação definitiva do Judiciário sobre quem teria razão, se deparam com a total ineficiência do título executivo que conquistaram. Tanto esta situação é verdadeira e arraigada no seio popular que alguns devedores mais experimentados já não se pejam em fazer pilhérias com os credores e com o Judiciário, dizendo, quando ameaçados com uma cobrança judicial, que não vêem problema em "brincar de processo". "Brincando de processo" ¾ esta é a situação em que hoje chegamos.

A situação não é nova, mas certamente agravou-se sobremaneira nos últimos anos. Sobre ela já nos alertava o ilustre J. J. CALMON DE PASSOS, em artigo impagável publicado no COAD - SELEÇÕES JURÍDICAS - ADV - 09/90, pp. 15/20. Neste texto teceu considerações tão lúcidas e tão reveladoras que não me furto de reproduzir algumas. Para o alentado jurista, neste espectro, temos boas leis ¾ poucas modificações deveriam ser feitas ¾ o que nos falta são bons aplicadores, privados e públicos, do direito legislado. Se a lei diz e a realidade social desdiz, fica o dito por não dito. As sociedades não se regeneram via direito, elas é que, porque regeneradas, efetivam um direito digno desse nome, dada sua proximidade da Justiça.

Portanto, se analisarmos o processo de execução apenas pelos seus aspectos legislativos e dogmáticos, veremos que as normas hoje em vigor são bastante razoáveis e não são elas as causadoras do verdadeiro caos de ineficiência e ineficácia que vigora hoje na execução judicial. Falta, sim, uma vontade social, política e econômica de se dar efetiva aplicação a legislação de que hoje dispomos.


Faço esta abordagem preliminar para melhor compreensão do problema que verdadeiramente me motivou a redigir este artigo: o fato de que, não obstante a lei processual civil seja bastante clara, inteligente e prática ao estabelecer uma ordem preferencial de penhora, encimada pelo item DINHEIRO (artigo 655 do Código de Processo Civil e artigo 11 da lei 6.830), raríssimas vezes se vê, no processo executivo, a sua efetiva aplicação.

Lidando como lido, diariamente, com pilhas de execução fiscal, que se acumulam e avolumam em prateleiras e repartições tenho absoluta convicção que a renhida aplicação do dispositivo citado seria eficaz maneira de por fim a milhares de pendengas. Penhorar sim, penhorar dinheiro. Não mais geladeiras, balcões frigoríficos, prateleiras, telhas, madeiras e outras inúmeras quinquilharias que abundam nos processos de execução pelo Brasil afora. Certamente se as fazendas públicas se pusessem a adjudicar todas os balcões e geladeiras que lhe são oferecidos nas execuções formariam, em pouco tempo, o maior frigorífico do mundo. Tal situação não pode persistir. A solução é simplesmente aplicar a lei e penhorar o dinheiro.

Não se trata, é certo, de tarefa fácil. A cultura forense já se habituou à burocrática penhora de toda sorte de tranqueiras que são levadas a infindáveis e sucessivos leilões fracassados. Pelos fóruns do interior, no início das tardes, pode-se presenciar estes inauditos leilões, quando se cruza na porta com algum Oficial de Justiça tartamudeando os editais da praça. Desconheço a situação nas capitais, mas, com certeza, nos foros do interior, com muita generosidade, não mais que 5% dos leilões tem algum sucesso. Em síntese, há um hábito arraigado de não se penhorar o dinheiro, não se dar atenção a ordem preferencial estabelecida em lei, e se fingir que vai dar cabo das execuções por meio dos tais leilões.

No aspecto normativo, parece não haver muita dúvida para se interpretar o que o legislador quis dizer quando estabeleceu que a "...a penhora ou arresto obedecerá a seguinte ordem: I – Dinheiro...". O vocábulo não é dúbio, vacilante ou ambíguo. Assim, na situação ideal, obedecendo a lei, a pedido do credor deveria o Oficial de Justiça dirigir-se ao estabelecimento comercial ¾ a maioria das execuções fiscais diz respeito a estabelecimentos comerciais ¾ e lá procurar e apreender o dinheiro. A localização do numerário não é difícil, normalmente fica no interior da caixa registradora. Curiosamente há casos em que o Oficial de Justiça penhora a caixa registradora, mas não ousa penhorar o que estava dentro dela...

É certo que alguns poderão objetar que o dinheiro que está no interior da caixa registradora não é dinheiro, é faturamento, e que isto iria quebrar a empresa. Pergunto, a estes, então, o que foi que o legislador imaginou quando disse que a primeira coisa a ser penhorada deveria ser o dinheiro. Que o Oficial de Justiça chegaria, por exemplo, na padaria e encontraria uma caixa de sapatos repleta de cédulas sobre o balcão, a disposição da Justiça? Que numa loja haveria cédulas expostas na vitrine a espera de um Oficial de Justiça. Não há outra interpretação possível: a Justiça deve penhorar o dinheiro onde ele habitualmente se encontra: na gaveta da caixa registradora e na conta bancária do devedor. Data vênia, a lei singelamente buscou a simplicidade e a eficácia. A grande maioria das causas são de valores ínfimos, irrisórios, e tivesse o Oficial de Justiça (e o Judiciário) a ousadia ¾ e a retaguarda policial, se necessária ¾ para aplicá-la, não viveríamos este caos executivo que hoje vivemos. Um grande número de execuções estaria solucionado em uma só "penhorada".

Ainda sobre a questão acima, de ser este dinheiro faturamento ou não e se isto irá acarretar ou não a quebra a empresa devedora, que se dirá ao empresário concorrente deste devedor, que paga seus tributos em dia. Será justo que poupar a empresa irregular em detrimento da regular? Devem se perpetuar as distorções que isto gera, um empresário que não recolhe tributos concorrendo com outro que recolhe?

O que talvez explique esta resistência da máquina judiciária a penhora do dinheiro seja o conflito que isto gera, pois afeta diretamente o interesse do devedor em ver a execução perpetuar-se indefinidamente. Alguns componentes do Judiciário ¾ não obstante seja este o órgão responsável por gerenciar e solucionar as lides ¾ têm aversão ao conflito e por isso prefere-se fingir que se incomoda o devedor, penhorando-lhe qualquer bem de pouca liquidez, a fazer valer de imediato o direito do credor.

Citando, ainda, J. J. CALMON DE PASSOS, com relação a crise da execução, poderíamos ficar aqui "...abordando os percalços da avaliação dos bens, sujeita à lei da oferta e da procura das propinas, que a leva para lá ou para cá, ao sabor dos interesses em jogo, e demonstrar como o processo é impotente para formar o caráter dos homens. Poderíamos estudar o problema do depósito dos bens penhorados, essa catástrofe nacional que são os depositários públicos, ou este faz de conta que é a permanência dos bens com o próprio executado. Prosseguiríamos com o estudo dos custos da divulgação dos editais das hasta pública, das mil artimanhas que em torno da alienação judicial são arquitetadas, inclusive pelos profissionais deste mister, que rondam os foros como o abutre ronda a carniça...". Este, contudo, não é o cerne da questão. A origem do problema, como já se disse acima, é mais política que legislativa. Temos boas leis, o que nos falta são bons aplicadores do direito legislado. O advogado deve buscar a penhora do dinheiro. A Justiça deve aparelhar-se e dar retaguarda a seus oficiais para que os mesmos possam penhorar a pecúnia. O devedor deve estar ciente de que, se não andar em dias com suas obrigações, em breve não estará "brincando de processo", mas sim perdendo o seu dinheiro.

A meu ver, a penhora habitual sobre o dinheiro seria um bom início na reversão desta ineficiência que hoje impera na execução. Ou isto ou vamos continuar "brincando de processo"..


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Paulo de. A penhora do dinheiro e a crise da execução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/888. Acesso em: 29 mar. 2024.