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Cabe ao Executivo e não ao Legislativo dizer o que é atividade essencial

Cabe ao Executivo e não ao Legislativo dizer o que é atividade essencial

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Reflexões sobre a aplicação do sistema de freios e contrapesos, à luz de caso concreto: Câmara Municipal de Natal-RN aprovou projeto de lei para tornar a educação atividade essencial.

 I – O FATO

 Surge a notícia de que a Câmara Municipal de Natal, capital do Rio Grande do Norte, aprovou projeto de lei para tornar atividade essencial a educação.

 Trata-se de uma “manobra jurídica” para driblar decretos estaduais e municipais que definem atividades essenciais , para o exercício de poder de polícia, em tempos de pandemia.

Assim como a lei é norma típica primária e o decreto, norma típica secundária, a matéria estaria resolvida, pois, por lei estaria definido o que é serviço essencial para funcionamento em tempos da pandemia da covid-19.

 Mas, data venia, não cabe à lei tratar de assunto de discricionariedade técnica. Tal lugar é dado aos decretos de execução ou executivos, postos nos limites da lei, visando ao exercício da chamada discricionariedade técnica. Assim não cabe à lei tratar de discricionariedade técnica.

 Se a moda pega...


 II – LEI

 Lei, no sentido material, é o ato jurídico emanado do Estado com o caráter de norma geral, abstrata e obrigatória, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva, como já dizia Duguit. Esses caracteres e o de modificação da ordem jurídica preexistente, que decorre da sua qualidade de ato jurídico, como dizia Miguel Seabra Fagundes (“O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário”, segunda edição, José Konfino, pág. 30), se somam para caracterizar a lei entre os demais atos do Estado. Mas entre eles só é específico o da generalidade.

Entre os italianos, Ranelletti, além de outros, entende que o caráter especifico da lei, no sentido material, está na novidade ou modificação (“novità), e não na generalidade, se bem que seja esta uma característica habitual trazida à norma jurídica.

Ranelletti, com razão, nega o caráter de lei às regras que o Estado regula a sua própria atividade, por lhe parecer que não produzam efeito jurídico em relação a terceiros.

Ao lado da generalidade é, sem dúvida, elemento intrínseco, inapartável da lei, a modificação do direito preexistente alterando situações juridicas anteriores. A novidade de que falou Ranellleti.

Ora, no Brasil, não ocorre no ato administrativo normativo (decreto), mas somente na lei, generalidade e novidade.

Aliás, dita o artigo 5º, inciso II, da Constituição, quanto ao princípio da legalidade e da reserva de lei, que ninguém poderá ser obrigado a fazer ou não fazer senão em virtude de lei.

A lei que se fala é formal e material de modo que é ato normativo oriundo de reserva do Parlamento.

Há, para o caso, uma supremacia e preeminência de lei formal.

O princípio da legalidade eleva a lei à condição de veículo supremo da vontade do Estado.

A lei é uma garantia, o que não exclui, como bem se avisa, a necessidade de que ela mesma seja protegida contra possíveis atentados à sua inteireza e contra possíveis máculas que a desencaminhem de sua verdadeira trilha.


 III – A DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA E O PAPEL DOS DECRETOS

Há a chamada discricionariedade técnica, quando, na lição de Oswaldo Bandeira de Mello (Princípios Gerais de Direito Administrativo, volume I, 1980, pág. 310), se tem: “o Legislativo delega ao Executivo as operações de acertar a existência de fatos e condições para a aplicação da Lei, os pormenores necessários para que as suas normas possam efetivar-se. Ela encontra corpo nas atividades estatais de controle. A lei da habilitação fixa os princípios gerais da ingerência governamental e entrega ao Executivo o encargo de determinar e verificar os fatos e as condições em que os princípios legais devem ter aplicação”. Trata-se da Administração explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei.

Trata-se, aqui, para a Administração, de explicar técnico-cientificamente os pressupostos de fato previstos em lei, como explicou Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Sobre os regulamentos administrativos, Coimbra, Almedina, 1987, pág. 58). Essa atividade é operada por meio de aplicação de regras próprias de outro campo do saber, a biologia, a economia, a engenharia, a engenharia, a química, a física, a medicina etc), e não do direito. Lembro que os functores do direito são prescritivos, e os functores dessas outras ciências são descritivos.

Nessa linha, ainda ensinou Jorge Manuel Coutinho de Abreu que a aplicação pelo Executivo “das regras técnico-científicas pode consubstanciar-se numa de duas operações: ou numa constatação pura e simples, indubitável ou exta dos referidos pressupostos de fato; ou, numa avaliação técnica dos pressupostos, igualmente ancorada em critérios conhecidos a priori, mas mais elásticos e que, por isso, podem conduzir a apreciações variáveis num ou noutro ponto, a resultados não inicialmente coincidentes em todos os especialistas, portanto”.

Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (Regulamento e Princípio da Legalidade, pág. 48), esses regulamentos são expedidos com base em disposições legais que mais não podem, ou devem, fazer, senão aludir a conceitos precisáveis mediante averiguações técnicas, as quais sofrem o influxo de rápidas mudanças advindas do processo científico e tecnológico, assim como das condições objetivas existentes em dado tempo e espaço, cuja realidade impõe, em momentos distintos, níveis diversos no grau das exigências administrativas adequadas para cumprir o escopo da lei sem sacrificar outros interesses também por ela confortadas.

Portanto, dizer se esta, essa ou aquela é atividade essencial para fins de funcionamento em pandemia, é matéria da Administração, do Executivo e não do Legislativo, via lei. A matéria se guia via decreto, por regulamento editado pelo Executivo, e de cunho regulamentador, para efetividade no âmbito de um poder de polícia.


IV – A NECESSÁRIA DIVISÃO DE PODERES

Sendo assim, há afronta ao princípio magno, pétreo, da divisão de poderes, pondo em risco a teoria dos checks and balances.

A figura dos checks and balances, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:

Eis, então, a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o cargo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente (O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005).

Afronta-se um sistema de freios e contrapesos.

O sistema de freios e contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.

É mister cuidado e prudência com relação a tais condutas que afrontam o sistema jurídico brasileiro para dar guarida a fortes interesses econômicos que, costumadamente e difusamente, se colocam nas esferas do poder público.

O que se quer dizer é que casos como esses, que já existem, tal como o exemplo da Câmara Municipal de Natal, são ofensivos à Constituição, na medida em que o Legislativo entra em área própria do Executivo, em afronta ao sistema dos freios e contrapesos, essencial para o princípio democrático da divisão de poderes.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Cabe ao Executivo e não ao Legislativo dizer o que é atividade essencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6482, 31 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89381. Acesso em: 28 mar. 2024.