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SUBJETIVIDADE NA APLICAÇÃO DO ART. 28, § 2º DA LEI 11.343/2006 E O ENCARCERAMENTO EM MASSA

SUBJETIVIDADE NA APLICAÇÃO DO ART. 28, § 2º DA LEI 11.343/2006 E O ENCARCERAMENTO EM MASSA

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O presente trabalho aborda a política de drogas e a sua relação com o encarceramento em massa no Brasil, promovendo-se o exame crítico do papel do sistema judiciário nesse processo.

INTRODUÇÃO

 

Sob a atividade do Direito Penal e do sistema de controle penal foram construídas as políticas de drogas durante o século XX, com discursos que se legitimavam usando diversas fontes, como a ética, política, economia e medicina. No Brasil, não foi diferente; a lógica é a mesma e a linha segue sendo punitivista. (DOS SANTOS, 2018, p. 11)

A Lei 11.343/2006 traz em seu bojo diferenciação entre uso de drogas e comércio de entorpecentes, ainda que mantendo uma raiz de punição, pois o Estado insere na lei diversos tipos de condutas para identificar, e, assim, garantir a aplicação de sanções (CARVALHO, 2013, p. 25-30).

Conforme supracitado, dada a quantidade de tipos penais na lei de drogas e suas sanções, aliada à subjetividade no processo de aplicação, cria-se o problema do aumento da população carcerária, sendo necessário verificar não só como se dá esse processo, mas também seus motivos e circunstâncias.

Nessa esteira de pensamento, verificou-se uma maior repressão ao tráfico de entorpecentes e um abrandamento na forma de punir o usuário de entorpecentes. Em decorrência disso, a lei passou a dar aos membros do Judiciário e agentes de segurança pública o poder de determinar se o detido era usuário ou traficante, vindo na maioria das vezes a atribuir ao usuário o enquadramento de posse, e, dessa forma, a imposição da pena de tráfico de drogas do artigo 33 da lei (CARREIRA, 2017, p. 4-9). Essa condição cria uma abertura de aplicação embasada em preconceitos, suposições e ideias preestabelecidas, verificando a relevância social e política desse tema.

Ademais, percebe-se uma elevação periódica do número de encarcerados enquadrados pela lei de drogas. Em decorrência disso, constata-se um colapso do sistema penitenciário, em que na maioria dos presídios há um excedente rompendo o binômio número de vagas e número de presos, levando à superlotação e insalubridade (CARREIRA, 2017, p. 4-9). Isso acaba criando outra discussão quanto à forma como essas pessoas estão sendo colocadas dentro do cárcere e as condições mínimas de higidez das prisões.

Em 2006, foi sancionada a Lei 11.343, que trata da criminalização de tóxicos e, apesar de propor distinção entre usuários e traficantes, continuou a prever penas alternativas para os primeiros e punindo severamente os últimos. Após a entrada em vigor dessa lei, o número de encarcerados no país aumenta demasiadamente. No ano de promulgação da lei, o número de pessoas que eram presas e respondiam por crimes relacionados a drogas era de 15%. Em 2016, dez anos após a sua sanção, essa porcentagem já chegava a 28%, segundo dados do INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2016).

De acordo com o INFOPEN, em dezembro do ano passado o número de detentos em unidades prisionais no Brasil chegou a 755.274, quase o dobro do número anterior à lei de drogas (INFOPEN, 2020). Os fatores que geram essa superpopulação carcerária estão ligados à falta de definição precisa do que é o uso e o que é tráfico de drogas, e também à aplicação disfuncional da norma.

Isso posto, o presente trabalho parte de escritos já publicados sobre o referido tema e também da própria lei promulgada e publicada em 2006, explorando aqui os aspectos do artigo 28, parágrafo 2º e suas contradições, propondo-se a analisar e descrever como esse dispositivo é subjetivo, podendo levar a contradições significativas em sua interpretação.

Após essa descrição, o trabalho vai se centrar na aplicação dessa lei no ordenamento jurídico brasileiro, verificando-se como se dá essa aplicação, a ser analisada com base em trabalhos recentes que desenvolvem informações sobre o tema, incluindo dissertações e/ou teses. Ainda nessa etapa, o interesse é verificar como se dá essa aplicação e como a interpretação das autoridades policiais é motor para a disfunção inerente à aplicação da norma.

Além disso, a pesquisa se proporá a relacionar o aumento do número de encarcerados com as interpretações normativas da lei 11.343, de 2006, com base em documentos oficiais, como o INFOPEN, e ferramentas que podem ser consultadas no site do Ministério da Justiça e Cidadania, a exemplo de dados dos órgãos de encarceramento e registros divulgados. Nessa etapa, o trabalho se propõe a entender e estudar como o aumento do número de encarcerados se relaciona com a interpretação disfuncional da norma.

Nessa linha de raciocínio, a pesquisa analisa o tema, contemplando a lei, os crimes, as penas e, sobretudo, a subjetividade do §2º do artigo 28, e suas controvérsias na separação de usuários e traficantes, e se os magistrados e as agências penais demonstram dificuldades em aplicar a lei de forma homogênea. Além disso, faz-se um paralelo entre essas contradições e o aumento de encarcerados no país.

Portanto, investigar os aspectos subjetivos da aplicação da lei 11.343/2006 e sua relação com o encarceramento desemboca em problemas e questões sociopolíticas, além de desenvolver discussões sobre a estrutura jurídico-penal.

 

ASPECTOS NORMATIVOS DA LEI 11.343/2006

 

A Lei 11.343/2006 criou o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), prescrevendo medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo normas para repressão à produção e ao tráfico ilícito de drogas, definindo crimes e dando outras providências. Ela revogou e substituiu legislação anterior editada no governo militar de Geisel e outra editada no final do governo de Fernando Henrique Cardoso. Conhecida como lei de drogas, é uma norma penal em branco heterogênea, necessitando de complementação por outro diploma legal para que seja possível o entendimento dos limites e das imposições nela colocados, e para que possa dar viabilidade à sua aplicação. Dessa maneira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, que tem por finalidade promover a proteção da saúde da população por meio do controle sanitário, é responsável por atualizar a lista de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial (CARREIRA, 2017, p. 17-18).

O Brasil adota uma política de criminalização de certas drogas baseada numa visão jurídico-penal associada a uma perspectiva médico-psiquiátrica. Neste sentido, a política adotada é a de drogas como problema ou caso de polícia. As ações de combate às drogas vão ao sentido de eliminar esses produtos do mercado, tratando como um fator externo, e não interno da sociedade, como se esse problema fosse um corpo estranho, e não algo vinculado a ela (DE JESUS, 2016, p. 30).

Um diferencial dessa legislação é a diferença entre usuários e traficantes, tendo em vista que o artigo 33 trata da traficância e o artigo 28 trata de usuários. Essa diferenciação tem o objetivo abrandar a penalização do usuário propondo outras medidas, conforme prevê o artigo vigente:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (grifo nosso)

 

Mesmo seguindo essa linha de raciocínio, o § 2º se revela puramente subjetivo e sutil, pois caso a polícia, o delegado ou o magistrado não entenda como consumo pessoal, o artigo aplicado é o 33, que trata de tráfico. Dessa forma, como o parágrafo não define quantidade de substância, isso vai ser decidido com base no entendimento de cada membro ou autoridade policial, abrindo-se espaço para preconceitos e ideias preestabelecidas, haja vista que, dependendo do lugar de apreensão e do perfil do indivíduo, uma apreensão pode se tornar encarceramento.

Um dos pontos principais e sensíveis das políticas de drogas é o papel central da polícia na gestão diferencial das ilegalidades na economia criminal da droga (DE JESUS, 2016, p. 29). Dessa forma, a ausência de distinção entre usuários e traficantes amplia o poder das polícias para definir o tipo de crime. A lei amplia o poder de barganha e negociação da polícia, ao mesmo tempo que lhe confere um papel discricionário, ampliando a arbitrariedade policial, transformando essa decisão e os critérios imprecisos em mercadorias políticas (VERISSIMO, 2010, p. 141).

Ao estabelecer que as condições sociais e pessoais devem ser levadas em consideração na definição do delito, o artigo 28, parágrafo 2º contribui para que fatores socioeconômicos influenciem a definição do tipo penal, muito embora as discriminações e a seletividade policial voltadas aos mais pobres antecedem o nosso tempo histórico. Dessa forma, não causa estranheza que a segurança pública, bem como as políticas penais tenham como alvo privilegiado determinados segmentos sociais (DE JESUS, 2016, p. 30).

A classificação do tipo de infração penal apresenta considerável peso nos flagrantes envolvendo drogas, pois ela irá definir o tipo de pena que o acusado receberá. Se a autoridade policial entender que uma pessoa encontrada com determinada quantidade de drogas estava portando-a para uso próprio, ela será encaminhada à delegacia, onde será registrado um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO); no entanto, se a autoridade policial entender que ela portava droga com o fim de comercializá-la, essa pessoa será presa em flagrante e será elaborado um auto de prisão com base no crime de tráfico de drogas. Essa negociação da classificação do crime é central, pois, dependendo da definição narrada pelo policial que fez o flagrante, a pessoa apreendida responderá por um processo de porte para uso, permanecendo em liberdade, ou, do contrário, será presa, neste caso por tráfico. (DE JESUS, 2016, p. 33).

Os policiais oferecem aos juízes o vocabulário necessário para que eles exerçam seu poder de punir. Os critérios estabelecidos pela Lei 11.343/2006 são genéricos e abertos, dependendo de indícios para conferir sentido à prova na diferenciação entre porte para uso e porte para comercializar.

O artigo 28, parágrafo 2º define que o juiz atenderá a natureza e a quantidade da substância apreendida, além de se atentar ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às condições sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente, conforme expresso no dispositivo anteriormente citado.

Embora a lei exponha que o juiz fará tal definição, na prática é a polícia quem primeiro classifica a conduta do indivíduo, sobretudo porque ela narra as circunstâncias da prisão e diz qual era o local de ocorrência, se conhecido como ponto de drogas ou não; afirma quem estava com a droga ou a quem pertence, alega a confissão informal da pessoa acusada, entre outros elementos que são considerados pelos juízes em suas manifestações. Outrossim, é a polícia quem define quem é usuário e quem é traficante, narrando os fatos como crime ou não e oferecendo ao sistema de justiça criminal os indícios de materialidade e autoria, que são elementos fundamentais para o início de uma ação penal. E, normalmente, os policiais do flagrante figuram como testemunhas no processo de tráfico de drogas, estando no centro e na ponta da incriminação da lei de drogas (DE JESUS, 2016, p. 30-34).

Percebe-se que a questão se divide em desdobramentos para além dos dispositivos da lei, adentrando nas questões sociais e políticas que ela delineia e se propõe a instituir. Para isso, faz-se adequada a abordagem do encarceramento brasileiro, a distinção realizada entre usuários e traficantes e as contradições nesse processo.

 

ENCARCERAMENTO E SUA RELAÇÃO COM A DISTINÇÃO ENTRE USUÁRIOS E TRAFICANTES

 

A política proibicionista tem reflexo imediato sobre o encarceramento. No Brasil essa relação é notória ao analisarem-se os dados do INFOPEN. Esse estudo aponta que dentre os 748.009 encarcerados brasileiros, 200.583 foram condenados ou aguardam pelos crimes previstos na Lei de Drogas (INFOPEN, 2020). Em uma análise mais estrita do levantamento percebe-se que os crimes relacionados ao tráfico de drogas são responsáveis por 26,81% do encarceramento brasileiro (SILVA, 2020, p.113-114).

Visto por outro ângulo, comparando-se a todos os outros crimes das leis penais extravagantes e do Código Penal, o número de encarcerados pela legislação especial relacionada ao tráfico de drogas apenas perde em quantidade para o número de privados de liberdade pelos crimes contra o patrimônio, com o encarceramento de um total de 504.108 pessoas (INFOPEN, 2020).

No entanto, ao passo que se analisa o tipo penal isolado, nenhum outro tipo penal encarcera mais no Brasil de que o de tráfico de drogas. Esse tipo penal do art. 33 da Lei 11.343/06 encarcera no Brasil 151.782 pessoas, alcançando o título de tipo penal que mais encarcera no país. Em segundo lugar, com 102.068 está o tipo de roubo qualificado do art. 157, §2º do Código Penal (INFOPEN, 2016).

Todos estes dados permitem inferir que o tipo penal de tráfico de drogas é o maior responsável pelo encarceramento brasileiro (SILVA, 2020, p. 113-114). Para além disso, Valois (2019, p. 453) explica que a maioria das prisões por roubo, furto e principalmente porte de arma acontecem em virtude do envolvimento da pessoa com o consumo de drogas ilícitas. Segundo esse autor os dados ficam evidentes quando se dividem os encarcerados por gênero; o tráfico de drogas é o crime cometido por 26% dos homens, enquanto entre nas mulheres este número chega a 62% (INFOPEN, 2016). Tendo em vista os dados apresentados é notório que o tipo de tráfico de drogas impacta de forma direta e aumenta o número de encarcerados no Brasil.

Dito isso, é válido ressaltar a subjetividade da lei de drogas brasileira, especificamente o §2, do art. 28 e a sua responsabilidade no número de pessoas privadas de liberdade. Embora a norma tenha trazido a intenção de atenuar o excesso de punitivismo estatal ao prever advertência sobre os efeitos, prestação de serviços à comunidade e obrigação de comparecer a programa ou curso educativo e tenha ampliado o uso de medidas cautelares, não é essa aplicação colocada em prática (RODAS, 2017). A lei 11.343/06 tinha como objetivo distinguir de forma absoluta as figuras do traficante e do usuário de drogas. Enquanto o usuário aparece sendo tratado no título sobre as atividades de prevenção, tratamento, acolhimento e de reinserção econômica e social de usuários e dependentes de drogas, o tráfico figura no título sobre repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas (SILVA, 2020, p. 117-118).

A legislação, ao passo que busca atenuar a punição para o dependente químico, endurece a punição para o traficante. Entretanto, o entusiasmo com os dispositivos legislativos dessa lei logo se dissipou após os primeiros anos de vigência, haja vista que se observa uma distorção total de seus objetivos. Para Rodas (2017), impulsionados pela opinião pública contra entorpecentes e descontentes com a questão de os consumidores não serem presos, policiais, promotores e juízes passaram a enquadrar muitos deles como traficância.    

Essa classificação pode ser feita devido à ausência de critérios objetivos para estabelecer quais quantidades de drogas configuram posse para uso próprio e quais demonstram atividade comercial. A falta de critérios objetivos para tipificação dos crimes de traficância de drogas e de consumo, com o fim de humanizar o tratamento ao usuário, acabou com o julgamento subjetivo de agentes da lei, levando à superlotação de diversas unidades prisionais, aumentando o número de encarcerados.

Como dito anteriormente, uma das principais lacunas da lei é a subjetividade do §2º do artigo 28, restando completa ausência de critérios objetivos para separar a figura do usuário e do traficante, e ntambém o modelo processual penal adotado, que restringe a ampla defesa do réu e o faz ser condenado ainda na delegacia de polícia, carregando a lei características do sistema inquisitório (SILVA, 2020, p. 119-122).

Para Queiroz (2014) no que se refere às drogas não incidem ou só incidem acidentalmente alguns princípios que regem o direito e o processo penal democrático, não protegendo a lei bem jurídico algum ou não o protegendo de forma adequada; crimes são tipificados sem vítima; condutas são criminalizadas por meio de portarias; perigos abstratos são punidos e até atos meramente preparatórios e, além disso, os castigos são aplicados de forma desproporcional. O que distingue os dois tipos penais é que a conduta criminalizada no artigo 28 é a posse de drogas com o objetivo do consumo pessoal, enquanto no artigo 33 o crime é a intenção de expor à venda, oferecer ou entregar a consumo; muito embora o §2 do artigo 28 tente resolver essa problemática, o texto vago perpetua a questão. Isso porque a subjetividade no Direito Penal é algo que pode suscitar interpretações e vieses discriminatórios, indo contra o princípio da legalidade, haja vista que esse princípio busca garantir o mínimo de justiça nos julgamentos penais, sem arbitrariedades.

Segundo Masson (2018), este princípio se encontra previsto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, tal como no art. 1º do Código Penal. É cláusula pétrea. Portanto, ainda que seja excluído do Código Penal, o princípio da reserva legal continuará dentro do sistema penal por força da Constituição. Ele consagra basicamente que a lei, exclusivamente, cria delitos e comina penas, possuindo, assim, indiscutível valor democrático. Dessa forma, esse princípio pode ser interpretado também de forma ampla, com interpretação cristalina e com certa precisão para que não haja arbitrariedades.

Para Bitencourt (2018, p. 91) para que o princípio da reserva legal seja, na prática, efetivo, aplicado e cumpra com sua finalidade de estabelecer quais são as condutas puníveis e sanções cominadas, é indispensável que o legislador penal evite ao máximo expressões ambíguas, equivocadas e vagas. Destarte, uma lei ou artigo que seleciona ou separa pessoas pelas condições da abordagem, pelo estereótipo do abordado e pelo local da abordagem, se o indivíduo é um traficante perigoso para a sociedade e deve ser aprisionado ou se o cidadão é uma vítima do tráfico, um usuário que deve ser tratado com atenção de saúde do Estado se esvazia ou perde seu próprio sentido com esse princípio (SILVA, 2020, p. 123-125).

 

A DISCUSSÃO SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006

 

O artigo 28 da lei de drogas é evidenciado não somente pela sua subjetividade, mas também pela discussão acerca da sua inconstitucionalidade. Esse debate envolve os direitos fundamentais, tais como a liberdade, a intimidade e a vida privada, estabelecidos na Constituição Federal em seu artigo 5º, X, e a limitação do Direito Penal, do direito à saúde pública e das ações que causam autolesão. O início do debate discute a ideia de uma pessoa que consome qualquer substância – lícita ou ilícita – cujo único abalo é produzido na sua própria saúde, tendo, pretensamente, o direito de fazer e decidir sobre sua própria saúde. (SILVA, 2020, p.140-141)

Para o Direito Penal ter legitimidade de intervenção na vida das pessoas, é necessário levar em consideração dois princípios importantes: da alteridade, que diz não haver crime sem lesão que ultrapasse o próprio agente, e o da intervenção mínima, o qual caracteriza o Direito Penal como última ratio, ou seja, somente pode existir intervenção legítima quando as outras áreas do Direito se mostrarem ineficazes (CILENTO; SILVA, 2019, p. 1-2).

Seguindo essa linha de raciocínio, a discussão se destacou recentemente quando a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ingressou com Recurso Ordinário 635.659/SP com repercussão geral reconhecida. Neste recurso o debate é fundamentado no 102, III, “a” da Carta Magna, que prevê a interposição de Recurso Extraordinário em casos em que a decisão judicial diverge de dispositivos constitucionais. 

O caso concreto, que provocou a RE da Defensoria Pública de São Paulo, envolveu apreensão de drogas dentro do Centro de Detenção Provisória da cidade de Diadema/SP. Um detento, que estava recolhido nesse centro de detenção cumprindo pena por assalto à mão armada, tinha três gramas de maconha em sua marmita, restando configurada a posse de drogas para consumo próprio, conforme dispõe o artigo 28 da lei de drogas.  

A Defensoria Pública, representando o detento, interpôs o RE ao Supremo Tribunal Federal, contra o acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP, tendo como principal tese de defesa que a criminalização prevista no referido artigo da lei de drogas transgride o artigo 5°, inciso X, da Carta Superior de 1988, no qual diz que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O Ministério Público, por sua vez, alegou que o bem a ser protegido é a saúde pública, pois o usuário tende a aumentar o vício em todo o ambiente social.

Assim, em agosto de 2015, teve início o julgamento do RE 635.659/SP, tendo como relator o Ministro Gilmar Mendes, que proferiu seu voto pelo reconhecimento da inconstitucionalidade, acompanhado dos ministros Roberto Barroso e Edson Fachin. O quarto voto seria do então Ministro Teori Zavascki, morto em um acidente de avião. O citado ministro, antes de sua morte, pediu vista do processo e este se encontra suspenso. Portanto, é preciso aguardar que sejam aplicados os preceitos do regimento interno do STF para dar continuidade ao referido recurso.

Necessário ressaltar que a discussão sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 não teve início com o recurso da Defensoria Pública de São Paulo. Para Carvalho (2014), a proibição do porte para uso fere direitos fundamentais, ao passo que o sustentáculo da programação punitiva ocorre em dois pontos: ser o delito previsto no art. 28 da lei de drogas e ser a saúde pública o bem jurídico tutelado. Nesse sentido, o discurso de periculosidade presumida do ato e do propósito da lei em tutelar interesses coletivos e não individuais permite que a posse de pequena quantidade seja objeto de incriminação. Ressalta ainda Carvalho (2014) que a impossibilidade de se constatar empiricamente as teses que legitimam o discurso de criminalização decorre, sobretudo, da intangibilidade do bem jurídico, e isso, por si, desqualifica a manutenção da opção proibicionista. Dessa forma, percebe-se que o discurso de proibição, mesmo com a justificativa de bem-estar público ou em prol da saúde pública, não conseguiu legitimar a violação dos princípios constitucionais.  

 

POLÍTICA DE DROGAS E DESIGUALDADES

 

Noutro giro, o Estado policial aumenta e institucionaliza a violência. Para Valois (2018, p. 369), quando a atividade policial não se limita ao essencial e cai no extremo de abranger qualquer pessoa, tendo como pano de fundo, nessa abordagem, as características suspeitas do indivíduo, critérios esses elencados pelos agentes em serviço, o Estado se transforma em um Estado policial. Para além disso, há no país uma inflação legislativa que cria leis penais sempre que se encontra a necessidade de apresentar respostas ou alternativas a algum dilema social, e esse excesso de leis cria um leque de possibilidades de repressão à polícia, impossibilitada de fazer cumprir todas as leis, tendo um arbítrio limitado e recheado de discricionariedade. Acrescente-se a isso o medo retroalimentado na medida em que, embora a sociedade tenha medo da polícia, pede mais polícia, a elaboração de mais leis, mais crimes, mais prisões (VALOIS, 2019, p. 370-372).

A discussão a respeito da impossibilidade da polícia de fazer cumprir todas as leis desemboca em outra questão ainda mais sensível: os alvos da política de encarceramento levam em conta o valor, o nível, as características daquele que está sujeito a ser o suspeito da ocasião, o que está ligado diretamente com a propriedade, com o valor e com o nível da propriedade de cada um. Não é difícil racionalizar esse limite na atividade policial, haja vista que a população pobre, que vive muitas vezes sem assistência básica, nas periferias, negligenciada pelo Estado, desrespeitada em suas garantias e direitos constitucionais, pode facilmente ser vista como um alvo mais vulnerável.

O estado de guerra em que a política de drogas coloca a sociedade, transformando todos em vítimas ou inimigos em potencial, faz da polícia o único símbolo de ordem, e, muitas vezes, é a própria polícia realmente a única representante do Estado em algumas localidades onde há ausência de hospitais, saneamento básico e até mesmo de escolas públicas. A conjugação do poder de polícia, uma vez que dentro da sua discricionariedade há alvos bem definidos, aliada à desumanização de parcela da população, aumenta o descaso para com certas exigências formais em circunstâncias e procedimentos. A lei para a atividade policial na rua é mais próxima de um instrumento de coerção do que um limite a restringir sua conduta (VALOIS, 2019, p. 372-414)

A atividade do judiciário no campo de enfretamento às drogas tem sido de natureza complementar, relativizando princípios, criando dogmas, adotando teorias e ignorando situações de fato, tudo isso em favor de um combate às drogas. O judiciário tem agido como aliado da política de encarceramento, pois ao contrário de diminuir a incidência do tipo penal de tráfico, por vezes o letigima até quando a aplicação se trata de uso de drogas (VALOIS, 2019, p. 426).

As condutas trazer consigo e ter em depósito drogas dentre as que tipificam o crime de tráfico é revelador do interesse estatal em tornar o poder punitivo mais discricionário, e a desnecessidade de comprovação de dolo de comércio por parte da jurisprudência torna a posse de uma substância o aval para que o Judiciário decida se o possuidor pensava, especulava ou tentava com ela praticar uma atividade de comércio (VALOIS, 2019, p. 427).

A presunção de tráfico de drogas por parte da polícia, com a chancela do Ministério Público e do Judiciário, provoca uma verdadeira inversão do ônus da prova, o que se relaciona diretamente com o aumento do número de encarcerados (VALOIS, 2019, p. 428).

Esses são os inconvenientes de um crime, por vezes, criado e forjado. Algo que no máximo seria passível de regulação pelo Direito é transformado em crime, e as adaptações vão sendo feitas de acordo com as circunstâncias, uma vez que os alvos são na maioria das vezes pessoas de pouca renda e baixa escolaridade, aumentando-se ainda mais o abismo da desigualdade no Brasil. Isso se comprova ao pesquisar os dados do INFOPEN (2016). Apesar de ausentes estatísticas sobre a miserabilidade ou pobreza da população carcerária, pode ser evidenciado nos dados que mais de 80% dos presos adultos brasileiros não possuem o ensino médio.  

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É possível ligar a subjetividade de alguns dispositivos da lei 11.343/2006 ao encarceramento, especialmente o §2, artigo 28, à medida que se analisa e discute os papéis das polícias e do Poder Judiciário neste processo, haja vista que ao estabelecer que as condições sociais e pessoais devem ser levadas em consideração na definição do delito, o artigo 28, parágrafo 2º contribui para que fatores socioeconômicos influenciem a definição do tipo penal, cedendo lugar para a seletividade policial e penal.

A classificação feita entre crime de tráfico e uso de drogas, devido à ausência de critérios objetivos para estabelecer quais quantidades de drogas configuram posse para uso próprio e quais demonstram atividade comercial, promoveu o julgamento subjetivo de agentes da lei, o que leva à superlotação de unidades prisionais, aumentando o número de encarcerados de forma vertiginosa. Como afirmado em subitem anterior, dentro de uma perspectiva comparativa, todos os demais crimes previstos em leis penais extravagantes e no Código Penal encarceram menos que o crime de tráfico de drogas.

A subjetividade no Direito Penal acaba por criar interpretações e vieses discriminatórios que destoam do princípio da legalidade, haja vista que esse princípio busca garantir o mínimo de justiça nos julgamentos penais, sem arbitrariedades.

Ademais, o Estado arbitrariamente policial é circunstância que dialoga com a violência, haja vista a existência no país de uma mentalidade de inflação legislativa que cria leis penais sempre que se encontra a necessidade de apresentar respostas ou alternativas a algum dilema social, criando esse excesso de leis um leque de possibilidades de repressão à polícia, ficando esta impossibilitada de fazer cumprir todas elas, imprimindo, por consequência, um arbítrio delimitado e seletivo.

Os alvos da política de encarceramento levam em conta a localidade, os níveis socioeconômicos de cada indivíduo. Esse limite socioespacial e econômico é visto e exercido na atividade policial, haja vista que a população pobre, que vive muitas vezes sem assistência básica, em áreas e bairros não centrais, negligenciada pelo Estado, desrespeitada em suas garantias e direitos constitucionais, é vista como um alvo mais vulnerável, como argumentado anteriormente. Dessa forma, ao lançar críticas ao circuito processo - polícia - prisão, espera-se estimular a quebra de um pensamento repressivo e arbitrariamente punitivo. Essa estrutura punitiva se relaciona diretamente com a guerra às drogas, resultando na deformação e ineficiência de valores maiores ligados à estrutura jurídico-penal.

 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Tarsis Barreto; ARAÚJO, Wdson Ribeiro. SUBJETIVIDADE NA APLICAÇÃO DO ART. 28, § 2º DA LEI 11.343/2006 E O ENCARCERAMENTO EM MASSA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6481, 30 mar. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89409. Acesso em: 29 mar. 2024.