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Presos para experimento humano (testes de vacinas e remédios)

Presos para experimento humano (testes de vacinas e remédios)

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Há uma casta que tem certeza de que NUNCA será presa, porquanto as leis que preveem penas de encarceramento a ela não se aplicam. Costuma defender o endurecimento de penas para uma classe inferior. Humanos, mas inferiores.

Diretrizes, Normas e Leis em Pesquisa em Saúde

Antes de tudo, esclareço, desde logo, que, no Brasil, encontram-se muito bem sedimentadas as diretrizes e normas sobre pesquisa envolvendo seres humanos.

Além disso, todos nós devemos ser uníssonos com a defesa da vida, da integridade física e dignidade da pessoa humana. Visto que a nossa Constituição estabelece que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

A mesma carta da Republica (lei maior) do nosso Brasil, que deveria ser lida por todos, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral.

Ainda nesse tópico, sobre a população presa no Brasil, a Constituição Federal reza que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado. Faço questão de registar ainda, que, às presidiárias, serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.

São apenas alguns dos direitos do ser humano enquanto pessoa presa. Quaisquer desrespeitos a esses princípios, ensejam indenização por parte do Estado ao condenado. O que é igualmente exigido sempre que houver erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença.

Feito o registro desses direitos, a fim de que ninguém os esqueça, vamos à introdução do que pretendemos preludiar.

A velocidade das informações e variedade de temas na contemporaneidade, nos instiga, por vezes, a opinar sobre temas que não dominamos. Seja por falta do conhecimento acadêmico, empírico ou mesmo por limitação intelectual.

Eu mesmo, por dezenas de vezes, fui estimulado pelo cenário pandêmico que vivemos a posicionar-me de forma mais contundente sobre a inaceitável situação governamental que suportamos.

Contudo, em que pese, tanto em minha formação militar, quanto jurídica, haver tido contato com matérias teóricas acerca do tema saúde, como conhecimentos introdutórios à disciplina forense, não me sinto idôneo para falar sobre o tema.

Mas, não são todos que têm esse discernimento. Vemos com frequência pseudos especialistas de temas que nunca tiveram contato, sequer com a introdução teórica ou mesmo leu alguma obra sobre o assunto. São inúmeros os episódios.

E aqui, faço uma humilde recomendação. Quando não souberes o tema, não se atreva a falar sobre, pois quase sempre a repercussão não é a esperada lacração que se pretendia.

A exemplo disto, temos a desastrosa fala daquela que um dia já foi minha “rainha”. Sim, nasci em 1980, logo, na minha infância, a Xuxa era o que tinha de melhor para o mundo infantil.

Em consonância com o que disse acima, a apresentadora Xuxa, de uma tacada só, meteu-se a bancar a especialista em criminologia, segurança pública, direitos humanos e pesquisadora na área da saúde. E, por tabela, arrematou como se fosse uma exímia conhecedora do sistema carcerário brasileiro.

Para quem não está familiarizado com o que aconteceu, vamos ao ocorrido.

A apresentadora Xuxa Meneghel, em 26 de março de 2021, ao participar de uma live às 19h no perfil @instalerj no Instagram da Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), em que deveria tratar do tema “defesa pelos direitos dos animais”, sugeriu que pessoas presas fossem utilizadas como experimentos em laboratórios para, por exemplo, o desenvolvimento de vacinas e remédios.

Segundo Xuxa, ao serem cobaias, os presidiários “serviriam para alguma coisa antes de morrer”.

Não entrarei no mérito sobre o sopesamento entre a importância da vida humana em detrimento da vida dos animais, utilizados para esse fim. No entanto, além da demonstração da total falta de conhecimento sobre o quão grave ela propôs, será que a Xuxa pensou nos sofrimentos de milhares de mães, maridos e mulheres, filhos e filhas, irmãos e irmãs dessas pessoas? Acho que não.

E a resposta é facilmente justificável. Pelo simples fato de que a Xuxa não tem qualquer autoridade para falar desses sensíveis temas sociais. Ouso a dizer que nem mesmo para o tema a que se propões a falar, “direitos dos animais", ela está qualificada para tanto.

De acordo com dados disponíveis na página eletrônica do Conselho Nacional De Justiça (CNJ) [1], a população carcerária brasileira em 2018 era de 711.463 presos, o que coloca o Brasil na terceira posição mundial de maior população de presos. Ao mesmo tempo, há um déficit de 354 mil vagas no sistema carcerário.

De acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, mantido pelo Ministério da Justiça, revelam que mais de 40% dos presos são provisórios. Isso implica dizer que mais de 250 mil pessoas estão presas provisoriamente. Ou seja, não são legalmente culpados.

Pasme, Xu! Ainda mais grave é o fato de que 37% dos réus que responderam ao processo presos, sequer foram condenados à pena privativa de liberdade.

Em parte do vídeo, a Xuxa diz “essas pessoas irão ficar 60 anos presas mesmo” (sic). Só isso já era o suficiente para qualquer acadêmico de Direito cursando o primeiro ano, perceber que ela não tem o mínimo conhecimento sobre as leis brasileiras. Pois, o artigo 75 do Código Penal é claro ao dispor que “o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos”. Recentemente alterado pela Lei nº 13.964, de 2019, para 40 anos, nada mais. Contudo, para os presos da Xuxa, prevalece a primeira opção.

Deixando a indignação de lado, o pretenso pensamento da Xuxa é até compreensível. Vejamos, ela faz parte de uma elite que entende que as leis não foram feitas para eles. No seu imaginário, normas penais são para pobres, pretos e favelados.

Esse tipo de gente jamais aceitaria uma abordagem policial como um procedimento legal, e que faz parte de políticas de segurança pública a ser cooperado por todos.

A Xuxa faz parte de uma casta, que tem certeza de que NUNCA será presa, porquanto as leis que preveem penas de encarceramento a ela não se aplicam. Ela é branca, rica e popular. Pelo contrário, ela defende o endurecimento de penas para uma classe inferior. Humanos, mas, inferiores.

No entanto, essa casta, olvida-se de que, ao contrário do que pensam, as leis são sim, a eles aplicáveis. E todos estão sujeitos ao cometimento de um crime. Por mais “realeza” que sejam.

Cito exemplos clássicos de crimes que qualquer do povo pode cometer de forma displicente. Quais sejam, do alto dos seus carrões, um homicídio na direção de veículo automotor ou um deslise nas informações a serem prestadas ao governo brasileiro, restaria materializado o crime de sonegação fiscal. Fatos que não isentam essas pessoas de ir para uma prisão.

A falta de empatia com o semelhante e esse descaso com a vida humana já foi muito cruel no decorrer da história. Essa faceta não se aplica a seres humanos, independentemente da condição em que se encontrem.

Não haverá leis de povo civilizado que permitam tamanha atrocidades. A história já nos mostrou que prisioneiros (no passado) eram submetidos a uma série de experimentos perturbadores, como foi o conhecido caso do médico alemão Josef Mengele, que chegou a morar por alguns anos em São Paulo. Entretanto, por considerar que não é o espaço adequado, não vou aprofundar-me sobre o tema.

Em outra parte do vídeo, Xuxa critica o “pessoal dos diretos humanos”. Neste ponto é importante esclarecer que esse ramo do direto existe exatamente para minimizar as atrocidades cometidas pelo Estado contra o cidadão.

Ademais, espero sinceramente que essas singelas linhas sirvam ao menos para sensibilizar pessoas que, porventura, nutram empatia pelo abominável entendimento da “ex-rainha dos baixinhos”.


[1] https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/cidadania-nos-presidios



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Valter dos. Presos para experimento humano (testes de vacinas e remédios). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6485, 3 abr. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89444. Acesso em: 24 abr. 2024.