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ESTRATEGIAS ANTIRRACISTAS CONTRA O ENCARCERAMENTO SELETIVO

A Formação humanística dos operadores do direitos

ESTRATEGIAS ANTIRRACISTAS CONTRA O ENCARCERAMENTO SELETIVO. A Formação humanística dos operadores do direitos

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A pesquisa apresenta o encarceramento seletivo como resquício de uma cultura colonialista que reclama uma formação jurídica mais centrada em conteúdos humanísticos.

 

RESUMO: Essa pesquisa bibliográfica apresenta retrospetiva de como a globalização aprofunda as disparidades sociorraciais e exige o fomento de uma produção curricular humanística aos operadores do direito, sob o enforque de que a alienação acadêmica aprofunda as desigualdades e enraíza o racismo. A análise descritiva aponta que as ausências da responsabilidade coletiva das universidades são acentuadas pela falta de representatividade de grupos minoritários. Nesse cenário, a leitura de Gentilli (2006, 2011, 2015), Foucault (2013), Mbembe (2016), Trigueiro (2016) e Borges (2019) dialogam à reflexão do papel universitário na transformação social para combate da necropolítica sobre corpos estigmatizados. Aponta-se que as transformações desejadas ao rompimento da cultura colonialista opressora perpassa pela reforma das grades curriculares com integração dos saberes humanistas em igual peso com as demais matérias tecnicistas e políticas de inclusão das minorias na docência universitária para estagnar discursos vazios.

 

PALAVRA-CHAVE: Necropolítica. Racismo. Humanismo. Direito.

  

SUMÁRIO:  Introdução. 1. Desenvolvimento.; 1.1. Fragilidade socioeconômica do processo de globalização; 1.2. Encarceramento capixaba como necropolítica de segregação racial; 1.3. Formação humanística dos operadores do direito como política antirracista. Conclusão. Referências.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Essa reflexão debate o sistema prisional brasileiro para demonstrar, em pesquisa bibliográfica qualitativa, que a política de encarceramento em massa solidificada em solos capixabas reflete a performance nacional. O estudo apresenta a uma necropolítica consistente na substituição de uma política de bem-estar social para um Estado policial racista e seletista. Essa desigualdade de tratamento reclama um repensar jurídico comprometido com as transformações sociais e a aplicação de uma justiça mais justa.

Explica-se a violência urbana no seio da sociedade, ao apresentar um debate sobre a desigualdade social decorrente de fatores socioculturais a desencadear a ampliação da pobreza em todos os espaços de forma rápida e permanente. Surge daí, uma análise descritiva a indicar uma punição seletiva que etiqueta os corpos de negros e outras minorias.

Expõem-se que a segregação impede a concretização do papel do sistema penal oriundo do Estado Democrático de Direito não limitado à repreensão, mas à pacificação dos conflitos sociais relevantes. Foucault (2013) e Mbembe (2016) contribuem com a reflexão de que o Poder Estatal se coloca como mecanismo de aprofundamento das mazelas sociais.

Apurou-se que o braço do Estado foi, em termos históricos, erguido como instrumento de segregação das massas desfavorecidas. Em decorrência disso, exige-se políticas públicas de intervenção no processo de formação dos operadores do direito para a construção de uma consciência ética e humanística da aplicação normativa.

Antes de discursar o impacto da política do necropoder sobre os corpos negros e o processo de seletividade punitiva estatal a favor de interesses dominantes, o estudo busca a leitura de Gentilli (2006, 2011, 2015) para expor como o processo de globalização acentua a concentração de renda. A assertiva dialoga com Hobsbawm (1995) e se extrai o panorama de desigualdades e desordens a segregar minorias raciais distanciadas do contexto democrático.

A análise aponta que a eclosão do capitalismo, sob forte influência de uma cultura colonialista, perpetua-se por meio do poder estatal como ferramenta de segregação contra as massas desfavorecidas.  O caminho apontado para a mudança desse cenário exige das faculdades de direito, uma inovação pedagógica com aspiração dos saberes voltados a construção de uma criticidade cognitiva humanística de consciência coletiva.

Para tanto, a pesquisa ratifica o papel do professor como um construtor de valores, mas que para isso, necessita da corroboração dos institutos de ensino, a começar com fomento de política de representatividades nos corpos docentes, para a legitimação dos discursos de diversidade e inclusão social positiva.

 

 

 

1.  DESENVOLVIMENTO

 

Traço marcante do contexto histórico-social da sociedade brasileira foi a longa colonização escravista, tendo como seu maior resquício as consideradas sobras descartáveis provenientes de uma abolição que não aboliu, porque segregou e direcionou o mercado de trabalho para políticas imigratórias, objetivando um genocídio paulatino dos negros livres.

Esse processo histórico escravista influenciou, de maneira direta, o contexto das nossas políticas públicas. Tal movimento no rumo da mundialização do capital, produz grande fragilidade social e econômica nas massas populacionais, com tímida garantia dos direitos fundamentais, intensificando, a cada dia, a violência nos diversos espaços da esfera global e local.

Se a ausência de políticas públicas de inclusão positiva dessas comunidades castigadas em termos históricos, não se fez presente, as estatísticas se inclinam a expor um sistema prisional e judiciário elitista, racista e seletista, direcionado a uma segregação estruturada na identidade negra, com altíssima corporização representativa da cor marginalizada.

 

1.1. Fragilidade socioeconômica do processo de globalização

 

O desenvolvimento das forças produtivas pelo processo da globalização em todo o planeta ampliou alcance do capital restrito a um grupo dominante e estagnou a distribuição do poder, riqueza e cultura, com aprofundamento das desigualdades previamente existentes nos Estados Nacionais. Isso se deve ao fato das tendências econômicas externas serem absorvidas pelas estruturas nacionais que se articulam para consolidar processos hegemônicos em curso (GENTILLI, 2011, p. 210).

Tal processo faz convergir ao mercado econômico, uma singular mentalidade e heranças culturais próprias que consome riquezas naturais e humanas sem oferecer nenhuma contrapartida as suas populações. O que se sucede é a ampliação dos processos de desordem, desigualdade, injustiça e miséria, de cuja origem é percebida como desconectada do passado escravagista (HOBSBAWM, 1995).

Com uma política centralizada por sucessivos governos com perfis oligárquicos, as políticas sociais, palpáveis e duráveis, são tratadas com descaso pelos gestores públicos. Evidencia-se, no processo de globalização, profundas segmentações nas relações e estruturas que articularam a econômica, dividindo a sociedade em camadas e raças, delimitando territórios dentro das cidades. Desenvolve-se assim, uma política de dominação e apropriação econômica que localiza os corpos negros na base da pirâmide.

Telles observou esse fenômeno social segregacionista a incidir sobre a trajetória do desenvolvimento histórico do sistema de cidadania brasileira, cujos segmentos mais pobres da população, a presença de um ponto de exclusão é persistente e de difícil reversão. Assiste-se, assim, essa persistência nas profundas e históricas desigualdades sociorraciais, políticas e econômicas, que acabam por influir na dinâmica das relações de classe que se mantêm na história brasileira (Gentilli, 2011, p. 210).

A cooperação desse conservadorismo cultural da política partidária com as inovações tecnológicas e econômicas, mantém no Brasil um jeito particular de dominação de classe/raça, e de organização política com sérias repercussões na forma de condução das relações do Estado com a sociedade. Converge-se, tudo isso, em etiquetando dos indivíduos negros, sobretudo nos aspectos referentes à cidadania.

A tão falada modernização tecnológica fica segregada por conta de um conservadorismo na organização da vida política brasileira que se reproduz nas diversas práticas da vida em sociedade (IANNI, 1996).  Esse regime do atraso impregna até na sistemática social de modo a evidenciar a particularidade da realidade dos brasileiros em relação ao sistema democrático (GENTILLI, 2011).

Evidencia-se que o processo de dominação esta diretamente ligado com os meios socioeconomicos implantados na sociedade, cuja localização racial é hierarquizadas por um padrão europeu dominante. Sobretudo, o esgarçamento e fragilizando a sociedade, principalmente aquelas com pouco, algum ou nenhum acesso aos meios jurídicos.

Para Gentilli (2011), as tentativas de atenuar a injustiça criam o paradoxo de acentuar as desigualdades entre segmentos de pobres no Brasil. Essa política de atenuação da justiça reproduz outras precariedades, como é o caso do aumento dos encarceramentos em massa dos negros, revertendo-se no aumento da criminalidade. Verifica-se um Estado limitado na democracia e que não avança na redução das desigualdades sociorraciais apesar da maturação da Carta Cidadã.

Muito dessa estagnação é devida a uma ausência de reflexões quanto aos erros do passado, fruto de um peculiar jeito brasileiro de colocar as mazelas do período colonial que empurrou vidas negras aos guetos, como um passado remoto e sem qualquer vínculo com as consequências do presente (HOBSBAWM, 1995).

Contudo, o processo histórico influência de maneira direta, o contexto da nossa vida social. Tal movimento no rumo da mundialização do capital produz grande fragilidade socioeconômica na maioria das populações e tímida garantia dos direitos fundamentais, intensificando, a cada dia, a violência nos diversos espaços da esfera global e local.

Diante dessa realidade complexa e contraditória, “[...] as desigualdades sociais tendem a se aprofundar, e a expor de modo um mais acentuado, os interesses que articulam no [...]” (SILVA, 2016, p. 27) processo da acumulação capitalista. As consequências desse quadro são desastrosas na sociedade nacional contemporânea.

A pobreza amplia-se em todo o espaço regional, de forma rápida e “[...] aí que explode a violência urbana” (IANNI, 2001, p. 69), proporcionando várias tensões em todo espaço territorial, “[...] como assassinatos, extermínios, latrocínios, roubos e furtos [...]” (GENTILLI, 2015, p. 21). Desse modo, a expressão da violência representa a grande dificuldade de alinhar a acumulação de capital e a ampliação dos direitos à vida, ou seja, “[...] associar competitividade do capital, democracia e justiça social [...]” (GENTILLI, 2015, p. 25), diante de um cenário que propicia o aumento dos problemas sociais em diversas áreas e demonstra grandes dificuldades nas tentativas de redistribuição de renda nas relações sociais.

É notório dizer que “[...] a pauperização, a exclusão, as desigualdades sociais – são decorrências das contradições inerentes ao sistema capitalista, cujos traços particulares vão depender das características históricas [...]” (PASTORINI, 2010, p. 101) de cada região brasileira.

São nítidos os avanços na redemocratização no país com a Constituição Federal de 1988 ao estabelecer um sistema descentralizado e participativo, com ações integradas entre as esferas públicas e a sociedade, para assegurar a proteção social. Contudo, precisa-se, ainda, percorrer um grande caminho em face do pleno exercício da cidadania cujo acesso não seja delimitado por inclusão e exclusão padronizadas.

Presencia-se uma distância dos princípios dos direitos humanos fundamentais propagados pela Carta Magna e as práticas políticas desaguando em uma na realidade socioeconômica e racial desigual das regiões nacionais. A cada dia vivenciam-se dificuldades de garantir a universalização dos direitos sociais para a população negra, sobretudo, em situação de vulnerabilidade social.

Esse contexto desafiador é a chama atrativa para a elaboração de políticas alinhadas aos direitos humanos, com o foco de superar as múltiplas problemáticas sociais do cenário contemporâneo. Objetiva-se a promoção de manifestações coletivas em face do respeito a vida e a dignidade de todos os indivíduos, raças e etnias. Pois, o direito à vida “[...] não significa apenas não matar essa pessoa com violência, mas também, dar a ela a garantia de que todas as suas necessidades fundamentais serão atendidas [...]” (DALLARI, 2004, p. 36).

Com efeito, o direito à integridade física é compreendido sobre o enfoque de preservação do ser humano de qualquer violência, em especial, pessoas acusadas de cometer uma transgressão, conforme apuração dos fatos, “[...] deve sofrer uma punição, mas do modo previsto em lei e sem agredir a dignidade humana [...]” (DALLARI, 2004, p. 38).

Na verdade, o direito à liberdade é para todos, e faz parte da necessidade humana. “[...] Para que uma pessoa tenha direito de ser livre é necessário que possa escolher o seu modo de vida e planejar o seu futuro [...]” (DALLARI, 2004, p. 43). Contudo, as oportunidades são desiguais e as circunstâncias da realidade contraditória nas relações sociais. Nessa perspetiva, trata-se de criar e desenvolver consistentes estratégias de políticas públicas específicas para superar a turbulência no ambiente prisional.

Dessa forma, observa-se necessário um movimentar de reflexões e debates sobre as políticas públicas em todas as esferas (nacional, estadual e municipal) para oferecer soluções mais adequadas ao contexto e obter resultados mais satisfatórios no presente e no futuro. Precisa-se garantir o acesso universal aos direitos e abertura de oportunidades na mudança de vidas para reduzir os índices de violência em todo país, sem que o sistema reproduza desigualdades sociorraciais.

Tal contexto sinaliza a transformação do sistema prisional com interface nos diferentes sistemas e políticas públicas para articular ações que norteiam a garantia dos direitos e a inclusão social. Reforçar ações de desenvolvimento humano e de cunho preventivo para evitar o reingresso na criminalidade. Realizar as devidas orientações e os encaminhamentos necessários.

Pode-se dizer que as questões que envolvem o cenário prisional indicam emergência de reflexões e debates na esfera política, econômica e social para avançar no exercício da cidadania, melhorar os indicadores de desenvolvimento social e racial, e reduzir a violência em todo o país.

Precisa-se do Estado e da sociedade conectados “[...] às concepções modernizadoras e emancipatórias que veicula, para facilitar a emergência de condições cotidianas [...]” (GENTILLI, 2006, p. 201).

Faz-se necessário um repensar constante das políticas públicas no sentido de oferecer soluções mais adequadas aos sujeitos de direitos na realidade social, visto que o sistema descentralizado e participativo contribuiu para o conhecimento mais profundo da esfera local e oportunizou ações mais rápidas de prevenção e superação dos problemas sociais.

Tal afirmação, parte da indispensabilidade de recepção de novas vertentes de saberes. A princípio, essa virada se justifica porque espaço educacional é o local privilegiado do fazer e do acontecer das ações socioassistenciais, na medida em que se constitui a instância mais próxima da população despossuída dos recursos essenciais à vida.

Como forma de minimizar os desafios contemporâneos e a  violação dos direitos humanos, o poder público precisa: fortalecer parcerias com a sociedade, para garantir o exercício de toda a legislação conquistada; nortear o processo estratégico na garantia de direitos e inclusão social; garantir sintonia com a realidade de cada região para obter o engajamento do poder público e da sociedade em prol do comprometimento com à vida.

Primordial para tanto, que haja um esforço da gestão pública e da sociedade no remanejamento das ferramentas constitucionais postas à serviço da redução das desigualdades sociais, cujo foco de segregação de acentua na mesma medida de acentuação da tonalidade da cor da pele.

Para Da Silva e Lima (2020), “[…] umas das peculiaridades do Estado Democrático de Direito, como é o caso da Nação Brasileira sob a égide da Constituição Cidadã de 1988, é a implementação dos direitos sociais focados no alcance da igualdade material.” (DA SILVA E LIMA, 2020, p. 142). Com essa assertiva, as autoras advertem que a falta de uma mínima noção de igualdade afeta não apenas grupos moídos pela segregação, mas atinge todo o coletivo contaminado pela ausência do discernimento de solidariedade na construção da democracia:   

Dentro do constitucionalismo democrático da nação brasileira, os influxos dos movimentos políticos devem atuar na garantia plena e na defesa dos direitos das minorias por meio de mecanismos que garanta parcela do poder a todas as camadas sociais, sem discriminação (DA SILVA; LIMA, 2020, p. 143).

 

Todavia, o contexto social e econômico da população brasileira sofre impacto nocivo de um processo histórico colonizador. Com isso, os direitos e garantias fundamentais do cidadão sofrem privação de solidariedade coletiva e ausência de visão humanística por parte dos profissionais do direito. O elitismo judicial impede que esses profissionais se imponham de forma interativa, como agente responsável por uma mudança da hermenêutica jurídica mais inclinada pela consciência do social.

Mas para isso, faz-se necessário uma compreensão dos fatores socioculturais, econômicos e históricos que impulsionaram o Poder Constituinte Originário a instituir garantias aos operadores do direito. Garantias, sem as quais, tornar-se-ia inviável uma transformação em direção ao bem comum.

Com esse espírito, o artigo 133 da Carta Política (BRASIL. 1988) estabelece ao exercício da advocacia, caráter de indispensabilidade na administração da justiça. Nos limites da profissão, os atos e manifestações do advogado são considerados invioláveis, constituindo-se em garantia de liberdade de expressão e independência à militância da defesa dos cidadãos.

 

1.2. Encarceramento capixaba como necropolítica de segregação racial,

 

          O levantamento nacional de informações penitenciárias atualizadas até junho de 2017 (BRASIL, 2019) indica a densidade negra do encarceramento no pais. Afonso (2019) traça esse levantamento da população prisional demarcada por cor e etnia, constatando que 45,38% das pessoas privadas de liberdade no país são de cor parda que somadas a 16,49% de encarcerados de cor preta. Somados pretos e pardos, totalizam-se 61,6% de negros a representar a população carcerária nacional 

Wanderley (2018) critica o encarceramento no Brasil como um sistema seletivo desde a produção legislativa - primeira fase de individualização racial; perpassando em uma identificação discriminatória na sentença e rotulação executória; sempre, segundo ela, com reforço dos escolhidos do cárcere por recortes de raça/classe, que identifica uma massa carcerária, pelo enjeitamento racista demarcado pela densidade da cor.

Sob o recorte da Justiça Criminal, a Autora denuncia uma postura elitizada de um sistema em “[…] que é mais cômodo ao juiz justificar uma condenação ao indivíduo pobre, negro e da periferia do que ao estelionatário branco e morador em áreas mais bastadas.” (WANDERLEY, 2018, “n.p.”). Nessa assertiva, a Lei de Drogas encabeça o encarceramento racista e se volta como uma brecha seletiva perigosa de criminalização dos negros e pobres. Compreender os meandros dos aprisionamentos é a chave para combater o daltonismo racial do cárcere negro. Pensar em sistema prisional brasileiro leva a corporização racial que descarta corpos negros.

Em pesquisa do encarceramento proveniente da Lei de Drogas na Grande Vitória, Estado do Espírito Santo, Miguel (2019) menciona que das sentenças por ele analisadas na Comarca de Vila Velha – ES “[…] nenhuma delas era em decorrência de apreensão de drogas em bairros de classes média e alta” (MIGUEL, 2019, p. 140). Chama a atenção que nas entrevistas feitas com os magistrados no que se refira a casos de ações penais que envolva públicos de classe média/alta, a maioria absoluta não se lembrou de um único caso a exemplificar.

À exemplo, Miguel (2019) menciona um magistrado que por 20 anos na Comarca de Vila Velha, lembrou de apenas um caso de ação penal incidindo na Lei de Drogas a envolver uma pessoa de classe média/alta. Outra menção foi de um militar a lembra a apreensão contra um cidadão classe média/alta porque “[…] ‘as peculiaridades da abordagem foi preponderante para que lembrassem’ […].” (MIGUEL, 2019, p. 140). Escancara-se, assim, a raridade que é, no contexto policial, uma revista para apreensão de drogas nas classes mais privilegiadas. 

A pesquisa de Miguel (2019) aponta nítida seletividade penal quando os magistrados capixabas declaram nas entrevistas, os critérios utilizados por eles, para diferenciar o usuário do traficante de drogas, cujo maior destaque de aferição considerada é o local da apreensão. Nesse critério, consideram se a pessoa esteja ou não, presente nos considerados pontos de tráfico, diga-se, e leia-se, na visão dos juízes entrevistados, como os bairros periféricos. 

Nas entrevistas, uma juíza declara que na análise de classificação usuário/traficante, considera um morador da Praia da Costa ou da Praia do Canto (bairros privilegiados da Metrópole capixaba), apreendido em locais com intenso tráfico de drogas (diga-se, periferia) e dada as circunstâncias de o cidadão apreendido encontrar-se fora do local dele, ser um usuário comprando para o sustento do vício.

A saber, Miguel (2019) reporta que “[…] no imaginário dos Magistrados ao falarem de ‘local de intenso tráfico’ e que estes são aqueles bairros periféricos.” ((MIGUEL, 2019, p. 145). Contudo, denuncia o Autor: nos chamados “locais de intenso tráfico de drogas” (bairros periféricos), existem também moradores usuários, mas são nessas análises, considerados traficantes. Ao passo que o morador favelado apreendido em um bairro nobre portando drogas constitui-se na figuração do traficando.

Destarte, Miguel (2019) indica que a criminalização direcionada de forma intensa contra a população capixaba de baixa renda, tendo no seu Judiciário uma ferramenta de maximização do controle social negativo das favelas, por conta das sequelas histórico-escravista. Nessa linha, escancara o aparato estatal do Estado do Espírito Santo localizado a serviço de uma necropolítica, cuja ação penal é uma violência direcionada a segregar e discriminar pobres periféricos, usada como instrumento de dominação a perpetuar a marginalização das raças colonizadas. 

Essa preocupação faz com que Trigueiro (2016) considere a propositura de uma ação penal contra uma pessoa, um ato de violência, sendo indiferente, se a coação seja ou não justa. O autor demonstra preocupação com a crescente explosão da (in) justiça em torno do aumento de processos penais e encarceramentos, relatando vários exemplos de casos em que a ação penal não justifica, como: 

 

Um homem de meia-idade foi preso em flagrante pela polícia por crime ambiental. Seu ato: cortar um pedaço do caule de uma árvore na cidade de São Paulo. Conduzido à delegacia para a autuação, disse que estava cortando o pedaço do caule para fazer um chá para sua esposa, que estava doente. Costumava fazer isso desde moço. Aprendeu a receita com sua mãe no interior, onde ainda morava. (TRIGUEIRO. 2016. “n. p.”).

 

Ponderando sobre as causas de aumento da litigiosidade e do furor repressivo, Trigueiro (2016) apresenta a questão: houve de fato e, até que ponto, um aumento da criminalidade? Ou não seria que é a máquina legislativa fabricando leis com o objetivo de impressionar o público, sob os holofotes da mídia? O certo é que, como aduz o autor, o aumento das leis penais é o equivalente ao acréscimo das repressões legais e do encarceramento em massa. O que nem sempre representa diminuição da violência. Ao contrário, o encarceramento em massa divide famílias e cria uma série de crises sociais que fermentam instabilidades gerando um caldeirão de conflitos prestes a erupção de revoltas com desestabilização da paz social.

Massi (2016) adverte que a prisão cautelar no Brasil é uma regra, quando deveria ser uma exceção em um Estado Democrático de Direito: “O axioma fundamental da excecionalidade da prisão provisória é apenas uma garantia formal, desmentida pela realidade brasileira.” (MASSI. 2016. “n. p.”).

Ressalta-se que essa violência é direcionada aos bairros periféricos de densidade negra. Com isso, o criminalista demonstra essa preocupação com a cultura do encarceramento em massa por parte do Poder Judiciário brasileiro, apresentando que estudos da Secretaria Nacional de Juventude registrou, entre 2005 e 2012, um aumento de 74% da população carcerária. O autor levanta que essa população é composta em maior parte, por jovens negros, com ensino fundamental incompleto.

Di Giorgi (2017) levanta questões a teor do encarceramento americano que muito bem, pode se colocar com infeliz encaixe, no cenário brasileiro onde o poder do estado carcerário acaba por distorcer sua finalidade de propiciar segurança, desencadeando em mais desigualdades socioeconômicas que segrega raças e classes. Colocando o Estado a serviço da marginalização dos corpos negros nos espaços delimitados, prestes a explodir em revoltas e inseguranças.

O Autor aponta que a população carcerária é, em regra, selecionada pela cor e pela classe econômica, cuja demolição já não se faz suficiente aos olhos da elite. Constituindo-se em um eficaz depósito das mazelas sociais e produção, e reprodução, de discriminação com direito de extermínio:  

A presença ubíqua da prisão nas vidas de jovens de cor desprivilegiados inevitavelmente lança a rede do estado pena sobre suas famílias – destruindo casamentos, incapacitando pais, traumatizando filhos, empobrecendo parentes que devem lidar com os altos custos de se ter alguém atrás das grades. (DI DIORGI. 2017. “n. p.”).

Gianberardino (2019) reporta que os aprisionamentos brasileiros oscilam em torno de um pequeno número de tipos penais como furtos e roubos. Denuncia que o excesso e desnecessário encarceramento reproduz crescente deficit de vagas, e resulta em superlotações que inviabilizam políticas de educação e, até mesmo, de controle pelo Estado, de suas unidades prisionais. 

A exemplo, a colunista Mônica Bérgamo (2020) reporta um fato corriqueiro dos aparatos judiciais a serviço da discriminação das classes marginalizadas, ao noticiar que a Ministra Rosa Weber negou liminar a um jovem que furtou dois shampoos de R$10,00. Tratava-se de Habeas Corpus pedindo a substituição de prisão para outra medida alternativa.

Por conta dessa alta carga de litigiosidade a refletir um desnecessário encarceramento em massa, Trigueiro (2016), ressalta a importância do papel do jurista, convocando aos profissionais do direito a se desviarem da formação eminente técnica, para que que devam atuar com “[...] uma visão mais eclética, mais humanística da sociedade.” (TRINGUEIRO. 2016. “n. p.”). 

O autor demonstra particular preocupação com os reflexos da punição seletiva que entrava, e impede, a concretização do verdadeiro do papel do sistema penal, cuja missão não se limita à repreensão, mas à reabilitação social. Todavia, o braço do Estado vem se servindo como instrumento de segregação de massas desfavorecidas com o entiquetamento racial. 

Foucault (1999) denuncia que um Estado racista se constitui no poder soberano de assassínio do corpo social, onde “A destruição das outras raças é umas das faces do projeto (FOUCAUT, p. 310). No caso do Brasil, Borges (2019b) confirma essa assertiva ao denunciar uma população carcerária brasileira que não é multicultural, e é subjugada por uma cultura judicial de criminalização das relações sociais.

Mbembe (2016) teoriza que em termos fourcatianos, o “[…] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder ‘aquele velho direito soberano de morte’ […]”  (MBEMBE, 2016.  P. 128), a serviço da ampliação do domínio sobre as massas catalogadas como indesejáveis, ficadas em uma estruturação racista. Segundo ele, não se pode falar de biopolítica sem mencionar a escravização que estruturou o nosso sistema político, no qual a soberania consiste na capacidade de poder definir “[…] quem importa e quem não importa, que é ‘descartável’ e quem não é.” (MBEMBE, 2016.  p. 135). 

Com isso, Mbembe (2016) considera que sob uma leitura fourcatiana, os mecanismos do biopoder “[…] é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte […]” (MBEMBE, 2016.  p. 146), e consistem no exercício do direito de matar. Refere-se aqui, a morte no sentido mais amplo, cujas segregações dos corpos negros são etiquetados e segregados dos direitos fundamentais. Essas marginalizações consistem na negação da humanidade a determinados grupos, e em uma higienização institucional das presenças consideradas indesejadas. 

Esse controle sobre os corpos negros marginalizados, com a soberania dada ao sistema político de deixar viver ou morrer, limitar e selecionar para fins de controle e segregação que Mbembe (2016), questiona os limites da soberania, conceituado o um necropoder como as várias maneiras pela qual são implantadas pelos grupos dominantes, as subjugações de vidas indesejadas, negando-lhes as suas humanidades. 

Borges (2019a) denuncia que “[…] os lugares subalternizados com licença para matar ‘têm endereço e densidade negra’. ‘A polícia não toca o terror, como a gente costuma dizer, em espaços considerados de elite’ […]. A autora considera que racismo, capitalismo e necropolítica se sustentam mutuamente. 

Barros “et al.” (2019) fizeram um estudo das expressões necropolíticas para ao final, expor que o necropoder opera-se partindo da “[…] produção ficcional do inimigo e da destituição do estatuto político de certas existências descartáveis no contexto neoliberal.” Trata-se, pois, de uma tecnologia de extermínio, social, racial e cultural, de grupos marcados para morrer, onde os marcadores de desigualdades são desumanizados pela intolerância do sistema penal punitivo que se manifesta no encarceramento seletivo. 

Com essas ponderações, podem-se constatar que o encarceramento em massa se faz voltados aos corpos negros, e também, naqueles que fogem do padrão heronormativo dominante. Essa prática seletiva, possui um viés segregatício positivado pelo Estado, e é repleto de cenários da miséria impulsionada pelo sistema prisional como reprodutor da segregação e da marginalização desses grupos vulneráveis. 

Não só as favelas, como também as prisões, podem ser vistas como “zonas de morte” produzidas nas malhas do necrobiopoder. Sobre o sistema penitenciário, Rodrigues (2006) destaca que esse sistema sempre foi caracterizado pela superlotação e a falta de investimento público. As condições precárias têm sido um efeito perverso, ou seja, a formação de um projeto necropolítico da aniquilação de vidas descartáveis. A intensificação e criminalização da população jovem, negra e pobre reforça esse sistema de descartabilidade. (BARROS “et al.” 2019. P. 481)

Dadas essas questões, Barros “et al.” (2019) retificam que o encarceramento é uma face perversa da necropolítica sobre corpos racializados e estigmatizados como descartáveis, para os quais a tortura e violações dos direitos fundamentais foram banalizados e sujeitados a uma demanda crescente de punições seletivas. 

Os autores registram que o encarceramento em massa se fez mais ostensivo no mesmo período em que a população pobre e negra teve acesso a algumas políticas sociais, saindo a extrema pobreza, mas agora, massacrados pela política criminal em um processo de higienização e exclusão dos corpos marginalizados. Evidencia-se a política carcerária à serviço da demarcação de reserva do mercado e dos privilégios aos grupos dominantes.

Para Borges (2019b), o quadro se revela mais preocupante ainda, diante da constatação de que 55% da população prisional é composta por jovens, categoria que representa 21,5% da população brasileira. Alerta-se que mantidas as políticas de encarceramento no ritmo que se apresenta, em 2075, uma em cada 10 pessoas estará em privação de liberdade no Brasil.

 

1.3. Formação humanística dos operadores do direito como política antirracista

 

Todo esse discurso se volta à necessidade de enfatizar a importância de uma formação humanista dos operadores do direito, a fim de que sejam municiados dos argumentos que levem ao entendimento das engrenagens que estruturam a opressão, sob o manto de uma justiça tecnicista, que é voltada para segregação e desigualdades sociorraciais.

O contexto social e econômico da população brasileira sofre impacto nocivo de um processo histórico colonizador. Com isso, os direitos e garantias fundamentais do cidadão sofrem privação de solidariedade coletiva e ausência de visão humanística por parte dos profissionais do direito. O elitismo judicial impede que esses profissionais se imponham, de forma interativa, como agente responsável por uma mudança da hermenêutica jurídica mais inclinada pela consciência do social.

Nesse ângulo, demonstra-se fundamental a interdisciplinaridade das áreas de conhecimento com bagagem teórica que se permita uma visão crítica na atuação litigante porque o distanciamento da magistratura da realidade social, impõem aos juízes, a política do inimigo imaginário. Segundo Miguel (2019), para os promotores e magistrados, os “locais de intenso tráfico de drogas” são aqueles inseridos nas classes de baixa renda. Com essa perspetiva, e considerando que crimes como furto e tráfico são os mais numerários no encarceramento, pode-se entender o porque dos aprisionamentos seletivos.

Há uma dissonância da realidade que se avista nos magistrados, delegados e promotores, quando no julgamento de pessoas do seu mesmo grupo social, ocorre aí, uma identificação que gera empatia. Miguel (2019) menciona que das 77 sentenças por ele estudadas, apenas três foi processada por crime de tráfico em áreas nobres da região Metropolitana. Isso gera no imaginário dos juízes que alguns crimes se tratam de condutas delitivas típicas de pobre, porque não consideram as diferenças históricas da persecução penal dos crimes praticados pelas classes altas, como se o crime fosse um privilégio de classe.

Consoante Spagnol (2015), há um sentimento que o Judiciário não é capaz de responder as mínimas expectativas para as resoluções dos conflitos, posto que distanciados da realidade social, relegam seu papel de democratização do acesso à justiça. Agrava-se uma alienação das questões sociais por parte dos operadores do direito que acabam por se formatarem em instrumento de segregação das classes raciais.

Danadello (2006) aponta que o acesso à justiça, antes de ser uma questão jurídica é um enigma da ordem social que só se efetivará na medida em que esforços produzidos pelos estudos jurídicos forem somados a uma política de formação humanística dos profissionais que se encarregam da promoção desse acesso.

Há muito, os reclamos por uma política de fortalecimento dos direitos fundamentais invocados por movimentos de luta, para os quais a constituição de direitos, sem garantia, é inócua. Danadello (2016) registra que a formação jurídica no Brasil é infiltrada de um positivismo legalista e mecanicista, cujos juízes transmitem em seus julgados suas vivências e tendências ideológicas com frágil formação humanística, voltado mais a técnica do que a ética. 

Para o autor, o aprendiz do direito passa cinco ou seis semestres de vida acadêmica dedicada ao processo civil e dois semestres compreendendo o texto constitucional. Ocorre o que ele denomina uma inversão de valores, cujo preparo valoriza mais os direitos patrimoniais do código civil do que os direitos humanos.

Com essa assertiva, Danadello (2006) levanta que embora caiba ao operador do direito amenizar “[…] epidemias referentes ao mundo dos fatos […]”, a falta de um bom preparo, coloca esse agente de transformação da sociedade, em situação de contaminado pelo vírus da alienação ligadas às questões socioeconómicas e raciais. Esse alheamento das questões sociais e raciais são potencializados pelos concursos, cujos candidatos mais adequados são selecionados pelo viés tecnicista. 

Decorre dai, a necessidade de uma reestruturação da grade curricular jurídica com maior extensão aos estudos dos direitos humanos e suas garantias e demais ciências sociais, frente a atemorização de as faculdades de direito transformarem-se em meros cursos de legislação, sem enfatizar a real missão do profissional, a saber:

 

A necessidade de mudar é ululante. […] Os cursos de direitos têm que deixar de serem cursos de legislação; reclamam pela interdisciplinaridade, buscando sua verdadeira essência social. […] a sua formação formalista, tecnicista, positivista ao extremo enfim, já não se compatibiliza aos tempos atuais. Deve-se dar ao ingresso a chance de despertar para a nova realidade jurídica, social, cultural, política, econômica em que vivemos.

Para tanto ele próprio deve despertar para a verdadeira essência do Direito que não é e nunca foi uma ciência técnica, exata, mas sim ciência humana e social (DANADELLO, 2006, “n.p.”).

 

Assim, Danadello conclui que os atores do Direito, manipuladores da engrenagem jurídica, são voltados a uma burocracia fria e distante da finalidade social de luta pela igualdade, dignidade da pessoa e acesso à uma ordem jurídica justa. Em não havendo uma mudança urgente desse panorama, o que surge é uma “(de)deformação” humanística a assolar a Instituição Judiciária em uma crise de credibilidade, porque cada vez mais distante das realidades sociais, e desacreditadas pelas massas, com sérios riscos de perda de legitimidade.

À vista disso, na classe advocatícia concentram-se os agentes de transformação da dinâmica social. O advogado é o contato direto e imediato com o necessitado do amparo jurídico em cujas mãos são depositadas as confianças e destinos, os segredos mais profundos. Mais que os demais, esse militante deve ser afinado com a essência mais pura da profissão, zelando pelo amparo técnico, mas, em principal, pela postura ética com seus constituintes.

Vasconcelos (2019) ressalta que o advogado criminalista é estigmatizado como um profissional que busca a impunidade e defensor de bandidos; sendo um obstáculo para a busca da justiça para as vítimas. Essa visão injusta impede o julgamento justo com a aplicação do devido processo legal, pois o agir do advogado é um múnus público que exige prerrogativas para a garantia do seu exercício, entre os quais, ressaltam-se:

 

“comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis” (BRASIL. 1994).

 

Todas as garantias inerentes ao exercício da advocacia foram constituídas para reprimir atitudes autoritárias dos agentes estatais. Vasconcelos (2019) afirma que não te trata de violação das prerrogativas dos demais profissionais como policiais, juízes e promotores, porque a defesa é essencial a justiça. Destarte, quando o advogado atua em prol do seu constituinte, atua em nome da própria sociedade da qual estes, defensor e defendido, fazem parte.

Por conta da incumbência atribuída à atuação jurídica na defesa dos direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 reservou à OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, um caráter social de peso, com representatividade nos interesses da sociedade. Esse fato, por si, já reclama urgentes políticas de formação humanista dos operadores do direito, e, em especial do advogado.

Ressalta-se que desde 2009, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ determina aos postulantes para cargos jurídicos da administração pública avaliações quanto a sua formação humanística. Para Maciel (2012), essa medida visa que “[...] profissionais que tenham condições de fazer sólida análise da sociedade, com efetiva compreensão das relações humanas tanto no âmbito global como no âmbito regional.” (MACIEL, 2012, “n. p.”).

Todavia, disciplinas como sociologia, filosofia, ética e teoria geral do direito, não levam o mesmo grau de atenção que aquelas de caráter técnico da área jurídica porque não possuem peso equivalente na avaliação. Precisa-se que cursos de direito ministrem, com mais valor, temas de caráter humanísticos com viés sociais e raciais, sem os quais, as concretizações da dignidade das pessoas emperram numa atuação meramente tecnicista do operador do direito.

Outra questão a impactar da alienação dos profissionais do direito é discutida por Da Silva e Lima (2020). Trata a questão, da ausência de uma representatividade da população negra nos campos acadêmicos, tanto nos quadros discentes quanto docentes. Para as autoras, essa lacuna torna-se “[…] obstáculo para que as universidades cumpram seu múnus de condutor de inclusão racial. […] seu papel na construção da democracia e valorização da identidade nacional pluralista.” (DA SILVA; LIMA, 2020, p. 149).

Com essa visão, Da Silva e Lima (2021) desperta a atenção para um dos grandes gargalos que desemboca na resultante ausência de uma visão humanística na formação universitária a afetar de forma aguda, a atuação dos operadores de direito. Refere-se a invisibilidade de grupos minoritários dentro dos campos acadêmicos seguindo-se, com isso, no desperdício de uma rica identidade pluralista para a formação de um caldeirão cultural.

Ferreira (2018) também expõem essa necessidade de entrada de mais pessoas negras na docência de cursos de mestrado e doutorado e denuncia que a maior representação acadêmica observada nos centros universitários é de docentes homens e brancos. Com esse perfil patriarcalista eurocentralizado, a carência de pesquisadores com lugar de fala para questionar as questões raciais fica evidente.

Nota-se na ausência de representatividade racial, a naturalização do não-lugar dos negros nos terrenos intelectivos e, em outra ponta, a estigmatização desses grupos como sujeitados ao controle social. Nesse ambiente de elitismo, a formação multicultural e multidisciplinar com percepção dos problemas e conflitos sociais fica a dever.

Uma das consequências dessa ausência é a lacuna de conscientização humanística com a carência de disciplinas voltadas com especial atenção para os direitos coletivos e princípios constitucionais com a mesma atenção que se dedica as matérias referentes ao patrimônio privado.

Pereira (2013) critica a proliferação de instituições de ensino jurídico sem uma preocupação com a qualidade e os atributos dos profissionais ingressos no curso e de seu papel na sociedade contemporânea. Para o autor, o educado do direito tem a atribuição de desenvolver o trato do fenômeno social e jurídico, com a missão de despertar a sensibilidade humanista referente aos estratos sociais marginalizados. E nesse momento que se faz presente o papel do jurista.

Finalizando, Danadello (2000) ressalta que embora a condição de valorização da carreira desestimule o docente, este precisa ser agente da defesa civil, e tem o dever de resgatar seus alunos da corrupção, desenvolvendo seus lados humanísticos. E isso só se faz por meio da transmissão e internalização de valores éticos e morais. De modo que essa formação leve o alunado, a uma maior consciência de sua profissão jurídica e da responsabilidade dele para com as engrenagens dos problemas sociorraciais.

 

3. CONCLUSÃO

 

As reflexões aqui trazidas evidencia que as políticas publicas desenvolvidas pelo Estado são centralizadas em um discurso próprio de dominação. Essa dinâmica é trabalhada por um processo seletivo de pessoas e na negativa dessa exclusão evidente dos indivíduos, tanto de forma socioeconómica quanto racial, dos anseios sociais. De certa forma, a globalização oferece as classes menos favorecidas o encontro com o submundo das periferias e encosta das cidades.

Com essa atmosfera, não é de se surpreender que as universidades joguem no mercado jurídico, ano a ano, um corpo de operadores jurídicos sem a menor percepção das responsabilidades sociais atribuídas as carreiras jurídicas e sua incumbência de missionar inclusão social positiva. O ensino jurídico praticado não passar de um mero tecnicismo que acentua as disparidades socioeconômicas e raciais ao invés de visar a educação como processo de transformação humana.

Sem uma visão de solidariedade conduzida de forma ética e profissional, os operadores do direito não se põem de forma interativa como agente responsável por uma mudança da hermenêutica jurídica mais inclinada pela consciência do social. Somente com essa conscientização da responsabilidade social da advocacia pode se avistar ao bom remanejamento das prerrogativas necessárias à atuação dos advogados no manejo do cumprimento da lei.

Depreende-se dessa análise descritiva, que uma das deficiências na formação humanística nos cursos de direito é resultante tanto da falta de conscientização do papel social das universidades na transformação social, quanto na ausência de representatividade racial na docência universitária que torna vazios os discursos pró-inclusão.

No entanto, mesmo neste ambiente contraditório e conflituante, é importante resgatar e refletir as conquistas do passado para respaldar o processo de lutas sociais em defesa da garantia de direitos de inclusão social positiva. Cabe movimentar debates, consensos e organização social para garantir investimentos na rede de proteção social, de forma qualitativa e quantitativa.

Nessa diapasão, o Estatuto da Advocacia, se bem remanejado por profissionais cientes do papel social do operador do direito, exerce importante função concretização de acesso a uma justiça com equidade. Foi com essa finalidade que o Constituinte Originário previu a munição dessa norma garantidora das prerrogativas necessárias para que o advogado possa operar a defesa dos direitos fundamentais.

Para tanto, urge que a pedagogia humanista ocupe novos saberes, construindo espaços em um ensino jurídico voltado à construção de um novo operador do direito mais comprometido com as conjunturas sociais e capacitados ao uso do direito como ferramenta de justiça e equidade, sem os quais não se viabilizam a democracia efetiva.

 

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