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Aspectos de validade e constitucionalidade da emenda constitucional

Aspectos de validade e constitucionalidade da emenda constitucional

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Não é raro encontrar normas constitucionais elaboradas pelo poder constituinte originário em conflito com as normas constitucionais elaboradas pelo poder constituinte derivado. Como resolver essa aparente antinomia?

INTRODUÇÃO

As Constituições são feitas para perdurar, regendo as estruturas, situações, comportamentos e condutas que a interpretação do Constituinte teve como aferidas aos valores de convivência social dentro da comunidade a que se referem. A permanência de determinada ordem constitucional depende de fatores extrínsecos e de fatores intrínsecos. Os primeiros são de ordem política, sociológica e psicológica; os segundos são técnicas jurídicas criadas pelas próprias normas constitucionais, destinadas a assegurar sua estabilidade. [01]

Friedrich Müller afirma que as constituições modernas objetivam fundamentar, justificar, limitar a figura jurídica de uma nação. Disso resulta a sua propriedade mais importante: no âmbito nacional a Constituição é a norma suprema, hierarquicamente superior a todos os outros atos do Estado e a todas as relações jurídicas na sociedade. [02]

Inobstante se pretenderem eternas, as Constituições não são imodificáveis. Daí a competência atribuída a um dos órgãos do poder para a modificação constitucional, com vistas a adaptar preceitos da ordem jurídica a novas realidades fáticas. [03] Por força dessa reforma se criam normas constitucionais.

A nossa Constituição conferiu ao Congresso Nacional a competência para elaborar emendas a si. Deu-se a um órgão constituído o poder de emendar a Constituição. Como este poder não lhe pertence por natureza, primariamente, mas, ao contrário, deriva de outro, é que se lhe reserva o nome de poder constituinte derivado. Nas palavras do ilustre professor José Afonso, trata-se de um problema de técnica constitucional, já que seria por demais complicado convocar o constituinte originário todas as vezes que fosse necessário emendar a Constituição. Por isso, o próprio poder constituinte originário instituiu um poder constituinte reformador. No fundo, o agente da reforma é o poder constituinte originário, que, por esse método atua de modo indireto, pela outorga de competência a um órgão constituído para, em seu lugar, proceder às modificações na Constituição que as alterações da realidade exigem. [04]

Com a edição dessas modificações surge um problema para o aplicador da norma constitucional. Não é raro o caso de se encontrar normas constitucionais elaboradas pelo poder constituinte originário em conflito com as normas constitucionais elaboradas pelo poder constituinte derivado. Como resolver essa aparente antinomia? [05] Esta é a pergunta a que nos propomos responder neste trabalho monográfico.

Em diversos pontos foram encontrados obstáculos à elaboração de uma teoria completa e coerente, mas esperamos tê-los superado satisfatoriamente.

O trabalho se inicia com um breve estudo sobre o poder constituinte derivado e sua amplitude e limitações. Segue com uma rápida explanação sobre o processo legislativo para aprovação de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC). Concluiremos mergulhando a fundo no problema trazido à baila, levantando aspectos de validade e constitucionalidade que envolvem a entrada em vigor de uma Emenda Constitucional.


1. PODER CONSTITUINTE E PODER CONSTITUINTE DERIVADO

O Poder Constituinte, para Canotilho, se revela como uma questão de poder, de força ou de autoridade política que está em condições de, numa determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição entendida como lei fundamental da comunidade política. [06] De forma correlata, Sahid Maluf o define como uma função da soberania nacional: é o poder de constituir e reconstituir ou reformular a ordem jurídica estatal. [07]

Canotilho ainda acrescenta que, atualmente, só o povo pode ser considerado o titular do Poder Constituinte, e que este é entendido como uma grandeza pluralística tomada em sentido político, ou seja, grupos de pessoas que agem segundo ideais, interesses e representações de natureza política, plurais, convergentes ou conflitantes. [08] Ainda segundo o festejado doutrinador luso, o conceito de povo político não reconduz à idéia de povo ativo no sentido de minorias ativistas auto-proclamadas em representantes do povo e agindo por "consentimento tácito" deste (concepção "realista" de povo). O povo plural também não se identifica ainda com o "corpo eleitoral" ou o "povo participante nos sufrágios" tal como possa ser definido pelas leis ou pela Constituição. Este conceito normativo de povo parte da idéia de que "o povo não pode decidir sobre ‘coisas políticas’ enquanto não se disser juridicamente quem é o povo". O povo seria definido por uma norma jurídica ou por uma decisão exterior a ele mesmo. Confunde-se o povo com os "titulares" de direito de sufrágio ou com "eleitores", sendo certo que na grandeza pluralística de povo cabem outros elementos individuais não enquadráveis no povo eleitor. Pense-se num sistema restritivo quanto à idade de sufrágio para compreendermos a redução do povo operada por um conceito normativo. Conclui que somente o povo real – concebido como comunidade aberta de sujeitos constituintes que entre si "contratualizam", "pactuam" e consentem o modo de governo da cidade –, tem o poder de disposição e conformação da ordem político-social. [09]

Uma vez editada uma Constituição já surge a possibilidade de se alterá-la. Tal possibilidade de reforma é exercida pelo chamado poder constituinte derivado. Este poder é jurídico, em oposição ao originário que é poder de fato. [10]

No texto promulgado em 05 de Outubro de 1988, o constituinte pátrio optou por fixar a possibilidade de sua reforma (art. 59, I e 60 [11]) e revisão (art. 3º ADCT); sendo inseridas em seu texto uma série de limitações à tramitação e matérias passíveis de serem alteradas pelo poder constituinte derivado, que serão vistas mais detalhadamente nos capítulos seguintes.

Canotilho ensina que a constituição garante a sua estabilidade e conservação contra alterações aniquiladoras do seu núcleo essencial através de cláusulas de irreversibilidade e de um processo agravado dos processos de reforma. Acrescenta que não se trata de defender através destes mecanismos o sentido e características fundamentais da constituição contra adaptações e mudanças necessárias, mas contra a aniquilação, ruptura e eliminação do próprio ordenamento constitucional, substancialmente caracterizado. Para ele, a idéia de garantia da constituição contra os próprios órgãos do Estado justifica a constitucionalização tanto do procedimento e limites de reforma, como das situações de necessidade constitucional. [12]

1.1 Revisão constitucional

Por meio do art. 3º dos ADCT [13] foi estabelecida a possibilidade de revisão constitucional após transcorridos cinco anos da promulgação da Constituição. O momento e a conveniência política da realização desta revisão ficaram à discrição do Congresso Nacional, que achou por bem proceder com a revisão tão logo se deu o decurso do prazo aludido.

Uma vez realizada a revisão, não se vislumbra, a princípio, a possibilidade de realização de uma outra [14], uma vez que o texto constitucional somente previu a realização de uma única revisão. Como norma transitória, foi aplicada, esgotando-se em definitivo.

A primeira diferença que se nota entre esta manifestação do poder constituinte derivado e a emenda constitucional é em relação ao procedimento de votação. Diferentemente da emenda, na revisão constitucional o quorum de aprovação é de maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional reunidos em sessão unicameral, em clara referência aos moldes da Assembléia Nacional Constituinte.

Discute-se quais seriam os limites dessa revisão. Uma corrente [15] defende, ante a inexistência de previsão em contrário, a ilimitação do poder de revisão. Uma outra [16] – majoritária – defende que, por analogia, a revisão estaria adstrita aos mesmos limites impostos à emenda constitucional (art. 60, §4º). Uma terceira [17] ainda defendia que a revisão somente poderia ocorrer se alterado o sistema ou forma de governo por meio do plebiscito previsto no art. 2º do ADCT, porém esta posição nos parece insustentável pela simples falta de suporte, não havendo qualquer texto normativo que leve a tal entendimento.

Por óbvio, ao menos por enquanto, tal discussão é estéril.

1.2 Emenda constitucional

O poder reformador é corporificado pela emenda à Constituição, que é atividade criadora de norma constitucional submetida a limitações impostas pelo constituinte originário e de competência do Congresso Nacional.

A emenda constitucional é, enquanto projeto, um ato infraconstitucional. Somente quando ingressa no sistema normativo passa a ser preceito constitucional, da mesma estatura daquelas normas postas pelo constituinte originário. [18]

Sendo produzida versando conteúdo determinado, ou melhor, não defeso, e segundo uma forma determinada pelo constituinte, a emenda constitucional ingressa no sistema alçando-se à condição de norma constitucional.

Nunca é demais ressaltar que o projeto de emenda só pode converter-se em norma constitucional se obediente a processo legislativo especialmente previsto e abrigando conteúdo não destoante do texto constitucional. Por conseguinte, se uma emenda constitucional trouxer modificação, por exemplo, do sistema tributário, vulnerando princípios, ou em desobediência à forma determinada para sua produção, não se admite sua introdução na constituição. Se vier a ser introduzida, é passível de declaração de inconstitucionalidade. [19]

No esteio das opiniões exaradas pelos ilustres professores Celso Bastos e Manoel Gonçalves, o professor Paulo Bonavides, ardoroso defensor da Democracia Participativa, propõe o uso de referendos a fim de dar legitimidade popular às Emendas. [20]

1.3 Legitimação popular

Celso Bastos, em artigo de sua lavra, apontou a necessidade de uma nova revisão constitucional, tendo em vista a extrema rigidez de nosso texto constitucional, as diversas modificações que se fazem presentes e o ritmo acelerado de produção de emendas constitucionais. A revisão constitucional ocorrida em 1993 foi notoriamente sub-utilizada, passando ao largo das mudanças estruturais de impacto que cada vez se mostram mais necessárias.

Ressalte-se ainda que não se pode descurar dos aspectos jurídicos que tal proposta traz consigo. É comum observar que a doutrina considera cláusula pétrea implícita o quorum de deliberação de reforma constitucional, e, portanto esta não poderia ser alterada. O saudoso mestre apontou com particular brilhantismo que, em havendo aprovação popular direta, não há nada que não possa ser alterado na nossa Constituição, haja vista que todo poder emana do povo, como a própria Constituição coloca em seu art. 1º, parágrafo único. O Poder Constituinte está sempre adormecido nos braços do povo e, a qualquer momento, poderá ele ser despertado. [21]

Sieyès, o abade francês tão caro aos constitucionalistas, já defendia em tempos revolucionários que o poder popular está acima de qualquer norma positiva que se possa invocar. Em suas palavras, "uma nação é independente de qualquer formalização positiva, basta que sua vontade apareça para que todo direito político cesse, como se estivesse diante da fonte e do mestre supremo de todo o direito positivo". [22] E acrescenta que "qualquer que seja a forma que a nação quiser, basta que ela queira; todas as formas são boas, e sua vontade é sempre a lei suprema". [23]

Já entre os doutrinadores pátrios, Pontes de Miranda concluiu que "o que o art. 1º, segunda alínea, da Constituição de Weimar, quis dizer foi que a soberania está no povo; isto é, qualquer que seja o poder estatal, inclusive o de constituição e emenda ou revisão da Constituição, está no povo". [24]

Ninguém nega que a Constituição é do povo. Os que defendem o Poder Constituinte originário dizem que é preciso defender os ditames estabelecidos por este, pois são conquistas populares, obtidas através dos representantes populares reunidos em assembléia. Mas o que dizer quando o povo clama por mudanças? Vai se proteger o produto popular do seu próprio titular? Tal entendimento é, sobretudo, ilógico. O argumento que se arrima no fato da Constituição ser intangível e ter algumas de suas cláusulas petrificadas por respeito à vontade popular acaba por fundamentar a posição inversa.

Sieyès, ardoroso defensor da legitimidade popular que era, dizia que se quisermos ter uma idéia exata da série das leis positivas que só podem emanar da vontade da nação (do povo), podemos ver em primeira linha as leis constitucionais que se dividem em duas partes: umas regulando a organização e as funções do corpo legislativo; e outras determinando a organização e as funções dos diferentes corpos ativos. Essas leis ele chama de ‘fundamentais’, não no sentido de que possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada parte, a Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar nada nas condições de sua delegação. É neste sentido que as leis constitucionais são fundamentais. As primeiras, as que estabelecem a legislatura, são fundadas pela vontade nacional antes de qualquer constituição; formam seu primeiro grau. As segundas devem ser estabelecidas por uma vontade representativa especial. Desse modo, todas as partes do governo dependem, em última análise, da nação. [25]

Destarte, se a vontade popular é que legitima a inalterabilidade de algumas cláusulas constitucionais, ela (e somente ela) pode autorizar alterações. Assim, Celso Bastos defendeu que, uma vez aprovada uma nova Revisão, através de consulta popular, não há argumentos que sustentem a ilegitimidade de tal feito. Não se pode opor a Constituição àquele que a legitima. [26] O povo existe antes de tudo, ele é a origem de tudo. Sua vontade é sempre legal, pois é a própria lei. [27]

Ainda, de acordo com o pensamento de Rousseau, o soberano (o povo – donatário do poder constituinte), sendo formado pelos particulares que o compõem, não tem nem pode ter interesse contrário ao deles. [28]

É certo, pois, que o Poder Constituinte originário afastou do Congresso Nacional (poder constituído) a competência para alterar certas disposições constitucionais. Mas isso não significa que também o fez perante o povo. A Carta não retira do povo a possibilidade de alterá-la ou substituí-la. A soberania popular não é um poder constituído e, conseqüentemente, limitado juridicamente, mas é força anterior e superior a este. Quando a Constituição faz referência a este não está criando-o, mas tão somente reconhecendo-o. Tanto por meio duma interpretação sistemática da Carta, invocando o princípio da soberania popular, quanto por uma realidade lógica e histórica, não se pode acusar de inconstitucional ou ilegítima a propositura de um novo período revisional fundamentado em consulta popular. [29]

Neste mesmo sentido segue o ensinamento de Manoel Gonçalves, defendendo a possibilidade de se permitir uma revisão ampla através de uma emenda constitucional, chegando mesmo a defender a relativização das chamadas ‘cláusulas pétreas’. Ressalta ainda que o plebiscito defendido por Celso Bastos é juridicamente irrelevante e desnecessário, inobstante sua força política, uma vez que se trata de mera consulta, não possuindo força impositiva. [30]


2. PROCEDIMENTO LEGISLATIVO DO PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL

Assim como nas demais modalidades de normas jurídicas, também o processo de criação de Emenda Constitucional está sujeito a um processo legislativo.

Os aspectos gerais deste processo, ou procedimento como preferem alguns, estão delineados no próprio texto constitucional que determina a quem cabe a iniciativa da proposta, o quorum de aprovação e o modo pelo qual o novo texto normativo é inserido no ordenamento constitucional.

2.1 Iniciativa

Têm iniciativa do Projeto de Emenda à Constituição: o Presidente da República (art. 60, II); os Deputados e Senadores, devendo a proposta ter assinatura de 1/3 dos membros da Casa (art. 60, I); ou mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, cada uma manifestando-se pela maioria relativa de seus membros (art. 60, III) [31].

José Afonso defende que, através de uma interpretação sistemática do texto constitucional, a iniciativa também pode ser do povo, levando-se em conta que todo poder emana dele, sendo exercido pelo mesmo por meio de representantes ou diretamente (art. 1º, parágrafo único), e que a soberania popular será exercida também por referendo e iniciativa popular (art. 14, II e III). [32]

De acordo com o ensinamento de Rousseau, abraçado por nossa Carta Constitucional, o povo é soberano e súdito ao mesmo tempo. Por um lado, a limitação de reformar a constituição foi auto-imposta pelo povo, na condição de soberano, que se obrigou a respeitá-la, na condição de súdito. O ilustre pensador ressalta que o indivíduo não pode invocar a máxima civilista de que ninguém está obrigado aos compromissos assumidos consigo mesmo. Aqui, o indivíduo não se obriga somente perante si mesmo, mas também perante o todo do qual faz parte. Acrescenta ainda que o soberano, como entidade coletiva, não pode ser obrigado em face si mesmo, sendo contra a natureza do corpo político impor-se o soberano a uma lei que não possa infringir. Assim, não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo. [33]

Tornar essa auto-limitação rígida a ponto de não poder ser alterada ou eliminada pelo próprio soberano seria por demais absurdo. A vontade do povo, como origem da vontade constitucional, está acima desta e não comporta esse tipo de limitação.

Logo, acompanhando o professor José Afonso, deve-se entender que é cabível a iniciativa popular para propor um PEC, utilizando-se os mecanismos já previstos no próprio texto da Constituição. [34]

2.2 Tramitação

A Constituição se silencia em relação a em qual Casa deverá se iniciar a tramitação do Projeto de Emenda Constitucional. No entanto, este não parece ser um problema de maior complexidade.

Em sendo a iniciativa de uma das Casas legislativas, inicia-se a tramitação na mesma. Sendo a iniciativa do Presidente da República, o melhor entendimento é de que, em paralelo ao art. 64, caput – que trata deste tema no âmbito das leis ordinárias –, a tramitação se inicie na Câmara dos Deputados. Na pouco provável hipótese de ser apresentado projeto pelas Assembléias Legislativas estaduais, a melhor solução parece ser a de que deva ser iniciada a tramitação pelo Senado Federal, que é a casa que representa os estados federados (art. 46).

Tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal o processo de deliberação e votação dos PEC é feito de forma semelhante, sendo que no Senado é ligeiramente mais complexo. Inobstante, pode-se resumir desta maneira: a proposta de emenda é primeiramente encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça, que se pronuncia sobre sua admissibilidade. Admitida a proposta, é designada uma Comissão Especial para o exame do mérito da proposição, sendo possível a apresentação de emendas [35]; ao final será proferido parecer. Então a proposta é submetida a dois turnos de discussão e votação em plenário, devendo haver um intervalo de cinco sessões entre os turnos. [36]

Considera-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos, 3/5 dos votos dos membros de cada uma das Casas (art. 60, §2º).

A matéria constante de PEC rejeitado ou havido por prejudicado não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (art. 60, §5º).

Enquanto perdurar intervenção federal, estado de sítio ou estado de defesa, o art. 60, §1º determina que a Constituição não poderá ser emendada. Em uma compreensão mais superficial seria possível dizer que o PEC poderia tramitar normalmente mesmo durante a vigência das situações elencadas no §1º, ficando somente sobrestada a promulgação, pois o texto constitucional se refere ao ato de emendar, e somente exista emenda à Constituição com a promulgação/publicação do texto modificador. Porém, uma abordagem axiológica do dispositivo constitucional nos leva a concluir que todo o procedimento fica obstado.

A restrição imposta pelo constituinte se deve ao fato de que a reforma constitucional é matéria de relevância inquestionável e, por isso, não deve ocorrer em instantes de conturbação nacional. Canotilho lembra que certas circunstâncias excepcionais (tais como estado de sítio e de defesa) podem constituir ocasiões favoráveis à imposição de alterações constitucionais, limitando a liberdade de deliberação do órgão representativo. [37] O constituinte exige serenidade, equilíbrio, a fim de que a produção constitucional derive do bom senso e de apurada meditação. As situações elencadas na norma afastam esses pressupostos, gerando a preocupação e a instabilidade na condução dos negócios governativos.

2.3 Promulgação e publicação

Inexiste sanção presidencial no caso de Emendas Constitucionais. A decisão na reformulação da estrutura estatal é do Congresso Nacional.

Votado e aprovado o projeto, passa-se à promulgação, efetivada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o número de ordem seqüente a anteriores emendas.

Quanto ao objeto da promulgação há um dissenso entre os doutrinadores. Para Manoel Gonçalves [38], refere-se ao processo legislativo, proferindo um juízo de regularidade ao mesmo tempo em que cria a norma. Já para Pontes de Miranda [39], constitui mera atestação da existência da norma e promulgação de sua executoriedade.

No juízo sancionatório do Presidente da República, o veto de texto inconstitucional é ato vinculado. Como no processo de reforma constitucional não há tal juízo sancionatório, pergunta-se: a promulgação do PEC aprovado pelas Casas é ato vinculado? Pode (ou deve?) a Mesa do Congresso não promulgar o PEC sob a alegação deste ser inconstitucional? A promulgação de um projeto inconstitucional não seria um ato inconstitucional? Constituição e doutrina se silenciam.

Aparentemente, uma vez aprovado o PEC de acordo com os preceitos constitucionais não cabe à Mesa promover qualquer tipo juízo de valor, sendo ato vinculado a promulgação do texto regularmente aprovado em plenário. No entanto, este é um assunto espinhoso, ao qual retornaremos mais adiante, merecendo uma maior reflexão.

No processo legislativo ordinário se diz que a promulgação é do produto acabado, porque após o juízo sancionatório do Presidente já existiria a lei. No processo de reforma constitucional em vigor em nosso sistema não é assim que ocorre, pois não há essa fase intermediária entre a aprovação em plenário e a promulgação. A partir de que momento então podemos falar na existência da Emenda Constitucional como produto acabado?

A própria Constituição é confusa, ora dizendo que o projeto é enviado para promulgação (art. 66, §5º), ora se referindo ao produto já acabado (art. 66, §7º), sendo este o posicionamento adotado pela maioria esmagadora da doutrina. Cinicamente decidimos adotar o primeiro entendimento, simplesmente por ser o que melhor se adequa ao nosso posicionamento. Adotar o entendimento de que antes do ato promulgatório já existe a Emenda Constitucional criaria sérios problemas de coerência neste trabalho, eliminando toda sua unidade. Além do que, não vemos melhor fundamento para o posicionamento contrário do que a conveniência e convicção pessoal de seus defensores.

Sobre a publicação o texto constitucional se silencia. Uma vez que a publicação é a comunicação de um ato, há de se entender que deve ser feita pelo mesmo órgão que produziu o ato. Logo, esta competência é do Congresso Nacional. [40]


3. ASPECTOS DE CONSTITUCIONALIDADE

Konrad Hesse ensina que, idealmente, a Constituição não deve se assentar numa estrutura unilateral, a fim de preservar sua força normativa num mundo em processo de permanente mudança político-social. Assim, todo preceito constitucional deve ser contrabalançado por seu oposto, sob pena de ver a realidade por termo à sua normatividade. [41] No entanto, mais do que regras que meramente limitam outras regras, comumente encontramo-nos face aparentes contradições entre normas do mesmo escalão hierárquico.

Ao aplicar a norma constitucional ao fato, o intérprete deve ter sempre em mente o princípio da unidade da Constituição, que, nos dizeres de Canotilho, como ponto de orientação, guia de discussão e fator hermenêutico de decisão, obriga o intérprete a considerar a Constituição em sua globalidade e procurar harmonizar os espaços existentes entre as normas constitucionais a concretizar. [42] Logo, a unidade da Constituição não admite antinomias entre suas normas; pois todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com seus pares.

Isto posto, sempre que falarmos em inconstitucionalidade, não podemos nos referir à norma constitucional, antes, devemos nos referir ao PEC objeto do ato de promulgação, ao seu texto, ou ainda à própria promulgação, seja por desrespeito à forma ou à matéria tratada no texto. Havendo inconstitucionalidade no projeto promulgado, seus efeitos são anuláveis ex tunc, contaminando todos os atos do processo legislativo. Não havendo um texto promulgado válido, a Emenda Constitucional cai, pois deixa de existir seu suporte de validade.

Ressalte-se que nunca chegamos a entrar no mérito da constitucionalidade da Emenda em si, pois ante o princípio da unidade da Constituição, uma norma constitucional não pode ser tida por inconstitucional. O projeto proposto, o processo legislativo e a promulgação, como atos infraconstitucionais, sim, podem ser inconstitucionais.

Ainda, ao fazer o juízo de constitucionalidade do texto inovador, devemos buscar sempre considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar. [43] Assim, sendo possíveis dois modos de interpretação, sendo que por um deles se obtém a constitucionalidade do texto, e pelo outro não, deve-se optar pelo primeiro. Estando o aplicador em uma situação onde parte do texto que se pretende reformador é irremediavelmente inconciliável com o texto constitucional, mas outra parte não o é, deve-se optar pela nulidade apenas do elemento inconstitucional. Destarte, somente a fração do PEC que confrontar restrição constitucional não será abrangida pelos efeitos da promulgação.

Foi com o jurista alemão Otto Bachof, em 1951, que surgiu a teoria de que poderiam existir normas constitucionais inconstitucionais, levando-se em conta que princípios constitucionais, ou mesmo meta-constitucionais poderiam se chocar com normas da própria Constituição. No entanto, é certo que tal posicionamento não prosperou nas doutrinas ou jurisprudências dos tribunais. As poucas vezes em que foi considerada válida em tribunais alemães sempre foram de maneira hipotética e vaga, refletindo a própria incerteza dos julgadores quanto à validade de tal teoria. Em um julgado em que foi ventilada tal tese, da Corte Constitucional de Hess, proferido em 04/08/1950, entendeu-se que "normas suprapositivas não pertencem aos critérios de controle de normas". [44]

Encontramos ferrenha oposição à posição de Bachof na própria doutrina alemã, como em Herzog & Schick, segundo os quais infrações do Constituinte originário ou derivado a princípios da Constituição não são sequer imagináveis. [45]

Tanto nos Estados Unidos, como na Europa continental, doutrinadores do porte de Friedrich Müller, Kauper, Canotilho e Jorge Miranda apresentam posições firmes ante a impossibilidade de existência de antinomia de normas constitucionais. [46] Müller afirma que não há norma constitucional inconstitucional; quando muito, concretização inconstitucional do Direito que está na Constituição. [47] Canotilho assevera que a probabilidade de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é praticamente impossível em Estados de legalidade democrática. Por isso é que a figura das normas constitucionais inconstitucionais, embora nos conduza ao problema fulcral da validade material do Direito, não tem conduzido a soluções práticas dignas do registro. [48]

Já Jorge Miranda assinala que é possível haver inconstitucionalidade material de normas oriundas de revisão constitucional em contradição com certas normas constitucionais já existentes, porém, afirma não ser possível admitir inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias. Acrescenta ainda que no interior da mesma Constituição originária, obra do mesmo poder constituinte, não se divisa como possam surgir normas inconstitucionais. Também não vê como órgãos de fiscalização instituídos por esse poder seriam competentes para apreciar e não aplicar, com base na Constituição as suas normas. É um princípio de identidade ou de não contradição que o impede. Miranda ainda defende poder haver inconstitucionalidade por oposição entre normas constitucionais preexistentes e normas constitucionais supervenientes, na medida em que a validade destas decorre daquelas; não por oposição entre normas feitas ao mesmo tempo por uma mesma autoridade jurídica. Conclui que pode haver inconstitucionalidade da revisão constitucional, porque a revisão funda-se, formal e materialmente, na Constituição; não pode haver inconstitucionalidade da Constituição. [49]

Kelsen não excluía a possibilidade de um Tribunal Constitucional ser chamado a decidir sobre a constitucionalidade de determinada lei, e cassá-la com a fundamentação de que se trata de lei injusta sendo a justiça um princípio da Constituição a ser empregado pelo Tribunal Constitucional. Mas isso não significa que ao Tribunal Constitucional se concedeu uma perfeição de poder, que deve ser tida por insuportável. Aquilo que à maioria dos juízes desse Tribunal se afigura por justo pode estar em inteira contradição com aquilo que a maioria do Parlamento assim considera, precisamente a maioria que aprovou essa lei. É de toda evidência que o sentido da Constituição não pode ser, mediante o uso de palavra tão indefinível e tão ambígua como justiça ou outra semelhante, o de fazer que toda a lei do Parlamento depende do livre-arbítrio de um colégio de composição política mais ou menos arbitrária, como vem a ser um Tribunal Constitucional.

Caso se tenha de prevenir um tal deslocamento de poder do Parlamento para uma instância que paira fora do mesmo, deslocamento não pretendido pela Constituição e politicamente da mais alta inconveniência, por se tratar de instância que pode ser o expoente de outras forças políticas de todo o ponto diferentes daquelas que têm expressão no Parlamento, então deve a Constituição, ao instituir um Tribunal Constitucional, abster-se de tal fraseologia; e caso queira estabelecer princípios, diretivas e limitações para o conteúdo das leis a serem formuladas, que o faça da forma mais precisa possível. [50]

Paulo Bonavides pondera que, se Kelsen tinha por ‘insuportável’ o poder dos tribunais de cassar por inconstitucionalidade leis ordinárias, qual não seria seu pasmo se acaso visse ao Tribunal Constitucional reconhecida a faculdade de nulificar conteúdos normativos da Constituição mesma? Isso sob o pálio evasivo de um direito extrapositivo, qual Bachof concebera quando teorizou, superficial e confusamente, acerca da ‘inconstitucionalidade de normas constitucionais’. [51]

O jurista chileno Sagüés opinou que a ‘interpretação contranormativa’ é de se repulsar por inteiro, visto que interpretar a Constituição em oposição ao programa normativo que ela efetivamente contém importa uma mudança constitucional – quando não, uma perversão constitucional. [52]

Nas palavras de Paulo Bonavides, as ‘normas constitucionais inconstitucionais’ não passam de um devaneio jusnaturalista de Bachof. Tal jurisprudência nunca vingou nas Cortes federais de qualquer Nação do Mundo onde a democracia cimenta as instituições e o regime. [53]

3.1 Constitucionalidade formal

A própria Constituição estabelece certos parâmetros para o procedimento de produção de emendas. Tal procedimento, determinado na Carta Constitucional em seu art. 60, deve ser rigorosamente observado, sob pena de inconstitucionalidade.

Assim, se uma Emenda Constitucional é promulgada durante a vigência de estado de sítio, tal ato é inconstitucional. Se o quorum de aprovação foi inferior ao exigido, não foi observado requisito constitucional e eventual ato de promulgação pela Mesa do Congresso seria facilmente tachado de inconstitucional.

Se, porém, não foi respeitado procedimento prevista no Regimento Interno de uma das casas, o processo, além de ilegal face o desrespeito a lei em lato sensu [54], será inconstitucional por desrespeito ao chamado ‘devido processo legislativo’, que nada mais é do que o princípio da legalidade aplicado ao processo legislativo.

A conseqüência desta inconstitucionalidade formal será a inexistência do texto no sistema normativo, uma vez que não foram preenchidos pressupostos exigidos constitucionalmente para que possa nascer o produto final do processo legislativo. [55]

3.2 Constitucionalidade material

Obedecido o procedimento prescrito, há ainda que se observar o conteúdo abrangido pelo texto.

As limitações feitas pela própria Constituição podem ser classificadas em implícitas [56] e explícitas. Estas são as elencadas no próprio art. 60, em seu §4º, quais sejam as tendentes a abolir: I) o sistema federativo; II) o voto direto, secreto, universal e periódico; III) a separação dos Poderes; IV) os direitos e garantias individuais.

A vedação não se restringe somente às propostas que excluam os institutos protegidos, mas qualquer proposta que vise modificar qualquer elemento conceitual da Federação e do voto direto, ou que restrinja, mesmo que indiretamente, direito ou garantia individual. Assim, limitar as capacidades de auto-organização, autogoverno e auto-administração dos estados federados indica tendência a abolir o sistema federativo. Ainda, atribuir a um Poder atribuição dada pela Constituição exclusivamente a outro tende a abolir o princípio da separação de Poderes. [57] Manoel Gonçalves, numa posição menos restritiva, defende que se pode re-equacionar, modificar ou alterar as condições ou efeitos das instituições protegidas pelo texto constitucional; cita ainda Robert Alexy que ressalta poder haver restrição de direito que não importe em abolição do mesmo, desde que não atinja o "conteúdo essencial" do direito, ou seja, se não for inadequada, desnecessária e desproporcionada em sentido estrito (quando não se encontra numa relação adequada com o peso e a importância do direito fundamental). [58]

O mesmo Manoel Gonçalves joga ainda uma luz diferente sobre esta questão. Ele nos diz que as Constituições costumam invocar que o poder constituinte dos elaboradores lhes foi outorgado pelo povo. Este mesmo povo outorga poderes ao legislador ordinário para tomar decisões políticas sobre seu futuro. Assim, não haveria qualquer diferença entre a relação do povo com os seus representantes que editam a Constituição e aqueles que governarão o Estado de acordo com ela. Logo, não haveria uma superioridade intrínseca de um em relação ao outro se levarmos em conta a legitimação democrática. [59] Com todo o respeito à opinião do eminente professor, sua posição neste ponto nos parece extremamente equivocada. Todo procurador está restrito a atuar dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos. A identidade entre os modos de concessão destes poderes não legitima o representante eleito para um fim atuar fora destes limites pré-estabelecidos.

Em contraponto, a posição de Carl Schmitt é de que existiria uma diferenciação entre a Constituição em si e as chamadas ‘leis constitucionais’. Aquela se referiria ao modo e forma da unidade política, aos pontos fundamentais da ordem política, e alterar este núcleo seria fraudar a Constituição. As ‘leis constitucionais’ seriam as demais normas inclusas no texto constitucional, e estas poderiam ser alteradas livremente pelo poder constituinte derivado. [60]

Já quanto às limitações implícitas, Nelson Sampaio enumera: I) as concernentes ao titular do poder constituinte, pois uma reforma constitucional não pode mudar o titular do poder que cria o próprio poder reformador; II) as referentes ao titular do poder reformador, pois seria despautério que o legislador ordinário estabelecesse novo titular de um poder derivado só da vontade do constituinte originário; III) as relativas ao processo da própria emenda, distinguindo-se quanto à natureza da reforma, para admiti-la quando se tratar de tornar mais difícil seu processo, não a aceitando quando vise a atenuá-lo, Segundo o citado jurista, a chamada dupla revisão seria ilógica e destrutiva; não poderia a reforma constitucional se tornar forma de destruir a própria Constituição. [61]

Há ainda quem defenda a limitação quanto à supressão dos dispositivos atinentes à intocabilidade dos temas já elencados (art. 60, §4º) [62], porém este não é entendimento dos doutrinadores de maior peso [63], que defendem não haver qualquer tipo de limitação neste sentindo, citando-se inclusive exemplos históricos ocorridos no Brasil [64] e no estrangeiro [65] de alterações constitucionais vultuosas, e mesmo substituição por uma nova ordem constitucional, sem quebra de continuidade da ordem jurídica.

Canotilho esclarece que "as normas de revisão não são o fundamento da rigidez da Constituição mas os meios de revelação da escolha feita pelo poder constituinte. Esta escolha de um processo agravado de revisão, impedindo a livre modificação da lei fundamental pelo legislador ordinário (constituição flexível), considera-se uma garantia da Constituição. O processo agravado da revisão é, por sua vez, um instrumento dessa garantia – a rigidez constitucional é um limite absoluto ao poder de revisão, assegurando, desta forma, a relativa estabilidade da Constituição". [66] Acrescenta ainda que as normas de revisão estariam em um nível supraconstitucional, atestando a superioridade do constituinte e a sua violação, mesmo pelo legislador de revisão, deveria ser considerada como incidindo sobre a própria garantia da Constituição; violação das normas constitucionais que estabelecem a imutabilidade de outras normas constitucionais deixaria de ser um ato constitucional para se situar nos limites da ruptura constitucional, seria mesmo um indício de fraude à Constituição. Afirma ainda que as regras de alteração de uma norma pertencem aos pressupostos da mesma norma, e daí que as regras que fixam as condições de alteração de uma norma se coloquem num nível de validade (eficácia) superior ao da norma a modificar. [67]

Tem-se entendido também que, em virtude do resultado do plebiscito que se realizou em 21 de Abril de 1993, está fora do alcance do reformador da Constituição alterar a forma e o sistema de governo (i.e. república presidencialista). [68]

Da inconstitucionalidade material de um dado texto, temos que resulta a sua nulidade ipso jure.

Canotilho [69] nos ensina que a inconstitucionalidade deve ser abordada sob o ponto de vista da conformidade intrínseca do sistema normativo. A nulidade é uma conseqüência da inconstitucionalidade, é uma resposta da ordem jurídica a uma violação da ordem constitucional.

Sempre que a contradição com o texto constitucional não for a falta de um requisito da própria existência do ato temos a nulidade daquele ato. E já em 1803, o juiz norte-americano Marshall proferiu o enunciado hoje clássico: "an act of the legislature repugnant to the Constitution is void". [70]


4. ASPECTOS DE VALIDADE

Não entraremos aqui na seara da declaração de inconstitucionalidade de uma determinada norma, e nem do controle de constitucionalidade interno ou externo, sob pena de nos desviarmos do tema a que nos propomos abordar. Cabe dizer que uma vez promulgada e publicada, até que os tribunais se pronunciem em contrário, todo ato normativo é valido, executável e obrigatório. Há uma presunção juris tantum de que a norma é apta a produzir todos os seus efeitos jurídicos próprios. [71]

Para Alfredo Buzaid [72] "toda norma adversa à Constituição é absolutamente nula. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço, fere ab initio. Ele nem chegou a viver. Nasceu morta. Não teve, pois, nenhum único momento de validade". A mesma posição sustentava Ruy Barbosa [73].

O art. 37, caput determina que todos os atos da administração pública devem ser pautados pelo princípio da legalidade, incluindo-se neste conceito, por óbvio, a constitucionalidade. Assim, temos que o legislador ao promulgar texto em desacordo com preceitos constitucionais viola o princípio primordial da administração pública, pois a Constituição ao impor uma séria de restrições ao poder reformador restringe a atuação do legislador, que fica vinculado à observação do dispositivo constitucional.

Destarte, deve-se considerar inconstitucional o ato promulgatório de um procedimento que não respeitou o devido processo legislativo, ou que não respeitou as limitações materiais impostas pelo constituinte originário.

Em relação à segunda situação cabe uma ressalva. Tomemos a hipótese de num mesmo texto reformador encontrarmos partes que respeitem os limites materiais, e partes que não. Nestes casos é razoável analisar se, eliminando-se a parte que viola a Constituição, o texto não fica descaracterizado. Ou seja, em sendo possível ‘salvar’ o texto, deve-se considerar nula somente a parte que afronte as restrições constitucionais, permitindo vida e validade ao restante da norma.

A prudência deve sempre pautar o caminho dos intérpretes ao se analisar possível inconstitucionalidade de um texto. Deve-se procurar sempre manter a norma no ordenamento jurídico tendo como fundamento os princípios da economia, da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade adquirida com a promulgação. Parte-se da idéia de que a inconstitucionalidade da norma dará lugar a um vazio legislativo, que poderá produzir sérios danos no ordenamento jurídico. Portanto, procura-se evitar a decretação de nulidade do texto normativo pelos possíveis inconvenientes que podem surgir, pois a interrupção brusca da vigência da norma poderia gerar um vazio normativo. [74]

4.1 Presunção de validade

Quanto à presunção de validade das normas promulgadas, devemos nos fazer a seguinte pergunta: todo ato normativo goza de presunção de validade? Definamos antes o que é validade. Pode-se dizer que por validade se entende a existência juridicamente qualificada. É válida aquela norma que se encontra dentro do ordenamento jurídico; e tal ingresso ocorre quando a norma respeita aquelas que lhe são superiores.

A princípio, todo ato normativo goza de presunção de validade. A promulgação do juízo sancionatório no processo legislativo ordinário já presume a regularidade formal e material do ato normativo. É importante lembrar que, inobstante no processo de reforma constitucional não existir tal referenda, a promulgação dá esta presunção ao texto reformador.

Porém, não se pode tomar tal presunção como absoluta. Há que se estabelecer parâmetros mínimos para que haja uma presunção. Parece-nos razoável exigir uma constitucionalidade formal para admitir a presunção de validade de determinado ato normativo. E o que seria este aspecto formal? Previsão do processo utilizado e da autoridade produtora. Não se chega a verificar se o processo foi o adequado, ou se a autoridade a competente, pois aí se estaria efetuando um juízo completo e final da validade do ato, não havendo qualquer necessidade de se falar em presunção a esta altura.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fim de tornar este trabalho mais completo seria necessário incluir um capítulo relativo ao controle de constitucionalidade, tanto o jurisdicional como o interno; porém, em razão das limitações inerentes a este tipo de trabalho, achamos por bem deixar isto para uma outra oportunidade.

Quanto à legitimação popular referida no final do capítulo 1, teceremos mais algumas considerações.

A legitimação popular por meio de referendo proposta pelo professor Paulo Bonavides tem um desdobramento importantíssimo. Uma legitimação feita pelo próprio povo, que é o detentor do Poder Constituinte originário, tem o poder de convalidar quaisquer vícios que eventualmente existam, sejam eles formais ou mesmo materiais. O professor Bonavides ainda ressalta que, em razão deste poder, qualquer norma referendada pela população, o soberano, não está sujeita a sofrer apreciação de sua constitucionalidade ou legalidade pelo STF. Uma vez legitimada pelo Poder Maior não há que se falar em inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma aprovada.

É importante frisar que tal método de legitimação popular ainda precisaria ser regulamentado por meio de lei complementar. É certo que se deve dar especial atenção ao quorum popular para que o referendo atinja seu objetivo. Será que se somente uma pequena parcela dos eleitores se manifestasse (o que seria equivalente a uma maioria simples nas casas legislativas) a votação teria poder de legitimar a alteração constitucional? Este e outros fatores devem ser levados em consideração pelo legislador a fim de não se criar uma crise constitucional.

Por fim, cabe informar que não nos alinhamos à tese defendida na obra do professor Manoel Gonçalves de que a atual Constituição Federal teria sido elaborada por um poder constituinte derivado, e não originário. Neste ponto, consideramos mais acertada e coerente a posição defendida por José Afonso [75] de que a Emenda Constitucional 26/85 foi na verdade um ato revolucionário revestido da forma de emenda constitucional, pois nem sua função, nem seu conteúdo, nem as conseqüências de sua aplicação são de emenda constitucional. Inobstante as críticas que se possam tecer quanto ao método de convocação, os mandatários ali reunidos formaram um órgão de natureza constituinte.


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NOTAS

01 José Afonso da Silva, Poder constituinte e poder popular, p. 237.

02 Friedrich Müller, O significado teórico de ‘constitucionalidade/inconstitucionalidade’ e as dimensões temporais da declaração de inconstitucionalidade de leis no direito alemão, palestra promovida pela Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro em 19 de Setembro de 2002.

03 Cf. Michel Temer, Elementos de direito constitucional, p. 34.

04 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 65.

05 Apenas aparente, pois não há norma constitucional inconstitucional, como defendemos adiante.

06 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 61.

07 Sahid Maluf, Teoria geral do estado, p. 183.

08 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 61-62 e 71.

09 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 72.

10 Cf. Michel Temer, op. cit., p. 34.

11 Todas as referências legislativas são à Constituição Federal de 1988, exceto quando houver indicação em contrário.

12 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 824-825.

13 Art. 3º ADCT. A revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral.

14 A não ser que seja determinada nova revisão por meio de emenda constitucional, ou consulta popular, como defendeu Celso Ribeiro de Bastos (in: A reforma da constituição: em defesa da revisão constitucional). Michel Temer (in: Revisão constitucional? Constituinte?) rejeita a possibilidade de se efetuar uma nova revisão por meio de emenda constitucional, pois se estaria criando um quarto Poder (o constituinte de revisão) não previsto na Constituição, o que seria uma afronta ao princípio petrificado da separação dos Poderes; mas entende que seria legítimo fazê-lo por meio de consulta popular.

15 José Afonso da Silva apud Michel Temer, op. cit., p. 37.

16 Cf. Michel Temer, Elementos de direito constitucional, p. 37.

17 Geraldo Ataliba e Paulo Bonavides, apud Michel Temer, op. cit., p. 37.

18 Cf. Michel Temer, op. cit., p. 144.

19 Cf. Michel Temer, op. cit., p. 144-145.

20 Cf. Paulo Bonavides, A constituição aberta, p. 278-280.

21 Celso Ribeiro Bastos, op. cit..

22 Emmanuel Joseph Sieyès, A constituinte burguesa, p. 51.

23 Emmanuel Joseph Sieyès, op. cit., p. 51.

24 Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, Comentários à constituição de 10 de novembro, p. 218 apud Celso Ribeiro Bastos, op. cit..

25 Emmanuel Joseph Sieyès, op. cit., p. 48-49.

26 Celso Ribeiro Bastos, op. cit..

27 Emmanuel Joseph Sieyès, op. cit., p. 48.

28 Jean-Jacques Rousseau, O contrato social, p. 24.

29 Celso Ribeiro Bastos, op. cit..

30 Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O poder constituinte, p.184-190.

31 Tal regra jamais foi utilizada desde que foi criada sua previsão já na Carta de 1891.

32 José Afonso da Silva, op. cit., p. 63-64.

33 Cf. Jean-Jacques Rousseau, op. cit., p. 23-25.

34 Para tanto devem ser observados os requisitos do art. 61, §2º.

35 É necessário, assim como para apresentar o PEC, a assinatura de 1/3 dos membros da Casa para se apresentar uma emenda ao projeto (art. 356, parágrafo único RISF; art. 202, §3º RICD).

36 Este procedimento se aplica tanto às propostas que se originam na própria Casa, como àquelas que vêm ou retornam com emendas da outra Casa.

37 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 993.

38 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p.233.

39 Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, Comentários à constituição de 1967, t. 3. p. 177 apud Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p.249-250.

40 Cf. Michel Temer, op. cit., p. 146; José Afonso da Silva, op. cit., p. 526-527.

41 Konrad Hesse, A força normativa da constituição, p.21.

42 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 232 apud Liliane Roriz, Conflito entre normas constitucionais, p. 41-42.

43 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 232.

44 Apud Paulo Bonavides, op. cit., p.217.

45 Herzog & Schick, Verfassungsrecht, p. 236 apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 216.

46 Apud Paulo Bonavides, op. cit., p.218.

47 Firedrich Müller, Die enheit der verfassung, p. 134 apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 219.

48 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 241-242 apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 218.

49 Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, t. II, v. I, p. 583-586 apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 218-219.

50 Hans Kelsen, Wesen ünd entwicklung der staatsgerichtsbarkeit (auszüge), apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 227-228.

51 Paulo Bonavides, op. cit., p. 228.

52 Nèstor Pedro Sagüés, La interpretación de la constitución (poder judicial versus poder constituyente), p. 116-117 apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 226.

53 Paulo Bonavides, op. cit., p. 231.

54 O Regimento Interno é produzido por meio de resolução, uma espécie normativa portanto.

55 Canotilho defende posição menos abrangente, incluindo não qualquer vício de formalidade, mas apenas os casos de falta de competência do órgão – abrangendo aí desrespeito a limitação temporal e de quorum –, e em que o texto revisor não indique, taxativa e expressamente as alterações a introduzir no texto constitucional (in: op. cit., p. 1002-1004).

56 Manoel Gonçalves entende não haver qualquer limitação dita implícita; ou existe a limitação e está explícita, ou inexiste (in: op. cit., p. 292).

57 José Afonso da Silva, op. cit., p. 67.

58 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 292.

59 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O poder constituinte, p. 177.

60 Carl Schmitt, Teoría de la constitución, apud Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p.177-178.

61 Nelson de Sousa Sampaio, O poder de reforma constitucional, p. 95 e ss. e ‘Apêndice’, p. 129-130 apud José Afonso da Silva, op. cit., p. 68 e Poder constituinte e poder popular, p. 245-246.

62 Cf. Michel Temer, op. cit., p. 145.

63 Cf. José Afonso da Silva; Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

64 A Assembléia Constituinte de 1987/88 foi convocada pela Emenda Constitucional nº 26.

65 Constituições francesa de 1958 e espanhola de 1977/78.

66 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 989.

67 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 996-998.

68 Cf. Cármen Lúcia Antunes Rocha, República e federação no Brasil, p. 88-89 apud José Afonso da Silva, Poder constituinte e poder popular, p. 246.

69 José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 878-887.

70 Apud José Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 878-887.

71 Cf. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 526.

72 Apud José Afonso da Silva, op. cit., p. 52-53.

73 Cf. Ruy Barbosa, A constituição e os atos inconstitucionais, p. 49 apud José Afonso da Silva, op. cit., p. 52-53.

74 Cf. Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação constitucional, p. 268.

75 José Afonso da Silva, Poder constituinte e poder popular, p. 78-81.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAMONE, Marcelo Azevedo. Aspectos de validade e constitucionalidade da emenda constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1193, 7 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9016. Acesso em: 28 mar. 2024.