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Dante Alighieri e o direito

Dante Alighieri e o direito

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O ensaio trata das ideias do poeta florentino a respeito do direito lançadas na sua obra "Monarquia".

Neste ano de 2021 comemoramos os 756 anos de nascimento do poeta florentino Dante Alighieri, que nos deixou obra perene, de fôlego, que se traduz em verdadeiro monumento literário.

A “Divina Comédia” é poema a ser lido e relido durante toda a existência, considerando sua beleza, profundidade e grandeza. A cada leitura, novas descobertas, certamente.

A melhor tradução em Português, a meu sentir, é a do mineiro Cristiano Martins [Itatiaia Editora], cuja pena foi efetivamente mergulhada na tinta da cadência elegante, do admirável refinamento e das rimas coerentes com o escrito original, transportando-nos ao maravilhoso mundo de Dante. É inestimável o valor da tradução levada a efeito por Martins.

É vasta e rica a produção intelectual de Dante. O poeta italiano escreveu, dentre outras filosóficas e políticas[1], uma importante que merece destaque, par o presente, denominada “Monarquia”[2], sendo que dela se extrai significativa contribuição do pensador ao Direito.

Há passagem singular neste tratado político, onde são apresentadas as ideias de Dante, ideias, ou melhor, críticas que sofreram resistência por parte da Igreja Católica [o imperador não se submetia à autoridade da Igreja, no entendimento do poeta], tanto que o livro foi incluído no Index [Index Librorum Porhibitorum[3]], dele sendo retirado apenas no final do século XIX.

A respeito do Direito, o poeta apresenta algumas profundas considerações no Livro Segundo da obra, denominada de “Como o povo obteve legitimidade e o encargo da monarquia e do império”. O autor apresenta o conceito de Direito:

O direito é uma relação real e pessoal de homem para homem que, observada, serve à sociedade e, corrompida, a corrompe[4]

O festejado jurista Miguel Reale, ao comentar o escrito de Dante, especialmente acerca dessa relação, assim se posiciona:

Dante esclarece que a relação é uma proporção. A proporção é, sempre, uma expressão de medida. O Direito não é uma relação qualquer entre os homens, mas sim aquela relação que implica uma proporcionalidade, cuja medida é o homem mesmo. Notem como o poeta viu coisas que, antes dele, os juristas não tinham visto, oferecendo-nos uma compreensão do Direito, conjugando os conceitos de ‘proporção e sociedade’. Proporção entre quem? De homem para home. Quando a proporção é respeitada, realiza-se a harmonia ‘...quae servata, servata societatem...’ e, quando corrompida, corrompe a mesma sociedade. Mas, Dante não diz que há apenas uma proporção de homem para homem. Ele delimita melhor o sentido da palavra ‘proportio’ esclarecendo, quase com o rigor da técnica moderna: ‘realis ac personalis’[5]

De fato, ao fazer a distinção entre direitos reais e pessoais, entende o poeta que as coisas recebem respaldo do Direito porque ligadas ao homem [relação jurídica entre homens e não homem-coisa]; são tutelas não por si mesmas, mas por estarem ligadas ao homem, existindo o caráter real exatamente quando estas coisas objeto da avença.

Por outro lado, segundo o autor, há de existir a proporção equitativa de homem para homem, visando-se a conservação plena [o todo, e não as partes que compõem o todo] da sociedade na qual se inserem. Caso tal conservação não exista em sua plenitude [desproporcional, parcial], estará desalinhada, corrompida e em desconformidade com o propósito, com a finalidade do Direito.    

Portanto, o pensador italiano apresentou ideias revolucionárias acerca do Direito.


[1] Não se olvide de Vida Nova. 3ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.  Obra onde o poeta narra seu amor eterno por Beatrice Portinari , a gloriosa dama de seus pensamentos. 

[A toda a alma prisioneira, a todo o coração gentil,

 até aos quais correndo vá o meu lamento

(e que diga cada um aquilo que sente)

saúde em seu Senhor, ou seja o Amor.

Quase se tinha atingido a hora

em que a luz estelar mais viva nos parece,

quando de súbito o Amor se me mostrou,

e de tal forma que lembrá-lo me horroriza.

Alegre me parecia, tendo

numa das mãos meu coração, e nos braços,

envolta num cendal, minha dama, adormecida .

Despertou-a; e desse coração, que ardia,

ela comia, receosa, humildemente.

Vi-o depois afastar-se soluçando.]. Op.cit., p. 11.

[2]   ALIGHIERI, Dante. Monarquia. São Paulo: Editora Lafonte, 2017.

[3] https://books.google.com.br/books?id=wWoLAAAAMAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_atb#v=onepage&q&f=false. Acesso: 23/04/2021.

[4] Op. cit., p. 66. Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata servat societatem; corrupta, corrumpit. Prossegue o poeta: Por outro lado, a conhecida descrição que se encontra no Digesto não diz em que consiste o direito, mas o define por meio da noção de sua aplicação prática. Se, portanto, o mencionado conceito inclui de modo satisfatório a essência e a causa e se a finalidade de qualquer sociedade é o bem comum, é necessário que a finalidade de todo direito seja o bem comum. É impossível, no entanto, que subsista um direito que não vise o bem comum. A esse propósito se expressa muito bem Cícero na Primeira Retórica: ‘As leis devem ser sempre interpretadas em favor da República’. Se, portanto, não forem dirigidas em proveito daqueles que as observam, são leis somente de nome, mas não podem sê-lo na substância, porquanto as leis devem vincular reciprocamente os homens, em vista da utilidade comum. Por essa razão é que Sêneca, no livro ‘Das Quatro Virtudes’, de modo oportuno afirma que ‘a lei é o vínculo da sociedade humana’. Parece claro, portanto, que aquele que visa atuar o bem da coisa pública visa também o direito. Se os romanos, portanto, visavam o bem da coisa pública, corresponde à verdade dizer que visaram também como finalidade o direito. Op. cit., p. 66. Grifos no original.

[5] Lições preliminares de direito. 27ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 60. Grifos no original.


Autor

  • Carlos Roberto Claro

    Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Dante Alighieri e o direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6521, 9 maio 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90188. Acesso em: 28 mar. 2024.