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A propósito dos ataques atribuídos ao PCC (Primeiro Comando da Capital)

A propósito dos ataques atribuídos ao PCC (Primeiro Comando da Capital)

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            Nos últimos meses, a sociedade brasileira, principalmente a paulista, tem se mostrado alarmada com os ataques atribuídos à facção criminosa denominada PCC – Primeiro Comando da Capital, os quais resultaram na morte de vários policiais, civis e militares, bem como de alguns agentes penitenciários e cidadãos comuns. A represália não foi menos sangrenta, mostrando à sociedade um sem número de criminosos e suspeitos mortos pela polícia.

            Embora seja impossível não reconhecer a gravidade da situação, observa-se que o ato não deveria ser visto com tamanha surpresa, especialmente pelas autoridades responsáveis pela segurança pública, já que é conseqüência natural de antigas omissões de um Estado desestruturado, despido de políticas de base, em cujos intestinos grassam o fisiologismo e a corrupção, e que, por isso, permanece com características de colônia.

            Aliás, necessário ressaltar que o aumento da criminalidade e o impacto cada vez maior das ações delinqüentes têm sido, há cerca de quinze anos, fator bastante proveitoso para muitos políticos, que alimentam suas campanhas e mandatos com a tragédia social que arruína o Brasil. Afinal, a produção em massa de leis penais, a contratação de policiais, a compra de viaturas e a construção de presídios são realizações bem mais rápidas, práticas e visíveis que as obtidas através do investimento em educação, habitação (saneamento básico) e saúde, que só podem ser constatadas a longo prazo.

            Além de aplacar o pânico da elite, que se vê cada vez mais acuada pelo refugo da desigualdade social de que se alimenta, resta claro que estas políticas de vitrine agradam o capital internacional, que preferencialmente se desloca para países cuja participação estatal limita-se a cuidar do policiamento – aqui, em sentido estrito -, de modo a garantir a segurança da parcela da população apta ao padrão de consumo globalizado; que tenham leis trabalhistas, consumeristas e tributárias frouxas, bem como uma população com baixo nível de escolaridade e instrução, a qual garantirá mão-de-obra barata [01].

            Neste contexto, visando à desobstrução do fluxo do capital fluido, a partir da exclusão dos indivíduos que teimam em não se enquadrar nos padrões estabelecidos, são criadas leis penais em abundância e contratados inúmeros agentes que ficarão encarregados de vigiar e punir, mas não se cuida de combater as causas da crescente criminalidade. São também arranjados (e a demanda é cada vez maior) espaços onde aqueles que infringirem as leis serão contidos, entretanto não há preocupação em promover um trabalho que vise à reinserção social do encarcerado e, por conseguinte, à redução dos níveis de reincidência.

            Contrapondo realidade social e criminalidade, percuciente é a análise de Percival de Souza [02]:

            Hoje, quando se fala muito na estrutura cada vez mais desafiante do crime organizado, é importante recordar o princípio de que a sociedade da qual todos fazemos parte é pródiga em gerar múltiplos fatores criminógenos. O jeito de ser dessa sociedade possui estrutura e instrumental opressivo que propiciam desequilíbrios, deles nascendo, então, a violência e a corrupção, a degradação dos costumes e o crime. Podemos considerar, sem receio de exagerar, que assistimos, na virada do século, a um aumento patológico dessa criminalidade. Muitos pedem ação mais rigorosa da Polícia. Outros não querem esquecer que a origem do fenômeno crime está radicada exatamente nessa mesma sociedade que tanto reclama.

            E prossegue:

            Essas lições, que considero inesquecíveis, foram aprendidas com o saudoso mestre Manoel Pedro Pimentel. O fato-social, que a poucos preocupa, ensinava ele, gera o fato-crime, que a todos impressiona.

            Ele advertia que de nada adiantará o esforço para conferir, gradativamente, maior eficiência à ação policial, se não for mudada a atitude social. Porque os comportamentos desviantes, tidos como aceitáveis nas altas camadas sociais, acobertados sob o nome de moral dos negócios, geram - pelo contágio hierárquico - condutas delituosas nas parcelas mais humildes, institucionalizadas como crimes.

            Tais lições, que não podem ser deixadas de lado, nos conduzem ao pensamento de Brecht, segundo o qual somente pela realidade é possível mudar a realidade. Assim, o Direito não deve se nutrir apenas de ética e de lógica, mas também do sentimento de realidade, não se podendo mais acreditar que códigos de encomenda, com tempo pré-determinado de entrega, pré-moldados, por vezes frutos da retórica de comício, possam enfrentar o fenômeno da criminogênese, hidra que convulsiona o cerne social brasileiro.

            A omissão do Estado, como cediço, é a principal via de surgimento de ordens paralelas à instituída pelo ordenamento jurídico. Tal fenômeno é facilmente detectado, a título de exemplo, quando do surgimento de aglomerados e favelas, que se erguem desordenadamente em espaços nos quais o Estado não cuidou de atuar. Ambientes que emergem às margens das leis urbanísticas, propiciando e determinando a criação de um ordenamento normativo próprio pela comunidade que ali se estabeleceu. Tal construção normativa mostra-se inevitável, pelo simples fato de ser a instituição de regras de convivência inerente a qualquer agrupamento humano.

            Conforme hoje se vê com clareza, tamanho e tão longo afastamento do Estado das questões sociais de base, de caráter marcadamente preventivo, tem suas conseqüências, sendo, uma delas, o aumento assustador da criminalidade, em níveis mais ou menos organizados. Dos nichos gerados pelos vários aspectos da omissão do Poder Público, de onde antes saíam delinqüentes comuns, começa a surgir um outro tipo de poder coercitivo, marcado pelo maior grau de organização entre os criminosos, cujas ações, em casos como o de São Paulo, apresentam até mesmo matizes políticas.

            Embora pareça paradoxal (pois, para quem está do lado de fora, tais espaços representam a presença maciça do Estado), as carceragens e presídios brasileiros são, há muito, um desses vazios propiciados pelo Poder Público, onde florescem as mais variadas formas de criminalidade, inclusive organizada.

            Os indivíduos recolhidos pelos aparelhos da Justiça Criminal são literalmente depositados e esquecidos no sistema prisional, onde as regras são próprias. E, devido a peculiaridades da lei penal brasileira, os crimes que ensejam o cumprimento de pena privativa de liberdade são, na grande maioria dos casos, aqueles praticados por sujeitos oriundos das camadas menos privilegiadas em termos sócio-econômicos, os quais, após presos, como é de conhecimento público e notório, estarão sujeitos a sevícias, bem como à mercê da corrupção de agentes. Freqüentemente, pelos mais variados motivos, não há disciplina ou fiscalização rígida nos ambientes carcerários, o que favorece o tráfico de entorpecentes, a entrada de armas e aparelhos celulares.

            Despidos de sua cidadania, afastados da sociedade e unidos pela adversidade das circunstâncias, nada mais humanamente natural, como já exposto, que estes indivíduos também se unam em torno de propósitos comuns, sejam eles religiosos, políticos ou criminosos. Neste contexto, assim como no presídio de Ilha Grande surgiu o Comando Vermelho, nos presídios paulistas criou-se o PCC – Primeiro Comando da Capital.

            A corroborar tudo o que acima foi dito, com a palavra Marco Willians Herbas Camacho, nacionalmente conhecido como "Marcola", suposto líder do PCC [03]:

            Em 1993 foi fundado o PCC no presídio de Taubaté. Acho que isso deve servir de exemplo. É um presídio onde o tratamento é igual a esse local onde me encontro hoje, nesse pavilhão de segurança máxima, ou seja, o cara é totalmente isolado do resto da população carcerária, não tem direito a ver tevê, não tem direito a rádio, não tem direito a estudar, não tem direito a trabalhar, a nada do que reza o Código de Execuções Penais. O PCC foi fundado por isso e por causa da chacina do Carandiru, onde foram assassinados 111 presos. O PCC foi fundado porque não tinha para onde correr. Ninguém olha para o preso porque 98 por cento, 99 por cento da população carcerária é miserável. Isso quer dizer alguma coisa e o preso sabe disso. Ele sabe que o pé-rapado vai para a prisão e o deputado, não. E isso revolta o preso.

            Como é que o preso pode pensar em se reabilitar, se só tem repressão dentro da prisão? Dentro da prisão não existe uma política sincera e real de reabilitação do ser humano. Nunca existiu. Pode ser que venha a existir. Essa é a esperança. E o PCC luta em função disto, por uma política de reabilitação, onde o ser humano seja respeitado como ser humano. Não é porque eu cometi um erro que tenho que ser tratado como um monstro, porque [o juiz] Lalau cometeu um erro e não é tratado como eu sou tratado. E o erro dele leva ao meu erro, porque ele rouba do povo e deixa todo mundo na miséria.

            (...)

            Devia ter especialista em educação na prisão, não adianta reprimir. Depois, vai ter de pôr o cara em liberdade e ele não tem preparo para encarar a sociedade, não tem trabalho, estudo, profissão. Tudo isso poderia ser feito, e a preço baixo, dentro do sistema penitenciário (...). O PCC se revolta contra isso, contra a hipocrisia da sociedade, dos governadores, da polícia, de todo mundo, porque ninguém faz nada, doutor. Ninguém toma uma atitude. Ninguém quer saber de reeducar o cara, readaptá-lo à sociedade.

            Sob pena de que esses protestos continuem a transpor os muros das prisões em forma de tiros, atentados e mortes, creio que tais palavras deveriam ser lidas, e com muita atenção, por todas autoridades responsáveis pela segurança pública neste país. Além de apontar, com a lucidez de quem está imerso no sistema, a debilidade do aparato de punição estatal, revelam, ainda que indiretamente, o óbvio, ou seja, que o Direito Penal deveria ser o último recurso utilizado pelo Estado no combate à criminalidade, somente quando transpostas todas as barreiras garantidas por políticas sociais preventivas, como são aquelas que investem na educação e em outras vias que disponibilizem a todos os indivíduos os meios necessários para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, conforme garantido em nossa empoeirada Constituição Federal.


Notas

            01 A esse respeito, citando Pierre Bourdieu, ensina o professor Zygmunt Bauman:

            "Nos Estados Unidos, diz Pierre Bourdieu referindo-se ao estudo do sociólogo francês Luïc Wacquant,‘o Estado Beneficente, fundado no conceito moralizante de pobreza, tende a bifurcar-se num Estado Social que provê garantias mínimas de segurança para as classes médias e num Estado cada vez mais repressivo que contra-ataca os efeitos violentos da condição cada vez mais precária da grande massa da população, principalmente os negros’.

            Este é apenas um exemplo – embora especialmente gritante e espetacular, como a maioria das versões americanas de fenômenos mais amplos e globais – de uma tendência muito mais geral de limitar à questão da lei e da ordem o que ainda resta da antiga iniciativa política nas mãos cada vez mais frágeis da nação-estado; uma questão que inevitavelmente se traduz na prática em uma existência ordeira – segura – para alguns e, para outros, toda a espantosa e ameaçadora força da lei" (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. p. 111).

            02 Trecho extraído de artigo da lavra de Percival de Souza, intitulado "Reflexões: Crime Organizado", disponível no sítio www.ibgf.org.br.

            03 Extraído de matéria publicada na Revista "Caros Amigos", nº 111, publicada em junho de 2006, ps. 26/27, na qual foram transcritos trechos do depoimento prestado por "Marcola", na Câmara Federal, à Comissão Especial - Combate à Violência". Também disponível no sítio http://www.camara.gov.br/sileg/integras/14531.htm.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Domingos Barroso da. A propósito dos ataques atribuídos ao PCC (Primeiro Comando da Capital). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1197, 11 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9020. Acesso em: 29 mar. 2024.