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Justiça resolve os conflitos?

Justiça resolve os conflitos?

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Anualmente os tribunais do País publicam estatísticas crescentes de processos julgados. Mas o Judiciário só compõe a lide, ou seja, resolve o conflito, quando decide pelo mérito da causa.

É comum a afirmativa de que os conflitos são resolvidos pela justiça. Não é bem assim. A justiça, com certeza, resolve a lide, mas nem sempre resolve os conflitos de interesses entre as partes.

Aliás, se fizermos uma estatística de conflitos definitivamente superados pelo Poder Judiciário poderemos ter uma surpresa.

Anualmente os tribunais do País publicam estatísticas cada vez mais crescentes de processos julgados. São computadas nessas estatísticas a denegação de agravos, a rejeição de embargos declaratórios que obedecem a um acórdão padrão inseridos automaticamente nas decisões proferidas em massa. Às vezes, decide-se em questões de minutos centenas de agravos.

O Judiciário só compõe a lide, ou seja, resolve o conflito quando decide pelo mérito da causa.

Há uma tendência de se privilegiar o aspecto formal do processo em prejuízo do aspecto substantivo do direito, porque aquele não requer muito trabalho, ao passo que este último requer o exame cuidadoso dos fatos nas instâncias ordinárias em confronto com as alegações das partes, para só depois realizar o julgamento.

Indeferir uma ação por inadequação do pedido ou do rito adotado não requer julgamento, mas simples decisão. O mesmo acontece quando um tribunal superior nega seguimento ao recurso, invocando, na maioria das vezes, indevidamente a vedação de conhecer sobre controvérsias de natureza fática, o que já se incorporou na rotina dos insignes ministros das Cortes Superiores, para se livrarem da tarefa de julgar. Faz parte da jurisprudência defensiva, tendo em vista o incrível acúmulo de processos judiciais.

Uma coisa é a rediscussão de questões fáticas controvertidas, e outra coisa bem diferente é a recusa do Tribunal de conhecer de fato incontroverso, reconhecido pelas instâncias ordinárias, para julgar em instância extraordinária à luz daquele fato certo e determinado, dando-lhe o devido enquadramento jurídico. Doutrinariamente denomina-se a isso de revaloração da prova que requer intenso exercício mental. A judicatura é uma atividade desgastante do ponto de vista mental, por isso mesmo deveriam ingressar na magistratura apenas e tão somente aqueles dispostos a levar uma vida de sacrifícios, e não motivados por altos vencimentos em busca de privilégios pessoais legítimos e ilegítimos  que proporcionam aos investidos em cargos vitalícios.

Na prática, a chamada revaloração da prova não tem acontecido, senão em raríssimas ocasiões. No STJ a regra é a aplicação da Súmula nº 7, para contornar o exame do mérito, como se a norma jurídica pudesse incidir sem o respectivo suporte fático. Os fatos incontroversos, apesar de cansativo, devem ser examinados  cuidadosamente e analisados  à luz do direito aplicável para resolver em definitivo os conflitos de interesses das partes. O que não é admissível é transformar o processo, um instrumento-meio, em um fim em si mesmo. Não se pode dizer, por exemplo, que a justiça foi feita com a decisão que indeferiu a inicial por faltar um dos requisitos da ação.

Para descongestionar os tribunais superiores foram criados vários mecanismos como os juizados de conciliação, câmaras de conciliação, julgamentos sob o rito de recursos repetitivos, repercussão geral, decisões monocráticas nos colegiados etc.

Mas os processos não param de crescer. A litigiosidade está arraigada na cultura do brasileiro que só paga o que sabe ser devido após a decisão condenatória com trânsito em julgado. Muitos desses condenados, ainda,  frustram as execuções, esvaziando as contas bancárias, transferindo seus bens a terceiros ou levando-os para o exterior, a fim de dificultar, por todos os meios, a execução do julgado.

Já tivemos casos em que levamos quase duas décadas para obter a satisfação do crédito resultante da decisão judicial, por conta da transferência pelo executado de todo o seu patrimônio para offshore localizada em paraíso fiscal.

Enfim, temos um sistema judicial dos mais caros do mundo com vários órgãos encimado pelo STF (4ª instância), mas, pouco produtivo e eficiente em termos de solução de conflitos que perduram após a solução da lide. Na prática, o STF vem funcionando como uma Corte de instância ordinária, quer porque questões comuns foram sendo constitucionalizadas, quer porque o ativismo judicial faz com que a Corte Maior ultrapasse os limites das questões constitucionais, bem como invada atribuição de outros Poderes. A tese da declaração de inconstitucionalidade por via reflexa, por exemplo, tem variado em função de cada caso concreto. Ora, é invocada para negar conhecimento ao recurso extraordinário, ora ela é ignorada, conhecendo-se do recurso para dar-lhe provimento, tudo dependendo da qualidade dos interesses em conflitos.. 

A culpa da morosidade da atuação do Judiciário não é apenas dos julgadores, ou dos operadores do direito envolvidos na prestação jurisdicional. A cultura do brasileiro de tudo levar para o Judiciário é a responsável maior pelo congestionamento da justiça. Enquanto não houver reversão dessa cultura, a nossa justiça continuará sendo caríssima, morosa, insegura e de baixa qualidade, recheada de estatísticas que anunciam uma quantidade fantástica de processos julgados, decididos seria a palavra adequada, mas que falha no que concerne ao objetivo do processo que é o de conferir a efetividade ao direito proclamado por sentença transitada em julgado.

Quando se tratar de condenação contra o Estado, sobretudo, contra os Estados e Municípios, a ordem jurídico-constitucional está preordenada a esvaziar a eficácia das decisões transitadas em julgada, por meio de 'n' instrumentos normativos que abrangem desde emendas constitucionais que promovem sucessivos calotes de precatórios, até instrumentos normativos de menor hierarquia baixados pelo CNJ e órgãos dos tribunais locais para dificultar a tramitação dos procedimentos para efetuar os depósitos dos montantes requisitados.


Autor

  • Kiyoshi Harada

    Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Justiça resolve os conflitos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6545, 2 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90614. Acesso em: 18 abr. 2024.