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Lei de improbidade administrativa. Limites no ato de legislar

Lei de improbidade administrativa. Limites no ato de legislar

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Examina-se o projeto de lei de improbidade que institui um regime de impunidade e uma forma de legalizar o nepotismo.

Palavras chaves: improbidade administrativa. Efetividade. Ministério Público. Razoabilidade.

Existe no ordenamento jurídico nacional o princípio da razoabilidade que se coloca como um limite à ação do próprio legislador.

Segundo esse princípio não é razoável a legislação em causa própria. Neste caso a lei resultante da ação do legislador estará eivada do vício da ilegitimidade que precede a legalidade, sendo por isso mesmo uma norma de rejeição social, despida de efetividade, salvo nos regimes autoritários por via de coação física.

Assim, leis que instituem vantagens e privilégios manifestamente desproporcionais ao exercício da função legislativa são inconstitucionais, tendo em vista a situação global da sociedade brasileira com 40 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da miséria e 14 milhões de desempregados.

Temos um Parlamento dos mais caros do mundo com despesas anuais de R$ 10,8 bilhões para custear os 513 deputados e 81 senadores, cada um deles com direito a 27 assessores, o que situa o Brasil em 2º lugar no mundo, só perdendo para os Estados Unidos. O nosso Judiciário, por sua vez, é o mais caro do Planeta, consumindo 1,8% do PIB contra a média de 0,33% dos países da Europa, isto é, mais de 5 vezes a média dos tribunais europeus.

O que é pior, o Judiciário Brasileiro não vem mais cumprindo a sua função de administrar a justiça devido a sua morosidade de cunho estrutural. Levar mais de duas décadas para colher o resultado material do direito reconhecido não é fazer justiça. Justiça tardia, que transfere os benefícios resultantes da decisão judicial  a herdeiros, não é justiça!

Mas voltemos ao tema do artigo.

O PL nº 887/18, de autoria do Deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que mutila a Lei nº 8.429/92 que define os atos de improbidade administrativa, insere-se no âmbito da legislação despida do princípio da razoabilidade, objetivando a inaplicação da Lei da Ficha Limpa, que impede a candidatura de político condenado em 2º grau, por ato de improbidade administrativa.

Com tantos vazios deixados na Constituição, dependentes de regulamentação, o Parlamento Nacional imprime caráter de urgência na tramitação de projetos legislativos de interesse da classe política.

Sob o pretexto de que é preciso isentar da responsabilização os atos culposos, punindo tão somente o agente que agir com manifesta intenção de causar dano ao Estado (dolo), não sendo suficiente a mera voluntariedade do agente público, o projeto legislativo sob exame praticamente provoca a impunidade dos malversadores de bens públicos.

Como justificativa da proposta legislativa argumenta-se que se busca mais funcionalidade à administração pública à medida que traz maiores garantias na execução de políticas públicas, livres de ameaças de sanções administrativas e políticas, a pretexto de combater a corrupção.

Só que sob esse discutível pretexto, a proposta aprovada pela Câmara confere ao Ministério Público a exclusividade na propositura de ação por improbidade administrativa, subtraindo a legitimidade do representante judicial do ente político prejudicado, ou seja, a vítima de ato ilegal fica sem o direito de buscar a separação do dano.

Outrossim, introduz, a figura da prescrição retroativa do direito penal, bem como, a invalidação da decisão condenatória em caso de absolvição na esfera penal, confundindo deliberadamente as duas esferas distintas.

O projeto sob exame busca, na verdade, um regime de impunidade e uma forma de legalizar o nepotismo condenado pela Súmula Vinculante nº 13 do STF. Tanto é assim, que apesar de suprimido o nepotismo expresso durante a discussão na Câmara ele restou mantido de forma velada, por meio de uma redação dúbia.

O argumento de que visa punir apenas as condutas dolosas, também, não é convincente.

É noção que deriva do direito geral que a regra para a punição do agente é a presença do dolo, sendo que a culpa, por se constituir uma exceção, deve vir expressa no texto legal, quando for o caso.

Ora, os arts. 9º, 10º, 10A e 11 da Lei nº 8.429/92 estabelecem como regra a punição por ato doloso. Somente o art. 10 refere-se alternativamente à ação ou omissão “dolosa ou culposa”.

Porém, se lidos os vinte e um incisos desse artigo10,  embora o seu caput se refira à conduta culposa de forma alternativa, não há como dispensar a vontade livre e consciente de praticar a conduta ilegal, a começar pelo seu inciso I:

“facilitar ou concorrer por qualquer forma para incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º data lei”.

O próprio verbo “facilitar” ou “concorrer” está a expressar a vontade consciente de praticar a conduta tipificada. Ninguém facilita coisa alguma sem querer. Seria o mesmo que pretender dizer que alguém arrombou os cofres sem querer, para apanhar involuntariamente o seu conteúdo.

Ainda que assim não fosse, só para argumentar, quem lida com dinheiro público ou patrimônio público deve agir com prudência e com cautela e diligência, o que afasta a conduta negligente que o projeto sob exame torna irrelevante juridicamente.

A maioria dos incisos do art. 10 quando não caracterizam o dolo, caracterizam condutas culposas graves.

Para punir apenas a conduta do administrador que quer efetivamente prejudicar o Erário não precisaria da Lei de Improbidade, bastando a aplicação da lei penal.

Ninguém em sã consciência pratica um ato ilegal com o propósito específico de prejudicar o Estado. O fim visado pelo agente público ímprobo é sempre a obtenção de uma vantagem ilícita, levando-o a praticar atos de corrupção que prejudica o poder público. O dano ao Erário é um mero efeito colateral.

O projeto sob análise representa uma lei a favor da improbidade administrativa, quer por esvaziar o conteúdo das normas tipificadas, que por restringir a titularidade da ação, quer, enfim, pela introdução da inadmissível prescrição retroativa em uma conjuntura caracterizada pela morosidade do judiciário.

Ao invés de os parlamentares adequarem as suas condutas à legislação que elaboraram estão adaptando a lei às suas condutas ímprobas.

Este projeto de lei representa uma legislação em causa própria. Basta lembrar que dos 25 parlamentares que Comissão Especial, que analisaram a proposta legislativa, 7 deles estão respondendo por atos de improbidade administrativa.

Toda lei dotada de alguma efetividade vem sendo objeto de esvaziamento por via de instrumentos legislativos supervenientes.

Temos uma verdadeira epidemia de normas despejadas diariamente, todas elas voltadas exclusivamente para o plano meramente abstrato, muito ao gosto da cultura de nossos legisladores.


Autor

  • Kiyoshi Harada

    Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARADA, Kiyoshi. Lei de improbidade administrativa. Limites no ato de legislar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6601, 28 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91726. Acesso em: 28 mar. 2024.