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O dano criminal, esse desconhecido

O dano criminal, esse desconhecido

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O dano criminal distingue-se do dano civil não apenas pela sua fonte legislativa, mas pela sua reparabilidade: só é reparável mediante a condenação criminal e o cumprimento da pena imposta, apesar da possibilidade de incidentes na execução ou causas extintivas da punibilidade.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Licitude primária e licitude secundária. 3. Caráter constitutivo ou sancionador do direito penal. 4. Dano criminal: conceito provisório. 5. Dano em geral: espécies. 6. Dano criminal e dano civil: distinção. 7. Condenação criminal e reparação do dano civil. 8. Dano criminal: espécies. 9. Dano e dolo. 10. Bem e Interesse. 11. Objeto de proteção: bem ou interesse? 12. Licitude e ilicitude do bem ou interesse. 13. Torpeza bilateral. 14. Objeto jurídico e objeto material. 15. Condutas lesivas e perigosas não puníveis. 16. Resultado naturalístico e resultado jurídico. 17. Unidade e pluralidade de objetos jurídicos. 18. Descoberta do objeto jurídico. 19. Dano criminal: conceito definitivo. 20. Perda da paz. 21. Princípio da intervenção mínima. 22. Princípio da relevância. 23. Princípio da alteridade. 24. Princípio da lesividade. 25. Lesividade e lesão. 26. Tipicidade material e antijuridicidade material. 27. Licitude típica e ilicitude elementar. 28. Tipicidade material e antijuridicidade material: exemplificação. 29. Exclusão contextual da ilicitude. 30. Atributos do direito: vigência, validade, legitimação, eficácia e efetividade. 31. Inefetividade e suas conseqüências penais. 32. Desrespeito aos princípios penais e definição material de crime. 33. Ausência do elemento subjetivo nas causas de exclusão da ilicitude. 34. Delitos culposos e delitos omissivos impróprios. 35. Crimes de mera conduta e, entre eles, o crime omissivo próprio. 36. Tentativa. 37. Crime e contravenção: distinção. 38. Participação em suicídio. 39. Furto. 40. Eutanásia e ortotanásia. 41. Retirada post mortem de órgãos humanos para transplante. 42. Anencefalia e aborto. 43. Esbulho possessório por membros de movimentos sociais. 44. Posse e porte de armas, acessórios e munições. 45. Encerramento.


l. O tema a que me proponho raramente tem merecido a atenção dos juristas, talvez por suporem faltar-lhe importância no campo teórico e prático. Ledo engano, diante de questões que dele emergem de grande relevância doutrinária e forense. Julgo que o assunto, devidamente elucidado, pode trazer um poderoso manto protetor às liberdades individuais contra a tirania estatal, impedindo a vigência de leis despóticas e evitando a prolação de sentenças arbitrárias.

De maneira notável, o assunto foi tratado, na Itália, por dois autores portentosos: Arturo Rocco, ao cuidar do objeto do delito, e Francesco Carnelutti, ao escrever sobre o dano e o crime; no Brasil, por Heleno Cláudio Fragoso, Paulo José da Costa Jr. e Everardo da Cunha Luna. Por sua vez, os tribunais pátrios ainda não se manifestaram a contento.

Devo advertir que este artigo é apenas o resultado de minhas diuturnas meditações e reflexões sobre o direito punitivo, ao singrar por certos mares pouco navegados. Reconheço que toda obra só pode provir de uma cultura universalmente construída. Por isso é que confesso que tudo o que sei resulta maximamente das idéias alheias e minimamente das minhas próprias.

Quanto ao título que encabeça a matéria, não representa ele nenhuma arrogância ou suntuosidade, senão uma singela homenagem ao sábio francês Alexis Carrel, autor do célebre livro L’Homme, cet Inconnu. Adoteio-o, embora sabendo que posso a vir expor abertamente o meu próprio desconhecimento.

Antes de ingressar na exposição temática, há duas questões prévias a serem enfrentadas, a saber, licitude e ilicitude de condutas e natureza constitutiva ou sancionatória do direito penal.

Veja-se a primeira questão prévia:

2. Os comportamentos humanos voluntários, ou seja, as condutas (ações e omissões), são, numa esmagadora maioria, lícitos; numa minoria deles, ilícitos; num número ínfimo deles, penalmente ilícitos. Dentro desse último grupo, há, porém, algumas licitudes de caráter excepcional. Os dois primeiros grupos compõem o que chamo de condutas penalmente livres; o terceiro, o que designo por condutas penalmente proibidas; o quarto, finalmente, o que denomino de condutas penalmente liberadas. Assim, são condutas penalmente livres passear pelas ruas e até descumprir um contrato; são condutas penalmente proibidas matar alguém e praticar aborto; por último, são condutas penalmente liberadas matar alguém em legítima defesa e praticar aborto terapêutico. As ações e omissões penalmente livres pertencem à classe correspondente à licitude primária ou de 1º grau; as penalmente liberadas, à classe correspondente à licitude secundária ou de 2º grau. Essa licitude secundária ou de 2º grau pode ser genérica ou específica, segundo, respectivamente, recaia sobre um número indeterminado de casos (escudados pela legítima defesa ou pelo estado de necessidade), em que estará excluída a antijuridicidade dos fatos típicos; ou recaia sobre casos específicos (amparados pelo cumprimento de dever legal, pelo exercício de direito, pela desistência voluntária ou pelo arrependimento eficaz etc.), em que estará excluído o próprio tipo penal.

A seu tempo será visto se o dano criminal pode ou não resultar dessas condutas. Por enquanto, devo dizer que a licitude primária ou de 1º grau não resulta de norma alguma. Pelo contrário, resulta da ausência de norma, ou seja, de norma proibitiva. E devo dizer mais que a licitude secundária ou de 2º grau nasce de uma norma explícita, de natureza permissiva, em contraposição ao que ocorre com a ilicitude penal, que decorre de uma norma de natureza proibitiva, implícita em cada tipo de crime. Não há porque, então, falar em tipos permissivos, pois o tipo é apenas descrição de uma conduta proibida por normas nele embutidas e um continente de elementos objetivos, subjetivos e, às vezes, normativos. As normas, diferentemente, são implícitas nos tipos – quando proibitivas, ou são autonomamente explícitas – quando permissivas (imperativas, permissivas propriamente ditas e resignativas), isto é, quando implicarem, por meio de um contratipo, uma excepcionalização da tipificação. (Cfr. o artigo de minha autoria: "Teoria da Contratipiticidade Penal").

Eis uma visualização concisa dessa problemática, sob a ótica penal:

__ conduta livre (licitude de 1º grau): atipicidade;

__ conduta proibida (ilicitude penal): tipicidade;

__ conduta permitida ou penalmente liberada (licitude de 2º grau):

__ específica: exclusão da tipicidade;

__ genérica: exclusão da antijuridicidade.

Veja-se a segunda questão prévia:

3. Saber se o direito penal tem caráter constitutivo ou sancionatório seria um assunto despiciendo se não interessasse de perto ao objeto destas indagações. Por isso respondo imediatamente: o direito penal é constitutivo, na minoria das vezes, e sancionatório, na maioria das vezes. De qualquer jeito, o que importa é que ele, criando as próprias normas ou apenas munindo de pena as normas dos outros ramos do direito, concede-lhes uma coloração toda própria, ao selecionar e hierarquizar as condutas pelo seu desvalor, tipificar-lhes a ilicitude. Dessa forma, evidencia-se que, em verdade, o direito penal não tipifica condutas, mas condutas ilícitas. Não é senão por isso que algumas causas de exclusão da ilicitude (cumprimento de dever e exercício de direito) não possuem a natureza de justificativas penais (causas de exclusão da antijuridicidade) e sim de excludentes do próprio tipo penal, como já foi dito.

Daí repisar a questão já ensaiada: haverá dano criminal diante desses fatos? A resposta ficará ao aguardo do desenvolvimento do presente trabalho, em algum momento após fixar o conceito de dano criminal.

Entrementes, só para aguçar a curiosidade do leitor, pergunto mais: o filho que furta do pai causa dano criminal? E o pai que auxilia o filho criminoso a subtrair-se à ação da autoridade?

4. E é chegado o momento de conceituação do dano criminal.

Se, para essa tarefa, eu optasse por recorrer ao Código Penal, baldados seriam os esforços despendidos. Erraria fatalmente ao encaminhar a atenção para os dispositivos que cuidam da reparação do dano emergente do delito (arts. 16; 65, II, b; 78, § 2º; 81, II; 83, IV; 91, I; 94, III; 312, § 3º), por definitivamente não tratarem de dano criminal, o qual não é reparável, pelo menos na modalidade dos artigos que acabo de citar.

Erraria novamente se me voltasse para o disposto no art. 163 do CP, que define o crime de dano e dissesse que "dano criminal é a destruição, inutilização ou deterioração de coisa alheia". E é simples a razão do erro: o dano aí referido recai exclusivamente sobre uma coisa, corpórea, de natureza patrimonial e não sobre um objeto jurídico, de amplitude mais extensa e comum a todo delito, inclusive, portanto, ao próprio crime de dano. Para evitar qualquer confusão a respeito é que sugiro, de lege ferenda, alterar o nomen juris do crime de dano para danificação, praticada nas mesmas modalidades de ação apontadas (destruir etc.) e, mais, a de fazer desaparecer coisa alheia, hoje omitida.

Acatando, enfim, a definição corrente, digo que "dano criminal é a lesão do bem ou interesse protegido pela norma", ou, em outras palavras, "é a lesão, efetiva ou potencial, do bem ou interesse realizada pelo delito". Advirto, por cautela, que tal conceito é apenas provisoriamente por mim aceito, porque dele divirjo sobremaneira.

Mas, examinando o conteúdo da definição apresentada, surgem diversos pontos a serem esclarecidos, a saber: as espécies de dano existentes e, entre elas, as de dano criminal; a noção de bem e de interesse, explicando qual deles é o objeto da proteção jurídica; e, finalmente, se essa lesão, efetiva ou potencial, pode ser considerada ou não como um resultado do crime. Se não, vejam-se:

5. Em direito, há basicamente duas espécies de dano em geral: dano criminal e dano civil. Compreendem-se, nesse último, os resultantes de atos e fatos ilícitos, incluindo neles o próprio delito, e apresentando-se como dano material (dano imediato), lucro cessante (dano mediato); dano moral; dano estético; dano à imagem; e dano ambiental ou ecológico.

6. O dano criminal distingue-se do dano civil não apenas pela sua fonte legislativa, mas pela sua reparabilidade. O dano civil é, por essência, reparável. Uma coisa furtada, por exemplo, pode ser restituída ou, na impossibilidade, pode ser indenizada, estando, assim, reparado o dano civil. O dano criminal, ao contrário, segundo se sustenta, só é reparável mediante a condenação criminal e o cumprimento da pena imposta, apesar da possibilidade de surgirem incidentes em sua execução (suspensão condicional da pena, livramento condicional), surgimento de causas extintivas da punibilidade (anistia, graça, indulto, prescrição, decadência, o pagamento do tributo devido nos crimes contra a ordem tributária, além de outras), etc.

7. Aqui surge a oportunidade para que um mito, nascido de uma interpretação estrábica e extensiva do art. 63 do CPP, seja desfeito, pois não é verdade que a toda condenação criminal segue-se a obrigação de reparação civil. Ora, se em todo crime há dano criminal, isso não acontece com o dano civil, que pode não existir em algum delito. Para que haja dano criminal, basta que exista a figura do sujeito passivo do crime (pessoa física ou jurídica). Todavia, só existirá dano civil se no fato aparecer a figura do prejudicado, que é aquele que faz jus à reparação. No furto, esse prejudicado confunde-se com o sujeito passivo. No homicídio, diferentemente, é a família da vítima. Mas, qual será o prejudicado, por exemplo, no crime de uso de uma carteira de habilitação falsa? E da posse de petrechos para falsificação de moeda (art. 91 do CP) ou de papéis (art. 294 do CP)? Ninguém, pois nesses delitos não há dano civil a ser ressarcido.

Daí, concluir-se que, apesar de uma condenação criminal, nem sempre haverá o dever de reparação. Essa afirmação não se afasta do que preceitua o art. 91 do CP, o qual se cinge a tratar, como efeito da condenação, a obrigação de reparar o dano que tiver sido efetivamente causado pela infração penal.

8. O dano criminal, por sua vez, divide-se em dano propriamente dito, ou dano efetivo, e perigo, ou dano potencial, cujo conceito, atualmente já pacificado, "é a probabilidade de dano". O perigo, a seu turno, comporta diversas divisões: perigo individual e perigo coletivo (comum, extensivo, difuso); perigo atual e perigo iminente; perigo concreto (real) e perigo abstrato (presumido). A propósito, diga-se que a punição da realização do perigo dirige-se à prevenção do dano. Assim, caso este ocorra, não há mais porque efetivar-se a persecução penal daquele, o que afasta, assim, um aparente concurso de tipos penais.

9. Diga-se mais que o elemento subjetivo do delito também tem a ver com o dano criminal, haja vista o dolo de dano e o dolo de perigo, conforme o agente pretenda provocar um ou outro. Se o crime é de dano (art. 121 do CP), o dolo é de dano. Se o crime é de perigo (art. 132 do CP), o dolo é de perigo. Estranhamente, pode haver dolo de dano em crime de perigo (arts. 130, § 1º e l31 do CP) e, ao revés, dolo de perigo em crime de dano (art. 164 do CP). Mas, quando o dolo for de perigo, em delito de perigo, e ocorrer o dano, este somente pode ser punido a título de culpa.

10. Acima foi visto que o dano criminal recai sobre o objeto de proteção da norma, ou seja, sobre o objeto jurídico. Bem, no conceito corrente, "é tudo aquilo que pode satisfazer uma necessidade humana", seja corpóreo ou incorpóreo, como a vida, a integridade pessoal, a honra, o patrimônio etc. Interesse, também no conceito corrente, "é a relação existente entre o bem e o seu titular". Não vejo com bons olhos a idéia de que tal possa ser uma relação – ainda mais uma relação jurídica, a não ser que fosse entre pessoas. Melhor seria dizer que "interesse é o reconhecimento, por parte de alguém, de que um bem se presta a satisfazer suas necessidades, somado à disposição positiva, expressa ou tácita, de mantê-lo em seu prol".

A diferença existente entre bem e interesse, sob o ponto de vista prático, é tão tênue e ínfima que von Liszt chegou a definir o bem jurídico como o interesse juridicamente protegido. Não obstante, Carnelutti afirmou, certa feita, que para haver delito é preciso que ocorra unidade de bem e dualidade de interesses, o que seria verdade, caso aquele insigne autor não tivesse confundido bem com coisa. No furto, por exemplo, bem é o objeto de proteção ou de tutela jurídica (patrimônio), enquanto que coisa é o objeto material – o objeto da ação de subtrair (um relógio, por exemplo). Aí, sim, Carnelutti passaria a ter razão, pois, continuando com o exemplo do furto, há, nesse delito, unidade de objeto material e dualidade de interesses, um do sujeito ativo, em tornar sua a coisa, e outro, do sujeito passivo, em mantê-la em seu patrimônio.

11. Bem e interesse, na visão jurídica, são palavras praticamente sinônimas e, aqui, podem, em regra, ser empregadas indistintamente. Por se distinguirem, contudo, no plano ontológico, cabe a seguinte indagação:

O objeto do delito (de proteção ou de tutela) é o bem ou o interesse?

Posso eu responder afirmando que são o bem e o interesse, desde que acrescente à resposta o advérbio relativamente, já que o bem pode perder a proteção, por falta de interesse, como se dá no apossamento de coisa abandonada (res derelicta), fato esse que não caracteriza o furto. Ao inverso, a ausência de interesse pode ser irrelevante para impedir a proteção do bem, como ocorre com a punição do homicídio solicitado pela própria vítima. Em outras situações, principalmente nos crimes contra a honra, o patrimônio e os costumes o desinteresse em relação ao bem (consentimento do ofendido ou, melhor, do titular do bem) pode ter ampla relevância descriminadora. Para que o consentimento seja admitido em diversas excludentes, o bem deve ser disponível e o consensiente, maior de idade e mentalmente são.

12. Outra averiguação interessante refere-se à obrigação de o bem ou interesse ser lícito, objeto de proteção, isto é, para que se considere objeto jurídico de um delito e para que sua lesão possa tornar-se um dano criminal.

Ora, se o objeto do crime é um bem ou interesse juridicamente tutelado, é evidente que ele deva ter a licitude como qualidade, porque seria inconcebível e contraditório que o direito protegesse a ilicitude. No entanto, se se trocar o vocábulo bem por coisa, a situação pode complicar-se, considerando que pode haver coisas ilícitas, embora relativamente ilícitas. A elas refere-se o código penal, no art. 91, II, "a" (coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitui fato ilícito). Um compact disc (cd) "pirata", uma substância estupefaciente, uma falsa máquina de fabricar moeda, por exemplo, não podem ser objeto de crime de furto, v.g., em razão de não poderem integrar o patrimônio de ninguém, salvo se pertencerem ao acervo de um museu ou estiverem sob a guarda de um laboratório de perícia criminal, etc.

Assim, é o interesse pelo objeto que lhe confere a característica de licitude ou ilicitude. O sujeito ativo do crime deve sempre apresentar um interesse ilícito para a prática de um fato punível. Se lícito o interesse, não haverá dano criminal ou crime. O sujeito passivo, em contraposição, deve ter um interesse lícito, sem o que não pode revestir essa figura do delito. Nem sempre, porém, o seu interesse lícito será protegido pelo direito. É o que ocorre na situação de alguém, titular de um interesse lícito, que venha a perder a proteção penal, diante do nascimento de um conflito com outro interesse, também lícito, tal como se dá no estado de necessidade.

Em síntese, tem-se o seguinte:

__somente o interesse ilícito do agente pode resultar em dano criminal;

__só o interesse lícito merece a tutela jurídica;

__o interesse lícito pode perder a proteção jurídica, em favor de outro interesse, igualmente lícito.

13. Outro questionamento deveras interessante é o que concerne à torpeza bilateral (utriusque turpido), situação em que ambos os sujeitos do delito têm interesses ilícitos. Exemplos: alguém compra uma falsa máquina de fabricar moedas, julgando-a verdadeira, ao ser enganado mediante manobras ardilosas (conto da guitarra); outro alguém, iludido por algum artifício empregado e mediante pagamento da alta quantia, contrata um falso pistoleiro para matar um seu inimigo, o que, a final, não é concretizado; um determinado empregado, que levava consigo certo numerário para entregá-lo a seu patrão, adquire com ele, após ser induzido a erro, um bilhete de loteria falsamente premiado.

Pergunta-se: qual a solução jurídica para as três hipóteses, considerando o ilícito interesse de todos os envolvidos?

Apesar das opiniões em contrário, até mesmo de Hungria, para quem o direito não deve preocupar-se com questões à margem do direito, penso que cada pessoa deve responder segundo a tipificação de sua conduta e o dano criminal que tiver produzido. Assim, a resposta será muito fácil se se considerar que o dano criminal, nas três situações, só ocorreu por obra dos estelionatários. As vítimas, apesar do seu interesse ilícito, apenas incorreram na figura do quase-crime (crime impossível, na primeira e última hipóteses; concorrência frustra, na segunda hipótese). No último exemplo dado, todavia, o empregado há de responder pela apropriação indébita cometida contra o patrão. Um episódio de torpeza bilateral, que merece alusão, é a compra e venda de uma falsa jóia paga por meio de moeda falsificada...

14. Ao falar em dano, perigo, objeto jurídico, bem e interesse é preciso lembrar sempre a distinção, já referida, existente entre bem e coisa e entre objeto jurídico e objeto material. No crime de furto, v.g., o bem jurídico, que significa o objeto do delito, é o patrimônio, enquanto que a coisa alheia móvel é o objeto material da ação de subtrair. Já se disse que o objeto jurídico é a alma (soul) do crime, enquanto o objeto material é o seu corpo (body). Em outros termos, o objeto material nada mais seria do que a corporificação do objeto jurídico, assim como a coisa seria a corporificação do bem. Mas isso não é a pura verdade, porque pode até haver crime sem objeto material, como ocorre no falso testemunho, mas nunca crime sem bem ou interesse e sem, por isso, objeto jurídico. Além do mais, como não passou despercebido a Bettiol, dano e perigo não existem no plano naturalístico, uma vez que, sendo conceitos valorativos, pertencem ao plano normativo e à ilicitude.

15. Sendo o dano ligado à ilicitude, compreende-se que certas condutas, apesar de lesivas ou perigosas, como as lesões desportivas e a direção de veículos automotivos, à luz da adequação social, não sejam puníveis. Nem poderiam sê-lo, sem dificultar ou mesmo impedir as ordinárias e multifárias formas de interações humanas.

16. Afirmei alhures que o código penal pátrio, em nenhum momento, referiu-se ao dano criminal. Mas o que não obstou que dele se ocupasse, embora usando outra terminologia, como uma forma de resultado ou, precisamente, como resultado normativo ou jurídico, que não se confunde com o resultado da ação ou resultado naturalístico ou material. Surgiram, então, inúmeras críticas ao legislador por não admitir, então, a existência de crimes sem resultado (de mera conduta ou de simples atividade), o que se comprova à vista da definição de dolo e de relação de causalidade. Vê-se, no item l3 da Exposição de Motivos, assinada pelo Min. Francisco Campos, embora de autoria de Hungria, o seguinte:

__Com o vocábulo "resultado", o citado artigo (l5, I) designa o efeito da ação ou omissão criminosa, isto é, o dano efetivo ou potencial, a lesão ou perigo de lesão de um bem ou interesse penalmente tutelado. O Projeto acolhe o conceito de que "não há crime sem resultado". Não existe crime sem que ocorra pelo menos um perigo de dano; e sendo um perigo um "trecho da realidade" (um estado de fato que contém as condições de superveniência de um efeito lesivo), não pode deixar de ser considerado objetivamente como resultado, pouco importando que, em tal caso, o resultado coincida ou se confunda, cronologicamente, com a ação ou omissão. (Aspas e itálicos do original).

O texto, além de conter impropriedades terminológicas, como perigo de dano, e científicas, como efeito da omissão, refere-se ao resultado naturalístico ou material, mas inclui nele o dano e o perigo, que, taxativamente, não são efeitos da conduta. O dano criminal (efetivo ou potencial), que é tido como o próprio resultado normativo ou jurídico, é, na verdade, o cerne do delito e pertence ao campo da ilicitude (típica e elementar ou antijuridicidade). Onde houver crime, haverá ilicitude e onde houver ilicitude, haverá dano criminal, independentemente da presença ou da ausência de qualquer resultado naturalístico.

Apesar das críticas, a nova Parte Geral do CP, em seus arts. 13 e l8, repete os mesmos dizeres da antiga, ao rezar:

Art. 18 – Diz-se o crime:

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

Ora, a definição de dolo, com a distinção que hoje se faz entre resultado e dano, bem que poderia ter sido mudada a fim de alcançar os crimes de mera conduta. Ou será que os crimes de mera conduta não serão informados por dolo e sim por mera voluntariedade, elemento subjetivo receitado, como regra, nas contravenções para deixar claro que nelas não se exige a má-fé do agente? (Lembre-se que antigamente a má-fé, ou seja, a consciência da ilicitude, integrava o elemento cognitivo do dolo).

Ele – o dolo, é hoje corretamente definido como a consciência e vontade de concretização dos elementos objetivos do tipo, quer em crimes materiais quer em formais e de mera conduta.

O código penal, ao tratar da relação de causalidade, continua errando, ao exigir a presença do resultado para que haja crime. Para livrar-se do erro, basta que o presente do indicativo do verbo "depender" (de que depende) seja substituído pelo presente do subjuntivo (de que dependa).

O resultado naturalístico, enfim, somente existe nos crimes materiais, mas o dano criminal (também chamado de resultado normativo) existe em todo e qualquer crime, seja ele material, formal ou de mera conduta; doloso ou culposo; comissivo, omissivo ou comissivo por omissão; instantâneo ou permanente; comum ou próprio, etc., etc.

17. Questão interessante é a levantada por Battaglini, para quem cada crime somente pode ter um objeto jurídico. Lembra e cita o crime de adultério, no qual comumente se enxergam dois objetos jurídicos: a fidelidade conjugal e a certeza da prole, optando aquele autor pelo último interesse a ser juridicamente protegido, sob o argumento de que o primeiro pode também ser ferido por atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Ora, a meu ver, essa argumentação não é nada decisiva, além de permitir que se chegue à absurda conclusão de que seria crime impossível o adultério da mulher naturalmente infértil ou que tivesse se submetido a uma laqueadura tubária. Além disso, quem poderia, legalmente, excluir os atos libidinosos da compreensão do adultério?

Infelizmente, a que eu saiba, Battaglini não apresentou nenhum embasamento para negar a possibilidade da existência de mais de um objeto jurídico num só crime. Teria ele razão? E o que dizer dos crimes que lesam ao mesmo tempo diversos interesses, como o roubo, a extorsão, a concussão e, sobretudo, o crime falimentar? Apesar desses óbices, fico com o mestre italiano e trago um argumento para fundamentar a assertiva: todo crime só possui um objeto jurídico, porém este pode ser simples ou complexo (ou de objetividade jurídica complexa) por conter, no último caso, dois ou mais bens ou interesses tutelados. O objeto jurídico (de tutela ou de proteção) é uno, mas o bem jurídico nele contido pode ser múltiplo. Em conseqüência, o que não pode passar despercebido, a cada crime corresponde, então, um só dano criminal, independentemente da quantidade de interesses lesados.

18. A importância do objeto jurídico já está por demais fixada. Por conta disso, é essencial saber como descobri-lo num dado delito.

Como se sabe, o objeto jurídico é justamente o critério adotado pelo legislador para classificar os crimes na parte especial do código penal. Por isso, nas leis que possuam status igual ou semelhante a um código, para facilmente conhecer o objeto jurídico inserto na norma implícita em cada tipo penal, basta verificar qual é a epígrafe titular (a), capitular (b) e seccional ou o nomen juris (c) em que o delito é definido. Assim, estará descoberto o que Battaglini denominou, respectivamente, de objeto jurídico genérico, objeto jurídico específico e objeto jurídico subespecífico do crime. Assim, por exemplo, no infanticídio, o objeto de proteção é a pessoa humana (a), no particular aspecto da vida (b) do ser nascido ou recém-nascido (c); na violação de domicílio, é a pessoa humana (a), no particular aspecto da liberdade individual (b), que compreende a inviolabilidade do domicílio (c).

Entretanto, em leis outras, assistematizadas como geralmente o são, o recurso é lançar mão das regras da Hermenêutica Penal, atentando, principalmente, para os fins sociais a que elas se destinam. Para desincumbir-se desse mister, o intérprete deve ter em mente que, apesar de se falar em lei, a interpretação tem por objeto o direito em sua tridimensionalidade (fato, valor e norma).

19. Cheguei, agora, aos momentos sucessivos mais importantes do presente trabalho, sendo o primeiro deles o que cuida de construir e apontar o verdadeiro conceito de dano criminal. Até o presente, de forma provisória, estava eu admitindo como verdadeira a definição usual, segundo a qual o "dano criminal é a lesão, efetiva ou potencial, do bem juridicamente protegido". Essa definição era provisória, por duas razões alternativas, a saber: primeira: contém o vício da tautologia, já que, afinal de contas, lesão e dano eram expressões sinônimas; segunda: não sendo, ao contrário, expressões sinônimas – e é o que penso, porque a palavra lesão possui um sentido mais extenso do que dano, já que este somente compreende a lesão ilícita e que fira um interesse lícito.

Posto isso, eis a definição que proponho:

Dano criminal é a lesão penalmente ilícita, efetiva ou potencial, do bem ou interesse juridicamente protegido.

Algumas explicações se impõem:

Se dano criminal é sempre um lesão ilícita, isto é, aquela que tenha por objetivo um interesse ilícito e seja praticada mediante uma conduta tipificada em lei, há lesões que, por serem penalmente lícitas (livres ou liberadas), não se constituem em dano criminal, como, por exemplo, algumas decorrentes de práticas desportivas; o impropriamente denominado tratamento médico arbitrário; a coação para impedir suicídio; as resultantes de fato praticado em legítima defesa, estado de necessidade, cumprimento de dever legal e exercício de direito; o "furto" e o "favorecimento pessoal" entre certos parentes próximos; etc. etc. Afirme-se, de uma vez por todas, que nos casos apontados, há lesão, mas não há dano criminal.

Pode ocorrer, por outro lado, como já afirmei, que ambos os interesses postos em conflito sejam lícitos, como acontece no estado de necessidade. Porém a lei penal opta pelo interesse do agente e abandona o outro. Tal situação está dentro do conceito acima proposto, já que, na hipótese, o interesse, apesar de lícito, não se encontra penalmente protegido. Nesse caso também não existe dano criminal, senão simples lesão. Isso não significa, em conseqüência, que aí fique, do mesmo modo, excluído o dano civil, haja vista o dever de reparar o dano que nasce do estado de necessidade ofensivo.

20. Antigamente, no direito normando, existia uma pena bastante atroz e significativa, qual seja a da perda da paz, consistente na geral e irrestrita retirada de qualquer proteção jurídica relacionada ao condenado. Depois de infligida, essa pena permitia que qualquer pessoa o pudesse matar, lesionar e subtrair-lhe os bens. A perda da proteção jurídica significava, então, em qualquer fato lesivo, um caso de inexistência de objeto jurídico, sem o que não havia dano criminal, nem crime.

Fico devendo, por enquanto, uma exposição mais detalhada sobre perda da proteção jurídica, onde analisarei certos assuntos, como a eutanásia e ortotanásia; anencefalia e aborto; e conceito de morte para permitir a retirada de órgãos para transplante. Fico devendo, igualmente, um estudo especial sobre as conseqüências na estrutura do delito da aludida ausência de objeto jurídico e se isso pode configurar um crime impossível, conforme já admitira Bettiol, não obstante tal entidade só ser lembrada e admitida no tocante à inidoneidade absoluta dos meios empregados ou à absoluta impropriedade do objeto material visado. E, mais, se a ausência de objeto jurídico e, a fortiori, da lesividade, abstratamente considerada, pode ou não ser inquinada de inconstitucionalidade; enquanto que a falta do dano, concretamente considerado, deve ou não qualificar-se de excludente da ilicitude típica.

Falarei, a seguir, a respeito de certos princípios penais que apresentam estreita ligação com o dano criminal.

21. Há inúmeros princípios que informam o direito penal contemporâneo. Um deles, pelo qual tenho profundo apego é o da intervenção mínima, segundo o qual o direito penal deve limitar-se a incriminar apenas o essencial e indispensável para a manutenção das condições de vida em sociedade. A par disso, o princípio está acorde com a tendência crescente de descriminalização, em atenção à perda de efetividade das normas envelhecidas; e de despenalização, ao admitir penas alternativas à prisão, a fim de evitar a influência deletéria do cárcere sobre o condenado a cumprir penas de curta duração. Só resta, agora, com essa aproximação do direito penal ao direito administrativo, que se passe à fase de desjudicialização, para dar mais celeridade e efetividade às sanções aplicáveis, sem os entraves do processo judicial. Veja-se, por exemplo, uma penalidade relacionada ao trânsito ou ao meio ambiente, que, ainda que possa ser muito mais severa do que uma pena pecuniária por infração criminal ou contravencional, é aplicada, em qualquer caso, por autoridade administrativa.

Esse princípio está umbilicalmente ligado a outros três princípios bastante relacionados com o dano criminal: o princípio da relevância, o princípio da alteridade e o princípio da lesividade, os quais, por sua vez, chegam quase a constituir uma unidade, tamanho o parentesco observado entre eles. O conteúdo dos dois primeiros, não fosse a conveniência teleológica da tripartição, que recomenda que o assunto seja muito bem disposto, arranjado e discorrido, não seria minimizado nem esquecido se existisse somente o terceiro.

22. O princípio da relevância, emergente do princípio da intervenção mínima, requer, no plano abstrato, que somente condutas de acentuado desvalor social sejam incriminadas e, no plano, concreto, sejam punidas. No primeiro caso, o destinatário do princípio é o legislador; no segundo, o juiz. Não pode o legislador, por exemplo, incriminar o fato de alguém cuspir no chão, apesar de tal falta ser reprovada em outras normas de cultura. Por outro lado, pode e deve reprimir o furto, embora se a subtração recair sobre coisa de somenos importância ou de valor diminuto, deve o juiz absolver o réu em face da ausência de tipicidade (tipicidade material, como se verá). Esse princípio, o da relevância, é de adoção preferível ao seu oposto, o impropriamente denominado princípio da insignificância.

23. Por sua vez, o princípio da alteridade, da transcendência ou da alheidade condiciona o legislador para que apenas a conduta que atinja o interesse de outrem possa ser considerada delito. Isso decorre da natureza do próprio direito, que se destina a reger as interações sociais. O homem isolado, como Robson Crusoé, é infenso às normas jurídicas. Além do mais, sabe-se que ninguém pode ser sujeito ativo e passivo da sua própria conduta. É, por isso, dentre outras razões, que o suicídio, nem na forma tentada, é punível. O mesmo ocorre com a autolesão, a subtração ou danificação de coisa própria e a auto-acusação falsa. Não é concebível, então, dano criminal, praticado e sofrido pelo próprio sujeito-agente.

Nos casos apontados, exceto no que diz respeito ao suicídio, consumado ou tentado, o dano criminal incidirá sobre o interesse de outrem, qual seja, na autolesão - sobre o patrimônio, cujo interesse pertence à seguradora (art. 171, § 2º, V do CP) ou sobre o serviço militar, contra a insubmissão, cujo interesse é do Estado (art. 184 do CPM); na subtração ou na danificação de coisa própria (art. 346 do CP) e na auto-acusação falsa (art. 341 do CP) – sobre a administração da justiça, cujo interesse é novamente do Estado.

Se alguém é processado criminalmente por lesar a si mesmo, não poderá ser condenado, por falta de tipicidade (até mesmo de tipicidade formal), tendo em vista a simples leitura do conteúdo dos diversos tipos penais, onde o legislador, ao respeitar o princípio ora examinado, teve o cuidado de deixar clara a alheidade do bem ou interesse tutelado. No crime de homicídio (art. 121 do CP), no entanto, o legislador pautou-se de outro modo, talvez para preservar aquela definição do delito – a mais simples, clara e significativa do código penal: matar alguém. Nem a estética perdoaria, se a lei tivesse escolhido outro conceito, visando a excluir a tentativa de suicídio do âmbito do homicídio tentado, como, quem sabe, matar outrem.

24. O princípio da lesividade, da ofensividade ou da danosidade merece uma explicação precedente, de ordem até terminológica. Creio que a mais adequada denominação seja princípio da lesividade. E explico: para mim, uma outra terá o sentido menos ou mais extenso do que é preciso, isto é, respectivamente, o da ofensividade e o da lesividade. In medio virtus.

E aqui, fazendo uma pausa na explicação das razões de preferência da denominação correspondente à lesividade, passo a indicar e comentar o enunciado do princípio sob análise.

O princípio da lesividade, que primordialmente se destina a balizar e a limitar a função legislativa, tem em vista evitar que, a seu talante e por tirania, despotismo, arbitrariedade, abuso ou despreparo do legislador, seja penalmente tipificada uma conduta qualquer. Já está assente, entre os juristas, que não basta, para que se considere crime, a mera infração à norma proibitiva. É preciso mais: que o agente fira ou coloque em grave risco um bem ou interesse previamente tutelado, ou seja, que exista um determinado objeto jurídico.

Voltando à questão da minha preferência pelo princípio da lesividade, tenho para mim que seja desnecessário que, à previsão de lesividade, some-se qualquer menção à ilicitude, transformando, assim, essa lesividade em danosidade. Impõe-se essa conclusão porque a ilicitude já integra o conceito genérico de crime, sendo, portanto, integrante de todo fato punível. Basta unicamente, pois, a simples previsão da lesividade. Recusada está, então, a adoção de dito princípio da danosidade.

Fica recusada igualmente a terminologia princípio da ofensividade para denominar o que ora é considerado. a minha opção partiu da distinção que Carnelutti apontou para ofensa e lesão, sem, no entanto, merecer meu modesto apoio. Para ele, a ofensa é a ação, enquanto que a lesão é o evento (resultado). Não é verdade, haja vista a existência de crimes de mera conduta, onde a lesão não pode estar senão na própria ação ou omissão.

Em todo caso, a distinção apontada teve o mérito de despertar em mim uma doutrina alternativa baseada não em pura terminologia, mas num novo enfoque didático, metodológico e libertário.

Segundo passei a sustentar, a ofensa refere-se à desobediência à norma, isto é, à adequação do fato ao tipo penal. Para atender ao princípio da ofensividade, bastaria que o legislador, mediante previsão típica, proibisse qualquer conduta que lhe viesse à mente. Bastaria que criasse um delito de simples desobediência,para que depois alguém, que adequasse sua ação ou omissão ao novo e vazio tipo penal, estivesse praticando um fato criminoso.

25. A observância do princípio da lesividade, em abstrato, e a necessária produção de lesão e dano, em concreto, para que o Estado possa exercer seu poder punitivo, são imprescindíveis para o seguro exercício das liberdades individuais.

Apesar disso, Antolisei não se mostra simpático à importância do bem jurídico na regência da entidade da conduta criminal. O que importa na atualidade, segundo pensa, é o momento subjetivo do delito, isto é, o dolo ou a culpa, de que depende fundamentalmente a qualidade e quantidade da pena aplicável. O direito brasileiro, embora considere sobremaneira o desvalor da ação, reconhece preeminência ao desvalor do resultado, haja vista o tratamento deferido aos crimes de menor e maior poder ofensivo, ao crime consumado e ao tentado, ao crime impossível, à concorrência frustra, etc. As infrações penais, diga-se de passagem, podem até ser dispostas, em ordem de maior para menor lesividade: crimes de dano; crimes de perigo concreto; crimes de perigo abstrato; e contravenções penais.

O funcionalismo penal, na voz de Jakobs, certamente na esteira do pensamento de Kant e Hegel, por seu turno, sustenta que o direito penal pretende, menos do que proteger os bens jurídicos, reafirmar a força da norma violada.

Inadvertidamente, Antolisei e Jakobs podem estar doutrinando em desfavor dos jurisdicionados desse leviatã, chamado Estado, sôfrego e ávido por sufocar e manietar qualquer aspiração de pleno exercício da liberdade.

Prefiro ficar, ainda que parcialmente, em companhia de Bettiol, quando se manifesta contra o excesso de formalismo, que chega a conferir um particular direito subjetivo de obediência ao Estado, a ponto de considerá-lo como sujeito passivo constante de todo delito (a); quando afirma, ao revés, a inexistência de tal direito (b); e que a objetividade específica do crime pertence sempre ao bem jurídico (c). Fico, só parcialmente, em companhia do festejado mestre da Universidade de Pádua porque não se justifica tamanha repugnância a um pretendido direito do Estado em exigir o cumprimento dos preceitos penais. Se não, como admitir a existência daquele tão decantado direito-dever de punir?

26. Há muito que, a par da antijuridicidade formal, prega-se, para o reconhecimento do delito praticado, a afluência da antijuridicidade material. Aquela e a contrariedade do fato à norma penal e esta, segundo conceito geralmente aceito, é a lesão, efetiva ou potencial, do bem ou interesse protegido. Mas foi recentemente que a doutrina penal inovou de modo superlativo, ao criar, ao lado da tipicidade formal, que nada mais é do que a adequação da conduta praticada ao tipo penal, a tipicidade material, que se define como a lesão, efetiva ou potencial, de certo bem ou interesse juridicamente reconhecido.

Ora, será que há alguma distinção entre tipicidade material e antijuridicidade material? Será que, admitida a primeira, não estará afastada a segunda? Essa duplicidade não conterá alguma excrescência? Em caso afirmativo, qual delas estará sobrando?

Confesso que, à primeira vista, o problema pareceu-me embaraçoso e de difícil resolução. Com o decorrer do tempo, - tempo este dedicado a muitas reflexões, a solução pareceu-me serena e pacífica, ainda mais porque a coexistência da tipicidade material e da antijuridicidade material, desde que aparada determinada aresta, vem ao encontro do pensamento acima expendido.

A palavra lesão encontra-se insculpida, como elemento nuclear, nos conceitos de tipicidade material e de antijuridicidade material. Como se trata de uso da mesma palavra, dotada de um só sentido, a aludida coexistência torna-se impossível. Mas se se lembrar de que a palavra lesão, para integrar a antijuridicidade, sofre a adição de uma qualidade - a ilicitude, que a transforma em lesão ilícita, e, mais, que essa lesão ilícita é sinônima de dano criminal, chega-se à possibilidade da multicitada coexistência.

Mesmo assim, onde está a concordância dessa conclusão com meu pensamento?

Está no seguinte: a tipicidade formal corresponde à desobediência aos ditames da lei, ou seja, à adequação típica; a tipicidade material corresponde à lesão do bem jurídico; e, finalmente, a antijuridicidade material corresponde a essa mesma lesão somada à ilicitude, o que a transforma em lesão ilícita ou dano.

Note-se que, de propósito, foi omitida, nessa linha de idéias, qualquer menção à antijuridicidade formal. Por quê? Porque, afinal de contas, a antijuridicidade formal, não se distinguindo da tipicidade formal, não passa de mera inutilidade.

Sumariando e organizando o que acaba de ser referido, pode-se, no plano lógico, dividir a infração penal em três elementos, deixando, evidentemente, a culpabilidade de lado:

__ elemento formal: tipicidade formal (desobediência);

__ elemento objetivo: tipicidade material (lesão);

__ elemento normativo: antijuridicidade material (dano).

27. Para mim, a ocasião é muito propícia para dizer que a ilicitude – expressão melhor do que antijuridicidade, deve ser duplamente considerada: como ilicitude típica (antinormatividade ou ilicitude ordenamental), excluída por determinadas normas (contratipos penais, como o cumprimento de dever legal e o exercício de direito); e como ilicitude elementar ou remanescente, excluída pelas justificativas penais (legítima defesa e estado de necessidade).

28. Mas, para demonstrar a congruência de idéias, eis alguns exemplos bem elucidativos: um homem é morto por alguém que o odiava. No caso, houve desobediência (tipicidade formal); houve lesão à vida da vítima (tipicidade material); e houve lesão ilícita (dano) à vida dessa mesma vítima, por ausência, v.g., da justificativa da legítima defesa.

Outro exemplo: uma mulher subtrai, de um lojista, uma quantia em dinheiro a fim de comprar alimentos e cobertores para seus filhos famintos e desprotegidos do frio. Nesse caso, houve desobediência (tipicidade formal); houve lesão ao patrimônio alheio (tipicidade material); mas não houve dano criminal em razão de o estado de necessidade justificante excluir a ilicitude da conduta lesiva.

E mais um exemplo: um médico, diante do estado de revolta de uma gestante, sua paciente, interrompe-lhe a gravidez, que havia resultado de um comprovado estupro, e provoca, assim, a expulsão seguida de morte do feto. Nesse caso, houve desobediência (tipicidade formal); porém, houve lesão lícita da vida do produto da concepção, em face de um contratipo penal permissivo, ou seja, do exercício regular de direito. Ressalte-se que a antijuridicidade material nem precisou ser examinada, uma vez que o dano criminal (ilicitude da lesão) já tinha sido excluído, por antecipação, no exame da própria tipicidade material.

E um último exemplo: um jovem retira da companhia dos pais, uma moça virgem, de l8 anos e consensiente, tem com ela relações sexuais e foge para se esconder em outra cidade. Na espécie, nem desobediência ocorreu, por ausência de tipo penal, estando prejudicado, pois, em razão da ausência de tipicidade formal, o exame da tipicidade material e da antijuridicidade material.

29. Em algumas vezes, os próprios termos do tipo penal, por meio de interpretação em sentido contrário, exclui a ilicitude típica para descriminar um determinado fato. É o que ocorre quando a descrição típica contenha os denominados elementos normativos, expressos por vocábulos como indevidamente (art. 151 do CP), sem justa causa (art. 154 do CP). Isso, de pronto, significa que se o fato é praticado "devidamente" ou com "justa causa" (contratipos contextuais), não haverá tipicidade formal e, a um só tempo e por antecipação, também não haverá antijuridicidade material, sendo desnecessário indagar sobre a tipicidade material, isto é, sobre a lesão que tenha atingido qualquer bem ou interesse de alguém. Tudo porque os elementos normativos do tipo pertencem ao campo da ilicitude ou, precisamente, da ilicitude típica, ilicitude ordenamental ou antinormatividade.

30. Como se sabe, o direito deve apresentar certos atributos a fim de propiciar, no meio social, uma aplicabilidade pacífica e incontestável. Tais atributos que, pela sua reconhecida importância, bem que poderiam integrar a principiologia jurídica em benefício dos direitos e liberdades individuais, são:

__ vigência;

__ validade;

__ legitimidade;

__ eficácia; e

__ efetividade.

Não cabe, aqui, discorrer sobre cada um desses atributos, tarefa que pertence a outro campo do conhecimento, inclusive político e social. Compete-me, apenas, selecionar aqueles que possuam pertinência com o tema deste estudo. Mesmo assim, não é nada fácil percorrer tão árido caminho, a começar pela multiplicidade de vias que podem ser percorridas. A dificuldade inicial é de natureza semântica, pois ninguém se entende quanto ao preciso significado dos vocábulos empregados.

A única facilidade refere-se ao atributo vigência, que se dá no período compreendido entre a entrada em vigor até a revogação da lei. Esse atributo possui uma enorme importância, pois dele decorrem todos os demais.

Validade e eficácia, inúmeras vezes são empregadas como sinônimas por muitos autores, de Direito Civil e Direito Penal, na parte em que estudam a aplicabilidade da lei no tempo e no espaço. Como verdadeiro atributo, poucos citam a validade, preferindo, alguns, considerá-la como resultado da presença dos demais atributos, não poucas vezes alterando-lhe o nome para validez.

Para mim, validade é o mesmo que constitucionalidade. Uma lei que se adapta ao texto da Constituição é uma lei válida.

Por sua vez, a legitimidade apresenta dois significados, um de cunho subjetivo, outro objetivo. Subjetivamente, a legitimidade deriva da qualidade democrática, tanto da fonte de que a lei promana quanto das regras que deve seguir a sua elaboração. Objetivamente, é o atributo da lei que resulte da expressão da vontade da sociedade que, então, determinou o seu nascimento. Legítima, no sentido subjetivo e objetivo, é a lei que, numa democracia, resulta do anseio popular, para a concretização de fins sociais. A lei que decorre de uma ditadura não é legítima. Outra lei que proíba os judeus de realizarem a circuncisão também não é legítima. O atual Código Penal do Brasil, nascido, no início da década de 1940, por força de um decreto-lei, não possui nenhuma legitimidade subjetiva. Entretanto, examinado o seu conteúdo, apresenta bastante legitimidade objetiva. A lei deve ser sempre legítima e, por força disso, justa, até para que o Estado possa evitar possível desobediência civil.

A eficácia é considerada também em dois sentidos: o abstrato e o concreto. Abstratamente, a eficácia significa a capacidade de a lei vir a alcançar um determinado objetivo social, como reduzir o nível da criminalidade violenta, das relações pedófilas nas estradas, da embriaguez ao volante, etc. Concretamente, já estando a lei em vigor, portanto, corresponde ao real atendimento daquele objetivo. Não é eficaz, nesse sentido, uma lei de desarmamento que em nada diminui, num determinado país, o índice de mortalidade por uso de arma de fogo.

A efetividade, por seu turno, corresponde a certo nível de aceitação e acatamento do conteúdo da lei pelo jurisdicionados do Estado, o que resulta no seu razoável cumprimento. É evidente que uma lei, principalmente, uma lei penal não é aceita, à unanimidade ou sem reservas, pelo grupo social, o que não lhe retira a efetividade.

Qualquer lei, principalmente a penal deve apresentar sempre, entre outros, os atributos da legitimidade (mormente a legitimidade objetiva) e eficácia para sua aplicabilidade e aplicação. Afinal de contas, para que uma norma penal, inserta num determinado tipo penal, alcance esse desiderato, basta visar a um objetivo básico: proteger bens ou interesses socialmente relevantes. Isso ocorrendo, estará presente a sua efetividade, ainda que, como é da natureza das normas do direito, possa haver coercitividade. A efetividade é, assim, o testemunho da legitimidade objetiva e da eficácia, durante toda a vigência da lei ou de algum dispositivo dela. A falta de legitimidade objetiva resulta ou resultará certamente em inefetividade da lei. Idêntico será o destino da lei sem o atributo da eficácia, abstrata ou concreta. A inexistência ou perda posterior da eficácia importa sempre a inefetividade ou a paulatina perda da efetividade.

31. Uma lei, que nasça sem legitimidade objetiva e sem eficácia abstrata, não será obedecida e respeitada. Uma lei que perca a legitimidade objetiva ou não possua eficácia concreta, será certamente desobedecida e desrespeitada. São leis que nasceram desprovidas ou se tornaram desprovidas do atributo da efetividade.

Assim sendo, qual será a conseqüência penal da inefetividade?

Comumente, nega-se qualquer interferência da falta de efetividade no campo da tipicidade penal. Entende-se que tal atributo, sendo de natureza extra-jurídica e pertencer à órbita social e política, não deve ser levado em conta para retirar a punibilidade de um fato definido em lei como crime.

Esse não é o meu entendimento, porque não posso conceber que o delito seja apenas resultado de uma desobediência, que faça originar uma mera tipicidade formal. Uma lei penal, para ser dotada de eficácia e de legitimidade, há de tutelar um bem ou interesse jurídico contra a lesão e o dano criminal. Só, assim, terá efetividade e poderá determinar a imposição de pena a quem a tenha desobedecido. Penso, assim, e ao contrário da voz corrente, que há de haver conseqüência de ordem penal em relação à lei não dotada do atributo da efetividade, por ilegitimidade objetiva e ineficácia, abstrata ou concreta. O que não é concebível é pretender conferir à inefetividade o poder de revogar a lei, uma vez que a revogação, seja expressa ou tácita, só pode decorrer de fonte legislativa.

Pesando isso e para que a pergunta seja mais bem respondida, é preciso fazer uma distinção importante quanto ao momento da ocorrência da inefetividade, ou seja, se ela é concomitante ou superveniente à entrada em vigor da lei.

Uma lei penal que já nasça sem efetividade, por falta de legitimação objetiva ou de eficácia abstrata, criando, enfim, uma figura criminal destituída de objetividade jurídica, é, para mim, inconstitucional, no plano jurídico, e, imprestável, no plano jurídico-penal, por ausência de tipo. Quem tiver infringido uma lei assim, não pode ser processado ou condenado. Quanto à razão da inconstitucionalidade de tal lei, isso será esclarecido na ocasião do estudo das conseqüências do desrespeito aos princípios penais.

Já uma lei penal que, no decorrer de sua vigência, vem a perder a legitimidade objetiva ou a eficácia (concreta) e, assim, supervenientemente, portanto, a sua efetividade, produz uma exclusão da tipicidade.

Na maior parte das vezes, esse ocorrido funda-se no fenômeno chamado de envelhecimento das leis que, não raramente leva um legislador atento a revogar a tipificação penal, como já ocorreu no Brasil, em relação a crimes, como a sedução (art. 217 do CP) e o adultério (art. 240 do CP), e a contravenções, como a exploração da credulidade pública (art. 27 da LCP). Outras vezes, porém, a inércia do legislador permite que a lei continue a viger embora sem efetividade, como acontece com o escrito ou objeto obsceno (art. 234 do CP), a manutenção de lugar destinado a encontros para fim libidinoso (art. 229, 2ª parte, do CP) e a contravenção do jogo do bicho (art. 58 do D.L. 6.259/44).

Em casos que tais, a inefetividade da lei funciona como o consentimento do titular do bem jurídico. É a sociedade que passa a desinteressar-se pela proteção de um bem que antes preservara. Os jurisdicionados, à vista disso, passam simplesmente a desconsiderar a existência da infração e a praticar a conduta de forma aberta como se lei em contrário não existisse. As autoridades incumbidas da persecução penal nem de longe procuram intervir na prevenção e repressão desses comportamentos, pois deixaram de ser considerados danosos.

O jurista - advirta-se, não pode desconhecer ou permitir que passe despercebido o fenômeno do envelhecimento das leis, nem deixar de conferir-lhe o tratamento adequado e indicado pela denominada interpretação progressiva.

32. Passo, neste momento, a investigar as conseqüências advindas do descumprimento dos princípios penais aqui tratados (relevância, alteridade e lesividade) pelo legislador penal, ao definir um fato punível, considerando que, ao contrário do desejável, não se encontram eles previstos no texto constitucional.

Os autores antigos foram pródigos na discussão de problemas, sociais, históricos e filosóficos, principalmente estes que versavam, em regra, acerca do fundamento da responsabilidade penal e do direito de punir do Estado. Com o surgimento da Escola Técnico-Jurídica, essas questões vieram infelizmente a ser esquecidas e mesmo desaconselhadas no estudo do Direito Penal.

Eram muito difundidas, então, as conjecturas e proposições quanto à definição substancial ou material de crime, como aquelas formuladas por Garofalo, Ferri e Ferri-Berenini.

Hoje, os desavisados afirmam, talvez por comodismo, que o que importa na realidade são os outros conceitos do delito: o formal e o dogmático ou analítico. Sem dúvida, só que no conceito formal e no dogmático, já se está no terreno pós-legislativo, em que a lei incriminadora já consta do catálogo jurídico. O mais importante é um conceito de crime que anteceda a tarefa legislativa e que instrua o legislador, no plano pré-legislativo, indicando, portanto, quais devam ser as condutas – ações e omissões, que mereçam figurar como crime. Esse não é senão o importantíssimo conceito substancial ou material de delito. Só ele é apto a proteger sobremaneira as liberdades individuais, impedindo as tipificações arbitrárias e desnecessárias, em consonância com o princípio da lesividade. É essa definição que permite distinguir o crime das outras infrações, como o ato imoral, o ilícito contravencional e o ilícito civil.

Não devo aqui reproduzir as definições materiais acima apontadas, até para não subtrair do leitor o prazer de lê-las no original. Eis a de minha autoria, pedindo escusas pela aparente imodéstia:

Crime, substancial ou materialmente considerado, é a lesão ilícita de um bem ou interesse alheio, socialmente relevante e, como tal, proibida e definida em prévia lei, sob a ameaça de pena.

Aí estão reunidos os princípios da lesividade, da alteridade e da relevância, um a um, que devem nortear e subordinar o legislador, no exercício de sua tarefa, somados à necessidade de que a conduta proibida e a respectiva pena sejam definidas em prévia lei.

Sem o respeito ao conceito substancial ou material de crime, cujo núcleo é o princípio da lesividade - que, afinal de contas, engloba os outros dois, o legislador, segundo penso, estará incidindo em inconstitucionalidade, não em decorrência de expressa alusão, nesse sentido, inclusa na Lei Maior, mas por efeito da interpretação sistemática.

Ora, para esse fim, dois artigos de lei devem ser conotados: o art. 5º, XXXIX, da Constituição federal, e o art. 14, do Código Penal.

Diz o art. 5º da CF:

Art. 5º - (omissis):

XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina (...).

Reza o art. 14 do CP: Diz-se o crime:

I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal.

Todos sabem que no primeiro dispositivo estão previstos dois princípios distintos: o princípio da legalidade, em face do qual a fonte formal de toda e qualquer incriminação não é outra senão a lei; e o princípio da anterioridade, pelo que o fato, para configurar-se como delito, deve ser previsto por lei previamente vigente.

Poucos sabem, contudo, que um terceiro princípio encontra-se aí igualmente previsto: o princípio da exigência de definição do delito pela lei. Assim, se o homicídio, o furto, o roubo, o estupro, a bigamia, a moeda falsa e o peculato, por exemplo, não tivessem sido definidos, os dispositivos que os previram ressentiriam de constitucionalidade, ou seja, não teriam sido recepcionados pela Constituição de l988. Veja-se, por outro lado, que não mereceram nenhuma definição legal, em dissonância com o texto constitucional, os crimes de aborto (arts. 124 a 127 do CP), rixa (art. 137 do CP) e adultério (art. 140, revogado, do CP).

Definir não é, apenas, prever determinado delito, como ocorreu com os três últimos citados. Caso contrário, o homicídio seria definido como "praticar homicídio"; o furto, como "cometer furto" e, assim por diante. Ora, o que será, então, definir um crime?

De minha parte, sem necessidade de socorrer-me às regras da lógica, entendo, ao abrigo do que se depreende do art. l4 do CP, que definir um delito é prever, de forma expressa, cada um dos elementos essenciais ao seu estado de consumação, a saber, explicitamente, a conduta inequívoca e, se for o caso, o objeto material e o resultado naturalístico, bem assim, implicitamente, o interesse tutelado, ou seja, o objeto jurídico. Na hipótese de que pelo menos isso não tenha ocorrido, a lei incriminadora será considerada inconstitucional.

Posto isso, conclui-se que se um tipo penal não permite vislumbrar, em sua implícita norma proibitiva, a sua objetividade jurídica, ou seja, o objeto da tutela, consistente num bem ou interesse protegido, ele é inconstitucional, uma vez que não é possível consumar-se um delito sem que surja o resultado jurídico, ou seja, sem a lesão e o dano criminal. Paralelamente à inconstitucionalidade, no tocante ao direito penal, haverá uma situação de atipicidade.

A situação difere daquela em que o princípio da lesividade tenha sido respeitado pelo legislador, mas, no fato concretizado, a lesão ao bem jurídico e, assim, o dano criminal não tenha ocorrido. Exemplo: a prática de ato obsceno em lugar público, mas absolutamente ermo. A hipótese será de exclusão da tipicidade, não estando afastada a de crime impossível, não por inidoneidade absoluta de meio ou por impropriedade do objeto material, mas por indenidade absoluta do objeto jurídico. (À frente enfrentarei a questão da anencefalia e aborto, em que sustentei, certa feita, a presença de objeto material e ausência de objeto jurídico).

Nessa hipótese de indenidade do objeto jurídico, a possibilidade de reconhecimento da figura do delito impossível não passou despercebida a Bettiol, para o qual a coisa e a pessoa são tomadas em consideração, enquanto, na primeira, se incorpora o objeto jurídico do delito e, na segunda, se subjetiviza.

33. Tendo à minha frente o Código Penal, aberto em seu art. 23, lembrei-me de tratar de uma questão um pouco mais amena, ou seja, do elemento subjetivo das causas de exclusão da ilicitude. A incidência passou a ser exigida recentemente para harmonização dessas causas permissivas com as proibitivas contidas nos tipos penais, onde devem estar presentes tanto os elementos objetivos quanto subjetivos. Numa legítima defesa, por exemplo, ao lado dos requisitos constantes do art. 25 do CP, deve estar presente o animus defendendi, que corresponde à ciência da pessoa de que está sendo agredida, ou em vias de o ser, somada à vontade de reagir para defender-se.

Caso falte o elemento subjetivo, apesar de presentes todos os requisitos objetivos, entendem os doutos que o fato não configuraria a legítima defesa, devendo o agente, então, responder por crime consumado. O exemplo sempre citado é o da pessoa que, avistando a aproximação de seu inimigo, aproveita o ensejo e, por puro ódio, atira contra ele e o mata. Desconhecia, todavia, que o atingido, antes, já o tinha na mira de sua arma. Como se vê, trata-se do inverso de uma legítima defesa putativa. Na esteira do que tenho pensado, mas diante do desvalor da ação praticada, sem o correspondente desvalor do resultado (morte ilícita), sustento que o agente deva ser punido pelo máximo que realizou, isto é, pela tentativa de homicídio. Em suma, houve lesão (a morte), mas não dano criminal pretendido (morte ilícita).

Neste momento, estou me encaminhando em direção ao princípio do fim desta exposição - extensa, cansativa e tediosa. Cumpre-me, a mais, deslizar rapidamente por certos grupos de infrações da taxionomia jurídico-penal; passear em torno de alguns esparsos delitos; e terminar, fluindo sobre certos temas atuais e polêmicos, tais como a eutanásia, a retirada de órgãos do morto para a realização de transplantes, o aborto do anencéfalo, o esbulho possessório praticado por integrantes de movimentos sociais e a posse e porte de armas, acessórios e munições, tudo sob o ponto de vista do cometimento ou não do dano criminal.

Há certos grupos de infrações penais que podem oferecer interesse ao presente estudo, dentre eles os crimes culposos, os omissivos impróprios os de mera conduta, entre estes os omissivos próprios, os de perigo abstrato, os tentados e as contravenções.

34. Os delitos culposos e os omissivos impróprios ou comissivos por omissão têm algo em comum: são eles crimes materiais ou de resultado e previstos em tipos abertos. Estes ocorrem quando as ações ou omissões que os constituem não são penalmente definidas, devendo o resultado, derivar da falta ao dever objetivo de cautela - nos culposos, e da inobservância de disposição legal ou contratual ou, ainda, do comportamento anterior do omitente que o tenha colocado na posição de garantidor da sua não ocorrência - nos omissivos impróprios (arts. 18, II, e 13, § 2º do CP, respectivamente). O resultado, ao qual se vincula o dano criminal nas duas espécies, é que dá vida aos delitos, cujas ações e omissões, por mais reprováveis e repetidas que sejam, não podem ser objeto de punição. Esses crimes, caso fossem definidos em tipos fechados, bem que poderiam incluir-se entre os sujeitos à condição objetiva de punibilidade.

35. Os crimes de mera conduta, entre eles os omissivos próprios, são destituídos de resultado naturalístico, sendo puníveis em face do dano potencial (perigo) que representam. Ambos, embora sejam portadores de conceitos próprios, revestem, nuclearmente, a imagem dos crimes de perigo abstrato. Estes, atualmente, têm sido muito combatidos em razão de desrespeitarem o princípio da lesividade, o que os levaria à inconstitucionalidade. Sou sabedor de que no anteprojeto de reforma da Parte Especial do Código Penal vigente, muito se fez, embora sem sucesso, para expulsá-los do estatuto punitivo. A meu ver, simplesmente porque o delito tem a natureza de crime de perigo abstrato não importa a sua inconstitucionalidade pois, na verdade o dano potencial, que nele se encerra, deve sempre existir, apesar da desnecessidade da sua demonstração efetiva. A questão é apenas de presunção absoluta de perigo e, portanto, mais de natureza processual do que penal. Isso não significa, todavia, a inatacabilidade da presunção, porque ela pode ter sido concebida com fundamento inteiramente descabido e arbitrário, não para "presumir", mas para levianamente "supor" o perigo.

36. A par do crime consumado, deve-se perquirir a respeito do dano na tentativa (art. 14, II, do CP). Ela – a tentativa, deve apresentar todos os elementos integrantes do crime consumado – inclusive o dolo, à exceção do resultado. Como o desvalor da tentativa refere-se somente à ação, consistente num perigo dela emergente, a pena do crime esperado deve ser diminuída de um a dois terços (parág. único do art. l4 do CP). Caso não se trate, entretanto de uma tentativa branca, a justiça nem sempre será realizada. Por isso, algumas legislações admitem que à tentativa se aplique a pena do crime consumado, quando suas conseqüências, pela gravidade, recomendarem a medida, quando, por exemplo, ocorrerem deformidade permanente, perda de membro, sentido ou função, incapacidade permanente para o trabalho ou, ainda, aborto.

A regra da diminuição da pena da tentativa só é excepcionada quando ela se equipara à forma consumada, sujeitando-se, assim, à mesma pena. É o que ocorre no art. 352 do CP, que define a evasão de preso ou interno mediante violência contra a pessoa, onde à mesma pena se sujeita, indistintamente, quem se evade ou tenta evadir-se. O fundamento dessa equiparação não está ligado à questão de igual grau de perigo de ambas as condutas, mas à maior intimidabilidade da cominação para o fim de prevenir qualquer início de execução de fuga violenta.

Situação interessante e, até incomum, pode ser encontrada na Lei de Segurança Nacional, nos arts. 9º, 11 e 17, onde, por evidentes razões, não se pune a consumação, mas somente a tentativa, onde se encontra, abstratamente, a lesividade da conduta e, concretamente, o dano criminal.

37. Um tema que encantava os juristas era o da distinção entre crime e contravenção. Inúmeros foram os critérios distintivos apontados, todos, porém, tidos por desarrazoados pela acerba crítica. A discussão findou-se, quando confessada a incapacidade de encontrar a distinção, concluiu-se pela inexistência de diferença ontológica entre o crime e a contravenção, afirmando-se que tudo se resumiria na questão de graus de cada uma.

Não entendo, assim. Ao legislador não se pode conceder o arbítrio de considerar um fato mais grave do que outro, para definir, este, na Lei das Contravenções Penais, e aquele, no Código Penal. Nem valeria a pena confiar no senso jurídico ou na intuição jurídica desse mesmo legislador. Há de haver um critério em que se basear para o desempenho da tarefa legislativa.

Optei por um critério, o da lesividade abstrata, prevista na lei, e do dano concreto, produzido pelo delito praticado, o que, via de regra, não existe na contravenção. Por sinal, contravenção danosa devia estar no Código Penal, figurando como crime de menor potencial ofensivo. A lei penal pátria parece ter optado por esse critério nas epígrafes dos títulos, capítulos e seções que integram a Parte Especial do Código Penal, bem assim, dos capítulos que compõem a Parte Especial da Lei das Contravenções Penais, onde se lê, aqui e ali: "Dos Crimes Contra a Pessoa" (...); "Das Contravenções Referentes à Pessoa" (...). Ora, contra e referente não são expressões sinônimas. Há de haver, pois, alguma motivação especial para a escolha da nomenclatura utilizada. Um fato é praticado "contra" um bem ou interesse quando lhe causar um dano efetivo ou potencial; outro fato é "referente" a um bem ou interesse quando apenas causar-lhe um perigo, assim mesmo um perigo remoto, que se defina não como "probabilidade" de dano, mas, apenas, "possibilidade" de dano. Seja como for, penso que as falsas contravenções, como acima se disse, devem transmudar-se em crimes; enquanto, as verdadeiras, devem transmudar-se em meras infrações administrativas. Tudo, na conformidade do princípio da lesividade. Ninguém, em sã consciência, poderia imaginar que fatos, como a sedução e o adultério, em vez de serem descriminalizados, por revogação dos arts. 217 e 240 do CP, fossem rebaixados para o grupo das contravenções; nem que a contravenção de porte de arma viesse ser elevada à categoria de crime, o que, afinal, no último caso, veio a acontecer (!). Cada fato infracional, segundo a sua lesividade, possui seu próprio status, o qual, às vezes, é inobservado e, assim, violentado.

A seguir, algumas observações sobre infrações isoladas.

38. O art. 122 do CP define um crime de participação em suicídio alheio, praticado mediante induzimento, instigação ou auxílio. Essa é uma situação quase inusitada, pois, levando em conta que a auto-morte seja uma lesão, embora não seja um dano ao bem jurídico (em razão de obediência ao princípio da alteridade), a lei veio a punir a participação em fato não criminoso e, por isso, não punível. É bom referir, todavia, que essa imprópria espécie de participação é, na verdade, uma forma de autoria criminal. Outro exemplo, nessa linha, encontra-se no art. 351, caput, do CP.

39. A definição do crime de furto (art.155 do CP) – penso eu, foi imensamente feliz ao usar o verbo "subtrair" para indicar a conduta que é o núcleo do tipo penal.

Se subtrair significasse apenas "tirar", ainda hoje haveria o insistente debate a respeito do momento consumativo do crime, perdurando disputa entre as teorias da contrectatio, amotio, ablatio e locupletatio.

Subtrair também significa "diminuir", isto é, diminuir o patrimônio de alguém. Assim, o verbo usado no tipo, ou seja, "subtrair", significando "tirar" recai sobre o objeto material do delito (coisa alheia móvel), enquanto que, significando "diminuir", recai sobre o objeto jurídico do delito. É nesse momento que se consuma o crime de furto, quando, então ocorre o resultado naturalístico e o denominado resultado jurídico (dano criminal) sobre o patrimônio da vítima.

40. Voltando, um pouco, no ponto em que o Código Penal pune os crimes contra a pessoa, especialmente o homicídio e o aborto, pode-se perceber que a lei protege o ser humano contra a morte em qualquer fase de sua vida, ainda que, na qualidade de spes personae, no interior do útero materno. Mesmo a pessoa moribunda, sem a mínima esperança de vida e apresentando sofrimentos atrozes, pode ser vítima de homicídio sendo irrelevante o seu consentimento para uma morte piedosa ou compassiva.

Daí a punibilidade da eutanásia como um homicídio qualquer, embora seja possível a aplicação da minorante da pena, na conformidade do que dispõe o art. 121 § lº, primeira parte, do CP, onde se encontra uma das formas de homicídio privilegiado. A razão, entretanto, pode estar com Asúa, para quem o legislador deveria, frente à eutanásia, permitir o perdão judicial.

Mas, quanto à eutanásia por omissão, ou ortotanásia, a doutrina é quase unânime em reconhecer a ausência de dano criminal no fato de não se prolongar inutilmente a vida, por meios artificiais. É o que penso, embora recomende muita cautela, tanto na adoção da proposição do célebre autor espanhol quanto no reconhecimento da ortotanásia, principalmente de forma a evitar, a todo custo, a repetição de acontecimentos ocorridos sob a égide do nazismo. Como se sabe, durante esse famigerado regime, mortes e mais mortes foram praticadas com o amparo da esfarrapada desculpa, avalizada por alguns juristas alemães, de que as vítimas possuíam apenas uma vida destituída de valor vital, isto é, não merecedora da tutela jurídica, o que retirava qualquer incidência de dano criminal.

41. Questão paralela é a da permissão legal da retirada de órgãos e tecidos do cadáver para fins de transplante, dada pela Lei 9.434/97, cujo art. 3º dispõe:

Art. 3º - A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinadas ao transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica (...).

O dispositivo, que adere ao conceito de morte encefálica, é justificável pelo fato de que certos órgãos do corpo humano não mais se prestarem ao transplante após a morte clínica do doador, somando-se isso à extrema e vital necessidade do futuro receptor.

Todavia, entendo que a lei não pode contrariar as estruturas lógico-objetivas, afirmando a ocorrência da morte onde ainda haja vida. É fato incontestável que a verdadeira morte somente ocorre quando seja clínica, o que se dá após a parada da atividade cardiorespiratória, momento em que o corpo deixa de ser pessoa e se transforma em cadáver (carne dada aos vermes). O próprio art. 3º, citado, mostrou-se muito tímido e - porque não dizer, medroso, ao externar sua adesão. Na verdade somente aparentou, afinal, que se estivesse limitando a recomendar que a retirada de órgãos ou tecidos seja precedida do diagnóstico de morte encefálica, isto é, em outros termos, seja precedida não da morte da pessoa, mas da morte do cérebro. E a morte do cérebro não importa necessariamente a morte da pessoa, que continua a viver até que cesse a sua atividade cardiorespiratória.

O regulamento da Lei 9.434/97, baixado pelo Decreto 2.268/97, contém o seguinte e convincente dispositivo:

Art. l6 – A retirada de tecidos, órgãos e partes poderá ser efetuada no corpo de pessoas com morte encefálica.

Ora, sendo assim, o meu entendimento passa a ser bastante reforçado, uma vez que, se o corpo pertence a uma "pessoa" é sinal de que ainda existe vida, simplesmente porque não existe pessoa morta.

De qualquer forma, habemus legem. Devo frisar, contudo, que essa lei deve ser interpretada à luz da sistemática jurídica, admitindo a hipótese de retirada de órgãos de pessoas, embora com o diagnóstico de morte encefálica, diante de inarredável indicação, como ocorre no estado de necessidade (arts. 23, I, e 24 do CP) e no aborto terapêutico (art. 128, I do CP), em que um inocente é privado de toda proteção jurídica em favor do interesse de outrem, julgado mais relevante. É um caso de interesse lícito que é atingido por outro interesse, igualmente lícito, em que há lesão, mas não há dano criminal.

42. Na mesma linha de compreensão encontra-se a problemática da anencefalia e aborto, sobre que manifestei a opinião em artigo de minha autoria. Nesse artigo, talvez tendo a primazia da originalidade e ineditismo, sustentei a tese de aplicação sistemática dos termos da lei que regula a retirada post mortem de órgãos e tecidos para fins de transplante. Isso porque o feto, não possuindo cérebro ou atividade cerebral, ficaria impedido de figurar como objeto material e sujeito passivo do crime de aborto, sobretudo, pela ausência de objeto jurídico - vida. E, sem objeto jurídico não se pode fala em dano criminal e em crime.

A situação, porém, é diferente daquela ligada ao transplante de órgãos pela existência lá de um interesse prevalente, o que aqui não ocorre. Não obstante milite em favor da mulher, que carrega uma gravidez infrutífera em seu útero, o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF),que deve nortear toda atividade legislativa e judicial. É preferível, sem embargo, que se elabore uma lei destinada a reger integralmente a matéria.

43. Um fato que tem merecido a atenção de todos, até com o beneplácito das autoridades, é o que diz respeito à invasão de terras, praticada por membros de movimentos sociais, sob o pretexto de estarem, mediante uma forma de protesto, reinvidicando a realização da reforma agrária em terras improdutivas.

A respeito disso, certa feita ouvi alguém sustentar que nenhum crime estava sendo cometido diante da invasão - a que chamava eufemisticamente de "ocupação", nem mesmo o definido no art. 161, § lº, II, do CP, por duas razões: a primeira, por estar ausente o intuito de os agentes tomarem, para si, o direito de propriedade; a segunda, por faltar tutela jurídica à propriedade improdutiva, por não cumprir sua função social, à luz do disposto no art.5º, XXIII, da CF.

O primeiro argumento é falho, pois só serve para confirmar a capitulação do fato como crime de esbulho possessório, uma vez que, nesse delito, o objetivo do agente não é a tomada da propriedade, mas somente a usurpação da posse.

O segundo também é falho, ao pretender que a propriedade improdutiva esteja sujeita à "pena de perda da paz", em vez de submeter-se, por decisão judicial, à desapropriação por interesse social (art. 184 da CF).

A negativa da ocorrência de dano criminal ao esbulho praticado por integrantes de movimentos sociais é uma tese muito perigosa, principalmente porque o malsinado argumento que a justifica pode estender-se até contra interesses muito relevantes.

Como é do conhecimento geral, o Brasil é um país que detém a maior área florestal do mundo, ou seja, a enorme parte da Floresta Amazônica. Essa floresta, apesar de não ser o pulmão do mundo, cumpre um papel muito importante no globo terrestre, qual seja o de ajudar, e muito, na regulação do clima mundial, principalmente no que tange ao regime das chuvas. A cada dia que passa, cresce a ocorrência do aquecimento global e do efeito estufa, em conseqüência, principalmente, do uso do carvão e dos combustíveis derivados do petróleo, como também das queimadas, desflorestamentos e desmatamentos. Há necessidade premente, então, da tomada de medidas contrárias a essa situação, com o emprego de combustíveis e recursos alternativos, como o gás natural, o biodiesel, o álcool, a hidroeletricidade, a energia solar e eólica, além do hidrogênio. As florestas devem ser preservadas a qualquer custo, sob pena da ocorrência e do aumento das catástrofes mundiais. Afirma-se, hoje, que o planeta já perdeu metade delas e que, nos próximos cinqüenta anos, perderá mais um quarto.

O Brasil, sem embargo de tudo isso, somado à destruição de sua mata atlântica – da qual só restam 7%, não consegue preservar a floresta amazônica, submetida à maldita ação do fogo e da ganância dos inescrupulosos madeireiros, à caça de árvores nobres e centenárias; dos criadores de gado, em busca da formação de novas pastagens; e dos plantadores de soja, sempre à procura de mais terras agricultáveis.

Quousque tandem...? Até quando os países do mundo assistirão - inertes e inermes, a essa espantosa devastação ambiental que os prejudicará crescente e enormemente? Até quando esses mesmos países reconhecerão a soberania do Brasil sobre a Amazônia, soberania essa que não está cumprindo a sua função social e global? A ocupação, a invasão e o esbulho da Amazônia serão fatos que, à luz do direito internacional, representarão um dano criminal? Muito cuidado, então, com certas argumentações alternativas do direito. No futuro poderá aparecer algum inesperado argumentum a pari...

44. Finalmente, chego ao termo final desse trabalho, enfrentando o problema da lesividade de determinadas condutas, que têm armas, acessórios e munições por objeto material.

A Lei das Contravenções Penais, no art. 19, definia, como simples contravenção o porte arma, fora de casa ou de dependência desta, sem autorização da autoridade. Era, então, uma infração de pequena monta e "referente" à pessoa e não "contra" a pessoa. Não era punida, por representar um perigo atual ou iminente a uma pessoa ou a um número indeterminado de pessoas, mas por expor-lhes a uma simples possibilidade de dano. Mesmo assim, era pacífico que a arma só podia figurar como objeto material da contravenção quando estivesse municiada, não apresentasse defeito que a tornasse imprestável ao disparo, e estivesse em condições de pronto uso, isto é, "na mão" ou "à mão" do seu portador.

Hoje, a situação mudou. Pune-se, agora, como crime, não somente a posse e o porte de arma, ainda que desmuniciada, a posse e o porte de acessório, bem assim, a posse e o porte da munição isolada. É o que dispõem os arts. 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03).

Ora, que dano ou perigo pode causar uma munição sem arma ou uma arma sem munição? De fato, nenhum. É claro que uma arma desmuniciada, assim como outra que seja fictícia ou de brinquedo, pode prestar-se à intimidação para a prática de outro delito, mas não é disso que aqui se trata. E o que dizer dos acessórios de armas, que diferentemente de partes ou peças delas, são, apenas, coldres, municiadores, instrumentos óticos, placas de coronha, alongadores, etc.? Nada. Não há o que dizer, tamanho é o absurdo da incriminação.

Fatos, como esses, só poderiam figurar num catálogo de infrações administrativas, não se sujeitando senão às penalidades correspondentes às multas e às apreensões.

Além disso, os artigos citados do malsinado estatuto, em razão do desrespeito ao princípio da lesividade, são inconstitucionais. Posto isso, além de poder alegar a inconstitucionalidade parcial da lei, quem estiver sendo processado pela prática de tais infrações, consistentes em simples desobediência (tipicidade formal), poderá alegar, com sucesso, a ausência de tipicidade material e, por força disso, embora desnecessariamente, a falta de antijuridicidade material do fato.

Outrossim, não estará em desacordo com a dogmática penal, caso alegue a ocorrência de crime impossível em face da inexistência de objeto jurídico, eis que não é cientificamente possível o cometimento de um delito sem dano criminal.

45. Ao encerrar este estudo, quero manifestar minha crença de que os erros por acaso cometidos sejam desculpados frente à vontade de inovar e de acertar. Quanto às lacunas e omissões, espero que sejam preenchidas pelo emprego das regras da Hermenêutica, mas com o apoio das idéias aqui expendidas.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de Alvarenga. O dano criminal, esse desconhecido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1262, 15 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9276. Acesso em: 29 mar. 2024.