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A Administração Pública no contexto dos direitos humanos fundamentais

o caso do direito fundamental ao meio ambiente

A Administração Pública no contexto dos direitos humanos fundamentais: o caso do direito fundamental ao meio ambiente

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1. INTRODUÇÃO

Avulta de importância compreender qual deve ser a postura da Administração Pública perante os direitos humanos fundamentais, especialmente frente ao direito fundamental ao meio ambiente. É a este escopo que pretendemos conduzir o presente trabalho. Por óbvio, não nos interessa esgotar o tema, cuja amplitude é notória, mas tão-só traçar linhas gerais.

Antes de tudo, faremos uma breve apreciação sobre os direitos humanos fundamentais, inquirindo sobre seus traços essenciais, sua evolução histórica e teorias que se desenvolveram em torno da matéria.

Em seguida, dedicaremos um capítulo na defesa do direito ambiental como direito fundamental, nos valendo para tanto de normas de direito internacional, como a Declaração de Estocolmo e de dispositivos da própria Carta Constitucional de 1988.

A partir daí, penetraremos no campo da Administração Pública, posicionando-a no contexto dos direitos humanos fundamentais. Daremos um conceito de Administração Pública, analisando depois os seus princípios e como estes servem na concreção e tutela dos direitos humanos fundamentais e especialmente do direito humano fundamental ao meio ambiente.

Por derradeiro, apresentaremos, de um modo geral, como os direitos fundamentais, a partir de suas funções, obrigam e limitam a atuação da Administração Pública.


2. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

2.1. Conceito

Podemos conceituar direitos humanos fundamentais sob pelo menos duas perspectivas. Cada uma vai nos fornecer, por evidente, seu próprio conceito. Os adeptos do jusnaturalismo vão compreender estes como direitos naturais, anteriores a qualquer organização estatal ou ordenamento jurídico, inerentes à natureza mesma do ser humano. Por outro lado, os juspositivistas hão de considerá-los como um conjunto de faculdades que em cada momento histórico concretizam as exigências de liberdade, igualdade e dignidade humanas, as quais devem ser reconhecidas pelos ordenamentos jurídicos.

Na estreiteza deste trabalho, não nos é possível descer às minúcias do secular embate entre os adeptos destas correntes jusfilosóficas. Ficaremos aqui com uma conceituação mais próxima daquela defendida pelos partidários do direito positivo, proposta por Alexandre de Moraes. Segundo aquele conceituado constitucionalista, direitos humanos fundamentais são "o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana" (MORAES, 2000, p. 39).

2.2. Funções

O constitucionalista português José Gomes Canotilho apresenta quatro funções dos direitos humanos fundamentais, que passaremos a analisar.

A primeira é a função de defesa ou de liberdade, que se apresenta em uma dupla perspectiva. A este respeito, vale transcrever a magistral lição de Canotilho:

(1) Constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual, (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). (CANOTILHO, 1993, p. 541).

A segunda função apresentada pelo mestre português é a função de prestação social. Significa que a Administração Pública deve concretizar, por meio de políticas públicas, direitos e garantias fundamentais, tais como a saúde, a educação e moradia.

A função de proteção perante terceiros impõe ao Estado um dever de agir no sentido de proteger perante terceiros os titulares de direitos fundamentais. Assim, impedir que determinada indústria provoque excessiva poluição atmosférica.

A última função apresentada por Canotilho é a função não-discriminatória, bem desenvolvida pela doutrina norte-americana. Significa que o Estado deve tratar os cidadãos como fundamentalmente iguais. É com base nesta função que se discute a questão das ações afirmativas, enquanto meio de anulação das discriminações.

2.3. Evolução histórica dos direitos fundamentais

Ao contrário do que parece indicar alguns autores, o berço dos direitos fundamentais é muito anterior ao movimento constitucionalista do século XVIII.

A civilização egípcia já conhecia um grupo de direitos fundamentais. O famoso Código de Hammurabi (1690 a.C) consagrava um rol de direitos comuns a todos os seres humanos, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade e a família.

Os gregos, de igual modo, desenvolveram um rol de direitos fundamentais, apesar de limitá-los a um grupo um tanto quanto restrito de homens.

Outro marco fundamental na matéria vem da civilização romana. A Lei das Doze Tábuas positivou vários direitos fundamentais, como o direito à liberdade e à propriedade.

A religião cristã trará contribuição notável à matéria dos direitos fundamentais, sobretudo ao introduzir a noção de igualdade entre todos os homens, sem exceções.

Outro ponto marcante na evolução histórica dos direitos fundamentais foi a Magna Charta, documento que nasceu na Inglaterra do rei João Sem Terra e que previa, entre outras garantias, restrições ao poder de tributar, proporcionalidade entre o delito e a pena e liberdade religiosa.

Também é distinta a contribuição do direito norte-americano, que com documentos como a Declaração de Direitos de Virgínia, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e, sobretudo, com a Constituição dos Estados Unidos da América colocou peças marcantes no processo de desenvolvimento dos direitos fundamentais.

A consagração normativa definitiva dos direitos fundamentais vai caber, no entanto, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional da França. Vários direitos fundamentais são consagrados pela Declaração, tais como a liberdade, igualdade, associação política, segurança, livre manifestação do pensamento e liberdade religiosa. Em França, a consagração dos direitos fundamentais vai ser desenvolvida e alargada pelas Constituições de 1791 e 1793.

A evolução dos direitos fundamentais adentra o século XX e permanece ainda hoje. No entanto, faremos aqui um corte e estudaremos a evolução histórica dos direitos fundamentais nas Constituições separadamente, no tópico seguinte.

2.4. Gerações de Direitos Fundamentais no constitucionalismo

Norberto Bobbio e Karel Vasak elaboraram uma teoria que explica em linhas didáticas a evolução dos direitos fundamentais no contexto do constitucionalismo. Para estes autores, os direitos humanos fundamentais são divididos em três distintas gereções, correspondentes a três paradigmas do Estado Moderno: os paradigmas do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito.

Não se pode negar as profundas imperfeições desta teoria, que padece de certa artificialidade, sobretudo pela razão óbvia de que a história não se desenvolve de maneira linear. A título de exemplo, o direito ao meio ambiente, caracterizado como direito de terceira geração, já existia nos ideais da Revolução Francesa, ainda que extraído indiretamente da consagração de direitos fundamentais de primeira geração, como o direito à vida. De outro lado, a referida teoria traduz uma equívoca idéia de que há superação de uma geração por outra, o que é absolutamente falso.

É neste sentido a crítica à teoria em tela de Antônio Augusto Cançado, citado por Maria Fonseca Paim:

Em nosso entendimento os ‘novos direitos’, os chamados direitos de solidariedade, como o direito ao meio ambiente sadio, interagem com os direitos individuais e sociais e não os substituem, distintamente do que a noção simplista das chamadas ‘gerações de direitos humanos’ pretenderia ou pareceria insinuar (...) É certo que os direitos existentes encontram-se em constante evolução; mas é igualmente certo que, enquanto por um lado os seres humanos se sucedem no tempo, nascem, vivem, em sua maioria procriam, e morrem, por outro lado os direitos existentes não tem a força de gerar outros e novos direitos que venham a substituí-los (...) Os seres humanos se sucedem, os direitos se acumulam e sedimentam. (PAIM, 2003, p. 63)

Não obstante a autoridade dos críticos que se levantam contra a teoria geracional dos direitos humanos fundamentais, acreditamos ser ela, ainda que viciada de imperfeições, de uma relevância inquestionável para compreensão da evolução histórica dos direitos fundamentais nas Cartas Constitucionais. Como nosso objetivo neste trabalho não é precisamente tratar dos direitos humanos fundamentais, nos valeremos da citada teoria, que nos parece suficiente e eficaz para expor a questão de um modo sucinto, tal como ensejamos por hora.

A primeira geração de direitos humanos surge com a intenção de romper com a ordem absolutista, dissolvendo os poderes amplos do Leviatã, ao conceder importantes garantias aos indivíduos. Corresponde ao paradigma do Estado Liberal e foi positivada primeiramente pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada na França em 1789 e pelo Bill of Rigths norte-americano, de 1776. Em seguida, as primeiras Cartas Constitucionais seguem esta tendência, como veremos. Os direitos de primeira geração são aqueles denominados direitos civis e políticos, dirigidos a proteger a liberdade, segurança, igualdade e a integridade física e moral dos indivíduos. Caracterizam-se por serem direitos exclusivos dos indivíduos, sem dirigir-se à sociedade. É a clara preponderância do privado sobre o público, consagradora dos ideais burgueses do liberalismo econômico e político.

A Constituição dos Estados Unidos da América e suas dez primeiras emendas são exemplos da positivação desta primeira geração de direitos humanos fundamentais. São garantidos pela Constituição norte-americana os direitos à liberdade religiosa, inviolabilidade de domicílio, devido processo legal, julgamento pelo Tribunal do Júri, ampla defesa, impossibilidade de aplicação de penas cruéis e aberrantes.

Também erigiram os direitos fundamentais de primeira geração as Constituições francesas de 1791 e de 1793. Previam direitos e garantias como igualdade, liberdade, segurança, propriedade, legalidade, livre acesso aos cargos públicos, livre manifestação do pensamento, liberdade de imprensa, presunção de inocência, devido processo legal, ampla defesa, proporcionalidade entre delitos e penas, liberdade de profissão, direito de petição e direitos políticos.

No século XIX, várias outras Constituições seguirão a orientação da Constituição norte-americana e das Constituições francesas, positivando um rol de direitos fundamentais civis e políticos, tais como a Constituição espanhola de 1812, a Constituição portuguesa de 1822 e a Constituição belga de 1831.

No Brasil, as Leis Fundamentais de 1824 e 1891 adotarão a tendência de positivar os direitos civis e políticos, apresentando-os como direitos fundamentais. Vale ressaltar aqui a contraditória convivência entre as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade, erigidos pelas Constituições brasileiras, e a manutenção de práticas como a escravidão, abolida definitivamente no Brasil tão só em 1888.

O rápido desenvolvimento do capitalismo, impulsionado pela Revolução Industrial, acaba por deflagrar uma enorme crise na Europa, com uma exploração do homem sobre o homem sem precedentes na história da humanidade. Neste contexto, surgem vozes reclamando mudanças radicais na sociedade, expondo a mais crua realidade: igualdade, liberdade e fraternidade não são mais que palavras vazias para a maior parcela da população, servindo apenas a diminuta classe dos burgueses, primeiro como forma de romper definitivamente os laços com a antiga nobreza feudal e depois como instrumento de dominação na luta de classes travada com o proletariado.

Surge então, mais como uma espécie de concessão da burguesia "ao perigo do comunismo" do que exatamente como uma conquista da humanidade, uma segunda geração de direito humanos, erigida no paradigma do Estado Social. São os denominados direitos sociais, econômicos e culturais, fazendo referência a necessidade que tem o homem de desenvolver-se como ser social em igualdade de condições. Incluem-se neste rol, entre outros, os direitos à saúde, educação, trabalho, seguridade social e livre associação sindical.

A Constituição Mexicana de 1917, com fortes tendências sociais, é a primeira a compor um rol específico de direitos fundamentais de segunda geração, como os direitos trabalhistas e os direitos básicos à saúde e a educação, exigindo do Estado a prestação destes serviços. A título de exemplo, prevê seu art 3°, VI e VII: "a educação primária será obrigatória; toda a educação ministrada pelo Estado será gratuita."

A Constituição alemã de Weimar, promulgada en 1919, segue a mesma linha, o que pode ser percebido no seguinte comentário de Alexandre de Moraes sobre esta Lei Maior:

O império procuraria obter uma regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade um mínimo de direitos sociais e que os operários e empregados seriam chamados a colaborar, em pé de igualdade, com os patrões na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas. (MORAES, 1998, p. 31)

Também incluindo em seu texto um rol de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais surge em 1918 a Lei Fundamental Soviética, que no seu Capitulo II menciona suas finalidades, dentre as quais, "suprimir toda a exploração do homem pelo homem, abolir completamente a divisão da sociedade em classes, esmagar implacavelmente todos os exploradores, instaurar a organização socialista da sociedade e fazer triunfar o socialismo, em todos os países."

A Constituição de 1934 foi a primeira Constituição brasileira a buscar inspiração neste constitucionalismo social do século XX, alargando o campo da matéria constitucional, ao introduzir dispositivos sobre a ordem econômica e social, a família, a educação e a cultura. Daí a expressa referência à legislação do trabalho (art 121, §1°).

O vultoso desenvolvimento da ciência no século XX, somado a mudanças consideráveis no comportamento social e diversas experiências negativas, como duas sangrentas guerras de proporção global e a ameaça da bomba atômica, fizeram emergir um novo grupo de direitos, com características tão particulares que tornava-se impossível enquadrá-los entre os direitos políticos e civis de primeira geração, ou entre os direitos sociais, econômicos e culturais de segunda geração. São os denominados direitos fundamentais de terceira geração. Este processo, que desembocou no nascimento deste novo grupo de direitos fundamentais é explicado com propriedade por Norberto Bobbio:

(...) a passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus, que foi o primeiro sujeito ao qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) – em outras palavras, da ‘pessoa’ – para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (como no atual debate, entre os filósofos da moral, sobre o direito dos pósteros à sobrevivência); e, além dos indivíduos humanos considerados individualmente ou nas diversas comunidades reais ou ideais que representam, até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os animais. (BOBBIO, 1992, p. 69)

Os direitos de terceira geração são definidos como direitos coletivos, pois seus beneficiários não são nem o indivíduo isoladamente - como nos direitos de primeira geração -, nem um grupo social específico - como nos direitos de segunda geração -, mas todo o conjunto da humanidade, presente e vindoura.

Enquadram-se como direitos de terceira geração o direito à paz, o direito à livre determinação dos povos, o direito ao patrimônio comum a humanidade, o direito à comunicação, o direito ao desenvolvimento e o direito fundamental ao meio ambiente, objeto de nosso estudo, além do direito ao desenvolvimento sustentável, que abrange o direito ao desenvolvimento em conjunto com o direito ao meio ambiente.

Os direitos de terceira geração são considerados por diversos autores como direitos de síntese, isto porque exigem, para sua concretização, a anterior realização dos direitos de primeira e de segunda geração. Neste sentido, ensinam Mario Peña Chacon e Ingread Fournier Cruz:

De acuerdo a la teoría de los derechos humanos, estos derechos de tercera generacíon, están dentro de la categoría de derechos de síntesis, pues para que se hagan efectivos es necesario que en ellos se sinteticen los de primeira y segunda generacíon, en una interconexíon necesaria. Quiere decir esto, que únicamente se puede tener acceso al medio ambiente sano, cuando el hombre sea libre, se respete su vida, el Estado garantice su educacíon, su salud, etc [01]. (CHACON, CRUZ, 2001, p. 192)

Ainda tratando desta relação entre os direitos de terceira geração com os direitos de primeira e segunda geração, há uma questão bastante intrigante, que diz respeito à relação entre o interesse particular ou social com o interesse comum. Há um interesse comum em torno de alguns direitos de primeira e segunda geração – como, por exemplo, o direito à propriedade. A denominada função social da propriedade serve, numa de suas possíveis aplicações, como garantidora deste interesse comum (eventualmente, referente a um direito ao meio ambiente ou ao patrimônio comum a humanidade). Assim, uma reserva ambiental pode ser patrimônio de um indivíduo, tendo uma titularidade individual, portanto (garantia do direito fundamental de primeira geração à propriedade), mas sua preservação pode ser concomitantemente, em razão de sua relevância ambiental, um direito de titularidade coletiva (garantia do direito fundamental de terceira geração ao meio ambiente).

Alguns qualificam os direitos de terceira geração como Soft Rigths, ou direitos brandos, por caracerem de normatização nas Constituições atuais. A Constituição Federal de 1988, uma exceção à regra geral, incluiu vários destes direitos entre seus direitos fundamentais, como veremos adiante quando tratarmos do direito ao meio ambiente como direito fundamental na ordem jurídica brasileira pós-Constituição de 1988.

É fundamental lembrar que estes direitos de terceira geração estão inseridos no paradigma do Estado Democrático de Direito. Neste paradigma, a questão do público e do privado é central, não podendo o público ser visto como exclusivamente estatal, nem o privado visto como egoísmo. A tal ponto chegou a complexidade social que se torna necessário que organizações não governamentais defendam interesses públicos contra o Estado privatizado, que tantas vezes figura como o contraventor central (NETTO). É o caso das ONGs ambientais, que atuam defendendo o meio ambiente ante a atuação predatória das entidades estatais.

2.5. A teoria de Loperana Rota

Loperana Rota, ambientalista espanhol, oferece uma outra classificação dos direitos humanos fundamentais no constitucionalismo, que interessa aos fins do nosso trabalho.

Segundo Rota, os direitos fundamentais podem ser divididos em duas categorias: de um lado estão direitos que o Estado deve respeitar e proteger, e por outro, aqueles relacionados a ação estatal, que deve os concretizar, promovendo-os.

Conforme esta classificação, os direitos de primeira geração estariam entre aqueles que o Estado deve respeitar e proteger, por tratar-se de direitos intrínsecos à natureza humana, sendo anteriores a própria formação do Estado.

Por outro lado, os direitos de segunda e terceira geração figurariam na segunda categoria, referindo-se aos direitos que o Estado deve concretizar, promovendo-os. São direitos humanos que dependem da atuação dos sistemas sociais e políticos para se realizarem.

Voltaremos a abordar, em tópico opotuno, a teoria de Rota.


3. O DIREITO AO MEIO AMBIENTE COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

3.1. Introdução

No tópico anterior (Título 2) fizemos uma apreciação geral sobre os direitos humanos fundamentais. Agora, nosso intuito é mostrar que o direito ao meio ambiente deve ser encarado como um direito humano fundamental.

Para iniciar bem, faz-se imperioso trascrever na íntegra uma importantíssima observação de Paolo Maddalena, citado por Paulo de Bessa Antunes:

Ad un principio antropocentrico si va lentamente sostituendo un principio biocentrico; ovviamente, no nel senso che al valore uomo si sostittuisce il valore natura, ma nel senso che si pone come valore la ‘comunità biotica’, al cui vertice sta l’uomo. [02] (ANTUNES, 2005, p. 19)

Antes de qualquer coisa é preciso sublinhar que o direito fundamental ao meio ambiente é um direito humano fundamental ao meio ambiente. Quero dizer com isto que o homem continua sendo o "vértice" da "comunidade biótica", que a humanidade, presente e futura – mas apenas a humanidade – é titular do direito ao meio ambiente.

Discordando daqueles que advogam que o direito fundamental ao meio ambiente inclui como titulares espécies vegetais e animais não-humanas, Bessa Antunes afirma:

(...) tal raciocínio é primário, pois deixa de considerar uma questão essencial que é o fato de que o direito é uma construção humana para servir propósitos humanos. O fato de que o direito esteja evoluindo para uma posição na qual o respeito às formas de vida não humanas seja uma obrigação jurídica cada vez mais relevante, não é suficiente para descolar o eixo ao redor do qual a ordem jurídica circula (...) A questão que se coloca, contudo é a de não confundir a pretensa superação do antropocentrismo com uma modalidade de irracionalismo, muito em voga ultimamente, que, colocando em pé de igualdade o homem e os demais seres vivos, de fato, rebaixa o valor da vida humana e transforma-a em algo sem valor em si próprio, em perigoso movimento de relativização. (ANTUNES, 2005, p. 20)

Este "perigoso movimento de relativização" a que se refere o autor, está presente em obras como a do filósofo australiano Peter Singer, que tem como preocupação central o respeito aos animais e, por consequência, a equiparação moral deles com os seres humanos. Conforme Elton Dias Xavier:

Singer rechaça o antropocentrismo, que entende ser um ‘especismo’ uma discriminação dos seres humanos com os outros animais. Assim concluiu que muitas das modernas práticas biomédicas – no campo dos transplantes, inseminação artificial, cuidados ao recém nascido e aos doentes terminais – tornaram-se incompatíveis com a crença do igual valor da vida humana, porque, entre outras coisas, esse valor é variável, visto que ‘a vida sem autoconsciência não tem valor algum’. (XAVIER, pp. 7-8)

Como se vê, esta ampliação da tutela jurídica a seres não-humanos pode conduzir a atrocidades – ao permitir perigosas relativizações –, cujas vítimas são sempre os mais fracos, economicamente ou por força das circunstâncias, como a história repetitivamente nos ensina.

Deste modo, fique claro que quando mencionarmos direito fundamental ao meio ambiante estamos nos referindo a um direito humano fundamental.

3.2. Declaração de Estocolmo e Declaração do Rio

A Declaração sobre o Meio Ambiente Humano de Estocolmo, datada 1972, é um marco do Direito Ambiental, pois consagra, já no seu primeiro princípio, o direito ao meio ambiente como direito fundamental. Vejamos:

O homem tem direito fundamental a liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, e é portador solene de obrigação de melhorar esse meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovam ou perpetuem o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e dominação estrangeira continuam condenadas e devem ser eliminadas. (DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO, 1972)

O princípio plasmado na Declaração de Estocolmo foi reafirmado na Declaração do Rio, proferida na ECO-92, também no primeiro princípio, que aduz:

Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio ambiente. (DECLARAÇÃO DO RIO, 1992)

Apesar de estas Declarações serem consideradas soft law (v. Item 2.3, sobre Soft Rigths), ou mesmo, conforme alguns, não terem nenhuma força jurídica, tratando-se de meras recomendações, são fundamentais para difundir uma nova compreensão do meio ambiente e da co-responsabilidade mundial na sua diuturna proteção.

3.3. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

As Constituições pátrias que antecederam a atual trataram a questão ambiental de modo pouco sistematizado, vinculando o meio ambiente quase que totalmente a seu aspecto econômico.

Vai caber a Carta Constitucional de 1988 abordar a matéria de direito ambiental de maneira sistematizada, adotando inclusive um Capítulo próprio para questões ambientais (Título VIII, Capítulo VI, art. 225 ss., CB/88), além de tocar na matéria em vários outros momentos do seu texto (v.g. art. 5°, inc. LXXIII).

No entanto, neste aspecto, a maior e mais relevante inovação da nova Carta Magna foi, sem dúvidas, a elevação do direito ao meio ambiente à condição de direito humano fundamental.

O art. 225 CB/88 é o centro nevrálgico do sistema constitucional de proteção ao meio ambiente (ANTUNES, 2005, p. 54). A leitura do referido dispositivo constitucional já demonstra cabalmente a vinculação do direito ao meio ambiente ao rol de direitos fundamentais da Lei Maior de 1988. É preciso ressaltar que já é tese pacífica que o art. 5° da Constituição da República não comporta um rol senão exemplificativo dos direitos fundamentais, que podem ser localizados em vários outros pontos do texto constitucional, inclusive no art 225/CB:

Art 225, CB/88 – Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Ora, se o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, e o direito à vida, em todas as suas dimensões – inclusive naquela que se refere a vida com qualidade – foi consagrado como direito fundamental pelo art 5°, caput, CB/88, é notório que o direito ao meio ambiente, fundamentado que é no direito à vida e à saúde, só pode ser um direito humano fundamental na ordem jurídica pátria contemporânea.

Ademais, o próprio art. 5°, LXXIII, CB/88, ao erigir como garantia fundamental uma ação constitucional com a finalidade de defesa do meio ambiente, evidentemente, consagra, por si só, o meio ambiente como direito fundamental.

3.4. Aspectos comuns entre a proteção dos direitos humanos fundamentais latu sensu e a proteção do meio ambiente

O fato do direito ao meio ambiente consagrar-se um direito humano fundamental aproxima-o do modelo comum dos outros direitos fundamentais. Neste tópico, procuraremos traçar alguns aspectos comuns entre os direitos fundamentais em sentido amplo e o direito fundamental ao meio ambiente.

O primeiro e mais óbvio ponto contato entre ambos é a relação, já abordada anteriomente, do direito ao meio ambiente com o direito à vida e à saúde, em que aquele se fundamenta nestes.

Outros dois pontos comuns, estes ainda não abordados, referem-se (1) a sua dimensão espacial ampla e (2) a sua dimensão temporal ampla. Passaremos a analisar estes dois pontos nas próximas linhas.

Um dos princípios norteadores do direito ambiental, que igualmente orienta os direitos humanos latu sensu, é o denominado princípio da ubiquidade, que significa onipresença, sugerindo inexistência de barreiras geográficas.

Em sede de direito do meio ambiente o princípio da ubiquidade é de relevância capital, porquanto as consequências negativas advindas da inadimplemência de normas ambientais afetam todo o globo, não se restringindo a um território específico. A título exemplificativo, podemos citar a poluição atmosférica ou a destruição da camada de ozônio, que afetam o planeta como um todo.

O referido princípio pode ser extraído implicitamente da nossa Carta Magna, como se verifica no art. 4°, IX, CB/88, que prevê a "cooperação dos povos para o progresso da humanidade".

Em relação especificamente a matéria de direito ambiental, o referido princípio pode ser extraído do art. 225, CB/88, que se vale de um conceito genérico, a expressar o conjunto da humanidade, a saber: "Todos têm o direito...". A expressão "todos" abrange a totalidade dos seres humanos, brasileiros ou estrangeiros. Daí porque o direito ao meio ambiente ser compreendido como direito coletivo.

O segundo ponto de contato refere-se a dimensão temporal ampla do direito fundamental ao meio ambiente e dos direitos fundamentais em sentido genérico. Neste sentido, no âmbito do direito ambiental esta amplitude temporal se torna ainda mais notória.

Edith Brown Weiss criou o conceito de equidade intergeneracional, a indicar que as gerações presentes possuem o dever de garantir as gerações vindouras o desfrute de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Também a teoria da equidade intergeneracional foi recepcionada pela nossa Constituição, que em art. 225, caput, afirma ser necessário preservar o meio ambiente inclusive tendo em vista as "gerações futuras".

3.5. O direito fundamental ao meio ambiente na teoria de Loperana Rota

Abordamos em tópico anterior a teoria de Loperana Rota, que classifica os direitos fundamentais quanto a postura do Estado. Por um lado temos os direitos que o Estado deve repeitar e proteger, que se confundem com os direitos de primeira geração, por outro lado, temos aqueles direitos que o Estado deve promover com a sua atuação, que se confundem com os direitos de segunda e terceira gerações.

Dissemos anteriormente que o direito ao meio ambiente é um direito coletivo, pertecente a terceira geração. Surge, agora, a pergunta: estará enquadrado entre àqueles direitos que o Estado deve promover com sua atuação?

A resposta é negativa. O direito ao meio ambiente enquadra-se tanto na primeira categoria, dos direitos que o Estado deve respeitar e proteger, quanto na segunda categoria, dos direitos que o Estado deve concretizar, promovendo. É esta a conclusão a que chega Loperana Rota.

O meio ambiente precede ao homem, ao direito e ao Estado. Por essa razão o direito ao meio ambiente saudável e equilibrado é um direito fundamental que não depende dos sistemas sociais e políticos, enquandrando-se entre aqueles que o Estado deve respeitar e proteger.

Por outro lado, o direito ao meio ambiente exige igualmente a atuação positiva da Administração Pública. Por isso, enquadra-se também na segunda categoria, a dos direitos que o Estado deve concretizar, promovendo.

Passaremos no Título seguinte a apreciar a Administração Pública no contexto dos direitos fundamentais, dando ênfase ao direito fundamental ao meio ambiente. Por hora, é possível adiantar, pelo que já foi dito, que em sede de direitos fundamentais, ora se exige da Administração Pública uma postura passiva, de respeito e proteção aos direitos fundamentais, ora se exige dela uma postura ativa, de promoção destes mesmos direitos.


4. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Já tratamos da questão dos direitos fundamentais. Passaremos agora a estudar a Administração Pública e sua posição ante estes direitos, dando especial ênfase ao direito fundamental ao meio ambiente.

4.1. Conceito de Administração Pública

A doutrina clássica do Direito Administrativo apresenta o conceito de Administração Pública sob duas perspectivas. Numa perspectiva formal, Administração Pública seria o complexo de órgãos responsáveis pelas funções administrativas. Já numa perspectiva material, seria o complexo de atividades concretas e imediatas realizadas pelo Estado, sob os termos e condições da lei, visando o atendimento das atividades coletivas.

No entanto, é preciso salientar, conforme aponta Menelick de Carvalho Netto, que as ações públicas não se reduzem a Administração Pública:

A ótica do administrado, do cidadão, requer que enfoquemos a esfera pública como algo bem mais amplo do que o mero Estado que se encontra, sem dúvida, em seu centro, mas que inequivocamente não a esgota e que é passível, a todo momento, de ser privatizado pela própria Administração. A periferia da esfera pública, a cidadania e a sua parcela organizada e às vezes denominada terceiro setor, constitucionalmente dotada de instrumentos processuais de controle dessa esfera, tem necessariamente que ser levada em conta, para que a doutrina do Direito Administrativo revele, em toda a sua força, sua natureza efetivamente pública.

No paradigma do Estado Democrático de Direito a esfera pública não se reduz ao Estado e suas atividades, porque inexiste identidade entre o público e o estatal. Com o advento e multiplicação do terceiro setor, composto por instituições da sociedade civil, ficou evidente que as ações públicas não precisam ser necessariamente estatais.

Vale salientar que o desenvolvimento do terceiro setor na área ambiental é dos mais relevantes, o que se explica, em parte, pelo fato do Estado – que deveria proteger o meio ambiente – ser um dos seus principais algozes.

4.2. Princípios da Administração Pública e sua relação com a concreção e tutela dos direitos humanos fundamentais.

A Constituição Brasileira de 1988 se preocupou em definir em seu texto os princípios básicos da Administração Pública, buscando garantir assim a probidade na administração da coisa pública e a possibilidade de responsabilização de agentes públicos que se desviarem dessas diretrizes. Constitucionalizar os princípios da Administração Pública significa também oferecer subsídios para a tutela e concreção dos direitos humanos fundamentais.

O art. 37 da Carta Magna indica cinco princípios basilares da Administração Pública: princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Passaremos a uma análise, em separado, de cada um destes princípios, traçando uma relação com a proteção dos direitos humanos fundamentais.

4.2.1. Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade aplicado a Administração Pública (art. 37, caput, CF) tem uma coloração bastante diversa daquele aplicado ao indivíduo (art. 5º, II, C.F). Enquanto este pode fazer tudo o que a lei não o proíba, o administrador público somente poderá fazer aquilo que a lei o permite.

O administrador está, assim, vinculado à lei, e isso é indispensável numa democracia. Por um lado, para que as ações públicas não atropelem os direitos fundamentais, e por outro, para que elas o concretizem.

Ao estudar a evolução histórica dos direitos fundamentais vimos que os direitos a liberdade e igualdade, consagrados no paradigma do Estado liberal, foram garantidos, neste primeiro momento, apenas formalmente. Num segundo momento, reclamou-se a materialização destes direitos, e neste processo a formalidade acabou sendo sacrificada, fazendo emergir o totalitarismo. Hoje, conforme aponta com maestria o Professor Menelick de Carvalho Netto:

"(...) vivemos um momento em que sabemos que forma e matéria são equiprimordiais, que a materialização, conquanto importante, deve resultar do próprio processo de afirmação dos sujeitos constitucionais e contar com garantias processuais (formais) de participação e controle por parte dos afetados das medidas adotadas em seu nome e, pelo menos retoricamente, visando o seu bem-estar, sob pena de se institucionalizar o oposto do que se pretendera".

Quer isto dizer que o processo de materialização dos direitos, apesar de central, não pode atropelar a forma, devendo ser forjado nas balizas do Estado de Direito, no respeito incondicional as leis por parte do administrador público. De outra forma, lançaríamos no altar de sacrifício os direitos humanos fundamentais.

Assim, a lei é, concomitantemente, um limite e um norte para o administrador público. Um norte para a concreção dos direitos fundamentais e um limite para que neste processo de concreção não haja excessos, capazes de provocar fenômeno inverso, isto é, o sacrifício destes mesmos direitos.

Exemplificando, o Estado tem o dever de defender e preservar o meio ambiente. Para tanto, pode se valer do seu poder de polícia. O poder de polícia é o exercício do direito soberano de um governo promover ordem, segurança, saúde, moral e o bem-estar geral dentro dos limites constitucionais e é um atributo essencial do governo. O conceito de poder de polícia é vinculado a prerrogativas e deveres da Administração Pública como estrutura encarregada de assegurar um mínimo de coesão social, dentro dos limites do Estado de Direito, estando estreitamente vinculado ao princípio da legalidade. Assim, o Estado deve utilizar seu poder de polícia a fim de garantir o bem-estar geral, no caso, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas fazê-lo sempre nos limites do permitido pela lei, sob o risco de sacrificar ilegalmente outros direitos fundamentais, tornando injustificável o uso de suas prerrogativas.

Ao falar em legalidade, não podemos deixar de mencionar que a submissão da Administração Pública ao direito deixa subsistir uma zona de liberdade, que é o poder discricionário. Por sua relevância ao tema que estamos abordando, faz-se forçoso tratar a questão em tópico próprio. É o que passaremos a fazer.

4.2.1.1. Poder discricionário

O poder discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos, com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo, não se confundindo com poder arbitrário. (MEIRELLES, 1997)

A discricionariedade é uma liberdade de atuação sempre relativa, na medida em que está subordinada ao que a lei dispõe. Assim, em última instância, está submetida ao princípio da legalidade.

A problemática toda da questão reside na confusão que não poucas vezes o administrador faz entre discricionariedade e arbitrariedade, colocando em xeque direitos humanos fundamentais. Discricionariedade é a liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos pela lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. (MEIRELLES, 1997)

4.2.2. Princípio da Impessoalidade

O princípio da impessoalidade confunde-se com o tradicional princípio da finalidade, impondo ao administrador que só pratique o ato visando o seu fim legal. E o fim legal é aquele que a norma indica, expressa ou tacitamente, como o objetivo do ato, de forma impessoal. (MEIRELLES, 1997)

O ato administrativo deve estar vinculado com o interesse público. Se do ato resulta um interesse tão-só particular, do próprio administrador ou de terceiros, ocorre desvio de finalidade.

O patrimonialismo, aquela ausência de distinções entre os limites do público e os limites do privado, é uma das marcas características do Estado brasileiro, o que torna o princípio da impessoalidade fundamental em nossa ordem jurídica, a fim de combater os freqüentes desvios de finalidade que se perpetram diuturnamente em nosso país.

Esta promiscuidade entre público e privado atenta contra os direitos fundamentais, ao impedir que o Estado concretize estes direitos de forma plena, uma vez que o aparato estatal passa a servir não a este fim, mas a interesses particulares, o que, por conseqüência, acaba também por ferir outros direitos que o Estado deveria respeitar.

Observe-se que a omissão na aplicação de determinada lei pode também configurar desvio de finalidade. A título de exemplo, cabe ao Poder Público realizar o controle de poluição. Se as alterações nas propriedades naturais do meio ambiente se tornarem intoleráveis, a justificar assim o controle de poluição, e o agente público se omite, no intuito de não prejudicar o desenvolvimento de atividade industrial de terceiro (interesse particular) incorre em desvio de finalidade.

Também ocorreria desvio de finalidade se o administrador, no intuito de prejudicar atividade industrial de terceiro, se valesse do poder de polícia administrativa para realizar controle de poluição. Se a finalidade fosse realizar o controle de poluição, estando atendidas as condições fáticas para tanto, não haveria desvio de finalidade. Ocorre que em nosso exemplo a finalidade é diversa, particular, injustificável, portanto.

4.2.3. Princípio da Moralidade

Quer dizer o princípio da moralidade que não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade. Hauriou, o sistematizador deste conceito, afirma não se tratar da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como um conjunto de regras jurídicas extraídas do seio da Administração. (MEIRELLES, 1997)

O agente administrativo deve se orientar por uma conduta ética, não devendo decidir apenas entre o legal e o ilegal, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o moral e o imoral, o honesto e o desonesto.

Em nossa ordem jurídica a moralidade, bem como a legalidade e a finalidade, são pressupostos da validade dos atos administrativos. O controle jurisdicional dos atos administrativos se reduz ao exame de sua legalidade, mas por legalidade se entende não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo.

Um ato que afronta a moral administrativa, apesar de amparado pela lei, está eivado ilegalidade.

O princípio em tela é importante na medida em que busca impedir que o respeito à legalidade estrita possa atingir algum direito humano fundamental, o que ocorre com bastante freqüência.

4.2.4. Princípio da Publicidade

Em direito administrativo a publicidade é a divulgação oficial do ato administrativo para o conhecimento público e o início de seus efeitos externos. Não é elemento formativo do ato, mas requisito de eficácia e moralidade. (MEIRELLES. 1997)

A publicidade é decorrência do interesse público que envolve os atos da Administração. Por ser pública a Administração, seus atos devem ser publicados, a fim de propiciar seu conhecimento e controle por parte dos administrados.

Inadmissível que o cidadão não possa conhecer e controlar o que se decide a seu respeito. Justamente buscando evitar situações kafkianas, contrárias ao Estado Democrático de Direito, é que a Constituição Federal apresenta vários instrumentos para assegurar o direito ao conhecimento e controle dos atos administrativos, tais como o mandado de segurança (art. 5º, LXIX), direito de petição (art. 5º, XXXIV, "a"), ação popular (art. 5º, LXXIII), habeas data (art. 5º, LXXII) e fornecimento de certidões de atos da Administração (art. 5º, XXXIV, b).

A publicidade dos atos administrativos serve como um freio à ação estatal, que não se pode perpetrar às escondidas e que se submete ao controle dos administrados. Nesse sentido, busca-se resguardar eventuais afrontas aos direitos fundamentais, de forma preventiva e repressiva.

A regra da publicidade somente poderá ser excepcionada quando o interesse público assim determinar, prevalecendo este em detrimento do princípio da publicidade. (MORAES, 2006)

4.2.5. Princípio da Eficiência

O princípio da eficiência foi inserido recentemente na Constituição Federal pela E.C 19/98 pretendendo garantir maior qualidade na prestação de serviços públicos.

Tal princípio impõe à Administração Pública e seus agentes a busca do bem-comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir melhor rentabilidade social. (MORAES, 2006)

A adoção do princípio da eficiência pelo ordenamento jurídico pátrio é uma garantia a mais aos administrados, que podem não apenas exigir a presença do Estado na realização de serviços públicos, como também que estes serviços sejam prestados com qualidade.

O princípio sub examine, apesar de ontologicamente ser mais uma finalidade do que precisamente um princípio, reveste-se de especial interesse, sobretudo no processo de concreção dos direitos humanos fundamentais.

4.3. A Administração Pública e as funções dos direitos humanos fundamentais

Já falamos dos direitos fundamentais, mostramos como o direito ao meio ambiente deve ser encarado como um direito fundamental. Estudamos a Administração Pública e seus princípios, indicando a importância destes para a concreção e tutela dos direitos fundamentais, especialmente do direito fundamental ao meio ambiente.

Encerrando este trabalho, apresentaremos, de um modo geral, como os direitos fundamentais, a partir de suas funções (já apresentadas no tópico 2.2), obrigam e limitam a atuação da Administração Pública.

4.3.1. Função de defesa ou de liberdade

Os direitos fundamentais são aqui entendidos sob duas perspectivas: na primeira, como normas objetivas que limitam a atuação da Administração Pública. Ao consagrar o direito ao meio ambiente como direito humano fundamental a Constituição coloca um obstáculo a atuação do Estado. Assim, por exemplo, se um dos fundamentos do Estado brasileiro é o desenvolvimento nacional (art. 3º, II, CB/88), fica evidente que a busca por tal desenvolvimento não pode atropelar direitos humanos fundamentais, exigindo-se, na seara ambiental, que o desenvolvimento seja sustentável.

Na segunda perspectiva, garante-se ao sujeito de direitos exercê-los livremente (liberdade positiva), não podendo a Administração Pública invadir esta esfera individual de fruição dos direitos fundamentais. Por outro lado, pode este sujeito, titular de direitos fundamentais, exigir omissões da Administração Pública, de forma a evitar afrontas a seus direitos (liberdade negativa).

Justamente para garantir a fruição dos direitos fundamentais por parte dos sujeitos de direito é que a Constituição garante alguns remédios constitucionais, que são mecanismos aptos a corrigir ilegalidades da Administração Pública. São eles: o habeas corpus, mandado de segurança, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção, habeas data e ação popular.

4.3.2. Função de prestação social

Vários dos direitos humanos fundamentais exigem a ação pública (estatal e não estatal) para se concretizarem. Compõem-se principalmente daqueles direitos de segunda e terceira gerações (educação, saúde, moradia, comunicação, meio ambiente).

São direitos básicos que a mão invisível não foi capaz de garantir a todos os indivíduos, tornando-se imprescindível para sua materialização a atuação do Estado (no paradigma do Estado Social) e do Estado e sociedade civil organizada (no atual paradigma do Estado Democrático de Direito).

Como observado no capítulo em que tratamos especificamente do direito fundamental ao meio ambiente, no caso específico deste direito, ora se exige da Administração Pública uma postura passiva, de respeito e proteção a este direito (função de defesa ou de liberdade), ora se exige dela uma postura ativa, de promoção destes mesmos direitos (função de prestação social).

4.3.3. Função de proteção perante terceiros

Cabe a Administração Pública proteger os direitos humanos fundamentais perante atuação usurpadora de terceiros.

Os direitos humanos fundamentais são oponíveis, de um lado, imediatamente a Administração Pública, e de outro, imediatamente a terceiros e mediatamente a Administração Pública.

Significa dizer que mesmo naqueles casos em que os direitos fundamentais são lesados por terceiros, cabe a Administração Pública agir com o fim de fazer cessar lesão ou mesmo ameaça de lesão.

Esta atuação da Administração Pública ora deve ser preventiva, ora repressiva. A título de exemplo, deve o administrador evitar que terceiros poluam o meio ambiente, ora por meio de políticas preventivas (p.ex., campanhas de conscientização), ora por meio de ações repressivas (p.ex., imposição de multas).

4.3.4. Função não-discriminatória

Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, os três paradigmas do constitucionalismo surgiram para combater determinadas práticas de exclusão ou discriminatórias.

No paradigma referente ao Estado Liberal, buscava-se romper com o absolutismo monárquico, com uma discriminação advinda do poder político. No paradigma do Estado Social, combatiam-se as práticas discriminatórias do poder econômico. No atual paradigma do Estado Democrático de Direito busca-se combater práticas de exclusão perpetradas pela própria sociedade, como a discriminação racial, de gênero e de sexo.

Para tornar efetivos os direitos humanos fundamentais é muitas vezes imprescindível tratar desigualmente os desiguais – não apenas de um ponto de vista econômico, mas também de um ponto de vista social. Assim, a promoção de políticas afirmativas, por parte da Administração Pública, pode ser essencial para a efetiva materialização dos direitos humanos fundamentais.


5. CONCLUSÃO

O presente trabalho foi uma oportunidade para avaliarmos um tema pouco estudado entre nós. Esperamos assim ter contribuído para um desenvolvimento futuro mais aprofundando do referido tema.

Parece-nos fundamental, no atual contexto, um aprofundamento nos estudos desta relação entre Administração Pública e direitos humanos fundamentais.

A Administração Pública não deve se comportar com excessiva passividade, deixando de concretizar direitos fundamentais – como ocorreu no paradigma do Estado Liberal – nem colocar a matéria em patamar mais elevado que a forma, atropelando diversos direitos fundamentais – tal qual ocorreu no paradigma do Estado Social. Antes, deve caminhar nas trilhas do Estado Democrático de Direito, compreendendo forma e matéria como equiprimordiais, concretizando, tutelando e respeitando, a um só tempo, os direitos e garantias fundamentais.


6. BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 8º edição. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 5º ed. Coimbra: Almedina, 2002.

CHACON, Mario Pena; CRUZ, Ingread Fournier. Derechos humanos y medio ambiente. Revista de Direito Ambiental; n. 39, Doutrina Internacional. p. 189 ss.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23º edição. São Paulo: Malheiros, 1997

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 3º edição. São Paulo: Atlas, 2000

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. 3º edição. São Paulo: Atlas, 2006

NETTO, Menelick de Carvalho; SUNFELD, Carlos Ari; SOUZA, Rodrigo Pagani. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício da teoria da Constituição.

PAIM, Maria Augusta Fonseca. Direitos humanos e meio ambiente. Revista Jurídica, Campinas, v 19, n.1, p. 59-78, 2003.


Notas

01 TRADUÇÃO NOSSA – De acordo com a teoria dos direitos humanos, estes direitos de terceira geração estão dentro da categoria de direitos de síntese, pois para que se efetivem faz-se necessário que neles se sintetizem os de primeira e segunda geração, em uma inter-conexão necessária. Quer isto dizer que só é possível o acesso a um meio ambiente saudável, quando o homem seja livre, se respeite sua vida, e o Estado garanta sua educação, sua saúde, etc.

02 TRADUÇÃO DE P. B. ANTUNES – "A um princípio antropocêntrico se vai lentamente substituindo um princípio biocêntrico; obviamente, não no sentido de que ao valor homem se substitui o valor natureza, mas no sentido que se impõe como valor a ‘comunidade biótica’, em cujo vértice está o homem. (ANTUNES, 2005, p. 19)



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Alysson Amorim Mendes da. A Administração Pública no contexto dos direitos humanos fundamentais: o caso do direito fundamental ao meio ambiente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1261, 14 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9277. Acesso em: 3 maio 2024.