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Absolvição do réu que mantém poucas aves silvestres em cativeiro

O princípio da insignificância deve ser aplicado no crime ambiental de manter ave silvestre em cativeiro para absolver o acusado

Absolvição do réu que mantém poucas aves silvestres em cativeiro. O princípio da insignificância deve ser aplicado no crime ambiental de manter ave silvestre em cativeiro para absolver o acusado

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O princípio da insignificância deve ser aplicado para absolver o réu do crime ambiental de manter ave silvestre em cativeiro quando o o número de aves era inexpressivo.

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Manter ave silvestre em cativeiro configura crime ambiental, porém, há casos que a pena deve deixar de ser aplicada, absolvendo-se o réu com base no princípio da insignificância.

Nas hipóteses em que o número de pássaros mantidos irregularmente em cativeiro não for expressivo, não houver identificação de maus tratos, nem intenção de comércio ou lucratividade, e as espécies não estiverem ameaçadas de extinção, não há que se falar em condenação por crime ambiental.

Isso porque, a Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) tem como objetivo concretizar o direito dos cidadãos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e preservado para as futuras gerações, regulamentando o art. 225, da Constituição Federal de 1988, que, em seu § 1º, inciso VII, dispõe:

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...]
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Para incidir no tipo penal do art. 29 da Lei de Crimes Ambientais, é indispensável que a guarda, a manutenção em cativeiro ou em depósito de pássaros silvestres, possa, efetivamente, causar risco às espécies ou ao ecossistema.

Se assim não for, cabível a aplicação do princípio da insignificância penal porquanto ausente qualquer conduta que coloque em risco a função ecológica ou provoque a extinção das espécies ou que submetam os animais a crueldade.

1. PERDÃO JUDICIAL

A própria Lei de Crimes Ambientais relativiza a conduta do agente quando estabelece o chamado perdão judicial, conferindo ao Juiz o poder de não aplicar a pena se a guarda doméstica for de espécie silvestre não ameaçada de extinção:

Art. 29. Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida: [...]
2º No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.

Ora. Não se mostra razoável movimentar a máquina pública para apurar conduta desimportante para o Direito Penal, que não representa ofensa significante ao bem jurídico tutelado pela Lei Ambiental.

Ainda que o fato se enquadre no tipo penal previsto pelo legislador, a conduta que não causa lesão ao bem jurídico impede a caracterização do tipo.

Isso porque, o direito penal só deve intervir nos casos em que ocorrem efetiva lesividade, em observância aos princípios constitucionais implícitos da intervenção mínima e da fragmentariedade. A respeito disso, já comentamos aqui.

Por isso, correto aplicar o princípio da insignificância, que como é sabido, visa excluir ou afastar a tipicidade da conduta.

2. O QUE DIZ A DOUTRINA

Em comentários ao tema, Fernando Capez[1] leciona:

Segundo tal princípio, o Direito Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico.
A tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em um tipo penal condutas totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido.
Se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica.
É que no tipo não estão descritas condutas incapazes de ofender o bem tutelado, razão pela qual os danos de nenhuma monta devem ser considerados fatos atípicos.
Tal princípio deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com as suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. 
Em outras palavras, nem toda conduta subsumível ao art. 155 do Código Penal é alcançada por este princípio, algumas sim, outras não. É um princípio aplicável no plano concreto, portanto..

3. A DOUTRINA E O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Especificamente quanto à incidência do princípio da insignificância no âmbito dos crimes ambientais, também chamado de princípio da bagatela, Renato Marcão[2] acrescenta:

O conceito do delito de bagatela, diz Maurício Antônio Ribeiro Lopes, não está na dogmática jurídica. Nenhum instrumento legislativo ordinário ou constitucional o define ou ataca formalmente, apenas podendo ser inferido na exata proporção em que se aceitam limites para a interpretação constitucional e das leis em geral.
É de criação exclusivamente doutrinária e pretoriana, o que se faz justificar estas como autênticas fontes de Direito. Por outro lado, mercê da tônica conservadorista do Direito, afeta seu grau de recepcionalidade no mundo jurídico".
Na objetiva visão de Luiz Flávio Gomes, "bagatela significa ninharia, algo de pouca ou nenhuma importância ou significância".
Nada obstante os reiterados exemplos que a realidade prática rotineiramente proporciona, vezes até noticiados com certa perplexidade e "desconforto" pela mídia, não se pode negar que ainda nos tempos atuais parte considerável da jurisprudência nacional tem se posicionado de maneira contrária à aplicação do princípio da insignificância em matéria penal.
A discussão ganhou novos argumentos contrários em se tratando de crimes ambientais, e reiteradas vezes tem-se decidido pela inadmissibilidade da insignificância no trato de matéria ambiental, notadamente em razão da natureza do bem jurídico tutelado e de uma alegada impossibilidade de se avaliar a real extensão do dano causado no ecossistema pela conduta do agente.
Prevalece na jurisprudência, entretanto, o entendimento no sentido da incidência do princípio da insignificância em matéria penal, de molde a atingir a tipicidade material da conduta e restar sem razão jurídica a persecução penal em juízo.
A propósito do tema, de longa data as duas Turmas do Supremo Tribunal Federal vêm se pronunciando favoravelmente à possibilidade de não se desprezar a realidade fática, de forma a fazer incidir referido princípio em matéria penal [...].

E continua:

Em se tratando de crime ambiental a interpretação não pode ser diferente. Não há razão lógica ou jurídica para pensar o contrário quanto evidenciada a insignificância material da conduta imputada ao agente, "a lei de regência não pode ser aplicada para punir insignificantes ações, sem potencial lesivo à área de proteção ambiental.
É bem verdade que "o preceito da insignificância, em matéria ambiental, deve ser aplicado com parcimônia, uma vez que a mera retirada de espécie do seu ambiente natural já causa interferência no tênue equilíbrio ecológico", mas não há dúvida de que o elevado grau de maturidade e responsabilidade dos magistrados que integram as fileiras do Poder Judiciário brasileiro assegura, sem sombra de dúvida, o cuidado que se espera no manejo de tal "instituto jurídico" , que nada tem de "liberal", ao contrário do que muitos sustentam com razoável equívoco e até com um certo insinuar pejorativo.
Decorre da natureza fragmentária do Direito Penal e do princípio da intervenção mínima que a lei penal somente deverá ser movimentada em face de condutas que proporcionem lesão significativa, de molde a se revelar indispensável a efetiva proteção dos bens juridicamente tutelados. A tipicidade pressupõe lesão efetiva e relevante ao bem jurídico tutelado.
Uma vez mais com apoio na doutrina de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, temos que "o princípio da insignificância se ajusta a equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal.
Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do Direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças.
A incidência do princípio da insignificância em relação aos crimes ambientais, com a cautela que a particularidade do tema requer, é inescusável.
Os postulados da teoria do controle social penal, aliados a uma política criminal atualizada, não só reclamam, mas em verdade determinam, que os aplicadores do Direito avaliem adequadamente a antijuridicidade material do fato, a verdadeira lesividade da conduta, de molde a não perder de vista a incidência do princípio da insignificância.

Para saber mais sobre o princípio da insignificância, temos um artigo aqui.

5. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS TRIBUNAIS

Segundo entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores:

  • a mínima ofensividade da conduta do agente;
  • nenhuma periculosidade social da ação;
  • o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e,
  • a inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Muito embora haja certa resistência da doutrina e jurisprudência pátrias quanto ao reconhecimento da atipicidade material relacionada aos crimes ambientais, inclusive nos de guarda doméstica de pássaros, os Tribunais têm admitido sua aplicação de maneira excepcional.

Em tais casos, nos quais a lesão ao bem juridicamente tutelado é ínfima, sem potencial de dano concreto ao meio ambiente, tem-se admitido o reconhecimento do crime de bagatela, desde que reste caracterizada a mínima ofensividade da conduta praticada.

Já comentamos sobre um caso concreto aqui, em que aplicado o princípio da insignificância, o réu foi absolvido.

6. CONCLUSÃO

Percebe-se que somente haverá lesão ambiental irrelevante no sentido penal, quando a avaliação dos índices de desvalor da ação e do resultado indicar que o grau da lesividade da conduta praticada contra o bem ambiental tutelado é ínfimo.

Na prática forense, já foi possível aplicar o princípio da insignificância em favor do réu flagrado mantendo em cativeiro 4 pássaros da fauna silvestre, das espécimes tico-tico, papa-banana e coleiro.

Em um outro caso, o réu foi absolvido por manter sob sua guarda ou ter em cativeiro, 3 pássaros das espécies baitaca e tiriva, o que foi considerando insignificante para fins de intervenção do direito penal.

Nos dois casos acima exemplificados, constatou-se conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade do agente, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva, de modo a autorizar a aplicação do principio da insignificância.

Portanto, o simples fato de manter aves em cativeiro, embora se amolde ao tipo penal previsto na Lei 9.605/98, não autoriza que o infrator seja condenado quando a conduta não apresentar relevância material, posto que o direito não pode e não deve se ocupar de bagatelas.

[1] Curso de direito penal, parte geral: (arts. 1º a 120). 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, v. I, p. 27-28.

[2] Crimes ambientais, Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da lei 9.605, de 12-2-1998. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 35-39.


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