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Violência doméstica

possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade

Violência doméstica: possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade

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Permanece a controvérsia acerca da constitucionalidade da nova possibilidade de prisão preventiva instituída pela Lei nº 11.340/06, para assegurar a efetividade das medidas de proteção nela previstas.

Resumo:

A nova hipótese de prisão preventiva estabelecida pela Lei 11.340/06 não encontra reprovação no arcabouço legal capitaneado pelo artigo 312 do Código de Processo Penal, nem na Constituição Federal.

Houve adequação sistemática da prisão ante tempus.

O estágio técnico-jurídico e social atuais indicam a adequação da prisão – condicionada temporalmente ao tempo mínimo de prisão cominada à conduta optada – como medida idônea a garantir efetividade às medidas de proteção instituídas pela Lei Maria da Penha.

Ademais, não há em nosso ordenamento outro meio idôneo a garantir a dignidade da mulher em situação de violência doméstica, de modo que se deve atribuir maior peso a seu direito à integridade, à vida mesmo, em detrimento da episódica restrição da liberdade do agressor.

Palavras-chave: violência doméstica. Prisão preventiva. Possibilidade jurídica. Princípio constitucional da proporcionalidade: adequação dos meios aos fins e menor restrição possível.

Sumário:1. Introdução; 2.Colocação e debate; 3.Bibliografia.


1. Introdução

A Lei 11.340/06 introduziu nova possibilidade de prisão preventiva – para assegurar a efetividade das medidas de proteção nela previstas –, oportunidade em que acrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal. Compatibilização relevante porque a lesão corporal leve é, estatisticamente, a violência doméstica mais significativa contra a mulher.

Entretanto, permanece a controvérsia acerca da constitucionalidade desta prisão cautelar, pois o princípio da proporcionalidade indica a que a prisão ante tempus não poderia ser mais severa que a pena ao final aplicada ao acusado.


2. Colocação e debate.

Antes de nos posicionarmos propriamente a respeito da possibilidade constitucional e legal, em tese e conforme art. 20 da Lei 11.340/06 [01], da prisão preventiva nos casos de violência doméstica, faz-se pertinente considerar a sede adequada para a discussão da questão, o resultado admissível da ponderação entre os valores e princípios envolvidos, (sem vírgula) e a inexistência de incompatibilidade dessa nova possibilidade com as disposições legais pertinentes à prisão ante tempus.


(A) O Direito tem pretensões sistemáticas, pois impõe ao Legislador e ao intérprete, por lógica, ainda que não a formal – própria das ciências naturais -, mas a do razoável [02], calcada nos valores eleitos e na adesão do auditório [03], o princípio da não-contradição, ou melhor, um dever de coerência.

Esse sistema pode ser lido, como fez KELSEN, de um ponto de vista estático, dando ênfase à Constituição, fundamento de validade das normas, ou de um ponto de vista dinâmico, assim entendido como aquele que, por indução, procura fazer prevalecer o valor eleito como parâmetro deôntico, do dever-ser. Essa é a lição de NORBERTO BOBBIO [04].

O Mestre, após assentar que o sistema jurídico seria um tertius genus resultante dessas duas modalidades de sistema, aduz que:

"... confrontando com um sistema dedutivo, o sistema jurídico é alguma coisa menos; confrontando com o sistema dinâmico do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se considerar o enquadramento de uma norma no sistema não bastará mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será necessário também mostrar que ela não é incompatível com outras normas. Nesse sentido, nem todas as normas produzidas pelas fontes autorizadas seriam normas válidas, mas somente aquelas compatíveis com as outras".

Mais adiante, após apresentar com clareza impar as antinomias jurídicas, salienta a insuficiência dos critérios tradicionais de interpretação: verificação da contemporaneidade das normas, bem como de sua hierarquia e de se tratar de normas gerais ou especiais, pois são possíveis, sem prejuízo de qualquer natureza, contradições valorativas intestinas.

Acrescenta, em lição pertinente, que o dever de coerência, portanto, não é condição de validade, mas de justiça do ordenamento [05].

Justiça é daquelas definições altamente controvertidas em Direito. Entretanto, sem maiores digressões, por exemplo, a respeito de sua coincidência com a moral, como quis KELSEN [06], é possível entendê-la, ao menos de um ponto de vista prático, como atenção aos princípios gerais do Direito. Essa é a lição de OTFRIED HÖFFE, professor honoris causa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:

Em estilo claro e sintetizado de modo aforístico, como que talhado em pedra, eles declaram: ‘As prescrições do direito são estas: viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que é seu’.

(...)

De acordo com entendimento convencional, os três princípios afirmam essencialmente a mesma coisa. O primeiro, ‘vive honestamente’ (honeste vive), ordena uma probidade que consiste, em sua determinação negativa, na proibição ‘não leses ninguém" (neminem laede) e, positivamente, no imperativo ‘dá a cada um o que é seu’ (suum cuique tribue)" [07].

Sabe-se que a Constituição é o primeiro fato jurídico do fenômeno político – evidência próxima disso é nossa Carta Constitucional e os embates que se deram na Assembléia Constituinte.

Logo, podemos dizer que:

... o legislador [inclusive o infraconstitucional] se põe em conflito com as suas próprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativa é uma contradição imanente. (...) Diferentemente das contradições normativas, que de forma alguma podemos deixar subsistir, as contradições valorativas têm em geral que ser aceitas [08].

Tal confronto, que se dúvida também se dá em sede infraconstitucional, é solvido pelo princípio da proporcionalidade, com sede no princípio do devido processo legal substantivo, e seus conhecidos subprincípios da adequação do meio-fim, da necessidade e da menor restrição possível. Adensa o princípio da razoabilidade, pelo qual "...o intérprete/aplicador avalia a lógica do razoável (...) tenta compatibilizar interesses com razões e não a causa com o efeito. (...) Enquanto a lógica formal busca referenciar causa e efeito, a lógica do razoável define a decisão que melhor compatibiliza interesses e razões que são apenas experimentalmente referenciáveis, sujeitos a valorações subjetivas. (...) Essa lógica do razoável se caracteriza, resumidamente, por estar: a) condicionada à realidade concreta do mundo histórico-social para o qual estão voltadas as normas jurídicas; b) repleta de postulados axiológicos, valores que devem se relacionar com as possibilidades e limitações do mundo real e que constituem o objetivo que define as escolhas dos fins almejados pelo intérprete. (...) CHAIM PERELMAN... leciona que os direitos concedidos a um indivíduo não podem ser exercidos de forma desarrazoada, ou seja, de forma abusiva, inaceitável pela comunidade num dado momento. Assim, o desarrazoado ocorreria quando, da aplicação concreta de determinada lei, decorressem conseqüências injustas, ridículas ou opostas ao normal funcionamento do Estado" [09].

A razoabilidade diz respeito, portanto, aos anseios da sociedade.

Oportuno é o esclarecimento de FÁBIO ULHOA COELHO:

O aplicador do direito, para fazer uso da lógica do razoável, deve investigar algumas relações de congruência. Especificamente, ele deve se indagar: quais são os valores apropriados à disciplina de determinada realidade (congruência entre realidade social e os valores)? Quais são os propósitos concretamente factíveis com os valores prestigiados (congruência entre os fins e a realidade social)? Quais são os meios convenientes, eticamente admissíveis e eficazes, para a realização dos fins (congruência entre meios e fins)? [10]

Pois bem, exemplo legislado no Código Penal da convivência de proteções conflitantes dispensadas a valores significativos e da aplicação da lógica do razoável é, para mencionar apenas um, o seguinte: estatui o art. 128, inc. II, dessa codificação que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

É o que se convencionou chamar de aborto sentimental.

Não vemos como deixar de perceber aí uma ponderação do legislador – em norma cuja constitucionalidade jamais foi questionada – entre o direito à vida daquele ser em formação – cujos interesses são resguardados na esfera cível (Código Civil, art. 2º, in fine) – e o direito da gestante a uma sobrevida digna, sem os percalços psicológicos que aquela vida, produto de conjunção carnal não consentida, obviamente, lhe traria.

Tema atual, aliás, haja vista a ainda não pacificada possibilidade ou não de aborto de anencéfalo, tendo havido inclusive medida liminar no Supremo Tribunal Federal admitindo essa possibilidade, apesar de digladiarem diversos setores sociais, cada um buscando ver preponderar seu ponto de vista.

O Ministro Marco Aurélio afirmou, quando da análise da questão, que "A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero" [11].

Avulta, nessa quadra, a significação que se deve dar ao interesse preponderante, ou de maior peso, no confronto do direito à liberdade do agressor em face do direito, em última análise, à vida da mulher vitimada; o que se deve fazer pela lente da insuficiência dos meios e métodos postos pelo ramo meta-penal do Direito para a solução da violência doméstica.

Seguindo esta linha de raciocínio, a família é a menor unidade social – célula mater –, hoje funcionalizada, ou melhor, concebida não mais como um fim em si mesma [12], mas reconhecida como locus privilegiado para o mais amplo e completo possível desenvolvimento da personalidade, núcleo [13] do princípio da dignidade da pessoa humana [14].

Ao resguardar expressamente a dignidade humana no contexto da proteção dispensada à família, a Constituição Federal está a impor o respeito a "todos os valores e direitos que podem ser reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirmação de sua integridade física, psíquica e intelectual, além de garantia a sua autonomia e livre desenvolvimento da personalidade [veja a semelhança entre estes aspectos e as formas de violência contra a mulher, tipificadas no capítulo II do título II, art. 7º da Lei Maria da Penha].

"A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mola propulsora da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a admissão da existência de pressupostos materiais (patrimoniais inclusive) mínimos para que se possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.

"A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais" [15].

Essas considerações são lugares comuns, mas nem por isso desinfluentes, na interpretação e cotidiana aplicação do direito. É o que nos revela a consulta à jurisprudência deste E. TJDFT.


(B) Nesta senda, ambos os atores do tristemente afamado episódio de violência doméstica e familiar são dotados dessa intrínseca qualidade de ser, de modo que aqui se revela (i) a insuficiência dos métodos ortodoxos de compreensão e aplicação do Direito legislado e (ii) campo fértil para a ponderação dos confrontantes valores: (ii.i) necessidade contrafática de afastar o agressor da mulher – hipossuficiente no aspecto físico, no mais das vezes [16] –, assim compreendido nos termos da Lei 11.340/06, respeitando, portanto, a dignidade da mulher e, em conseqüência, de seus filhos, cujos modelos (a serem seguidos ou jamais o ser) para toda a vida são ambos os pais – merecedores de proteção integral (Constituição Federal, art. 227); (ii.ii) necessidade de resguardar a dignidade do agressor, que não pode ter sua liberdade cerceada senão nas excepcionais hipóteses legais, haja vista o direito/garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade (Constituição Federal, art. 5º, inc. LVII) a impor, por critério de justiça procedimental, que a ele não seja dispensado tratamento de culpado, senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A questão, portanto, que subjaz à possibilidade jurídica de decretação da prisão preventiva para os casos de violência doméstica (Lei 11.340/06, art. 20), se apresenta mais em termos principiológicos do que de conformidade infraconstitucional ou coerência legal. Não é decorrência de eventual conflituosidade entre a nova possibilidade de prisão ante tempus, com o arcabouço normativo capitaneado pelo art. 312 do Código de Processo Penal.

Trata-se de antinomia apenas aparente, pois a novatio legis é lei especial posterior e da mesma hierarquia do Código de Processo Penal (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º), reformando-o, inclusive, ao acrescentar mais um inciso ao art. 313 dessa codificação.

Assim é que, apesar do respeito que temos às opiniões em contrário e das limitações intrínsecas a uma primeira aproximação do tema, não há incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão preventiva e os artigos do Código de Processo Penal sobre o tema.

Pertinente é considerar que há Súmula do Superior Tribunal de Justiça compatibilizando, em tese, entre (tirar) o teor do inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal e a prisão cautelar. Calha, assim, tendo em vista a relevância e repercussão do tema, a leitura do precendente mais moderno desse consagrado Enunciado [17], desde já pedindo vênia pela extensão do excerto:

Com o devido respeito ao Professor Frederico Marques, entendo que seu parecer está equivocado. Isto porque, quando a Constituição Federal estabelece que ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ nada mais está fazendo do que elevar, a nível constitucional, velho e conhecido princípio geral de direito penal. Neste sentido foi o julgamento do HC...

Em verdade, como tem sido reiteradamente decidido pelo Tribunal recorrido [TJSP], o dispositivo constitucional deve ser interpretado em consonância com os demais textos que disciplinam a prisão, não sendo correto sustentar somente ser possível, depois da vigência da nova Constituição da República, a prisão de quem já tenha sido definitivamente condenado.

Com efeito, como salientou o Desembargador Canguçu de Almeida, acolhendo parecer deste Procurador de Justiça, ‘o preceito constitucional obsta a conceituação como culpado, mas não veda a imposição provisória da prisão, quando decorra esta de determinação legal (como no caso do art. 35 da Lei 6.368/76) ou o prudente arbítrio do juiz (como em casos de prisão preventiva); proíbe, como ressaltado no parecer de fls. 47/49, a reprovação social, mas não impede que, em nome da garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, se imponha a prisão cautelar do agente’...

Assim é que ‘não há novidade neste preceito e nem possui qualquer influência sobre as formas de prisão preventiva, que continuam existentes... " [18] (destaques nossos).

Tais ponderações são atuais, pois é recorrente o brado pela presunção de inocência.


(C) A sistemática legal da prisão cautelar indica que são óbices a sua admissibilidade: (i) tratar-se de crime culposo ou não punido com reclusão (CPP, art. 313); (ii) que a pena de reclusão cominada seja de tal monta que, tendo em vista o regime prisional a ser aplicado, a prisão cautelar seja mais grave que a sanção eleita pelo legislador, o que faz incidir a reprovação do princípio da proporcionalidade, pois o meio empregado – prisão – é inadequado aos fins da Jurisdição, uma vez que o convívio social do agente não foi considerado pernicioso, em abstrato.

Pois bem, não vemos incompatibilidade entre a nova possibilidade de prisão cautelar para assegurar o cumprimento e efetividade das medidas de proteção descritas na Lei Maria da Penha e a sistemática legal e constitucional da prisão ante tempus.

Veja-se a redação do art. 42 da citada Lei:

Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:

"Art. 313.... . .............................................

................................................................

IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência." (NR)

Decorre da subordinação do teor das partes do artigo ao contido em sua cabeça, como impõe o art. 10 da Lei Complementar 95/98, que nos crimes dolosos punidos com detenção, como, v.g., a lesão corporal leve perpetrada em situação de violência doméstica – hipótese estatisticamente mais relevante – a sistemática infraconstitucional foi adaptada às pertinentes críticas da doutrina quanto à impropriedade das medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 no caso [19], e que o rito ainda teria aplicação, haja vista a celeridade que propicia, sem prejuízo da correção da prestação jurisdicional e da garantia constitucional ampla defesa.

Apesar de aviltante e comprometedora da integridade deste caro ser que é a mulher (mãe, esposa, irmã etc.), a realidade da violência doméstica, apesar dos diversos Tratados e Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, somente em tempos recentes tem merecido atenção.


(D) A evolução legal do tema revela, com o devido respeito, certo descompromisso e assistematicidade legislativa: (i) primeiramente a pena mínima cominada foi aumentada, o que foi desinfluente, pois continuava a incidir a Lei 9.099/95 e a malsinada pena de pagamento de cesta-básica que, além de não servir como prevenção, seja geral ou especial, incentivava o desrespeito, haja vista a impunidade decorrente do tratamento da questão como infração de menor potencial ofensivo [20]; (ii) a Lei 11.340/06 afasta, de modo ambíguo e questionável em certos aspectos a aplicação da Lei 9.099/95 [21].

Pesquisa realizada pelo Senado Federal [22] transparece a violência doméstica como agir tradicional que tem como âmbito comum a família, e que não é incomum a reiterada prática dessa modalidade de desrespeito – a pesquisa revelou que 50% das mulheres inquiridas já tinham sido violentadas por 04 ou mais vezes.

Há mais.

Outra pesquisa, dessa vez realizada pelo IBOPE neste ano de 2006, estarrece ao constatar que "Em cada quatro entrevistados, três consideram que as penas aplicadas nos casos de violência contra a mulher são irrelevantes e que a justiça trata este drama vivido pelas mulheres como um assunto pouco importante" [23].

A interpretação sistemático-teleológica do marco legal da prisão cautelar não deixa dúvidas sobre o cabimento, em tese e conforme as vicissitudes do caso concreto, da prisão em testilha:

Da interpretação sistemática do dispositivo acima transcrito, podem-se extrair as seguintes conclusões: 1 – a prisão preventiva cogitada na Lei "Maria da Penha" continua cabendo apenas diante de crimes dolosos, a uma porque o novel inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal se subordina ao seu caput, onde, na parte final, se estabelece que a medida excepcional só cabe em crimes dolosos, estando, por conseguinte, excluídas de sua incidência as contravenções e os crimes culposos. A duas porque em sede de crime culposo não se cogita de "violência" doméstica e familiar contra a mulher; 2 – o inciso IV pode abranger qualquer crime doloso, independente da pena ou das condições pessoais do criminoso, desde que praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, com a identificação conceitual estabelecida nos arts. 5º e 7º da Lei em exame; 3 – neste caso específico de prisão preventiva do inciso IV, a medida será ainda mais excepcional e, necessariamente, subsidiária às outras medidas cautelares, definidas como protetivas de urgência, estabelecidas nos arts. 22, 23 e 24 da Lei "Maria da Penha". Só caberá a prisão preventiva, nas hipóteses de violência doméstica e familiar contra a mulher aventadas exclusivamente no inciso IV do art. 313 para assegurar a eficácia daquelas medidas protetivas de urgência, se as mesmas, por si só, se revelarem ineficazes para a tutela da mulher; 4 – tal restrição, no entanto, se torna desimportante na hipótese do caso se enquadrar nas demais situações estabelecidas nos arts. 313, I, II e III do Código de Processo Penal, os pressupostos clássicos da prisão preventiva, ou seja, crime doloso punido com reclusão, punido com detenção quando o réu é vadio ou há dúvidas sobre sua identificação, ou, independente da pena cominada, se o réu já foi condenado por outro crime doloso. Presentes algum dos outros três pressupostos da prisão preventiva, ainda que o crime seja resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, não se precisará recorrer ao inciso IV, cabendo a prisão preventiva, independente da eficácia ou não das outras medidas protetivas de urgência, pelas simples hipóteses estabelecidas nos incisos I, II e III.

O inciso IV do art. 313 do Código de Processo Penal, como visto, alarga sobremaneira as hipóteses de cabimento de prisão preventiva, passando a comportá-la, em tese, qualquer crime doloso, independente da pena cominada (injúria, ameaça, lesão corporal etc.), desde que resultado de violência doméstica e familiar contra a mulher, em sua concepção conceitual, e que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei "Maria da Penha" não sejam suficientes para a tutela da vítima. É preciso, portanto, principalmente nos crimes ditos de menor potencial ofensivo, como os acima mencionados, em virtude da pequena quantidade de pena privativa de liberdade cominada, que o Juiz aja com bastante prudência na hora de decidir pela prisão do agressor, medida que só pode ser reservada a ultima ratio e, em nenhuma hipótese, pode exceder, em tempo de duração, à projeção de aplicação da pena privativa de liberdade cominada, em caso de condenação, o que faria com que perdesse o contorno de cautelaridade que se deve exigir da prisão preventiva [24].


(E) Esta ultima observação é extremamente importante, pois a Constituição reprova, no inciso XLVII do art. 5º, as penas de caráter perpétuo.


(F) Noutro giro, não há lesão ao princípio da proporcionalidade, apesar de ser inegável a mora legislativa em dar correto tratamento ao tema, tanto em seus aspectos meta-penais – talvez os mais pertinentes – quanto em relação às penas cominadas. E isso mesmo em face do princípio da intervenção mínima.

Este princípio – valor condensado, se preferirmos uma imagem – determina, nas palavras de LUIZ RÉGIS PRADO que o Direito Penal "só deve atuar na esfera dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficazmente protegidos de forma menos gravosa" [25].

Pois bem, é induvidoso que nosso ordenamento está equipado com outros meios tendentes a dar cobro à violência doméstica.

Todos ineficazes, entretanto.

Há a medida cautelar de separação de corpos; de afastamento do cônjuge do lar conjugal; de alimentos provisionais; a punibilidade da ameaça; já havia a lesão corporal, independentemente de quem seja a vítima e de seu relacionamento com o agressor; etc.

Mas a realidade nos informa que nenhuma dessas medidas foi ou têm sido eficazes para evitar ou fazer cessar a violência doméstica e familiar baseada no gênero – incluindo-se mesmo a violência contra a criança ou contra o idoso. Lembremos que, nos termos do art. 5º da Lei 11.340/06, os bens jurídicos tutelados são: a integridade física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. É materialmente típico até mesmo o sofrimento relevante decorrente da mácula a tais bens.

Talvez a seara penal não seja a mais adequada ao tratamento do tema [26].

Mas é urgente a adoção de alguma postura idônea, tal como a fuga da presa que sente seu predador a rondá-la. Ou, em outra imagem, da mulher que, dadas as circunstâncias, se vê dormindo com o inimigo.


(G) O direito comparado nos apresenta significativos exemplos no sentido de que a via extrema deva ser empregada na falência dos demais mecanismos à disposição do julgador.

MARIA ELISABETE FERREIRA [27], dissertando sobre o ordenamento jurídico português, informa que apesar de a solução penal não ser suficiente para erradicar o problema da violência conjugal, tem sido adotada diante da insuficiência dos outros instrumentos disponibilizados por aquele ordenamento jurídico – situação em tudo semelhante ao que ocorre entre nós.

O fato concreto, que sangra aos olhos, é vivermos em um Estado de Direito democrático que tem na legislação – assim entendida como fruto do processo legislativo constitucional e, portanto, veiculadora do interesse público [28] – o limite da atividade do aplicador do Direito [29] cotejado com a urgência de livrarmos nossas mulheres desta odiosa faceta da violência: a perpetrada em casa e pelo ente amado – o que foi amado em outros tempos.

A realidade demonstra não haver meio menos gravoso de limitar a ação do agressor em favor da integridade – do direito à vida mesmo [30] – da mulher vítima, forçoso convir que a prisão preventiva, revelada no caso concreto como necessária, meio idôneo à garantia de não reiteração da violência e da efetividade das medidas integradas de prevenção e proteção é a medida cautelar que se impõe.


(H) Oportuna é a lição de DANIEL SARMENTO, indicativa da relevância do problema e das soluções possíveis para o caso concreto:

A partir do caso concreto, o operador do direito deve buscar a solução mais justa, através de um procedimento circular, por intermédio do qual são testados os diversos topoi (pontos de vista), para verificar qual deles acena com a melhor resposta para o problema enfrentado [31].

Nesta esteira, também não há incompatibilidade com a nova previsão de prisão preventiva com os expressos termos do art. 312 do CPP que em seu primeiro inciso permite a prisão preventiva para garantia da ordem pública.

Este conceito – ordem pública – é dos mais controvertidos em Direito, mas não há dúvidas em definir a prisão preventiva para garantia da ordem pública como aquela "decretada com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinqüir", como sintetiza FERNANDO CAPEZ, haja vista o "evidente perigo social decorrente na demora em se aguardar o provimento definitivo, porque até o trânsito em julgado da decisão condenatória o sujeito terá cometido inúmeros delitos. Os maus antecedentes ou a reincidência são circunstâncias que evidenciam a provável prática de novos delitos e, portanto, autorizam a decretação da prisão preventiva com base nesta hipótese" [32].

O mesmo entendimento, acolhido sem divergência significativa pela Jurisprudência, é exarado pelo garantista PAULO RANGEL, ao lecionar que "Por ordem pública, deve-se entender a paz e tranqüilidade social, que deve existir no seio da comunidade, com todas as pessoas vivendo em perfeita harmonia, sem que haja qualquer comportamento divorciado do modus vivendi em sociedade" [33].

Mesmo o advogado FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO atesta idêntico entendimento em sua doutrina:

A lei fala em ‘garantia da ordem pública’. Segundo De Plácido e Silva, entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto (Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro, Forense, v. 3, p. 1101). Ordem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social [34].

Logo, a prática de crimes contra a mulher em situação de violência doméstica é suporte fático suficiente à incidência do inc. I do art. 312 do CPP [35].


(I) Noutro giro, não há equivalência material entre as situações de quem opte por lesar o patrimônio mediante violência ou grave ameaça superiores ao necessário à incidência da norma penal incriminadora, ou em relação àquele já imerso no mundo dos crimes graves, e o homem que, abusando da relação de amor, hospitalidade ou afetividade, enfim, da intimidade com a mulher vítima, lesione sua personalidade nos mais diversos aspectos, tal como disciplinado na Lei Maria da Penha.

Apesar disso e ainda assim, há diferenciado juízo de reprovação da conduta que, cada exemplo a seu modo e consoante as possibilidades legais, importa em elevada desaprovação da conduta e de seu resultado.

Em sede de criminalização primária já foi prevista pena maior para a lesão corporal leve praticada em situação de violência doméstica, de modo que, no mais das vezes, não se poderá bradar a periculosidade do agente como móvel da prisão preventiva.

Mas a lei, atenta, talvez, a isso e à disciplina da proteção dos direitos humanos, elegeu paradigma diferente para a aferição da necessidade da prisão cautelar: a efetividade das medidas de proteção.


(J) A ponderação entre a sanção eleita para a conduta optada e os rigores da medida cautelar – por obra do princípio da proporcionalidade ou, na visão de PAULO RANGEL, também do princípio da homogeneidade – deve ser mitigada à vista da ponderação entre a dignidade da mulher (e seus filhos [36]) – expressamente referida na Lei 11.340/06, na Constituição Federal e em diversos diplomas de Direito Internacional ratificados pelo Brasil –, a dignidade do agressor eventualmente levado à prisão e o efetivo acesso à Jurisdição.

Pois bem, a "nova lei fundamenta-se em normas diretivas consagradas na Constituição Federal (art. 226, § 8º), na Convenção da ONU sobre Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Preâmbulo e art. 1º). Seu fundamento político-jurídico, portanto, é admirável e difícil de ser contestado" [37].

Fato que avulta em pertinência e relevância quando se observa que é direito fundamental até então implícito [38] a integridade físico-psíquica da mulher. Tal integridade, elemento do fundamento da República positivado no inciso III do art. 1º da Constituição Federal, é direito fundamental no aspecto formal e material também, conforme lição de INGO WOLFGANG SARLET [39].

Consoante esse entendimento é a lição de LUIZ VICENTE CERNICCHIARO:

A Constituição de 1988, a exemplo das anteriores, relacionou direitos e garantias. A atual faz questão de arrolar direitos individuais e sociais. Em seguida, acrescentou que a especificação não excluía outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados. A doutrina classifica-os, respectivamente, direitos ou poderes explícitos e direitos ou poderes implícitos. Melhor chamar os últimos de ‘inonimados’.

Pontes de Miranda noticia que a inspiração foi a Emenda IX à Constituição dos Estados Unidos da América, fonte também do art. 33 da Constituição da República Argentina e, através da Constituição brasileira de 1891, da Constituição de Portugal. O que se diz é que – os termos são os da Constituição americana – a enumeração de alguns direitos na Constituição não pode ser interpretada no sentido de excluir ou enfraquecer outros direitos que tem o povo.

A Constituição garante o direito à vida (art. 5º). Não menciona, expressamente, o direito à integridade corporal [e moral, pois o que se assegura, para além da vida, e uma vida digna]. Todavia, o resguardo é o mesmo. A vida é preservada em atenção ao homem. Não se pode pensar o homem sem integridade anatômica e funcionamento fisiológico [40].

Assim é que, ao consagrar a tutela dos direitos humanos da mulher em situação de violência doméstica e ao prever a prisão cautelar do agressor como medida apta a possibilitar a efetividade das medidas de proteção, a Lei 11.340/06 positivou ação afirmativa absolutamente necessária ante a insuficiência dos instrumentos disponibilizados pelos demais ramos do Direito.

A experiência nazista revelou a insuficiência da previsão de direitos, evidenciando, a um só tempo, a necessidade de garantias e a conveniência, necessidade mesmo, de uma liga de nações e de um instrumental internacional apto a por termo às pretensões totalitárias dos Estados Nacionais e aos desrespeitos à vida humana, única, por isso, digna.

Mas de nada vale as amarras postas ao Poder Legislativo e a percepção da transcendência do princípio da razoabilidade, se o julgador, o intérprete de uma forma geral, pautar sua atuação, nas palavras de MOREIRA ALVES, por uma percepção e interpretação fantasmagórica do Direito, pela qual:

Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou. É um tipo de interpretação (...) em que o olhar do intérprete dirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele capta é menos a representação da realidade que uma sombra fantasmagórica [41].

É de se considerar, portanto, existir "garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar", como leciona PAULO BONAVIDES.

A garantia não se confunde com o direito subjetivo, pois, em relação ao sujeito, consiste em "estabelecer uma proteção direta e imediata aos direitos fundamentais, por meio de remédios jurisdicionais próprios e eficazes" [42].

Disso entendemos possível concluir não haver óbice lógico-jurídico em assegurar direito subjetivo a um determinado grupo de indivíduos garantido pela restrição de direito correlato, atribuído a outro grupamento de sujeitos.

Pois bem, a prisão cautelar do agressor é, sem dúvida, garantia do direito fundamental da mulher vitimada em sua integridade – implícita ao direito fundamental à vida.

E não há reprovação que se possa fazer por se estar a comprimir o direito a liberdade do agente. A opção do Legislador é voz legítima do interesse público e do povo, de que emana o Poder, e, portanto, deve preponderar.

Nesse sentido é a abalizada lição de DANIEL SARMENTO [43], que nos indica que ao Poder Judiciário – deficitário em legitimidade, como sabemos – somente é permitido ponderar valores caso perceba eventual inconstitucionalidade ou vazio legislativo:

O uso do método de ponderação pressupõe a inexistência de regra legislativa específica, resolvendo o conflito entre princípios constitucionais. A presença de norma infraconstitucional deste teor inibe o juiz de efetuar a ponderação, uma vez que ele terá de acatar aquela realizada de antemão pelo legislador, a não se quer a considere inconstitucional [44].

No caso, não há vazio legal, a norma está ai clamando, assim como a realidade, as vítimas da violência e suas famílias, por aplicação.

E não há inconstitucionalidade. Caso assim fosse, incidiria o art. 481 do CPC a determinar a análise da questão, no caso desse E. TJDFT, pelo Órgão Especial, pois não há precedente a informar ser inconstitucional a nova possibilidade de prisão preventiva:

PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA. HONORÁRIOS. ART. 1º-D DA LEI 9.994/97. MP Nº 2.180-35. INCONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO NÃO SUBMETIDA À APRECIAÇÃO DO ÓRGÃO ESPECIAL. NULIDADE DO ACÓRDÃO.

1. Os Tribunais, no exercício do controle difuso de constitucionalidade, devem observar a norma dos arts. 97 da Constituição e 480-482 do CPC, que determinam a remessa da questão constitucional à apreciação do Órgão Especial, salvo se a respeito dela já houver pronunciamento deste órgão ou do Supremo Tribunal Federal.

2. (...)

3. Recurso especial a que se dá provimento.

(REsp 676.725/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19.09.2006, DJ 28.09.2006 p. 198).


(L) De outra parte, a Emenda Constitucional 45, concessa venia, afastou a relevância da lição de FLÁVIA PIOVESAN [45] a respeito de que a Constituição Federal teria adotado sistema misto de integração dos Tratados Internacionais ao ordenamento interno: em se tratando de tratados sobre direitos humanos teríamos adotado teoria monista, segundo a qual a internalização seria automática; quanto às demais avenças internacionais ter-se-ia adotado a teoria dualista.

Fez-se opção por essa última construção teórica, pois mesmo os tratados que versem sobre direitos humanos não têm aplicabilidade imediata, como entendia aquela autora ser decorrência dos §§ 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal, haja vista tratar-se de direitos fundamentais, pois devem submeter-se a procedimento legislativo próprio das emendas constitucionais para, após isso, adquirirem tal status.

Entretanto, o tema não perdeu sua relevância, haja vista julgamento ainda em andamento perante o Supremo Tribunal Federal da possibilidade jurídica – que, juntamente com o STJ, não admitimos – de prisão civil do depositário infiel [46], em que o Ministro Gilmar Mendes, não meramente à guisa de obter dictum, mas como ratio decidendi, salientou não se equiparar à legislação ordinária aquela proveniente de tratados e convenções internacionais, tais como os compromissos assumidos pelo Brasil perante a ordem internacional:

Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção jurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa ao princípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o Min. Celso de Mello. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 22.11.2006. (RE-466343).

Disso emana a extrema relevância, no âmbito do sistema global de proteção dos direitos humanos, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a assegurar a dignidade de todos, inclusive da mulher.

Na seara do sistema especial de proteção – a partir do qual se debruça sobre as particularidades e vicissitudes de grupos especialmente afligidos –, da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pelas Nações Unidas em 1979.

Destaca-se, ainda, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ("Convenção de Belém do Pará").

Todos esses instrumentos foram ratificados pelo Brasil e denotam a necessidade de um olhar atualizado acerca da violência contra a mulher, bem como das medidas cautelares previstas para assegurar sua integridade e efetividade das medidas positivas de proteção.


(M) Mais do que isso, a Lei 11.340/06 está inserida no consagrado e almejado contexto de valorização da vítima.


(N) Os direitos humanos são um construído ético-social necessário à convivência. Quem seria capaz de negar que o fenômeno da violência hoje infelizmente tão em voga não tem seu embrião na vivência familiar, no exemplo que damos ou recebemos.

Os direitos humanos:

Compõem um construído axiológico, fruto de nossa história, de nosso pensamento, de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. (...) os direitos humanos compõem a nossa racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana [47].

Ficam expostos (i) a espinha dorsal da questão e o caráter prospectivo do Direito, que, como se sabe, para além de ser ordem regulatória do agir em sociedade, legitimando o emprego da força, procura imprimir pauta valorativa e de condutas práticas, tudo a fim de que tenhamos vida, e vida em abundância; (ii) que não há ilegalidade ou inconstitucionalidade da nova modalidade de prisão cautelar instituída pela Lei 11.340/06.


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Notas

01 Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial.

Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

02 Recasens Siches foi haurir no Iluminismo do século XVIII, no racionalismo de Kant, a expressão hoje tão difundida: "A lógica do Direito é a lógica do razoável": in Razoabilidade versus proporcionalidade. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2006.

03 Como leciona CHAIM PERELMAN.

04 Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/74.

05 Teoria do ordenamento jurídico. 9ª ed.. Brasília: Editora UNB; 1997; pp. 71/114, notadamente p. 113.

06 Teoria pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo: 2000, p. 71.

07 O que é Justiça?, tradução de Peter Naumann, Coleção Filosofia, nº 155, Editora EDIPUCRS, Porto Alegre: 2003, p. 57.

08 ENGISH, Karl; Introdução ao pensamento jurídico. Edição Fundação Calouste Gulbenkian, tradução do original em alemão. Lisboa: 2001; p. 316.

09 BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 49 e 55/57.

10 Roteiro de lógica jurídica, 4ª ed., Saraiva: São Paulo, 2001, p. 85.

11 A liminar do Ministro Marco Aurélio que permitiu o aborto de fetos anencefálicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 413, 24 ago. 2004. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/16605>. Acesso em: 11 dez. 2006.

12 Mirava-se a proteção do patrimônio – motivo que animou a vedação à separação judicial e ao divórcio, bem como era o móvel das classificações discriminatórias dos filhos.

13 Elemento que não pode ser suprimido sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e em sua estrutura. Ou melhor, razão de ser da previsão do direito.

14 Constituição Federal, art. 1º, inc. III (Fundamento da República) e art. 226, caput e respectivo §7º

15 CHAVES DE FARIAS, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – teoria geral. 4ª ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris; 2006; pp. 91/93. No mesmo sentido, LUIZ RÉGIS PRAZO, que leciona que a dignidade da pessoa humana "não se trata de simples criação legislativa, porquanto apenas se reconhece no texto constitucional a eminência da dignidade como valor (ou princípio) básico, cuja existência, bem como o próprio conceito de pessoa humana, são dados anteriormente, aferidos de modo prévio à normação jurídica. Como postulado fundamental, peculiar ao Estado de Direito democrático, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo – como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. Trata-se de um princípio de justiça substancial, de validade a priori, positivado jurídico-constitucionalmente" (Curso de direito penal brasileiro. 3ª ed., São Paulo: RT; 2002, pp. 115/116).

16 Única razão possível para admitir-se a desequiparação feita pela lei entre mulher vítima e o homem eventualmente na mesma situação.

17 Súmula 09: exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.

18 RHC 202/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 18.09.1989, DJ 21.05.1990 p. 4435.

19 GOMES, Luiz Flávio. Violência Doméstica: mais uma lei puramente simbólica, Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano V, nº 27 – ago-set 2004, pp. 7/8. No mesmo sentido EVANGELISTA DE JESUS, Damásio. Violência contra a mulher, Suplemento Direito & Justiça do Jornal Correio Brasiliense de 08 de maio de 2006.

20 Reflexão pessoal do tema faz ver o desvio de perspectiva com que tratamos relevantes fatos sociais. Não nos damos conta de que neste caso e em muitos outros a lesão extrapola a subjetividade da vítima. Fato semelhante ocorre com os crimes que lesam bens jurídicos transindividuais, como o crime contra o meio ambiente e contra as finanças do Estado, para citar apenas dois exemplos. Neste último caso, a admissão inclusive pela Fazenda Pública – que admite não ajuizar procedimentos judiciais tendo em vista o reduzido valor sonegado, por exemplo – da incidência do princípio da insignificância revela a percepção equivocada dos custos da tutela do direto lesado e da repercussão desta mesma tutela.

21 Ambíguo e questionável porque suscita uma série infindável de debates, por exemplo: (a) sobre se o crime de lesões corporais leves continua sendo de ação penal pública condicionada à representação, ou se a indisponibilidade da dignidade humana imporia tratar-se de ação incondicionada; (b) sobre o procedimento a ser aplicado, notadamente neste E. TJDFT, que por ato normativo regular determinou ao Juizados Especiais Criminais a competência para processar e julgar aqueles casos submetidos às disposições da Lei 11.340/06; etc.

22 , acesso em 11 de dezembro de 2006.

23 , acesso em 11 de dezembro de 2006.

24 MARCELO LESSA BASTOS. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/9006>. Acesso em: 11 dez. 2006.

25 Curso de direito penal brasileiro, 3ª ed., RT: São Paulo, 2002, p. 118, com destaques nossos.

26 Políticas públicas de educação e construção da ética necessária à fruição da moderna família plural e democrática, afastado que tem sido o patriarcado e o casamento como único escol da família legítima.

27 Da intervenção do Estado na questão da violência conjugal em Portugal. Coimbra: Almedina; 2005; pp. 61/136.

28 "Aliás, do aspecto substantivo do devido processo legal, decorre a obrigatoriedade de que as leis reflitam o consenso público, significando, essa satisfação, a obediência ao princípio da razoabilidade" (BRAGA, Valeska e Silva; Princípios da proporcionalidade e da razoabildade.Curitiba: Juruá; 2004; p. 44).

29 Ainda que a atividade interpretativa consista fundamentalmente em atribuir significado aos significantes considerados, sendo por esta operação que a lei se amolda ao fato social e sua constante evolução.

30 A Constituição Federal não assegura a integridade física como direito fundamental, mas é lógico estar implícita na proteção dispensada à vida.

31 A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000; p. 128.

32 Curso de Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Saraiva; 2002; p. 239.

33 Direito Processual Penal. 9ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris; 2005; p. 628.

34 Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. São Paulo: Saraiva; 1999; p. 543.

35 Mas veja que o caso concreto pode revelar um dano moral como fato concreto ensejador de uma medida de proteção, haja vista a abrangência da definição legal de ato de violência doméstica.

36 Sim porque não há dúvidas de que a personalidade é formada a partir do exemplo do masculino e do feminino que é dado, ainda que no mais das vezes de modo inconsciente, por pai e mãe.

37 LEAL, João José. Violência doméstica contra a mulher: breves comentários à Lei nº 11.340/2006. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1214, 28 out. 2006. Disponível em: jus.com.br/revista/texto/9096>. Acesso em: 11 dez. 2006.

38 Hoje determinado pelo artigo 6º da Lei 11.340/06.

39 A eficácia dos direitos fundamentais, 2ª ed., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2001, pp. 80 e seguintes.

40 Direito penal na Constituição, 3ª ed. São Paulo: RT; 1995; pp. 213/215.

41 O Poder Judiciário e a efetividade da nova Constituição, Revista Forense 304:151, 1988, p. 152.

42 Curso de direito constitucional, 16ª ed. São Paulo: Malheiros; 2005; p. 531.

43 A ponderação de interesses da constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris; 2000.

44 P. 148.

45 Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad; 1998; pp. 34/47; e O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT; 2000; pp. 159/179.

46 Informativo 449, de dezembro de 2006.

47 PIOVESAN Flávia. Direitos Humanos, vol. I. Curitiba: Juruá; 2006; p. 16.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Rodrigo da Silva Perez. Violência doméstica: possibilidade jurídica da nova hipótese de prisão preventiva à luz do princípio constitucional da proporcionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1268, 21 dez. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9304. Acesso em: 28 mar. 2024.