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Uma visão sociológica da punibilidade

Uma visão sociológica da punibilidade

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Desde a sua primeira definição, entende-se que o direito é o instrumento necessário à composição dos litígios intersubjetivos, tendo como precípuo objetivo a resolução dos mesmos. Daí, há que se falar da não incidência, ou, até mesmo, da não existência do direito fora do ambiente social.

Isto posto, é condição lógica do direito regular as condutas humanas, sempre partindo da observação sociológica no espaço e no tempo. Ou seja, os padrões de comportamento social qualificados como ideais, aceitáveis ou dignos de repreensão ("condutas criminosas"), assim o são devido ao valor moral que carregam.

Os padrões de comportamento que dão origem e servem de base para a composição dos crimes são suscetíveis de constantes mudanças, tendo em vista que a sociedade está sempre alterando seus valores e condutas sociais, adaptações essas, necessárias ao acompanhamento das mudanças causadas pela tecnologia e pelo desenvolvimento.

A partir disso, condutas anteriormente valoradas como nocivas à sociedade, estão se transformando em objeto de descriminalização e condutas hodiernas que não foram objeto de regramento pelo direito penal estão se tornando hipótese de incidência de novos crimes por serem opostas aos interesses sociais vigente emergentes, protegidos pela legislação em vigor.

E, qual o principal fator dessa mudança? É a tendência geral, ou, até mesmo, mundial, da substituição dos interesses individualmente protegidos para os interesses coletivamente ou difusamente protegidos. Há, no momento, uma valorização desse direito, visto como uma associação de vários direitos individuais, determinados ou não numericamente, devido ao fato de se sobreporem aos individuais quando da composição das lides, pela sua maior abrangência, causando mesmo maior pressão ao aparelho judiciário, e, maior eficácia que geram ao pretenderem pleitear, por exemplo, a qualidade de vida e o meio ambiente equilibrado.

Também é interessante observar suas conseqüências, como, a sentença que gera efeitos erga omnes e, a proteção à moral coletiva, novidade jamais imaginada em tempos idos, posto que, a moral sempre foi valorada de maneira individual e subjetiva.

Então, verifica-se a queixa social do distanciamento entre o direito e a realidade prática. E, não teria esse fato, como causa, a visão estrita do aparelho judicial, que, no âmbito do direito penal, quando se preocupa com a individuação da pena, concentra-se extremadamente no indivíduo, na sua adaptabilidade social, legando à menor valor, o interesse social da sua recuperação, e, a adaptação da sociedade na aceitação dessa conduta?

É certo que, como bem expresso na Exposição de Motivos do CPB: "mais eficiente a pena quanto maior adaptabilidade social produzir", mas, porque considerar que quando da individuação dessa pena deve-se esquecer sua importância social? Não seria mais benéfico o equilíbrio entre a individuação da pena e o benefício à sociedade causado pela absorção dessa conduta e desse indivíduo?

E, como se poderia beneficiar a sociedade quando dessa "absorção" do comportamento delituoso?

Começando pelo indivíduo, é fato que seu reajustamento social só poderá se dar quando da transformação de seu caráter através de uma reeducação de seus valores, e não a submissão do mesmo à uma pena criminal. Aconteceu que, quando da elaboração de nosso Código Penal, esse fato foi bastante considerado em relação ao inimputável (o que o faz sofrer medidas de segurança e não pena), mas, pouco ou nada se explorou em relação ao penalmente imputável.

É que ainda se tinha, em alto grau, como um dos objetivos da pena, a retribuição, e, a proteção da sociedade em face da periculosidade do indivíduo. Quando, paradoxalmente, vê-se que a recuperação do indivíduo fica totalmente prejudicada quando executada nos moldes do sistema penal vigente, pois, se sabe que a internação em estabelecimento penal só vem a prejudicar a reeducação do caráter, ao mesmo tempo em que clama a sociedade por uma punição exemplar dos acusados, tendente à eliminação da imputabilidade, que, tem como uma de suas expressões, a "Lei dos Crimes Hediondos".

Como conciliar, então, uma reeducação que tenha como base a menor submissão possível do indivíduo ao internamento com a aclamação popular de maior rigor nas condenações e execuções das penas?

Não basta se pensar na mudança da legislação em vigor, como "fonte de milagre" da resolução desse aparente conflito. É necessária uma mudança da nossa cultura, em que vejamos muito além do indivíduo, a sociedade como um todo. Pois, tem-se visto já uma mudança legislativa nesse sentido, com o advindo da Lei no. 9.099/95, por exemplo, devendo cuidar a hermenêutica de suas interpretações, ainda.

De primeiro, deve-se reformular o conceito dos "bens juridicamente protegidos", pois, é certo que a vida é o bem maior e, por isso, sua violação é mais severamente punida. Mas, outros bens, como o patrimônio público e o meio ambiente, dentre outros, alcançaram, atualmente, grande importância social, por atingirem, de maneira indireta, o "bem" vida. É fácil ver-se que, destruindo o meio ambiente, as conseqüências podem ser a piora da qualidade de vida ou mesmo a extinção dessa, e, quando da dilapidação do patrimônio público, como o erário público, porque não dizer que atinge a vida, na medida em que esse dinheiro poderia, por exemplo, estar destinado a algum hospital ou creche, que, agora, deixarão de serem atendidos.

De segundo, imediatamente após a revalorização dos bens juridicamente protegidos, vem à tona a necessidade de se auferir novas categorias de "crimes hediondos", considerando-se esses, como aqueles crimes que causam grande repugnância à sociedade. Há uma grande exigência nesse sentido, até mesmo para que volte o Judiciário a gozar de credibilidade social, que, os crimes que atinjam esses bens jurídicos que galgaram suma importância hodiernamente, por causarem "maiores estragos" à sociedade.

Pois, é de se perceber que, quanto mais importante for o bem juridicamente tutelado, já igualando-se à proteção dada à vida, a proteção dispensada ao meio ambiente e ao patrimônio público, maior punição deverá receber aquele que os desrespeitar e mais rigorosa será a execução dessa pena.

Por último, após auferida a quantidade da pena, é necessária a sua rigorosa execução, tendo em vista dois propósitos: a reeducação dos valores do apenado com a sua conseqüente reintegração no meio social e benefício à sociedade com o cumprimento dessa pena, em vez do que atualmente se faz, que é o dispêndio do Estado com as instituições penais que a executam.

Já possuímos, para tal fim, entre as penas restritivas de direito, a prestação de serviços à comunidade, que, ampliando o seu alcance, poderá suprir essa necessidade emergente.

Se, dentro dos regimes de cumprimento de pena, o fechado, o semi-aberto e aberto, considerando-se os fatores que a individualizam (grau de periculosidade,...), fizessem os juízes com que os apenados tivessem como pena, prestação de serviços à comunidade, serviços esses sempre ligados à valorização dos bens que anteriormente desrespeitaram, independentemente se de maneira dolosa ou culposa, pois, essa classificação já servirá para definir a quantidade e modo de execução da pena, conclui-se que a reeducação pelo trabalho valorado será a maneira mais eficaz de se harmonizar esse agravamento necessário das punições, com o aprimoramento benéfico da sociedade em que vivemos, ou, senão, pelo menos, a melhor tentativa.

Como exemplo do acima exposto, a condenação em massa, dos "pichadores", a pintar paredes, daqueles que destruem telefones públicos, à auxiliares dos técnicos que os consertarão,....

Até mesmo, no caso de crimes hediondos, como, por exemplo, o recente caso dos rapazes que queimaram vivo um índio que pensavam ser um mendigo, o recolhimento deles à internação só piorará mais os valores que têm como padrão, já tão violentamente alterados. Não seria melhor para eles e para a comunidade que fossem condenados à uma indenização à família do índio que permitisse que continuassem vivendo sob o mesmo padrão que atualmente vivem, conjuntamente, com prestação de serviços às entidades protetoras dos índios e de marginalizados que visasse à assistência aos mendigos, para que possam ser reeducados e entender o valor verdadeiro da vida humana, ao mesmo tempo que essas entidades usufruiriam desses trabalhos alternativamente estabelecidos como cumprimento da pena, sem ter que remunerá-los, e, por último, o Estado que não teria que despender tantos recursos para o cumprimento dessa pena?

Dessa maneira, vê-se também a solução para o menor infrator, que, apesar de inimputável sofre medidas de segurança e internação em Centros de Internamento e Reeducação. Esse, em menor grau, e, claro, em todos os casos, imputáveis e inimputáveis, observar-se-á a especialidade de cada um, para a imputação do trabalho valorado como uma alternativa de punibilidade.

Lembrando-se ainda que, quanto mais tenra a idade, maior a possibilidade de reeducação dos valores devido à menor formação do caráter, o que só vem a solidificar a solução acima proposta se observarmos que a maioria dos internados nos estabelecimentos prisionais têm de 18 a 23 anos. Ou seja, apesar de já serem imputáveis e terem consciência da ilicitude da conduta, têm, ainda, grande possibilidade de recuperação através da educação e do trabalho; se afastados desses estabelecimentos prisionais que, mal conduzidos que são, para o cumprimento da pena, só vem a deteriorar, ainda mais, a formação moral desses indivíduos.

Finalmente, a punibilidade das condutas socialmente repudiadas voltadas para a recuperação do infrator, através da reeducação feita pelo trabalho valorado, em plena harmonia com o benefício da sociedade como um todo, ao auferir os resultados desses trabalhos prestados, é o melhor caminho para a preservação conjunta do indivíduo, da sociedade e do Estado.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORCARO, Juliana Zappalá. Uma visão sociológica da punibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 13, 18 maio 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/944. Acesso em: 28 mar. 2024.