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O tribunal do júri e a inconstitucionalidade da prisão-pena decorrente da sentença condenatória

O tribunal do júri e a inconstitucionalidade da prisão-pena decorrente da sentença condenatória

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Qualquer prisão decorrente apenas da quantidade da pena corporal fixada na sentença do Tribunal do Júri será ilegal.

A partir da Lei n. 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, o juiz passou a estar autorizado a decretar a prisão do réu condenado no Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, mesmo não havendo os motivos para a prisão cautelar. Eis a nova redação do art. 492, I, ‘e’, do Código de Processo Penal:

Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:

[...]

I – no caso de condenação:

[...]

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

Ocorre que o art. 5º, LVII, da CF/1988, dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Dita garantia constitucional, sem dúvida, faz valer o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988).

Tanto é verdade que tratados internacionais foram incorporados ao Direito Brasileiro em razão da sua relevância na área dos direitos humanos. Veja-se:

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto n. 592, de 6/7/1992, equivalente à Emenda Constitucional:

ARTIGO 14

[...]

2. Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH1, promulgada pelo Decreto n. 678, de 6/11/1992, equivalente à Emenda Constitucional:

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal

[...]

2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.

3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

Por isso é que a prisão, antes do trânsito em julgado, somente pode ocorrer nos casos de prisão em flagrante ou de prisão provisória (temporária ou preventiva), conforme dispõe o art. 5º, LXI, da CF/19882. Ainda sobre essa questão, veja-se a legislação abaixo:

Código de Processo Penal:

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de condenação criminal transitada em julgado.  

[...]

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

Lei n. 7.960/1989:

Art. 1° Caberá prisão temporária:

I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:

a) homicídio doloso;

Embora as leis ordinárias gozem de presunção de constitucionalidade (o STF ainda não julgou o RE n. 1.235.340/SC - Tema 1.068 da Repercussão Geral)3 , não há dúvida da inconstitucionalidade do art. 492, I, ‘e’, do Código de Processo Penal, porque a prisão no curso do processo, antes do trânsito em julgado, não pode ser decretada apenas com base na quantidade da pena corporal fixada pelo juiz na sentença, mesmo em se tratando do Tribunal do Júri.

Se o art. 5º, LVII, da CF/1988, não possui ressalvas, antes do término da ação penal a segregação somente pode ocorrer nos casos de prisão em flagrante ou de prisão provisória (temporária ou preventiva). Vale destacar, a propósito, escólio do eminente Ministro Luís Roberto Barroso acerca da supremacia da Constituição:

 A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível (Curso de direito constitucional contemporâneo – Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo, Editora Saraiva, 5ª edição, p. 109).

Acerca do assunto, vejamos os ensinamentos do doutrinador Guilherme de Souza Nucci:

[...] a inovação trazida pela segunda parte desta alínea não poderá ser aplicada, por entrar em choque, diretamente, com a decisão tomada pelo STF (ADCs 43, 44 e 54, Pleno, Rel. Marco Aurélio, 07.11.2019), considerando ser inconstitucional determinar o cumprimento da pena de prisão, logo após o julgamento ocorrido em 2º grau de jurisdição. Não importa o montante da pena. O foco para alguém ficar preso provisoriamente durante a fase processual, até o trânsito em julgado de decisão que o considere culpado, é a prisão preventiva, estando presentes os seus requisitos (art. 312, CPP). A inserção da novidade de se manter prender o acusado, que tenha sido condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, independentemente do trânsito em julgado, não tem base constitucional para tanto. [...]. Aliás, estranha-se essa novel posição: porque 15 anos? E não 12? Ou 16? Escolheu-se aleatoriamente uma pena para lançar essa obrigação de começar a executá-la de pronto (Código de processo penal comentado. 19ª edição. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 996).

Assim, “a única motivação razoável para decretar a prisão em decorrência da condenação em plenário deve resultar dos requisitos do art. 312 do CPP. Caso não estejam presentes, é direito do acusado aguardar solto o julgamento de seu recurso” (Nucci, Guilherme de Souza. Tribunal do júri. Ed. 2015. 6ª edição, p. 420/421, item n. 7.1.1, Forense, 2015).

De outro lado, sabe-se que no art. 5º, XXXVIII, ‘c’, da CF/1988, vigora o princípio da soberania dos veredictos na instituição do júri. Contudo, tal soberania “deve ser entendida como a ‘impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa’, e, por isso, o Código de Processo Penal, regulando a apelação formulada em oposição à decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (letra ‘ d ’ do inciso III do art. 593), estabelece que o Tribunal ‘ad quem’, dando provimento, sujeitará o réu a novo julgamento (§ 3º do art. 593) perante o Tribunal de Júri”4.

Outros doutrinadores pensam da mesma forma:

Se o veredicto do Conselho de Jurados foi ‘manifestamente contrário à prova dos autos’ (o que importa em não julgar a acusação, e sim assumir atitude arbitrária perante ela), poderá o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, se reconhecer a incompatibilidade entre o veredicto proferido e a prova que instrui os autos, determinar que o próprio Júri de novo se manifeste, sem substituir a decisão deste, por outra própria. E nisto consiste a ‘soberania dos veredictos’ – na faculdade dos jurados decidirem por íntimo convencimento, acerca da existência do crime e da responsabilidade do acusado (matéria de fato), sem o dever de fundamentar suas conclusões (Adriano Marrey, Alberto Silva Franco, Rui Stoco. Teoria e prática de júri, p. 41/44, 4ª ed., 1991, RT).

Somos favoráveis à soberania dos veredictos e já escrevemos sobre isso inúmeras vezes, mas é possível a convivência desse princípio do júri com o direito ao duplo grau de jurisdição. Tanto é assim que o réu apela contra a decisão condenatória do Tribunal Popular e, se o Tribunal togado der provimento, não ingressará no mérito, mas mandará o acusado a novo julgamento igualmente pelo júri (logicamente, com outros jurados) (Nucci, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 19ª edição. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 996).

Veja-se que o princípio da soberania dos veredictos não é absoluto, tanto que a sentença pode ser anulada (art. 593, III, ‘a’ até ‘d’, do Código de Processo Penal).

Com efeito, “não cabe invocar a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, para justificar a possibilidade de execução antecipada (ou provisória) de condenação penal recorrível emanada do Tribunal do Júri, eis que o sentido da cláusula constitucional inerente ao pronunciamento soberano dos jurados (CF, art. 5º, XXXVIII, “c”) não o transforma em manifestação decisória intangível, mesmo porque admissível, em tal hipótese, a interposição do recurso de apelação, como resulta claro da regra inscrita no art. 593, III, “d”, do CPP” (STF. HC n. 174.759, julgado em 10/10/2020. Relator: Min. Celso de Mello).

Logo, se a própria sentença do Tribunal do Júri pode ser anulada, isso a depender do caso concreto, não há lógica em sustentar que a soberania dos veredictos autoriza a prisão com base apenas na quantidade da pena corporal fixada, até porque a questão da decretação/manutenção da prisão não é submetida a julgamento pelos jurados (não há quesito sobre essa questão).

Esse entendimento é equivocado e fere o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da inocência.

Indo mais além, “há que se considerar outro aspecto dessa mesma normal infraconstitucional. Indubitável a sua natureza penal, máxime por referir-se a prisão-pena decorrente de condenação imposta em sentença penal condenatória. Logo, se foi instituída no ano de 2019, e mais com vigência a partir de 2020, não pode ser aplicada a agentes de crimes cometidos anteriormente, por revelar-se nitidamente prejudicial, mercê da garantia constitucional consubstanciadora de norma obstativa prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, in verbis: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu””.

Sobre essa questão, veja-se o texto abaixo:

[...] a garantia da soberania dos veredictos do júri popular para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida pode sobrepor-se à garantia da presunção de inocência?

Essa soberania diz com a legitimidade do julgamento realizado por pessoas do povo, diz respeito ao juiz natural. Não tem a ver com a prisão do réu – vale dizer, se e quando deve ser preso -, visto que se trata de atribuição exclusiva do juiz presidente do tribunal do júri! Cabe explicitar que essa garantia constitucional consiste basicamente em que o veredicto proferido pelo tribunal não pode ser modificado, para condenar ou absolver o réu, em grau de recurso pela instância superior, consoante bem assevera a doutrina! 

Entretanto, não se afigura cabível nem admissível a ideia de que alguém venha a ser privado de sua liberdade imediatamente após a proclamação de sua condenação, a título de prisão-pena, porquanto esta se apresenta visivelmente vulneradora e afrontosa à garantia constitucional da presunção de inocência, segundo a qual, relembre-se, a prisão-pena só terá vez depois do trânsito em julgado de toda e qualquer sentença penal condenatória! 

Cumpre abrir aqui um parêntese para recordar valiosa lição de Hans Kelsen, consistente no ordenamento jurídico representado pela pirâmide, em cujo ápice se situa a Constituição, devendo, pois, todas as normas editadas no país ser compatíveis com os princípios, com as diretrizes pela mesma estabelecidas. E não o contrário: descabida e inconcebível a ideia de interpretar a Constituição conforme a norma infraconstitucional!    

E mais, importante considerar que o constituinte, ao inscrever a garantia da presunção de inocência, não excepcionou as condenações proferidas pelo tribunal do júri popular.  Diferente seria se a Constituição asseverasse que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ressalvada a hipótese de condenação proclamada pelo júri popular”! 

Oportuno lembrar, nesse passo, que a hermenêutica jurídica abriga princípio segundo o qual “não cabe ao intérprete distinguir onde a lei (no sentido lato do vocábulo) não faz distinção”!

[...]

Em suma, fica fácil concluir que o preceito do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), quando determina prisão imediata do réu condenado pelo tribunal do júri a penal igual ou superior a 15 anos, revela-se de todo incompatível com a Constituição Federal, por violar clara e inequivocamente a garantia da presunção de inocência, cuja norma que a abriga, relembre-se, não contém qualquer ressalva!

[...]

De outra banda, não bastasse o quanto até aqui assentado, há que se considerar outro aspecto dessa mesma normal infraconstitucional. Indubitável a sua natureza penal, máxime por referir-se a prisão-pena decorrente de condenação imposta em sentença penal condenatória. Logo, se foi instituída no ano de 2019, e mais com vigência a partir de 2020, não pode ser aplicada a agentes de crimes cometidos anteriormente, por revelar-se nitidamente prejudicial, mercê da garantia constitucional consubstanciadora de norma obstativa prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, in verbis: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

Em suma, a prisão imediatamente após a sentença condenatória somente terá vez sob o signo da cautelaridade (prisão preventiva) e, desse modo, se presentes os requisitos previstos no Código de Processo Penal (art. 312). Enquanto isso, a prisão-pena ocorrerá somente quando a sentença condenatória estiver selada pelo trânsito em julgado. À guisa de conclusão, afigura-se inequívoco o choque frontal do preceito do artigo 492, parágrafo 4º, do Código de Processo antedito com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), a gerar o repugnável fenômeno da inconstitucionalidade.

Por fim, respeitar e fazer respeitar os direitos humanos – e, portanto, a dignidade da pessoa humana, eleita como importante valor fundante do Estado de Direito implantado no Brasil com a Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III) – é atribuição fundamental e impostergável da Suprema Corte Brasileira! (Silva, Ronaldo Sérgio Moreira. Prisão imediata decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri e a Constituição Federal. Disponível em <https://epm.tjsp.jus.br/Artigo/DireitoProcessualExecucaoPenal/88686?pagina=1>, acesso em 23/10/2023).

Ora, ninguém pode ser tratado como culpado antes do término da ação penal, independentemente da quantidade da pena que foi fixada na sentença, de modo que a prisão em decorrência da sentença condenatória no Tribunal do Júri não pode ocorrer de modo automático.

O Superior Tribunal de Justiça, antes do advento da alteração legislativa em questão, já vinha manifestando entendimento no sentido de ser ilegal a prisão imediata em defluência, única e exclusivamente, do veredicto condenatório proclamado pelo Tribunal do Júri (RHC n. 84.406, julgado em 12/12/2017. Relator: Min. Jorge Mussi; RHC n. 92108, julgado em 6/3/2018. Relator: Min. José Reynaldo da Fonseca).

A Corte da Cidadania continuou com o mesmo entendimento, mesmo após a edição da Lei n. 13.964/2019, conforme jurisprudência abaixo:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ORDEM IMPETRADA CONTRA LIMINAR INDEFERIDA NA ORIGEM. ENUNCIADO N. 691 DA SÚMULA DO STF. SUPERAÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. NÃO EXAURIMENTO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. AUSÊNCIA DE DECISÃO DECRETANDO A SEGREGAÇÃO CAUTELAR. PRISÃO ILEGAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício. 2. Caso em que o recorrente, após responder ao processo em liberdade, foi condenado pelo Tribunal do Júri à pena de 17 anos e 6 meses de reclusão. Na mesma oportunidade, o juiz-presidente, com amparo no entendimento exposto pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação nº 27.011-SP, deferiu a imediata execução provisória da pena. Acontece que a conclusão majoritária do julgado que amparou a decisão proferida na referida reclamação (HC nº 118.770-SP) foi no sentido de não admitir a impetração, sem comprometimento com a respeitável tese esboçada na ementa do digno Redator para o acórdão. Não há notícia, aliás, de qualquer precedente da Segunda Turma ou do Pleno do STF que proclame a execução provisória da pena antes do exame da sentença condenatória pelo Tribunal de apelação, como entendeu o acórdão impugnado. 3. Na verdade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão do dia 17/2/2016, ao julgar o HC n. 126.292/SP, entendeu que o início da execução da pena condenatória, após a confirmação da sentença em segundo grau, não ofende o princípio constitucional da presunção de inocência. Submetida a questão à sistemática da repercussão geral, o Pleno do Pretório Excelso reafirmou sua jurisprudência no sentido de que "a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal" (ARE n. 964.246/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI, DJe de 25/11/16). 4. Na espécie, é prematuro antecipar a execução da pena antes de se submeter o édito condenatório do Tribunal do Júri ao controle revisional da Corte de apelação, com a efetiva estabilização da discussão sobre a matéria fática. Precedentes. 5. Em suma, a execução provisória da pena, in casu, foi determinada pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri em face do veredicto popular, antes mesmo da interposição do recurso de apelação cabível para a instância ad quem, o que configura manifesta ilegalidade, passível de correção de ofício por esta Corte Superior de Justiça (RHC 84.406/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, julgado em 12/12/2017, DJe 1º/2/2018). 6. De qualquer modo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, salvo pontuais divergências, sempre entenderam que a decisão do Tribunal do Júri não é imediatamente exequível. A soberania dos veredictos não é absoluta e convive em harmonia com o sistema recursal desenhado pela lei adjetiva penal. O fato de a Corte revisora, no julgamento de apelação contra decisão do Tribunal do Júri, não estar legitimado a efetuar o juízo rescisório, não provoca a execução imediata da sentença condenatória, pois permanece incólume a sua competência para efetuar o juízo rescindente e determinar, se for o caso, um novo julgamento, com reexame de fatos e provas. 7. Habeas corpus não conhecido. Contudo, ordem concedida de ofício para assegurar ao paciente o direito de aguardar em liberdade o encerramento do julgamento perante as instâncias ordinárias, salvo se presentes outros motivos que justifiquem eventual decretação de prisão cautelar (STJ. HC n. 478945, julgado em 21/2/2019. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca).

HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. RÉU EM LIBERDADE DURANTE A INSTRUÇÃO, SUBMETIDOS A CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO. CUMPRIMENTO IMEDIATO DO VEREDICTO APÓS A CONDENAÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. SUPERAÇÃO DA SÚMULA N. 691 DO STF. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. No julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, 44 e 54, assentou-se a constitucionalidade do art. 283 do CPP, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsit o em julgado da sentença condenatória, considerado o alcance da garantia do art. 5°, LVII, da CF. Firmou-se a orientação de que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em virtude de título criminal precluso na via da recorribilidade. 2. Com lastro nos amplos debates e na decisão erga omnes e com efeito vinculante do Supremo Tribunal Federal, apesar da disposição do art. 492, I, "e", do CPP e da discussão ainda pendente de julgamento acerca de sua constitucionalidade (Tema n. 1068 de repercussão geral), a jurisprudência da Quinta e da Sexta Turmas compreendem ser ilegal, conforme a interpretação conferida ao direito fundamental da presunção de inocência, mandar prender o réu solto para execução imediata e provisória de condenação não definitiva lastreada em veredicto do Tribunal do Júri, como ocorreu na hipótese. 3. Ainda que gravíssimas as acusações, o paciente foi beneficiado, no curso da instrução criminal, com a liberdade condicionada ao cumprimento de cautelares, somente podendo ser dela privado, antes do trânsito em julgado da condenação, se fato novo e contemporâneo (art. 312, § 2º do CPP), justificar a aplicação da prisão preventiva, ou se for demonstrada a contemporânea necessidade da cautela máxima, o que não se verificou na espécie. 4. Habeas corpus concedido. Confirmação da liminar (STJ. HC n. 737809, julgado em 13/9/2022. Relator: Min. Rogério Schietti Cruz).

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SUPERAÇÃO DA SÚMULA N. 691 DO STF. TRIBUNAL DO JÚRI. RÉU EM LIBERDADE DURANTE A INSTRUÇÃO. CUMPRIMENTO IMEDIATO DO VEREDICTO APÓS A CONDENAÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal e esta Corte firmaram entendimento no sentido de não se admitir habeas corpus contra decisão negativa de liminar proferida em outro writ na instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância (Súmula n. 691/STF), salvo nas hipóteses em que se evidenciar situação absolutamente teratológica e desprovida de qualquer razoabilidade. 2. No caso, há manifesta ilegalidade, a qual é apta a ensejar a concessão da ordem de habeas corpus. De fato, em que pese a regra contida no art. 492, inciso I, alínea e, do Código de Processo Penal, o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça é no sentido de não ser possível a "execução provisória da pena mesmo em caso de condenação pelo tribunal do júri com reprimenda igual ou superior a 15 anos de reclusão" (AgRg no HC 714.884/SP, Rel. Ministro JESUÍNO RISSATO, Desembargador Convocado do TJDFT, Rel. p/ acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, DJe 24/03/2022). 3. Aplica-se o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, 44 e 54, segundo o qual não é mais possível a execução provisória da pena. Embora o referido julgamento não tenha tratado especificamente de condenações pelo Tribunal do Júri, até o momento, não há manifestação de eficácia erga omnes e de efeito vinculante da Suprema Corte que reconheça a legitimidade da tese defendida pelo Agravante. Assim, a determinação da expedição de mandado prisional, antes do trânsito em julgado do édito condenatório, sem fundamentação nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, caracteriza constrangimento ilegal. Além disso, tendo o Agravado respondido ao processo-crime em liberdade, com autorização judicial, a prisão preventiva não poderia ter sido decretada, à medida que não houve superveniência de fatos novos e contemporâneos que justificassem a custódia processual. 4. Agravo regimental desprovido (STJ. AgRg no HC n. 781604, julgado em 7/2/2023. Relatora: Mina. Laurita Vaz).

HABEAS CORPUS. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA COMO DECORRÊNCIA AUTOMÁTICA DA CONDENAÇÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DO JÚRI. PENA SUPERIOR A 15 ANOS DE RECLUSÃO. IMPOSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO DOMINANTE NA QUINTA E SEXTA TURMAS DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AFRONTA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. RÉU QUE ESTAVA EM LIBERDADE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA PARA O DECRETO PRISIONAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. [...]. 4. Ordem concedida para revogar a prisão do paciente até o trânsito em julgado do processo principal. Não têm mais efeito as medidas cautelares impostas na decisão de tutela antecipada de fls. 1.657/1.659 (STJ. HC n. 793944, julgado em 02/05/2023. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior).

Na Corte Suprema, em ação penal envolvendo o rito do Tribunal do Júri, o Ministro Celso de Mello decidiu pela ilegalidade da execução antecipada da pena:

“HABEAS CORPUS” – CONDENAÇÃO RECORRÍVEL EMANADA DO JÚRI – DETERMINAÇÃO DO JUIZ PRESIDENTE DO TRIBUNAL DO JÚRI ORDENANDO A IMEDIATA SUJEIÇÃO DO RÉU SENTENCIADO À EXECUÇÃO ANTECIPADA (OU PROVISÓRIA) DA CONDENAÇÃO CRIMINAL – INVOCAÇÃO, PARA TANTO, DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI – INADMISSBILIDADE – A INCONSTITUCIONALIDADE EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE CONDENAÇÕES PENAIS NÃO TRANSITADAS EM JULGADO – INTERPRETAÇÃO DO art. 5º, INCISO LVII, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DE PRÉVIO E EFETIVO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL COMO REQUISITO LEGITIMADOR DA EXECUÇÃO DA PENA – INADMISSIBILIDADE DE ANTECIPAÇÃO FICTA DO TRÂNSITO EM JULGADO, QUE CONSTITUI NOÇÃO INEQUÍVOCA EM MATÉRIA PROCESSUAL – CONSEQUENTE INAPLICABILIDADE ÀS DECISÕES DO CONSELHO DE SENTENÇA – A QUESTÃO DA SOBENARIA DOS VEREDICTOS DO JÚRI – SIGNIFICADO DA CLÁUSULA INSCRITA NO art. 5º, INCISO XXXVIII, “c”, DA CONSTITUIÇÃO. CARÁTER NÃO ABSOLUTO DA SOBERANIA DO JÚRI – DOUTRINA – PRECEDENTES – EXISTÊNCIA, AINDA, NO PRESENTE CASO, DE OFENSA AO POSTULADO QUE VEDA A “REFORMATIO IN PEJUS” – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA REGRA CONSUBSTANCIADA NO art. 617, “IN FINE”, DO CPP – EXAME DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A RESPEITO DA PRISÃO MERAMENTE CAUTELAR DO SENTENCIADO MOTIVADA POR CONDENAÇÃO RECORRÍVEL, NOTADAMENTE QUANDO O RÉU TENHA PERMANECIDO EM LIBERDADE AO LONGO DO PROCESSO PENAL DE CONHECIMENTO – PRISÃO CAUTELAR DECRETADA NA HIPÓTESE DE CONDENAÇÃO PENAL RECORRÍVEL: INSTITUTO DE TUTELA CAUTELAR PENAL INCONFUNDÍVEL COM A ESDRÚXULA CONCEPÇÃO DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA OU ANTECIPADA DA PENA – “HABEAS CORPUS” CONCEDIDO DE OFÍCIO (STF. HC n. 174.759, julgado em 10/10/2020. Relator: Min. Celso de Mello).

Vale lembrar que, embora as decisões proferidas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43, 44 e 54 do Supremo Tribunal Federal não tenham tratado especificamente de prisões decorrentes do Tribunal do Júri, ficou decidido pela Corte Suprema que não é mais possível a execução provisória da reprimenda.

Sim, porque a verdadeira justiça, que é o fim buscado pelo Estado, não pode ser perseguida mediante meios que ferem de morte preceitos constitucionais e ordinários, base de todo o nosso Estado Democrático de Direito, porque a prisão não pode ocorrer nos moldes acima por se tratar de sentença penal condenatória recorrível, de modo que o Poder Judiciário não pode suprimir, enfraquecer ou restringir direitos e/ou garantias sociais e/ou fundamentais.

Dessa forma, qualquer prisão decorrente apenas da quantidade da pena corporal fixada na sentença do Tribunal do Júri será ilegal, por se tratar de uma prisão-pena automática, ainda mais quando não estiverem demonstrados os motivos que autorizam a prisão preventiva (art. 312, caput, do Código de Processo Penal)5, devendo ser ressaltado que o art. 313, § 2º, do Código de Processo Penal6 veda a prisão no curso do processo com a finalidade de antecipação do cumprimento da pena.


  1. Conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, em 22 de novembro de 1969, na cidade de San José da Costa Rica.

  2. Art. 5º. [...]; LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

  3. Tema 1068 - Constitucionalidade da execução imediata de pena aplicada pelo Tribunal do Júri.

  4. Hermínio Alberto Marques Porto (Júri, p. 34, item n. 27, 5ª ed., 2ª tir., 1988, RT), com fundamento no magistério de José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal”, vol. III/62, Forense).

  5. Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

  6. Art. 313. [...]. § 2º. Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LENIESKY, Fabiano. O tribunal do júri e a inconstitucionalidade da prisão-pena decorrente da sentença condenatória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7422, 27 out. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/106790. Acesso em: 25 abr. 2024.