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Injúria racial é equiparada ao crime de racismo pelo STF

Injúria racial é equiparada ao crime de racismo pelo STF

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A equiparação para fins de prescrição penal usurpa competência do Poder Legislativo ou apenas efetiva mandamento constitucional?

Em recente julgamento concluído em 28/10/2021,[2] o Supremo Tribunal Federal, acompanhando a jurisprudência já sedimentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, decidiu que o crime de injúria racial se equipara ao crime de racismo, sendo, por isso, imprescritível, nos termos do art. 5º, XLII, da Constituição Federal. Assim, independentemente da idade do agressor, ou do tempo em que foi praticada a ofensa, o ofendido poderá ofertar a queixa-crime.

O Superior Tribunal de Justiça já havia pacificado entendimento no sentido de que o crime de injúria racial, previsto no Código Penal (art. 140, § 3º), equipara-se ao crime de racismo, com todas as consequências dele advindas.[3]

Seguindo esta mesma linha, o Supremo Tribunal Federal, que é a última trincheira do Poder Judiciário, responsável por dar a palavra final em termos de interpretação da Constituição, pôs uma pá de cal sobre o assunto, concluindo que o crime de injúria racial configura um dos tipos penais de racismo, e é imprescritível.

A Constituição Federal de 1988, já em seu preâmbulo, aponta a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito.

Logo adiante, o art. 1º, III, elegeu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil e, na sequência, o art. 3º definiu como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Já o aclamado art. 5º, que deita as suas raízes no princípio da igualdade substancial, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, elencou uma série de direitos e deveres individuais e coletivos, dentre eles, o inciso III, que diz que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante, e o inciso XLII, estabelecendo que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

Num país onde o racismo estrutural ainda é indiscutivelmente um mal contemporâneo, andou bem a Corte Suprema. Não se pode mais tolerar que, em pleno século XXI, haja discursos discriminatórios que diminuam a pessoa humana, em razão de sua cor, sexo, credo religioso, status social, condição ou orientação sexual (nesse sentido, o STF já equiparou também a homofobia como crime de racismo)[4].

Expressões de cunho eminentemente racista, como mercado negro, grana preta, denegrir, magia negra, lista negra, a coisa tá preta, fazer nas coxas, entre várias outras, apenas reforçam discursos racistas, ainda que quem as emita não se dê conta disso, e deveras, não são aceitáveis num mundo onde a informação impera.

Há quem defenda que o Excelso Pretório ao fazer tais equiparações acaba usurpando competência do Poder Legislativo, e praticando o famigerado ativismo judicial.[5] Ocorre que, como guardião máximo da Carta Magna, o STF não pode esperar a mora do Legislativo, ou mesmo interpretar restritivamente norma constitucional que assegure os direitos da pessoa humana. Ao revés: precisa atuar para garantir que os direitos fundamentais já mencionados não sejam reduzidos a letra morta, ou, como diria Ferdinand Lassalle, mera folha de papel. E isso tem feito com maestria nossa Corte Maior.

Sob esse enfoque, o art. 5º, XLII da CF/88 apenas estatuiu que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei, sem especificar o que seria racismo.

Por outro lado, a Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, também não explicou o que seria racismo, limitando-se a apontar as hipóteses de crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Já o Código Penal, ao tratar do crime de injúria, impôs-lhe uma qualificadora, no ano de 2010, conforme se infere do § 3º, do art. 140, assim redigido Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência [...].

Como se vê, nem a Constituição Federal nem a legislação infraconstitucional criou tipo penal para o racismo, limitando-se a tratar das consequências decorrentes da prática do ato discriminatório, e não o fez, justamente porque o legislador não consegue prever todas as situações que ao longo do tempo poderiam se enquadrar como racismo.

Assim, conforme recomenda a moderna hermenêutica jurídica, se cabe interpretação da norma ainda que ela seja cristalina, com muito mais razão o caberá quando nela houver imprecisão, visando à realização ótima de todos os bens e valores da Constituição e, ao mesmo tempo, não negar nenhum deles (princípio da concordância prática), e objetivando a unidade do Texto Fundamental, já que as normas constitucionais não são isoladas, mas preceitos integrados em um sistema unitário.[6].

Injúria racial é o mesmo que racismo e deve ser punida, a qualquer tempo, nos rigores da lei, ou melhor, do ordenamento jurídico.


[2] Habeas Corpus 154.248/DF, julgado em 28/10/2021 pelo Plenário. Acórdão pendente de publicação.

[3] STJ. AgRg no REsp 1.849.696/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, DJe 23/6/2020: Nos termos da orientação jurisprudencial desta Corte, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão (AgRg no AREsp n. 686.965/DF, Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 18/8/2015, DJe 31/8/2015) - (AgRg no AREsp n. 734.236/DF, Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 8/3/2018). 2. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1849696/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe 23/6/2020).

[4] Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, Tribunal Pleno, julgado em 13/6/2019, publicado no DJ-e de 6/10/2020.

[5] O único voto divergente, do Ministro Nunes Marques, foi nesse sentido.

[6] STJ. REsp 1.251.566/SC, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 14/6/2011: O ponto de partida, certamente, deve ser a letra da lei, não devendo, contudo, ater-se exclusivamente a ela. De há muito, o brocardo in claris cessat interpretatio vem perdendo espaço na hermenêutica jurídica e cede à necessidade de se interpretar todo e qualquer direito a partir da proteção efetiva do bem jurídico, ainda que eventual situação fática não tenha sido prevista, especificamente, pelo legislador. Obrigação do juiz, na aplicação da lei, em atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro). Mas, quando a lei não encontra no mundo fático suporte concreto na qual deva incidir, cabe ao julgador integrar o ordenamento, mediante analogia, costumes e princípios gerais do direito. A matriz axiológica das normas, ao menos a partir da visão positivista, é o conjunto de regras elencadas na Constituição, entendida como o ápice do que se entende por ordenamento jurídico. Mais ainda: sob a ótica pós-positivista, além das regras constitucionalmente fixadas, devem-se observar - antes e sobretudo - os princípios que, na maioria das vezes, dão origem às próprias regras (normogênese). Logo, é da Constituição que devem ser extraídos os princípios que, mais que simples regras, indicam os caminhos para toda a atividade hermenêutica do jurista e ostentam caráter de fundamentalidade. Na resolução do caso concreto, os princípios se aproximam mais dos ideais de justiça (Dworkin) e de direito (Larenz), sendo imprescindível que se os busquem em sua fonte primordial: a Constituição. O primeiro deles - a dignidade da pessoa humana (art. 1º da CF/88) -, é considerado, mesmo, um sobreprincípio, já que constitui não só um norte para a produção e aplicação de novas regras, mas fonte comum a todos os demais princípios.


Autor

  • Leonis de Oliveira Queiroz

    Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB, conceito CAPES 6). Pós-graduação em Direito Público. Graduação em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Leonis de Oliveira. Injúria racial é equiparada ao crime de racismo pelo STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6700, 4 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94566. Acesso em: 29 mar. 2024.