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O pacto Federativo brasileiro: Uma análise constitucional, doutrinária e jurisprudencial de suas turbulências durante a pandemia

O pacto Federativo brasileiro: Uma análise constitucional, doutrinária e jurisprudencial de suas turbulências durante a pandemia

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O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO: Uma análise constitucional, doutrinária e jurisprudencial de suas turbulências durante a pandemia

Alexandre Ramalho da Costa

Rafael da Costa Neves

RESUMO

Com a propagação da pandemia do novo Corona vírus tivemos significativos impactos nas relações humanas, gerando inúmeros conflitos políticos, jurídicos e sociais. Tomando como referência esta temática, o presente artigo tem por objetivo analisar se os recentes julgados do STF sobre as competências dos entes federativos durante a pandemia do Corona vírus (COVID-19) alteraram ou não o Ordenamento Jurídico Brasileiro. Para tanto, utilizou-se metodologia de pesquisa bibliográfica, com apresentação e análise de julgados, jurisprudência e doutrina que discorram sobre o Pacto Federativo Brasileiro.

Palavras-chave: Pacto Federativo. Repartição de competências. Pandemia da COVID-19.

ABSTRACT

With the spread of the new corona virus pandemic, we had significant impacts on human relations, generating numerous political, legal and social conflicts. Taking this theme as a reference, this article aims to analyze whether the recent judgments of the Supreme Court on the competences of federal entities during the pandemic of the corona virus (COVID-19) have altered the Brazilian Legal System or not. For this purpose, a bibliographic research methodology was used, with presentation and analysis of judgments, jurisprudence and doctrine that discuss the Brazilian Federative Pact.

Keywords: Federative Pact. Distribuition of powers. COVID-19 pandemic.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Do Pacto Federativo Brasileiro; 2.1 Aspectos Conceituais; 2.2 Surgimento Histórico; 2.3 Estado Unitário X Estado Federal; 3 Da Constituição; 3.1 Competência Concorrente; 3.1.1 Competência concorrente e a crise durante a pandemia; 4 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6341/2020; 5 Conclusão.

1 INTRODUÇÃO

Descoberto em 31 de dezembro de 2019, o vírus causador da doença tecnicamente conhecida como Covid-19, teve como epicentro de proliferação da doença a cidade de Wuhan, maior cidade da China Central. Em 2020, o vírus teve propagação mundial trazendo significativos impactos nas relações humanas gerando inúmeros conflitos jurídicos, políticos, sociais e econômicos no Brasil.

O enfrentamento da pandemia fez com que se tornasse necessária a ação de todos os entes da Federação brasileira, o que fez surgir diversas dúvidas em relação aos poderes e responsabilidades de cada ente com relação ao problema.

Com o intuito de diminuir os efeitos diretos da pandemia, o Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, valendo-se da atribuição que lhe é conferida pelo art. 62 da Constituição Federal, editou a Medida Provisória (MP) nº 926, de 20 de março de 2020, alterando a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, com o intuito ordenar os procedimentos destinados ao enfrentamento da pandemia.

O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento sobre as medidas de combate a pandemia em relação a competência entre os entes federativos. Durante a votação unânime da Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, impetrada pelo PDT contra a MP nº 926/2020 editada pelo Governo Federal, os Ministros decidiram que a competência é concorrente entre os entes federativos e que as medidas tomadas pelo governo federal na referida MP não afastam ações normativas e administrativas assumidas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Diante dessa decisão, coloca-se o seguinte problema de pesquisa: o entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, em relação às competências dos entes federativos ao lidar com a pandemia, inovou em relação ao quadro que se tinha anteriormente em termos de repartição de competência, seja doutrinária, seja jurisprudencialmente? Identificando que houve inovação, a mesma se justificaria, considerando a pandemia e as necessidades emergenciais relacionadas ao seu enfrentamento?

O problema é relevante porque é sabido que alterações bruscas no ordenamento jurídico são perigosas, devendo haver respeito e estabilidade nas instituições. Medidas emergenciais de enfrentamento a novas questões podem acontecer em nosso cotidiano e elas deverão, sim, ser enfrentadas por diversos entes. Mas o respeito à Constituição e a segurança jurídica de nosso país deve ser mantida acima de qualquer dificuldade que nos acometa. Um estado democrático deve enfrentar democraticamente seus problemas.

No próximo capítulo, este artigo irá analisar as principais características de um estado federal, a fim de compreender melhor o pacto federativo brasileiro. Em seguida, passa-se ao estudo da repartição constitucional de competências em matéria de emergência sanitária, momento em que será estudada a fundo a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 6341. Após isso, será possível responder ao problema de pesquisa proposto em relação ao caráter inovador ou não da decisão do STF.

2 DO PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO

2.1 Aspectos Conceituais

Segundo a Constituição Federal, a Federação ou Estado Federal do Brasil é composto pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, sendo cada umas delas entidades autônomas dotadas de governo próprio, porém unidas por uma só Constituição. A palavra Federação tem sua origem do latim foedus o que significa pacto, aliança.

Hans Kelsen, ao conceituar federação, dizia que na escala de descentralização, o Estado federal encontra-se entre o Estado unitário e a união internacional de Estados (KELSEN, 1998, p. 451). Portanto, este ilustre doutrinador defendia que a forma específica de descentralização e sua essência tornava possível o reconhecimento de uma constituição positiva e concreta do Estado Federal.

O filósofo Montesquieu, reconhecia em sua ilustre obra O Espírito das Leis a junção das vantagens internas do governo republicano com a força externa da monarquia, entendendo que a república federativa era, também, uma forma de constituição. Defendia que essa forma de governo é uma convenção segundo a qual vários Corpos políticos consentem em se tornar cidadãos de um Estado maior que pretendem formar. É uma sociedade de sociedades, que formam uma nova sociedade, que pode crescer com novos associados que se unirem a ela (MONTESQUIEU, 2000, p. 141).

Na definição do doutrinador Pedro Nunes, a Federação é a:

(...) união de várias províncias, Estados particulares ou unidades federadas, independentes entre si, mas apenas autônomas quanto aos seus interesses privados, que formam um só corpo político ou Estado coletivo, onde reside a soberania, e a cujo poder ou governo eles se submetem, nas relações recíprocas de uns e outros (NUNES, 1993, p. 432).

Portanto, define-se Federação como sendo uma unidade de divisão político-administrativa, histórica e geográfica de uma Nação, no qual a plena vontade nacional é expressada de forma permanente e indissolúvel, mediante pacto federativo.

2.2 Surgimento Histórico

Como destaca Dalmo Dallari, a origem da formação do Estado Federal, como é conhecido atualmente, teve como grande influência o Federalismo Norte-Americano, quando as treze colônias decidiram se unir se tornando um só país, nascendo, então, a Constituição dos EUA em 1787. Dallari ainda acredita que as referências de Federação sempre existiram em várias épocas da história humana. Segundo o doutrinador, alguns autores defendem que a Confederação Helvética, realizada na Suíça em 1291, foi o primeiro exemplo da celebração de um pacto de amizade e aliança, muito embora seus objetivos e o relacionamento entre os participantes tenham ficados restritos até 1848, quando realmente a Suíça se organizou e firmou como Estado Federal.

Após a criação da Constituição Americana, pairou-se uma grande insegurança sobre a implantação do sistema federativo no Brasil e a possível perda da soberania e independência e maior centralização do poder. Dessa forma, Dalmo Dallari discorre que:

Trata-se, na realidade, da mais preciosa fonte para conhecimento das ideias e dos objetivos que inspiraram a formação dos Estados Unidos da América. A base jurídica do Estado Federal é uma Constituição, não um tratado. Baseando-se a união numa Constituição, todos os assuntos que possam interessar a qualquer dos componentes da federação devem ser conduzidos de acordo com as normas constitucionais. O tratado é mais limitado, porque só regula os assuntos nele previstos expressamente, além de ser possível sua denúncia por qualquer dos contratantes, o que não acontece com a Constituição (DALLARI, 1998, p. 92).

Na época imperial, em 1824, surgiu a primeira Constituição política do Império do Brasil e, embora muito longe de ser um Estado federalista, notou-se alguns indícios em seu artigo 1º de que, futuramente, o Brasil se tornaria um país independente e, ainda que de forma centralizada, comandaria seus próprios poderes. Assim estabelecia o seu art. 1º: O império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros. Eles foram uma nação livre e independente que não admite laço algum de união ou federação, que se oponha à sua independência.

Já em 1891 foi criada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, após um grande e complicado movimento republicano em 1889, que resultou na Proclamação da República mediante o Decreto nº 1, de 15 de Novembro de 1889. Foi estabelecido nessa Constituição que a nova forma de governo brasileiro seria uma República Federativa, que uniu todas as Províncias do Brasil e estabeleceu que cada um dos Estados exerceria sua legítima soberania[1], capazes de decretar suas constituições definitivas e eleger seus governantes.

Nos termos do Decreto n. 1, de 15 de novembro de 1889:

Art. 1º: Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo da nação brasileira a República Federativa.

Art. 2º: As Províncias do Brasil, reunidas pelo laço da federação ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil.

Art. 3º: Cada um desses Estados, no exercício de sua legítima soberania, decretará oportunamente a sua constituição definitiva, elegendo os seus corpos deliberantes e os seus governos locais.

Porém, a efetiva implantação dessa República Federativa não ocorreu como esperado, sendo o federalismo brasileiro, inicialmente, adotado de forma superficial, e segundo BARROSO (1982), ignorou a real situação brasileira beneficiando apenas os detentores de poder que já o detinham desde a época imperial.

Por essa problemática, a Constituição de 1891 passou a prever, efetivamente, o federalismo na República, formalizando em seu artigo 1º.

Art. 1º A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a República Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitue-se, por união perpetua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brazil

Em 1934, pairou no Brasil a onda do Estado Intervencionista, que pleiteava pela dissolução do congresso e a instituição do governo absolutista. Porém, no fim, a descentralização acabou vencendo, contrariando as vontades governamentais que buscavam o forte autoritarismo. Nesta época foi criado o município como novo ente federativo, a fim de aumentar a possibilidade de controlar a população. Diante dessa situação, surgiu a Constituição de 1934 como grande garantidora dos Direitos Trabalhistas e Humanos.

Em 1937 foi criada uma nova Constituição no Estado Novo de Getúlio Vargas, mas esta não teve nenhuma mudança relevante, mantendo o federalismo.

Em 1946, o federalismo manteve-se intacto novamente, porém o governo se baseava nos pilares constitucionais da Constituição norte-americana, francesa e naquela que visava os direitos sociais. Apesar disso, em 1964, após grande instabilidade política do país, ocorreu o Golpe Militar após a posse de João Goulart, que inseriu a tirania no Brasil, reduzindo a liberdade dos demais entes envolvidos, principalmente após a implantação da Constituição de 1967, que basicamente instituiu poderes ilimitados ao governante com o Ato Institucional n. 5.

Embora os princípios federalistas ainda estivessem previstos em lei, a Constituição de 1969 manteve o caráter autoritário e totalitarista, porém alterou o nome de Estados Unidos do Brasil para República Federativa do Brasil.

Após toda a evolução constitucional, em 1988 ocorreu a redemocratização brasileira que visou o fim ao autoritarismo que o Brasil passou durante a ditadura militar, focando em restaurar o verdadeiro modelo de Federação com descentralização. Surgiu então a Constituição Cidadã, com a ampliação do rol das competências comuns e concorrentes. Dessa forma, os entes não governariam de forma isolada e sim de maneira sistêmica e comunicativa. Nasceu então, a Constituição da República Federativa do Brasil, que é o modelo federativo atual brasileiro.

A organização do Estado nacional, caracterizada pela esfera autônoma de poder centralizada e descentralizada, no qual a primeira constitui uma entidade federal e a segunda, constitui estados-membros, no qual ambas têm poderes únicos e concorrentes para governar o mesmo território, é chamada de Sistema Federal ou Sistema Federativo.

Cabe ressaltar, que não há hierarquia entre a União e os Estados-membros na Federação, pois cada entidade possui suas competências bem delimitadas no texto da Constituição, não havendo possibilidade de alteração. Porém, a Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso I, deixa claro que apenas a Federação, como um todo, é considerada soberana:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - A soberania;

Dessa forma, a Federação, como sendo um novo sistema organizacional do território, instituiu um sistema de dupla soberania política, sendo distribuídos em União, como Governo Central e estados, como as unidades constituintes, no fim, as instituições políticas se limitam umas às outras, proporcionando o maior equilíbrio federativo. Portanto, o Estado Federativo do Brasil surgiu com a Proclamação da República após se livrar e desconstruir o Império unitário.

O Pacto Federativo foi estabelecido pela Constituição de 1988, sendo criado para organizar as competências dos entes federativos (governo federal, estadual e municipal) e estabelecer um conjunto de normas constitucionais para determinar as leis, obrigações financeiras, arrecadações de recursos e os campos de atuação da União, estados e dos municípios. No que tange às competências constitucionais, todos os entes federados são autônomos e não há hierarquia entre eles.

De acordo com a Confederação Nacional de Municípios, o Pacto Federativo pode ser definido como o acordo constitucional, administrativo e político firmado entre os Entes da Federação que determina o respeito à autonomia dos mesmos e delimita os campos de atuação, estabelecendo: prerrogativas, recursos e responsabilidades para o cumprimento das funções de Estado (CNM, 2009).

2.4 Estado Unitário vs. Estado Federal

O Estado Unitário é aquele no qual o poder político é concentrado em uma autoridade central que assume o poder do Estado, direcionando as regras e gerenciando todas as unidades daquela estrutura governamental dentro do território daquele país. Suas principais características são a única soberania, a Constituição como lei básica, a inexistência de secessão e há uma competência centralizada ou pelo menos descentralizada, porém com menor autonomia.

A diferença entre o Estado Unitário para o Federal é que neste último, os entes são dotados de autonomia política e organizacional, no qual cada ente federativo pode criar suas próprias regras e leis, desde que observados os princípios da Constituição, sendo, portanto, formas opostas de organizar o poder político dentro de um Estado nacional.

Ainda, é válido destacar que o conceito de Federação se contrapõe ao Estado unitário, isso porque no caso de Estado unitário existe uma centralização do exercício do poder, no qual um governo único, comandado por uma única entidade política que exerce o poder de forma centralizada. A Federação, por sua vez, há a descentralização do poder no qual a Constituição prevê a concessão de autonomia para cada ente federativo, porém, os estados não podem se separar, ou seja, não existe o direito de secessão, pois além de estarem atentando contra o princípio da indissolubilidade do pacto federativo, tal ato seria contrário ao disposto no artigo 34, I da Constituição Federal de 1988: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I Manter a integridade nacional; [...] (BRASIL, 1988).

Deve-se observar que a formação do Estado Federal se dá pela união de vários Estados e a Federação possui algumas características essenciais, sendo elas:

(i) Descentralização político-administrativa: cada ente da federação brasileira possui autonomia para ditar as normas de ordem política, bem como administrativas, de determinada matéria, possuindo competência legislativa dentro do seu âmbito territorial.

(ii) Repartição de competência: essa repartição garante a autonomia dos entes federativos, mantendo o equilíbrio da Federação. Há as competências privativas da União, previstas no artigo 22 da Constituição Federal de 1988 para legislar sobre determinadas matérias e, as competências concorrentes entre os entes federativos para legislar sobre outros assuntos, com previsão no artigo 24 da referida Lei.

(iii) Soberania do Estado Federal: apesar dos entes federativos serem autônomos entre si, o Estado Federal é soberano.

(iv) Inexistência do direito de secessão: uma vez criado o pacto-federativo não há possibilidade de separação, ou seja, nenhum ente federativo pode tentar se retirar do Estado Federal, sob pena de Intervenção Federal no Estado rebelante. Tal determinação tem previsão legal no artigo 34, I da Constituição Federal e ainda, está presente no princípio da indissolubilidade do vínculo federativo (artigo 1º da CF/88).

(v) Auto-organização dos estados-membros: para a melhor organização e controle dos entes federativos, a Constituição Federal em seu artigo 25 permite que cada um destes crie suas leis, desde que observados os princípios constitucionais. Segundo o art. 25 da Constituição: os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.

(vi) Constituição rígida: para manter a estabilidade institucional, é necessário que seja estabelecido uma constituição rígida para garantir a distribuição de competência entre os entes da federação.

(vii) Repartição de Receitas: cada ente federado tem sua própria fonte de renda, porém, há também a repartição de receitas tributárias, mantendo assim, o equilíbrio entre os estados-membros.

(viii) Órgão representativo dos estados-membros: de acordo com o artigo 46 da Constituição Federal de 1988, o órgão competente para representar os entes federativos é o Senado Federal. Segundo esse dispositivo: O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.

(ix) Órgão guardião dos estados-membros: de acordo com o artigo 102 da Constituição Federal de 1988, o órgão guardião dos entes federativos é o Supremo Tribunal Federal: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição ()

(x) Intervenção: para o melhor equilíbrio federativo e a manutenção da Federação, em casos de crise, deve-se instaurar o processo interventivo.

Portanto, a característica central do Pacto Federativo é a melhor gestão da arrecadação e distribuição de receitas entre os entes federados, sendo regido por determinados artigos da Constituição Federal, como por exemplo os artigos 212 e 198.

3 DA CONSTITUIÇAO

Previsto no art. 196 da Constituição Federal, o direito à saúde é direito de todos e dever do Estado, trata-se de um direito social que está de forma direta relacionado ao direito fundamental à vida. Nesse sentido, Bernardo Gonçalves Fernandes (2020, p. 919) dispõe que é indiscutível que o direito à saúde relaciona-se de forma direta com o direito à vida, sendo de extrema relevância, uma vez que interligado ao direito fundamental à vida e, também, à existência digna do cidadão.

Diante da necessidade de resguardar a saúde da população e da importância que cerca o tema, a Constituição Federal, instituiu o SUS (Sistema Único de Saúde), que tem por objetivo garantir a todos o acesso à saúde, através de ações e serviços de natureza pública, e tornou obrigatória a aplicação de recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde:

A partir da Emenda Constitucional nº 29/00, o §2º do art. 198 passou a dispor da obrigatoriedade de uma aplicação de recursos mínimos em ações e serviços públicos de saúde, transformando essa reserva de recursos como norma de observância obrigatória, inclusive sob pena de intervenção no caso de descumprimento (art. 34, VII, e).

Outra importante via de efetivação do direito à saúde se dá pela ação do Ministério Público, que, através de ação civil pública, tem legitimidade para provocar o Poder Judiciário quanto às omissões totais ou parciais por parte do Poder Público na implementação das ações e serviços de saúde. (FERNANDES, 2020, p. 919-920)

Nesse diapasão, é a redação do art. 196 da Constituição Federal, in verbis:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços par sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988)

Dada a universalidade e a relevância da saúde, é tema de competência de todos os entes federados, haja vista sua relevância pública. A Constituição Federal, em seu art. 23, dispõe que se trata de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde e assistência pública e garantia das pessoas portadoras de deficiência (BRASIL, 1988). Ainda, no art. 24 do texto constitucional, é previsto que se trata de competência concorrente legislar sobre a previdência social, proteção e defesa da saúde.

A repartição de competência concorrente trata-se de técnica de repartição vertical, uma vez que os entes federativos irão atuar de forma conjunta ou concorrente para disciplinar uma determinada matéria, como ocorre no que concerne ao direito à saúde.

3.1 Da competência concorrente e comum

A competência concorrente trata de diversas matérias que competem à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre. Pontua-se, que compete à União estabelecer normas gerais sobre determinado assunto e aos Estados, Municípios e Distrito Federal, legislar de forma suplementar, podendo, ainda, ter competência plena sobre aqueles assuntos, no caso de omissão da União, como prevê o art. 24 da Constituição Federal, is vebis:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

II - orçamento;

III - juntas comerciais;

IV - custas dos serviços forenses;

V - produção e consumo;

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;

XI - procedimentos em matéria processual;

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;  

XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

XV - proteção à infância e à juventude;

XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.

§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.  

§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.  (BRASIL, 1988)

A repartição vertical poderá ser desenvolvida de forma cumulativa ou não-cumulativa. Enquanto na primeira os entes podem disciplinar sobre determinada matéria sem limitações enquanto seu ente superior (União) não o faça, na segunda as matérias estão delimitadas por sua extensão. No plano do art. 24 da Constituição Federal, prevalece a competência não-cumulativa, em regra, sendo cumulativa no caso previsto do § 4º do referido artigo.

O Brasil adota um sistema de repartição de competências que visa desenvolver um federalismo de equilíbrio (ainda em processo), no qual permeiam competências enumeradas (privativas e exclusivas) e remanescentes, e competências comuns e concorrentes entre os entes que compõe a Federação (FERNANDES, 2020, p. 1134).

Em relação à competência concorrente, ensina Ferraz Filho (s/d):

Do ponto de vista da lógica jurídica, as normas podem ser, quanto à quantidade, gerais, particulares ou individuais. Esta distinção pode ser vista quanto aos destinatários ou quanto aos conteúdos da norma. Um a norma é geral, quanto aos destinatários, quando se aplica à universalidade deles, sem distinções. Melhor seria, neste caso, chamá-la de norma universal. A contrário sensu, ela será particular, quando se destina a uma coletividade ou categoria de destinatários. Melhor se fala aqui em norma especial. Por fim, é individual a que se destina a um único endereçado. Quanto aos conteúdos, as normas são gerais quando a matéria prescrita se reporta a toda e qualquer ocorrência da espécie (facti species, fato gerador, hipótese de incidência). Particular, quando a matéria assinala apenas um grupo ou parte da espécie. Individual, ou melhor, singular, quando sua matéria delimita um único caso. (FERRAZ FILHO, s/d)

A União terá a competência de legislar sobre as normas gerais e os Estados e o Distrito Federal deverão suplementar essas normas gerais para atender aos interesses regionais. Sobre normas gerais, ainda, conceitua Leornardo Godoy Drigo (2012):

Pode-se dizer, portanto, que normas gerais são princípios jurídicos voltados à atividade do legislador e que pautarão sua atuação na concretização, conforme a pluralidade dos interesses regionais ou locais envolvidos, dessas mesmas normas gerais, agora descendo às minúcias fáticas da matéria legislada.

Não se estará diante de normas gerais, dessa forma, quando houver regulação expressa de fatos relacionados diretamente à matéria que se disciplina, pois tal tarefa cabe ao legislador regional ou local, e até mesmo federal, porém, nesse caso, também submetido às mesmas normas gerais.

Isso porque o instrumento de veiculação de tais normas pouco importará, já que a União, quando legisla sobre normas gerais em termos de competência concorrente, exerce essa competência enquanto representante do Estado Federal, nada impedindo que, no mesmo diploma, inclua disposições específicas de observância no âmbito exclusivo federal, porém sempre submetida às normas gerais expedidas para os demais entes federados (DRIGO, 2012).

Nesse diapasão, entende-se que as normas gerais, que competem à União, no âmbito da competência concorrente, são aquelas que se fixam os postulados fundamentais, que são necessários a dar uniformidade no tratamento da matéria, no âmbito federal.

Noutro giro, as normas suplementares, que competem aos demais entes federativos, podem se estabelecer na forma do § 3º do art. 24 da Constituição Federal, que estabelece poderá se dar de forma plena, no caso de omissão da União na formulação das normas gerais. Nesse caso, os Estados e o Distrito Federal poderão exercer a competência legislativa concorrente de forma plena, editando toda a normatividade, estabelecendo as normas gerais e suplementares. Ocorre que, nos casos da União editar posteriormente as normas gerais, elas irão suspender as normas estaduais e distritais no que lhes forem contrarias (FERNANDES, 2020).

A edição legislativa de forma realizada exclusiva pela União fragiliza a estrutura do federalismo descentralizado, não devendo ser banalizado com a entrega à União do monopólio exclusivo para a edição de leis. Como destacado por Bernardo Gonçalves Fernandes (2020, p. 1178), a banalização de normas estaduais remissivas fragiliza a estrutura federativa descentralizada e consagra o monopólio da União, sem atender para nuances locais.

O ideal é o estabelecimento da cooperação entre os entes federativos para melhor atender às peculiaridades dos interesses regionais, devendo haver uma atuação de forma harmoniosa visando atender ao melhor interesse de toda a coletividade.

A competência concorrente foi tema de discussão durante a crise sanitária enfrentada pelo Brasil durante o combate ao Coronavírus, sendo levado o tema ao STF para discussão sobre os limites da União na edição de normas para o combate ao vírus.

3.1.1 Competência concorrente e a crise durante a pandemia

Como já mencionado, em 2020, o Brasil se viu diante da pandemia pelo COVID-19, que assolou todo o planeta, foi um dos maiores desafios sanitários enfrentados em escala global neste século. No Brasil, foram registradas mais de 600 mil mortes em decorrência do vírus, sendo mais de 21,7 milhões de casos registrados.

Ocorre que, apesar de ser uma crise anunciada, haja vista ter tido seu epicentro a China e, em poucos meses, ver o vírus chegando a vários países pelo mundo, não foi possível controlar seus efeitos devastadores no Brasil. Pouco se sabia, ou ainda se sabe, sobre a melhor maneira para o enfrentamento da COVID-19.

Todos os países foram pioneiros no combate ao vírus e pouco se pôde evitar para que tomasse proporções inimagináveis, tomando milhares de vidas no Brasil, e milhões pelo mundo. Diante dessa crise iminente, após o registro do primeiro caso de morte do Brasil, se teve o sinal vermelho, para que medidas de isolamento fossem tomadas e medidas sanitárias fossem realizadas para que pudesse atingir o menor número de pessoas possíveis.

Nesse diapasão, em 20 de março de 2020, foi editada a MP nº 926, alterando a Lei nº 13.979/2020, dispondo em sua ementa que os procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (BRASIL, 2020).

Como destacado por Ana Luiza Tibúrcio Guimarães (2020):

A MP 926/2020 alterou alguns dispositivos da Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre medidas de polícia sanitária que podem ser adotadas para enfrentamento do coronavírus, como isolamento social, quarentena, restrição de locomoção, circulação de pessoas e mercadorias, entre outras. Além disso, ela também promove alterações no Decreto nº 10.282/2020, que determina quais são os serviços públicos e atividades essenciais e a competência para sua definição. (GUIMARÃES, 2020)

Dentre algumas medidas adotadas pela MP nº 926, se deu como exclusiva à União a competência para dispor sobre a interdição de serviços públicos e atividades essenciais, o que gerou ampla discussão haja vista se tratar de medidas que visavam o controle da propagação do vírus, tratando-se, pois, de matéria afeta à saúde, o que não poderia ser matéria de competência exclusiva da União e, sim, de competência comum, prevista no art. 23, II, da Constituição Federal.

Como destacado pelo Senado Notícias (2020), a medida recebeu muitas críticas por poder retirar prerrogativas dos governadores dos estados na definição de medidas sanitárias e de quarentena (BRASIL, Senado Federal, 2020). Na reportagem, datada de 27/03/2020, era anunciado que a referida MP já tinha mais de 126 emendas de deputados federais e senadores.

Em decorrência da MP nº 926, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), ingressou com a ADI nº 6.341, ao argumento de que a redistribuição de poderes de polícia sanitária introduzida pela MP nº 926/2020 interferiu no regime de cooperação entre os entes federativos, haja vista ter atribuiu à União, exclusivamente, as prerrogativas de isolamento, quarentena, interdição de locomoção, de serviços públicos e atividades essenciais e de circulação.

4 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 6341/2020

Diante da edição da MP nº 926/2020, em 15 de abril de 2020, o STF decidiu a respeito da constitucionalidade da referida medida, haja vista ter sido colocado em discussão a respeito da possibilidade de se conferir exclusivamente à União, a competência para tomar medidas de isolamento, visando o combate à COVID-19, tratando-se, pois, de atribuição referente a medidas que diziam respeito à saúde da população.

A decisão da ADI nº 6341/2020, tinha como objetivo a discussão sobre a competência concorrente entre os entes federativos:

A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, ajuizada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), que tinha por objetivo declarar a nulidade da Lei Federal nº 13.979/2020 (redação dada pela MP nº 926/2020) em razão da inconstitucionalidade por vício formal e material, da norma que conotava exclusividade à União para dispor sobre a interdição de serviços públicos e atividades essenciais. A lei alvo da discussão ainda exigia articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador (SAMICO; CABRAL JUNIOR, 2020).

A ADI nº 6341/2020, teve como Relator o Ministro Marco Aurélio e Redator do Acórdão, o Ministro Edson Fachin, tendo sido interposta pelo Partido Democrático Trabalhista, sendo julgada pelo Plenário do STF, em 15 de abril de 2020.

O PDT ajuizou a ADI tendo como finalidade a declaração da incompatibilidade parcial da MP nº 926/2020 com a Constituição Federal, no que concerne as alterações realizadas na Lei nº 13.979/2020. Como destacado na decisão:

Articula com a inconstitucionalidade formal ante a disciplina, por meio de medida provisória, de matéria que alega ser reservada a lei complementar. Conforme argumenta, os dispositivos atacados implicam inovação, no texto da Lei nº 13.979/2020, quanto a providências de polícia sanitária e legitimados a implementá-las considerado o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do chamado coronavírus. Diz em jogo questão de saúde pública, ressaltando que, na Lei Maior, a temática da vigilância sanitária e epidemiológica está no rol de atribuições do sistema único de saúde.

Destaca ser o tema da saúde reservado, como gênero, à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a teor do artigo 23, inciso II, da Constituição Federal. Aludindo ao parágrafo único do preceito, menciona a pertinência de lei complementar para a normatização da cooperação entre os entes federados, descabendo, segundo afirma, a edição de medida provisória tendo em conta o previsto no artigo 62, § 1º, da Carta da República. Frisa configurado abuso de poder, na modalidade excesso. Aponta a invalidade, por arrastamento, do Decreto nº 10.282/2020, a regulamentar a Lei nº 13.979/2020, no que definidos serviços públicos e atividades essenciais.

Sob o ângulo material, aponta a competência administrativa comum, atribuída aos demais entes da Federação, voltada à adoção de medidas de isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos, bem assim de interdição de atividades e serviços essenciais. Sustenta esvaziada a responsabilidade constitucional, atribuída a todos os entes, para cuidarem da saúde, dirigirem o sistema único e executarem ações de vigilância sanitária e epidemiológica, nos termos dos artigos 23, inciso II, 198, inciso I, e 200, inciso II, da Constituição de 1988, bem como o critério da predominância do interesse. Sublinha violada a autonomia dos entes da Federação, a revelar adequado o afastamento da exclusividade da União para dispor sobre as referidas providências.

Diz do risco atinente à propagação do vírus em virtude da circulação de pessoas. Realça as dificuldades enfrentadas no tocante à implantação de barreiras sanitárias.

Requer, no campo precário e efêmero, mediante ato individual a ser referendado pelo Colegiado, a declaração de nulidade, considerado vício formal e material, dos dispositivos atacados. Busca, ainda em sede de liminar, seja assentada a invalidade, por arrastamento, do Decreto nº 10.282/2020. Pretende, no mérito, a confirmação da medida acauteladora. (BRASIL, STF, 2020, p. 3-4).

No voto proferido pelo Ministro Relator Marco Aurélio, que foi acompanhado pelo unanimidade dos Ministros, tornou explícita a dicção do STF, para reconhecer como competência comum as medidas a serem tomadas para o enfrentamento do novo coronavírus. Pontou-se que a emergência internacional, reconhecida pela OMS, não implica nem muito menos autoriza a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito (BRASIL, STF, 2020, p. 1).

Inicialmente, foi destacado o disposto no art. 23, II, e art. 24, XII, ambos da Constituição Federal, que dispõe que:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

II cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

XII previdência social, proteção e defesa da saúde; (BRASIL, 1988 grifos meus).

Como destacado no voto proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes, o centro da discussão era a saúde pública, que naquele momento necessitava de grande atenção. Destacou o Ministro a importância do Federalismo brasileiro e a necessidade de observar o tamanho territorial do Brasil, sendo essencial a divisão de decisões de todas as matérias, não podendo se centralizar tão somente à um ente federativo, como pretendido pela MP nº 926/2020.

O Ministro Alexandre de Moraes destacou, ainda, sobre a questão do Estado do Amazonas, que é diferente da de São Paulo, do Rio, de Tocantins, que ontem apresentou a primeira vítima de covid. Ou seja, há peculiaridades locais que precisam ser analisadas (BRASIL, STF, 2020). Assim, a competência comum é de suma importância, haja vista as peculiaridades de cada região e o tamanho de nosso território nacional, não sendo possível, um único ente tomar conta de tudo.

Nesse sentido, destacou o Ministro Alexandre de Moraes:

Não é possível que, ao mesmo tempo, a União queira ter monopólio da condução administrativa da pandemia nos mais de 5 mil Municípios. Isso é absolutamente irrazoável. Como não é possível também que os Municípios queiram, a partir de uma competência comum estabelecida pela Constituição, tornarem-se repúblicas autônomas dentro do próprio Brasil, fechando os seus limites geográficos, impedindo a entrada de serviços essenciais. Não é isso que a Constituição estabelece.

A Constituição estabelece exatamente a divisão de competências a partir da cooperação - o chamado Federalismo cooperativo - de interesses, da predominância do interesse.

(...)

O que menos precisamos é embates judiciais entre entes federativos para que um queira anular o que o outro fez, ou para que o outro queira sobrepujar o posicionamento dos demais. Temos que afastar esse personalismo ou esses personalismos de diversos entes federativos prejudiciais à condução das políticas públicas de saúde essenciais, neste momento, ao combate da pandemia do covid-19. (BRASIL, STF, 2020).

Ainda, sobre a competência material comum em matéria de saúde, observa Paulo Samico e Renato Toledo Cabral Junior (2020):

parece clara a ratio constitucional em prol de uma atuação coordenada entre os entes da Federação (art. 23, parágrafo único).

Portanto, qualquer ato voltado à adoção de medidas de isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos, bem assim de interdição de atividades e serviços essenciais devem ser partilhadas pelos entes em harmonia.

As competências comuns se relacionam à multiplicação de esforços, e não à subtração de ações entre os entes federativos.

O Ministro Edson Fachin destacou que as regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual e, sim, também, para o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente (BRASIL, STF, 2020). Foi destacado, ainda, que a competência concorrente permite que a União proceda ao estabelecimento de normas gerais, mas sem suprimir o exercício da competência dos demais entes federativos na promoção dos direitos fundamentais.

No voto proferido pela Ministra Rosa Weber, ela destacou a importância internacional do problema, havendo a necessidade de ações coordenadas entre os Estados nacionais, uma vez que reações insignificantes ou ineficazes de um deles, poderia acarretar, na sociedade que permanece globalizada, o comprometimento das iniciativas tomadas pelos outros (BRASIL, STF, 2020). Destacou a Ministra que:

No modelo federativo brasileiro, a autonomia atribuída aos Estados não lhes dá, em absoluto, plena liberdade para o exercício da competência legislativa, sendo-lhes de obrigatória observância as matérias previstas pela Constituição Federal. Embora a competência legislativa concorrente mitigue os traços centralizadores, delineia-se um federalismo de cooperação, com aplicação do princípio da predominância do interesse e dos deveres mínimos de proteção aos direitos fundamentais. (BRASIL, STF, 2020).

Pontuou sobre a importância de cooperação entre os entes federados no combate à COVID-19, destacando a competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal na edição de leis no contexto normativo-constitucional previsto no art. 24, XII, da Constituição Federal.

Na decisão proferida pelo STF, se reafirmou a competência federativa comum para decretar o isolamento social, visando o combate à propagação do coronavírus, tendo os Governadores e Prefeitos autonomia para tomar medidas de restrição de locomoção e definição de atividades essenciais. Reafirmou-se, ainda, a competência legislativa concorrente, isto é, a possibilidade dos entes federativos de legislar e tomar medidas sobre o tema.

5 CONCLUSÃO

Inicialmente, deve ser ressaltado o conceito de competência concorrente, tratando-se daquela que compete, tanto à União, quanto ao estabelecimento de normas gerais, quanto aos Estados, Municípios e Distrito Federal, no tocante às normas suplementares, podendo, ainda, exercer a competência plena, nos casos em que a União não legisle sobre as normas gerais.

Diante disso, entende-se que a discussão levada ao STF, através da ADI nº 6341, que se discutia se a competência para tomar medidas de isolamento, visando o combate à disseminação do vírus causador da COVID-19, serviu para ressaltar àquilo que está previsto em nossa Constituição Federal, quando prevê, em seu art. 24, que é concorrente, a competência para legislar sobre previdência social, proteção e defesa à saúde.

Não se tratou de mudança em nosso ordenamento jurídico, conceder aos governadores e prefeitos a possibilidade de tomar medidas para combate na propagação do vírus. O direito à saúde é direito fundamental de todo cidadão, tratando-se de dever do Estado, como disposto no art. 196 da Constituição Federal.

O enfrentamento a uma pandemia, nas circunstâncias que aconteceram e muito ainda se faz para ser erradicada, na medida do possível, deve se dar de forma cooperativa, entre todos os entes federativos, tendo em vista as peculiaridades de cada Estado, cada Município, não podendo conferir tal responsabilidade somente à um ente federado, como se buscou fazer com a edição da MP nº 926/2020.

Como bem destacado pelo PDT, a centralização de competência, esvazia a responsabilidade constitucional dos demais entes federativos para cuidar da saúde, dirigir o SUS e executar ações de vigilância sanitária e epidemiológica.

Diante disso, entendemos que a MP nº 926 contrariava o texto constitucional, haja vista ser dever comum dos entes federativos a prestação à saúde. As medidas de isolamento, quaisquer que fossem, sempre visam uma única coisa: a manutenção da saúde daquela população.

Desta feita, a ADI nº 6341/2020, serviu, tão somente, para explicitar algo que deveria ser de fácil interpretação pelo Chefe do Poder Executivo, ao editar a mencionada MP, o que deveria ter sido buscado era a cooperação de todos e não a supressão de competências, por divergências ideológicas para o enfrentamento de um inimigo comum e invisível, que nada, aquela época, se sabia a respeito, e pouco ainda se sabe, apesar do transcurso de tempo.

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  1. O termo soberania das províncias está referenciando no artigo 3º do decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889.



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