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Aspectos culturais do compliance nas organizações empresariais multinacionais

Aspectos culturais do compliance nas organizações empresariais multinacionais

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O compliance em multinacionais exige conciliar distintas culturas nacionais.

Resumo: A sociedade passa por um processo de aculturamento que implica em uma mudança de valores dos consumidores atuais, os quais passam a exigir das organizações empresariais um desenvolvimento sustentável, responsável e transparente. Nesse contexto, ganha destaque a temática do programa de compliance nas empresas, que é um conjunto de medidas estabelecidas para o cumprimento das normas legais e regulamentares. O presente trabalho objetiva demonstrar a importância da criação de um compliance multicultural no âmbito das organizações multinacionais, a fim de prevenir riscos e atribuir à empresa uma cultura organizacional ética. Pretende-se destacar a influência da cultura na efetividade dos mecanismos de compliance aplicados às multinacionais, principalmente pela existência de princípios de Direito Empresarial e Constitucional invioláveis, assim como, pela necessidade de adequar os objetivos econômicos da empresa à legislação do país anfitrião.

Palavras-chave: Organizações multinacionais. Compliance. Cultura nacional. Cultural organizacional.


1 INTRODUÇÃO 

O processo da globalização possui um protagonista de maior realce: a organização transnacional. Isso se dá em razão do papel que desenvolve no cotidiano da sociedade, pois seu caráter transfronteiriço permitiu sua sub-rogação no lugar do Estado como negociador em escala global na economia capitalista (KUCINSKI, 1981, p. 4). Nesse contexto, o laissez-faire[3] possibilitou a maximização do potencial econômico das pessoas jurídicas de direito privado (VAGTS, 1975, p. 71) e fomentou sua internacionalização, o que pode ser considerado o ápice do processo de aproximação social, cultural e econômico entre diversas nações do mundo.

Esse fenômeno da aproximação entre nações permite que determinados assuntos adquiram relevância mundial e passem a ser exigidos pela comunidade internacional.

No contexto internacional, em 2015 a ONU elaborou dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para implementação em todo o mundo nos próximos 15 anos. Dentre eles, houve a incorporação da ética empresarial como importante objetivo a ser assumido por seus membros, a fim rechaçar a corrupção e fomentar instituições transparentes e socialmente responsáveis:

Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis (...)

16.5 Reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas

16.6 Desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis[4]

Em cada país a urgência por regular valores como a integridade e a transparência empresarial, surgem por motivações e em épocas distintas. Veja-se que, em diversos outros países, instituições empresariais há muito tempo se submetem à legislação que visa o combate da corrupção internacional, como é o caso da lei britânica BRIBERY ACT e da FCPA dos Estados Unidos.

Nota-se, assim, que a comunidade internacional compreende a enorme desvantagem social e econômica que deriva da corrupção entre os setores privado e público. Motivo pelo qual, empreende esforços para criar meios de prevenir e combater o cometimento de atos de corrupção lato sensu.

No contexto nacional, há também uma crescente conscientização da sociedade no que se refere à exigência por organizações empresariais transparentes, responsáveis e pautadas em um desenvolvimento sustentável. Isso se percebe, por exemplo, quando os consumidores buscam confirmar se o produto que irão adquirir não foi testado em animais, ou se há notícias de origem escrava em sua produção, ou ainda, quando cessam relações com empresas que possuam uma reputação duvidosa no mercado concorrencial.

Essa mudança de valores dos consumidores contemporâneos, em conjunto ao atual cenário brasileiro de imoralidade do setor empresarial, fez com que sociedade almeje muito além da qualidade do produto no momento de escolha entre os concorrentes. Para satisfazer a nova demanda, o programa de compliance tornou-se uma ferramenta eficaz para fins de prevenção de riscos e de um desenvolvimento empresarial ético e transparente.

Em vista disso, diversos autores discorrem acerca dos efeitos benéficos advindos da instalação de mecanismos de compliance ou, ainda, dos custos de sua não implementação.

Quando se trata exclusivamente das multinacionais, o programa é desafiado a conciliar distintas culturas nacionais para desenvolver uma cultura ética organizacional totalmente singular. Desse modo, sem a pretensão de esgotar o assunto, o presente trabalho objetiva analisar os aspectos culturais a serem observados pelos programas de compliance desenvolvidos nas multinacionais, em especial no Brasil.


2 MULTINACIONAIS E BREVE RELATO DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

 A grandiosidade operacional das multinacionais não lhes permite simplesmente buscar a maximização de lucro através de suas subsidiárias, mas sim uma contribuição para com as operações gerais da empresa. Até porque o objetivo da internacionalização, na maioria das vezes, é adentrar em um mercado interno que fornece vantagens produtivas, como a mão-de-obra barata, tecnologia, recursos naturais para exploração e uma intervenção governamental razoável.

No caso do Brasil, não foi apenas a posição oficial de intervenção mínima (PEREIRA, 1976, p. 3) que atraiu tantas multinacionais ao país, mas sim as boas chances de lucro e crescimento em um país propício à exploração comercial.

Em 1981 a quebra de fronteiras já não era novidade, ano em que Kucinski (1981, p.1) alterou trecho do Manifesto Comunista de 1894 de Karl Marx, substituindo, porém, a expressa original capitalismo por multinacional, a fim de demonstrar que os ideais expansionistas a muito tempo faziam parte das intenções dos empresários:

A necessidade de expandir constantemente os mercados para seus produtos persegue as empresas multinacionais através de toda a superfície do globo. Elas precisam estar em toda parte, instalar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todas as direções. (...) industrias que não mais usam materiais locais, mas sim matérias-primas trazidas de lugares remotos, e cujos produtos não são consumidos apenas no país, mas em todos os quadrantes do mundo. No lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção nacional, nós encontramos novas necessidades, que requerem, para sua satisfação, produtos de países e climas distantes. No lugar da antiga reclusão e autossuficiência temos o intercâmbio em todas as direções, a interdependência universal das nações (KUCINSKI, 1981, p.1)

Entretanto, Kucinski (1981, p. 27) aponta que é comum que as empresas, antes de se aventurarem na internacionalização, conquistem o mercado interno do seu país de origem, absorvendo os concorrentes, concentrando capital e, geralmente, monopolizando a produção. Foi por esse caminho que seguiram grandes empresas multinacionais como a ExxonMobil, classificada pela Forbes como a 13º maior empresa do mundo em 2018,[5] companhia que na década de 1960 fazia parte de um cartel composto por mais seis petrolíferas, as quais mantinham interesses econômicos estratégicos em comum para eliminar a concorrência e enriquecer através do domínio do mercado de petróleo (KUCINSKI, 1981, p. 12). Antes fosse, porém, o único caso de truste no mercado multinacional.

Diante do papel que tais empresas possuem no cotidiano da atual sociedade globalizada, emerge o processo de aculturamento social em sua exigência por transparência e ética no setor privado, através de uma conscientização e modificação da mentalidade do mercado, das próprias empresas e da maneira como estas são enxergadas pela sociedade (VENTURINI, 2019, p. 290).

No Brasil, além dos diversos compromissos internacionais de incentivo ao combate à corrupção,[6] a Lei 12.846 em 1º de agosto de 2013 (BRASIL, 2013),[7] também conhecida por Lei Anticorrupção, prevê a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas que venham a perpetrar atos contra a Administração Pública.

E com o intuito de evitar a impunidade da corrupção na esfera privada, desde 2016 tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa alterar o Código Penal Brasileiro,[8] para acrescentar a tipificação da corrupção no setor privado, prejudicial à livre concorrência e, por conseguinte, à sociedade. Prática que advém da existência de conflitos de interesses, em que o interesse do particular se sobrepõe ao interesse da empresa e de sua função social.

A crise institucional no Brasil,[9] principalmente em razão de investigações criminais envolvendo o setor empresarial,[10] em conjunto com a pressão da comunidade internacional, corroborou para que o Brasil se visse diante da necessidade atribuir maior importância à temática.

No que se refere a Lei Anticorrupção, o grande diferencial é o seu caráter preventivo acima do punitivo e a previsão de responsabilização objetiva das pessoas jurídicas, com a punição por ato comissivo ou omissivo e independente de comprovação de culpabilidade, sem considerar sequer a forma societária ou a regularidade empresarial (COUTINHO, 2017, p.19).

A lei é orientada pela ideia da função social (COUTINHO, 2017, p. 13) e transcende a intenção proibitiva de leis penais, haja vista que incentiva a internalização de programas de integridade capazes de modificar a cultura empresarial. Com o intuito de atingir o ponto fraco das empresas, a legislação visa combater atos de corrupção mediante a previsão de severas penalidades econômicas.

Levando em consideração que a instalação de um programa de integridade é mera faculdade, às pessoas jurídicas que o internalizarem com efetividade será garantido o benefício da redução das sanções administrativas. Uma previsão de tamanha relevância, porém, não deixou de prever contracautelas, eis que no momento de verificação as autoridades competentes analisarão a real aplicabilidade das medidas de compliance, ou seja, não haverá redução de penalidade se restar verificado que a empresa possui um programa apenas de fachada.

Aos olhos do Direito Penal a Lei Anticorrupção surge com uma lógica inversa, primeiramente, por possuir um caráter punitivo objetivo, através do qual não se faz necessário que haja a demonstração de dolo[11] e, ainda, porque sequer depende da comprovação de conduta comissiva, pois a responsabilização também se dá pela omissão (COUTINHO, 2017, p.19).

A objetividade da lei é uma peculiaridade que a aproxima mais da racionalidade das normas de proteção ao meio ambiente e à concorrência do que propriamente do Direito Administrativo sancionador e do Direito Penal, (COUTINHO, 2017, p.19).

Assim sendo, um dos grandes desafios de um programa de integridade, é modificar a cultura de companhias desenvolvidas sob manobras antiéticas e moralmente duvidosas. Nesse caso, os mecanismos deverão ser fortes e efetivos o suficiente para reestruturar a cultura corrupta da empresa.

De acordo com o CADE, no âmbito das multinacionais a descentralização é acentuada e um número elevado de pessoas ocupa cargos de administração (gerenciamento de áreas específicas, direção nacional, regional, mundial, etc.).[12] Logo, o desenvolvimento de uma cultura íntegra, que seja efetivamente harmônica e reconhecida por toda a equipe empresarial, merece uma atenção especial.


3 PROGRAMA DE COMPLIANCE NAS MULTINACIONAIS

É diante do atual cenário brasileiro de mudanças culturais, que o compliance corporativo se destaca como uma tentativa de solução ético preventiva.

Com origem no verbo em inglês to comply, compliance é um termo utilizado para designar um conjunto de políticas administrativas e mecanismos minuciosamente elaborados, que visa orientar, evitar, detectar e penalizar fraudes, atos ilícitos e desvios morais. O foco do programa é a prevenção de riscos e a disseminação de uma cultura íntegra, a fim de garantir a conformidade da empresa aos mandamentos legislativos, normativos e éticos.

A complexidade do programa reside no desenvolvimento de uma cultura ético empresarial, pois exige da empresa a manutenção de um raciocínio e de um funcionamento honesto, para que atue em consonância com os valores[13] implementados. Portanto, almeja-se uma harmonia na pessoa jurídica.

Sabe-se que a ética é dinâmica, pois muda conforme a sociedade, a época, os conceitos e até conforme o grupo em que os indivíduos participam (SANTOS, 2015, p. 4). Logo, no cenário empresarial a construção de uma cultura ética exige observância das peculiaridades e características de cada pessoa jurídica seu porte, seus funcionários, suas relações nacionais e internacionais, o mapeamento de seus riscos e até mesmo a região em que é localizada e, de modo algum, podem seguir diretrizes engessadas e padronizadas à todas as empresas.

Coutinho (2017, p. 100) aduz que, mais importante do que os elevados custos para implementação do programa, é analisar seus efeitos. Principalmente no que tange a uma contenção de possíveis gastos futuros, por mais que sua eficácia resida em uma escala de difícil apuração.

O êxito do programa de compliance apenas é mensurável quando existe efetividade fática que, por sua vez, depende da existência de mecanismos eficientes e da correta escolha de subordinação a que o programa será submetido.

O CADE aponta os seguintes benefícios na implementação de um programa de compliance efetivo: (i) prevenção de riscos; (ii) identificação antecipada de problemas; (iii) reconhecimento de ilicitudes em outras organizações; (iv) benefício reputacional; (v) conscientização dos funcionários; (vi) redução de custos e contingências (COUTINHO, 2017, p. 100).

Sob a ótica do ordenamento jurídico brasileiro, a imputação das penalidades legislativas, tanto à pessoa física, quanto à pessoa jurídica, são gravames que podem levar a instituição empresarial ao colapso financeiro. Desse modo, um programa capaz de evitar a prática de ilícitos em nome da empresa, consequentemente diminui o risco de severas e danosas punições econômicas (NEVES, 2018, p. 21).

Já sob o prisma da corrupção privada, um dos motivos para implementar um efetivo programa de compliance, volta-se aos benefícios econômicos fruto dos riscos que foram evitados. Para tanto, Neves (2018, p. 22) ressalta a capacidade do programa em detectar compras superfaturas mediante fiscalização interna que se refere a compra de bens e serviços com preços fixados acima do valor de mercado.

Por seu igual caráter econômico, vale mencionar a utilização do compliance como cumprimento de requisito exigido para determinadas relações contratuais com investidores estrangeiros e com alguns bancos privados principalmente na concessão de empréstimos, como é o caso do BNDES. Portanto, a empresa que investe em um programa de compliance, passa a ser melhor vista pelos investidores, (NEVES, 2018, p. 23) uma vez que lhe atribui maior segurança e estabilidade.

Frisa-se, porém, que a integridade que se almeja vai muito além do mero cumprimento legislativo, abrange a sinceridade e a probidade com que a instituição deve gerenciar seu funcionamento e suas relações contratuais. De modo a se tornar um diferencial competitivo e atribuir à empresa um elemento de extrema importância no atual universo da inadimplência e da irregularidade: a tão desejada segurança.

Seria ingênuo afirmar que a mera internalização de mecanismos de compliance seria suficiente para erradicar toda e qualquer conduta ilícita ou antiética. Mas quando há uma rede de confiabilidade nas relações contratuais, possivelmente a empresa firma relações duradouras e de fidelidade que superam até mesmo variações de preço do mercado (BENEDITO, 2017, p. 8).

Neves (2018, p. 22) afirma, ainda, que conforme as políticas éticas se desenvolvam e se aperfeiçoem, a reputação da empresa funcionará como um filtro natural de seus funcionários, mantendo consigo os talentosos e afastando aqueles com tendências a agir imoral ou irregularmente, independente do patamar hierárquico.

Os mecanismos de compliance podem ser desenvolvidos no âmbito interno de uma empresa ou por terceiros alheios à instituição, contratados para realizar auditorias contábeis e financeiras, ou a contratação de empresas de investigação, que não integram a condição de empregador (COUTINHO, 2017, p. 45).

 No entanto, a transmissão de competência pode ocasionar insegurança e problemas no ambiente trabalho. Coutinho (2017, p. 45) afirma que, ante a existência de lacuna na legislação trabalhista, resta contestável a validade da cessação de vínculos quando a decisão advém de sujeito diferente da figura do empregador, mesmo que decorra do descumprimento de obrigações legais ou de compliance.

Diante da insegurança em inserir um terceiro nas relações contratuais firmadas com a pessoa jurídica, o caminho mais viável e eficaz é o desenvolvimento de um programa de integridade no âmbito interno da empresa e idealizado exclusivamente em concordância com suas necessidades.

3.1 MECANISMOS DE COMPLIANCE APLICÁVEIS ÀS MULTINACIONAIS

Santos aponta cinco dimensões da ética indispensáveis à efetiva disseminação do programa de integridade no ambiente empresarial, quais sejam: sustentabilidade, respeito à multicultura, aprendizado contínuo, inovação e governança corporativa (SANTOS, 2015, p. 25). Acresce-se, ainda, a necessidade de alguns mecanismos regulamentares essenciais à efetividade do programa.

O Código de Conduta trata-se do mentor de toda a organização empresarial, pois é o documento que prevê um conjunto de mandamentos, procedimentos, proibições, valores morais e princípios previamente estabelecidos de acordo com as peculiaridades e riscos da pessoa jurídica, a fim de regular o comportamento de todos aqueles que agem em nome da sociedade ou que com esta se relacionam.

Neves (2018, p. 40) afirma ser necessário que o Código de Conduta informe acerca da existência das leis e normas, estrangeiras e brasileiras, que versem acerca da responsabilização por atos ilícitos empresariais, a fim de que os stakeholders (público alvo da empresa) obtenham conhecimento de suas previsões. Fica, assim, sob a responsabilidade da equipe de compliance a disseminação das informações e valores do código, com auxílio de sistemas de supervisão.

Segundo Neves (2018, p. 50), o Código de Conduta deve conter previsões e conceituações obrigatórias, dentre as quais: (i) pagamentos indevidos; (ii) bens materiais, imateriais e os segredos da empresa; (iii) diversas hipóteses de lavagem de dinheiro; (iv) orientação e correta informação sobre processos licitatórios e demais contratos firmados com o poder público; (v) deve rechaçar o conflito de interesses; (vi) prever o tratamento digno aos funcionários; (vii) e deverá explicar o passo a passo sobre a quem recorrer em caso de dúvidas ou maiores explicações.

É evidente que para qualquer normativo ser bem aplicado, é necessário que seja primeiramente conhecido. Não basta, pois, criar um belo Código de Condutas e guardá-lo na gaveta para quando for solicitado, sob pena de construir um programa de compliance apenas teórico e isento de resultados. Motivo pelo qual, sua efetividade exige a aplicação do binômio: comunicação e treinamentos periódicos educacionais.

A decisão pela incorporação do programa de compliance é um ato unilateral da pessoa jurídica, motivo pelo qual tem como premissa a publicidade e a anterioridade, até mesmo para que as sanções previstas sejam conhecidas, já que serão imputadas apenas às violações posteriores à sua elaboração.

O segundo mecanismo de compliance que merece destaque, é o canal de denúncias, já que a maneira mais segura de descobrir sobre práticas irregulares é através do auxílio daqueles que se encontram mais próximos da ocorrência.

Segundo Lamy (2018, p. 54), whinstleblower é uma expressão que faz referência ao árbitro de jogo, aquele capaz de frustrar manobras ilegais. O termo é utilizado no Direito Empresarial para denominar o sujeito que informa às autoridades competentes que tomou conhecimento de um ato ilícito ou de uma ilegalidade praticada no ambiente empresarial. Tal denúncia, resultará em um processo de investigação e possíveis punições, porém, deve garantir ao denunciante proteção à identidade e as viáveis proteções legais.

O canal de denúncia do whistleblower é considerado por especialistas de compliance como o mais eficaz para revelar condutas indevidas. Também, é considerado mais seguro aos interesses da pessoa jurídica, pois, ao cessar primeiro o conteúdo do reporte, a empresa terá melhor controle os fatos e, consequentemente, poderá decidir com mais cuidado quanto à destinação da informação recebida; além disso, os esforços de conformidade da empresa constituiriam prova de uma política interna comprometida com a integridade e serviriam para habilitá-la aos benefícios legais no caso de eventual envolvimento com atos ilícitos. (LAMY, 2018, p. 55)

A seriedade do canal precisa transmitir segurança, para que aqueles que possuem relação com a empresa se tornem vigilantes de seus valores. De acordo com Lamy (2018, p. 54), é indispensável que haja uma intensa dedicação na implementação do canal de denúncias, para que o local de trabalho não se torne um lugar hostil, em que os trabalhadores possuem medo de a qualquer momento serem denunciados ou de realizarem tais denúncias.

Vale mencionar, por fim, a Governança Corporativa como outro mecanismo necessário à efetividade de um programa de compliance. Trata-se da disciplina responsável por gerenciar e monitorar a empresa, a fim de que os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas[14] se deem em consonância com seus princípios.

Neves (2018, p. 171) aponta uma recorrente situação que demonstra o fracasso no cumprimento das responsabilidades empresariais: a desconsideração da personalidade jurídica. Assim, resta à Governança Corporativa o dever de evitar o referido abuso, com o intuito de preservar a empresa, e, por conseguinte, a equipe de acionistas, quotistas, administradores e até mesmo a própria Administração Pública.

Os mecanismos de compliance são medidas preventivas que desenvolvem ações capazes de prognosticar futuros resultados antiéticos ou ilícitos. Portanto, a prevenção se materializa por meio de técnicas que atuarão de maneira antecipada, para localizar os pontos de riscos e frustrar o cometimento de atos que poderiam prejudicar economicamente a empresa ou sua imagem.

Para tanto, o programa deve ter como base as ocorrências prejudiciais pretéritas, a fim de saber os pontos mais frágeis em que os mecanismos de compliance devem atuar com maior ênfase.

Para implementar normas e mecanismos possíveis de serem verdadeiramente cumpridos e adequados àquele ambiente em específico, faz-se necessário a elaboração de auditorias internas e externas, em que os responsáveis pelo programa compreenderão profundamente a rotina de trabalho de toda a empresa e em todas os seus níveis hierárquicos (NEVES, 2018, p. 34).

Não basta aprovar diversas normas de mitigação de riscos e não acompanhar sua aplicabilidade. Logo, cabe à equipe de gestão de riscos, que podem ser profissionais especializados dedicados ao tema ou equipes multidepartamentais, dependendo do orçamento (NEVES, 2018, p. 34), o dever de garantir o cumprimento e uma clara compreensão das normas de compliance.

A eficiência do programa depende diretamente do comprometimento integral da liderança em lhe atribuir a importância e seriedade necessária, bem como, garantir que seja aplicado a todos os membros da empresa, incluindo os mais altos escalões:

Significa, ainda, o grau de comprometimento da liderança da empresa com os princípios e implementação, desenvolvimento e manutenção da ética nos negócios. O presidente da organização, os diretores e todas as pessoas que tem poder de decisão e liderança no negócio devem estar efetivamente comprometidos com os referidos princípios. Liderar pelo exemplo é algo que se afirma de modo reiterado em compliance. (NEVES, 2018, p. 30)

Haverá um contrassenso se o programa de integridade for implementado sem apoio da liderança, visto que a seriedade dele ficará comprometida. Como a diretoria e os profissionais de compliance poderão exigir honestidade e moralidade dos trabalhadores e fornecedores, se a própria liderança da empresa age de maneira diversa ou não o apoia?

Além do mais, para que seja um corpo sólido e levado a sério pelos membros da empresa, as investigações e punições não podem depender integralmente da boa vontade da liderança em lhe conceder dinheiro ou não. Assim, Neves (2018, p. 31) afirma que o expresso e transparente comprometimento dos mais altos escalões, deve combinar-se à garantia de um orçamento específico direcionado ao programa de compliance, tanto para lhe atribuir autonomia, quanto para reafirmar sua importância.

Evidente, pois, que o efetivo compliance é uma construção a longo prazo, haja vista que envolve a disseminação de uma cultura organizacional ética. Mas é muito mais barato e efetivo do que ficar refém da insegurança e perdas econômicas advindas de irregularidades que não foram evitadas.


4 ASPECTOS CULTURAIS NECESSÁRIOS AO EFETIVO COMPLIANCE

É pela ausência de uniformização entre Estados soberanos que se faz necessário, nas multinacionais, que o programa de compliance adeque-se ao país anfitrião, até mesmo para não prejudicar a eficiência operacional da empresa. Ao se instalar em ambientes estrangeiros com os quais possui pouca familiaridade, os riscos são indefinidos, pois passa a lidar com um governo e com uma cultura distinta de sua nação de origem (VAGTS, 1975, p. 69).

A cultura é o conjunto de conhecimentos adquiridos através do convívio social, assim como as manifestações intelectuais e artísticas, que caracterizam determinada sociedade e que resultam em normas, tradições e valores. A partir dessa característica histórica e educacional, é possível identificar o modo como determinada nação vê o mundo e como seus indivíduos se portam em grupo.

Já a cultura de uma empresa, é o que lhe atribui singularidade no ambiente concorrencial e o que define seu modus operandi, pois afeta diretamente o comportamento de seus agentes. Essa cultura organizacional, trata-se do conjunto de hábitos e crenças estabelecidos através de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhadas por todos os membros da organização (ÁVILA, 2006, p. 4).

A essência da cultura de uma empresa é expressa pela maneira como ela faz seus negócios, a maneira como ela trata seus clientes e funcionários e o grau de autonomia ou liberdade que existe em suas unidades ou escritórios e o grau de lealdade expresso por seus funcionários em relação à empresa. A cultura organizacional representa as percepções dos dirigentes e funcionários da organização e reflete a mentalidade que predomina na organização. Por esta razão ela condiciona a administração das pessoas (ÁVILA, 2006, p. 4).

Por serem as multinacionais estruturas de poder com história, tradição e cultura própria, seu funcionamento e objetivos nem sempre coincidem com os valores da sociedade em que está inserida (KUCINSKI, 1981, p.19). Porquanto, a subsidiária precisa de liberdade para lidar com a diversidade cultural e não pode ficar à mercê do nacionalismo impositivo, a fim de que os ideias políticos, econômicos, ambientais, morais e demais aspectos ligados à cultura de um povo, não se tornem uma barreira ao eficiente desenvolvimento da empresa.

Inclusive, atrair executivos nacionais do país anfitrião pode ser uma boa opção para driblar a resistência do governo ou da própria população. Aproveitando-se, inclusive, do fato de que não apenas a tecnologia, mas a mão de obra capacitada também está dispersa pelo mundo (ÁVILA, 2006, p. 64).

A importância de incorporar a cultura nacional à cultura organizacional dá-se pelo fato que aquela possui uma influência naturalmente muito maior sob os funcionários do país anfitrião. O impacto da cultura nacional no comportamento dos membros da empresa é muito mais concreto, eis que o desenvolvimento histórico de uma nação, torna a cultura nacional singular dentre as demais (FERRAZ, 2011, p. 4).

Evidente, pois, que a efetividade do compliance em multinacionais depende de uma ponderação de valores culturais que chegue a um denominador comum. Por mais que a matriz queira impor seus valores às suas subsidiárias, a força da cultura nacional sob os colaboradores é predominante, motivo pelo qual é tão importante incorporá-la à cultura ética organizacional para fins de efetividade do programa.

Assim como há resistência no setor empresarial em aceitar o compliance, há também resistência em acolher os traços de outra cultura. Razão pela qual, o programa precisa de autonomia para utilizar tais características culturais em prol do melhor funcionamento de seus mecanismos. Até mesmo para aflorar nos funcionários da subsidiária um sentimento de cultura acolhida, ou até mesmo priorizada (FERRAZ, 2011, p. 4).

Por mais que a cultura seja extremamente dinâmica, sua transformação é complexa porque, naturalmente, varia de acordo com os acontecimentos sociais, econômicos e políticos. Em vista disso, o programa de compliance precisa ser capaz de acompanhar sua dinamicidade com o decorrer do tempo (FERRAZ, 2011, p. 9).

Porém, em multinacionais com uma cultura ética verdadeiramente enraizada, há um conjunto de princípios e valores que são invioláveis independente da cultura a que venha se inserir. Esses valores fundamentais surgem de um ponto em comum necessário à toda organização multinacional e de caráter obrigatório, tornando-se, assim, uma característica inerente à cultura da integridade empresarial.

Isto ocorre justamente pela importância mundial que tais princípios atingem, ou deveriam atingir, haja vista que servem para garantir a sobrevivência empresarial em observância ao mínimo atrelado aos valores morais, aos direitos humanos e ao desenvolvimento de uma sociedade sustentável em Estados soberanos. É em respeito à própria realidade global que se faz necessário a existência de tais valores invioláveis, os quais dificilmente irão intervir de maneira negativa na sociedade anfitriã.

Por mais abstrato e idealizador que possa parecer, esses valores supremos e invioláveis são mais fáceis de vislumbrar quando existe um efetivo programa de compliance na matriz. Quando a ética faz parte da cultura empresarial a ponto de fazer parte de sua história, não importará onde a empresa se instale ou com quem venha a ter relações, pois se manterá íntegra mesmo diante de situações que coloque em xeque seus valores éticos.

A conformidade normativa pode ser considerada um desses valores, pois na atual configuração dos Estados-Nações, os países anfitriões possuem legislação nacional obrigatória, mesmo que não esteja integralmente nos moldes do sistema do civil law. Portanto, em respeito ao Estado soberano, a subsidiária da multinacional deverá se organizar e funcionar em consonância com a legislação interna, agindo dentro dos limites que lhe são impostos.

O cumprimento normativo no Brasil não limita-se à observância das leis desenvolvidas pelo Poder Legislativo, mas também ao cumprimento: (i) das normas morais;[15] (ii) dos regulamentos atinentes às pessoas jurídicas ou suas atividades como é o caso das normas de competência do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica); (iii) das regulamentações da Organização Mundial do Comércio (OMC)[16] a que o Brasil é membro; (iv) demais tratados e acordos que é signatário.

A boa reputação também pode ser apontada como um valor inviolável de uma multinacional íntegra. Quando a empresa desenvolve mecanismos de compliance efetivos, a prevenção de riscos garante que os negócios aconteçam de maneira segura e transparente, reafirmando, assim, sua responsabilidade social.

O desenvolvimento empresarial sustentável, através do máximo respeito ao meio ambiente, pode ser considerado um valor que está se tornando inviolável no novo cenário mundial da escassez. Mesmo que em cada país anfitrião os mencionados valores sejam exercidos de modo distinto, não perdem sua importância. 

Porém, do mesmo modo, faz-se necessário que alguns valores e princípios da multinacional sejam flexíveis e passíveis de abdicação, para fins de adequação à realidade nacional e de garantia de um desenvolvimento lucrativo em outros países.

É o caso do princípio da irredutibilidade salarial, que pode se chocar com a busca por mão de obra barata em países periféricos. Logo, a quantia paga aos funcionários da matriz, não interfere no valor pago aos funcionários das subsidiárias, até mesmo para que haja adequação ao mercado concorrencial do país anfitrião:

Um trabalhador da Ford nos Estados Unidos recebe 11 dólares por hora de trabalho, duas vezes mais do que recebe um trabalhador da mesma empresa no México ou na Espanha, e dez vezes o que recebe em média um trabalhador da Ford em São Paulo. Ou seja, o trabalhador paulista da fábrica Ford, em média, precisa trabalhar dez horas para ganhar aquilo que em uma hora ganha seu companheiro norte-americano. Em graus variados, essa discrepncia se repete em todos os estudos comparativos de salários de trabalhadores de unidades diferentes de uma mesma empresa sediada em países diversos. E essa está sendo cada vez mais a razão pela qual as multinacionais procuram instalar unidades produtivas em países periféricos - ao passo que nos primórdios da multinacionalização era a disputa por matérias-primas, principalmente, que levava empresas a criar subsidiárias. (KUCINSKI, 1981, p. 40)

Mesmo que a multinacional não concorde, deve prevalecer o respeito e a soberania à determinados aspectos culturais, é o caso da opção religiosa e das vestimentas comumente utilizadas na região, como a burca para as mulçumanas e o kilt para os escoceses.

Sejam próximos ou distantes geograficamente, o país da matriz e o país anfitrião tendem a ser diferentes culturalmente, mesmo que coincidam em alguns pontos. E é nessa distinção que o programa de compliance da subsidiária irá focar.

O respeito às diversas culturas deve se materializar no dia a dia da empresa, com respaldo em expressa previsão no regulamento, para garantir a efetividade do programa em qualquer contexto social e para tratar a diversidade cultural de forma adequada de modo a potencializar os benefícios que ela pode trazer (ANDRADE et al., 2016, p. 3625).

Logo, o desenvolvimento da cultura ética de prevenção de riscos deve ocorrer em consonância à cultura local. A fim de não proibir condutas que aquela sociedade sequer pratica, ou deixar de penalizar práticas ilegais frequentes naquele meio. Sempre em consonância, porém, com os valores invioláveis da multinacional.

No caso do Brasil, por exemplo, é importante que o programa exclua o costume tradicional gerencial, que centraliza decisões até níveis hierárquicos elevados, com clara incompatibilidade entre responsabilidade e autoridade (VIDEIRA, 2017, p.3), pois a função social da empresa é muita maior que a vontade individual da administração.

Mesmo que independente e autônomo, o programa de compliance mantém-se como membro integrante de uma atividade econômica com interesses próprios, ou seja, no âmbito da multinacional deve trabalhar em prol da conformidade de seus interesses econômicos às regras e aos valores do país anfitrião.

4.1 ANÁLISE DOS CÓDIGOS DE CONDUTA DE MULTINACIONAIS

A fim de tornar perceptível a diferença cultural entre organizações empresariais de países distintos, é oportuno a análise dos Códigos de Conduta das seguintes empresas: (i) VOTORANTIM S.A fundada em 1933, a empresa multinacional brasileira opera no setor de materiais de construção e possui sede em São Paulo/SP, Brasil; (ii) TYSON FOODS, INC fundada em 1931, a multinacional estadunidense opera no setor da indústria alimentícia e possui sede em Springdale, Arkansas, EUA.

No que se refere ao tema dos presentes, cortesias ou hospitalidades oferecidas aos fornecedores, clientes ou terceiros, geralmente o Código de Conduta limita tais práticas através de expressas previsões permissivas e proibitivas. A limitação varia de acordo com a cultura do local em que os negócios se desenvolvem, a fim de evitar o recebimento de vantagem indevida ou práticas de corrupção.

Quanto ao Código de Conduta da empresa Votorantim, aborda a temática de maneira clara e incapaz de permitir diferentes interpretações. Primeiramente, proíbe expressamente o recebimento de brindes, hospitalidade e entretenimento, com exceção apenas aos brindes institucionais de valor insignificante, como canetas, cadernos e semelhantes (VOTORANTIM, 2017, p. 52). Inclusive, limita o próprio conceito de brindes institucionais, assim considerados aqueles que exibem logotipos da empresa (VOTORANTIM, 2017, p. 52).

Frisa-se, que a única ressalva no referido tema ocorre com relação aos convites para participação em cursos, os quais somente poderão ser aceitos mediante a aprovação formal do gestor/diretor (VOTORANTIM, 2017, p. 52) e após o devido conhecimento do setor de compliance.

Já o Código de Conduta da empresa Tyson Foods, deixa claro o que deve existir por detrás das possíveis trocas de presentes e hospitalidade: fins legitimamente comerciais (TYSON FOODS, 2013, p. 15). E enquanto representante da empresa, o colaborador: (i) não pode receber quaisquer valores monetários ou equivalentes; (ii) não pode receber ou dar presentes ou itens de hospitalidade à funcionário público; (iii) e pode receber ou dar presente ou itens de hospitalidade, desde de que não extravagante, para partido não governamental apenas quando existir finalidade unicamente comercial (TYSON FOODS, 2013, p. 15).

O Código da Tyson também prevê perguntas e respostas para prováveis dúvidas dos funcionários, colaboradores ou quaisquer interessados. Dentre as quais, explica a diferença entre presente e hospitalidade; quem é funcionário público; como e quando é necessário divulgar a troca de presentes ou itens de hospitalidade.

Por mais que haja previsão de situações permissivas e proibitivas, o Código da Tyson mantém como premissa a construção de uma forte integridade no meio empresarial, ao mesmo tempo que exige reiteradamente respeito e observância ao regulamento, a fim de evitar atos de corrupção pública e/ou privada:

Presentes e hospitalidade não são apropriados se criarem uma obrigação, colocarem-no em uma situação em que você parece tendencioso ou quando houve a intenção de influencia em uma decisão de negócio. Devemos evitar o aparecimento de decisões de negócio tomadas com base em presentes ao invés de basearem-se na qualidade e valor dos produtos e serviços (TYSON FOODS, 2013, p. 15).

É notável, pois, quão didático é o Código de Conduta da Tyson, que possui linguagem simples e detalhada, a fim de que todos realmente compreendam como agir em determinadas situações. Inclusive, caso persistam as dúvidas após a leitura do Código, o leitor encontra informações sobre quem contatar, acrescido de um pequeno fluxograma resumo que orienta quem são os responsáveis por responder as perguntas sobre políticas da empresa, seja na falta de um gestor imediato, seja pela preferência por outro responsável.

Por fim, no desenrolar do Código a Tyson deixa clara a existência de subordinação do programa de compliance ao setor jurídico. Uma característica que não é, necessariamente, obrigatória ao seu funcionamento. Porém, sem dúvidas um auxílio jurídico aos mecanismos de compliance pode garantir efeitos satisfatórios, eis que se entrelaçam em sua finalidade de conformidade legislativa.

É possível presumir que, havendo observância aos princípios e valores impostos, na Tyson o assunto pode ser flexibilizado. Ao passo que, o Código da Votorantim proíbe incisivamente a aceitação de quaisquer brindes, hospitalidades ou entretenimentos que não se enquadrem em sua única hipótese de aceitação. Resta evidente, assim, que as previsões de ambos os Códigos se distinguem em limitação.

 Essas distinções decorrem do cenário cultural em que cada empresa está inserida. No caso da empresa brasileira, optou-se por limitar de tal maneira a troca de cortesias, que sequer deixou brechas para interpretações outras, a fim de garantir a inocorrência de práticas de corrupção ou recebimento de vantagem indevida.

Mais que as diferenças culturais, importa frisar as semelhanças, ou seja, os princípios invioláveis ligados à própria essência do programa de compliance, dentre os quais, o mais evidente e perceptível é o cumprimento normativo/legislativo. No desenvolver de ambos os Códigos analisados, a exigência pelo cumprimento da lei se firma como uma norma necessária e obrigatória em qualquer país que a empresa atue, assim como em qualquer situação que envolva a pessoa jurídica.

O Código da Tyson bem desenvolveu o cumprimento legislativo em consonância ao país anfitrião como um valor inviolável, veja-se:

Atuamos em vários países do mundo. Respeitamos as diferentes culturas e cumprimos as leis locais naqueles países. Como as leis e regulamentações alteram-se, o nosso Código será revisado para cumprir as alterações quando possível. Quando há diferenças entre o Código e a lei ou costume local, você deverá aplicar o que estabelece o mais alto padrão. Uma situação poderá ocorrer quando as leis de um país entrarem em conflito com o nosso Código. Se você encontrar tal conflito, consulte o site das políticas internacionais para revisar a política aplica ao seu país ou entre em contato com o Departamento Legal (TYSON FOODS, 2013, p. 5).

Bem como as empresas analisadas, qualquer outra organização empresarial que expanda seus negócios pelo mundo, não possui apenas o dever de sujeitar-se às leis e regulamentos do país anfitrião. É necessário efetuar um real comprometimento e aprimoramento aos termos de padrões e práticas internacionais, como os princípios do Pacto Global das Nações Unidas, a Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas, entre outras melhores práticas de governança (VOTORANTIM, 2017, p. 13).

Agir em conformidade com os preceitos éticos pode, inclusive, significar a saída de uma empresa de determinado país. Por exemplo, uma multinacional instala uma subsidiária em determinado país em que a corrupção faz parte da cultura das empresas, que praticam atos como a sonegação de impostos. Se a multinacional possui uma verdadeira cultura íntegra, não poderá agir do mesmo modo que as demais empresas. Nesse caso hipotético, caso não consiga se firmar no mercado concorrencial, ante a desvantagem financeira perante as demais que não pagam todos os impostos, mais vale a empresa se retirar desse país, do que se corromper para permanecer no mercado.

Portanto, é essencial que haja observância às particularidades culturais do país anfitrião para efetivamente evitar danos passíveis de ocorrer àquela empresa. A multinacional deve desenvolver um programa de compliance específico para a subsidiária, em consonância com suas peculiaridades, características e riscos próprios, a fim de evitar possíveis conflitos normativos ou culturais.


5 CONCLUSÃO 

O fenômeno da conexão entre nações possibilita que certos assuntos ganhem relevância internacional. Dentre os quais, destaca-se a mudança de percepção social e da mentalidade do próprio mercado empresarial, pois cresce a exigência por empresas transparentes, íntegras e sustentáveis.

Por mais que a mudança cultural no contexto brasileiro seja um procedimento lento, que decorre de escândalos envolvendo empresas e o setor público, é também um procedimento constante que merece atenção.

Em vista disso, ganham realce diversas normas do cenário internacional e nacional que pretendem incentivar o desenvolvimento de empresas éticas, a redução da corrupção em face da esfera pública e privada, bem como, a diminuição de crimes concorrenciais e lavagem de dinheiro.

Ante esse procedimento de aculturamento social, os mecanismos de compliance destacam-se por seus diversos efeitos positivos de conformidade à moralidade e ao cumprimento legislativo, pois trata-se do meio utilizado pela pessoa jurídica para implantar uma cultura de prevenção de riscos.

O programa de compliance possui diversos mecanismos essenciais à sua efetividade, como o Código de Conduta, o canal de denúncias e a Governança Corporativa.

O Código de Conduta é o detentor de todas as previsões regulamentares da organização empresarial, assim como dos procedimentos, princípios, proibições e permissões. Tendo em vista a capacidade de regular e delimitar o comportamento dos membros da empresa, é também o responsável por orientar o futuro dos novos contratos e por disseminar uma cultura organizacional íntegra.

Por ser o mentor da empresa, além de prever os mecanismos atinentes ao programa, abordará situações preventivas para evitar práticas ilícitas ou irregulares, o que decorrerá de um completo mapeamento dos riscos latentes na empresa. A aplicabilidade do Código, porém, não pode ficar vinculada a nenhuma condicionante, pois sua eficácia será proporcional a autonomia e independência que lhe é atribuída.

O canal de denúncias, por sua vez, refere-se a ferramenta disponibilizada aos membros da empresa para que sejam reportados relatos, ou meras suspeitas, de atos ilícitos ou irregulares. A partir da denúncia, surgem três deveres à equipe de compliance: facultar ao denunciante o anonimato, garantir proteção contra represálias e, por fim, a concessão de prazo razoável para informar ao denunciante sobre as providencias tomadas.

Além de incentivar o engajamento geral em prol da vigilância e cuidado para com os valores e princípios da empresa, o canal de denúncias é um mecanismo de prevenção de riscos altamente proveitoso, pois resultará em investigações com o condão de frustrar manobras ilegais e garantir a aplicação real do compliance.

Por mais que no Brasil haja tipificação apenas de atos de corrupção praticados em face da administração pública, a efetividade do compliance depende também da extensão de sua punibilidade. E sendo o canal de denúncias um meio eficaz para a revelação de violações, evita-se prejuízos financeiros decorrentes da criação de cartéis, realização de compras superfaturadas, práticas de suborno, pagamento de propinas, crimes concorrenciais ou, ainda, da lavagem de dinheiro.

Já a Governança Corporativa, trata-se do sistema responsável por colocar em prática os princípios da empresa, haja vista que é direcionada às relações de toda a liderança, seja na figura de seus sócios, diretores, administradores ou demais membros do alto escalão. É o responsável por gerenciar e monitorar toda a organização empresarial, desde a elaboração de recomendações até a efetiva aplicação de um modelo de gestão compatível com os princípios da empresa.

Mas é evidente, porém, que a exigência por transparência e integridade não se restringe às empresas nacionais. E é no cenário multicultural que a efetividade do compliance torna-se um desafio.

As multinacionais, por possuírem uma maior descentralização de poder e um maior número de agentes de culturas distintas, desafiam o programa de compliance a conciliar diferentes culturas para desenvolver uma singular cultura ética e práticas gerenciais efetivas.

Embora a subsidiária naturalmente herde interesses e características próprias da cultura da matriz, os mecanismos de compliance devem priorizar a incorporação de traços da cultura nacional, haja vista sua maior influência e impacto nos comportamentos dos atores do país anfitrião.

Um diferencial necessário ao programa de compliance em uma subsidiária, é o dever de conciliação entres os interesses econômicos da multinacional e os valores culturais do país anfitrião. Portanto, é importante garantir que o cumprimento da legislação não impeça a empresa de atingir seus fins econômicos.

Frisa-se, que a integridade atribuída à empresa através dos mecanismos de compliance é, em realidade, muito maior que o próprio compliance. No entanto, para viabilizar essa nova cultura é necessário garantia de autonomia ao programa, proibindo qualquer forma o esvaziamento de poder, sem perder de vista que permanece membro integrante de uma atividade econômica com interesses próprios.

Por mais diferente que seja um país do outro, por mais diferente que seja uma cultura da outra, existe um conjunto de princípios e valores que são invioláveis independente do país que a multinacional atue, pois são inerentes ao programa de compliance e de seu caráter ético preventivo. Dentre tais valores fundamentais, ressalta-se o dever do cumprimento legislativo. A própria ideia de compliance advém de conformidade, de modo que é contraditório e inviável a instalação de uma multinacional que não respeite o regime jurídico do país anfitrião.

Mas há também os valores flexíveis, aqueles responsáveis por permitir que o programa de compliance desenvolva a cultura organizacional em consonância com a cultura do país anfitrião. 

Portanto, a intenção do compliance nunca será reprimir, mas garantir que os interesses econômicos das multinacionais sejam alcançados através do cumprimento normativo, da boa reputação da empresa no mercado e do respeito às multiculturas.


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Abstract: Society has been through a procces of acculturation, which results on changes related to consumers values, who start to demand from business organizations a sustainable development, both responsible and transparent. Within this context, the compliance program, which consists in a group of measures taken in order to facilitate the obedience of the legal and regulatory rules, is on the spot. This study aims to demonstrate the importance of the establishment of a multicultural compliance system within multinational companies, in order to prevent risks and undertake an ethic organizational culture. It is also an objective to highlight the influence of culture in the effectiveness of compliance systems applied by multinational corporations, mainly due to the existance of principles of Corporative and Constitutional laws which are unbreakable, as well as the need to adapt the economical objectives of the company to the legislation of the host country.

Keywords: Multinational Companies. Compliance Program. National culture. Organizational culture.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CZELUSNIAK, Vivian Amaro; WISTUBA, Fernanda Bueno. Aspectos culturais do compliance nas organizações empresariais multinacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6778, 21 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95345. Acesso em: 5 maio 2024.