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Responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional

Responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional

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A responsabilidade do Estado pela demora na prestação jurisdicional pode exsurgir independentemente de culpa, conforme o critério objetivo de imputação, ou com esteio na culpa anônima do serviço.

Sumário: 1 Introdução. 2 Aspectos gerais da responsabilidade civil do Estado; 2.1 Breve retrospecto histórico; 2.1.1 Teoria da irresponsabilidade; 2.1.2 Teorias civilistas; 2.1.2.1 Teoria dos atos de império e atos de gestão; 2.1.2.2 Teoria da culpa civil; 2.1.3 Teorias publicistas; 2.1.3.1 Teoria da falta do serviço; 2.1.3.2 Teoria do risco administrativo; 2.1.3.3 Teoria do risco integral; 2.2 Princípios fundamentais da responsabilidade civil do Estado; 2.3 Responsabilidade civil do Estado no direito comparado: o sistema francês; 2.4 A responsabilidade civil do Estado à luz da Constituição Federal de 1988; 2.5 Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal; 2.5.1 Culpa da vítima; 2.5.2 Culpa de terceiro; 2.5.3 Força maior; 2.5.4 Estado de necessidade; 2.6 Ação regressiva e denunciação da lide; 3. Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais; 3.1. Contextualização da função jurisdicional e sua caracterização como um serviço público; 3.2. Principais argumentos contrários à responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais e sua respectiva refutação; 3.2.1 Soberania do Poder Judiciário; 3.2.2 Incontrastabilidade da coisa julgada; 3.2.3 Demais argumentos: teor e inconsistência; 3.3 Atividades judiciárias danosas; 3.3.1 A questão do tempo no processo; 3.3.2. Demora na prestação da tutela jurisdicional; 4 Conclusão; Referências bibliográficas


Resumo: O presente trabalho consiste num estudo a respeito da responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional, procurando analisar seus principais aspectos, num esforço direcionado a identificar as linhas mestras que definem os contornos do instituto na atualidade. Para tanto, o ponto de partida da pesquisa será a responsabilidade civil do Estado, oportunidade em que foram feitas considerações gerais acerca da matéria, percorreu-se, a passos largos, o seu respectivo histórico e enfocado seu tratamento legal no ordenamento jurídico brasileiro, além de ser tecidas algumas considerações sobre o disciplinamento da questão no sistema francês. Referida etapa, por sua vez, abriu o caminho para que se fosse possível adentrar, de um modo específico, no tema da pesquisa, que mereceu, num primeiro momento, considerações sobre a função jurisdicional, que foi devidamente contextualizada perante a sistemática constitucional vigente. A seguir, os argumentos contrários à responsabilização do Estado por atos jurisdicionais foram devidamente expostos e rebatidos, sendo o trabalho finalizado pelo tratamento específico da demora na entrega da prestação jurisdicional, após uma breve análise da questão do tempo no processo, tendo por escopo demonstrar que a resistência à admissão da responsabilidade civil estatal por essa falha no serviço judicial não merece acolhimento perante a realidade brasileira.

Abstract: The present work consists of a study about the civil responsibility of the State for delay on the jurisdictional rendering, looking for to analyze its main aspects, in a directed effort to identify to the lines masters that define the contours of the institute in the present time. For in such a way, the starting point of the research was civil responsibility of the State, chance where were done general considerations about the subject, covered, in wide steps, its historic, and tackled its legal treatment at the Brazilian legal system, farther had been done some considerations about the treatment of the question in the French system. Related stage, in turn, opened the way so that it was possible to go inside, in a specific way, in the subject of the research, that deserved, at a first moment, considerations about the jurisdictional function, that duly had been contextualizated according to the constitutional systematic. To follow, the main arguments raised in favor of the irresponsibility of the State for jurisdictional acts had been displayed and struck, being the work finished with an exposition of the specific treatment of the delay on the jurisdictional rendering, having for target to demonstrate that the resistance to the admission of the state civil responsibility for this fault in the judiciary service doesn’t deserve refuge in the Brazilian reality.


Palavras-chave: Responsabilidade civil, Estado, demora, prestação jurisdicional.

Key-words: Civil responsibility, State, delay, jurisdictional rendering.


1. Introdução

          O tema da responsabilidade civil do Estado vem sofrendo, na produção jurídico-doutrinária, um elastecimento de suas fronteiras, justificado, principalmente, pelo aumento da intervenção estatal na esfera privada dos jurisdicionados. Com a solidificação do denominado Estado Social e a crescente busca pelos ideais de justiça social, pela minimização das desigualdades e garantia de acesso à Justiça, o instituto da responsabilidade civil do Estado sofreu uma das mais notáveis evoluções já verificadas na ciência jurídica, tudo para acompanhar essa transição do Estado Liberal para o Estado Social, abandonando a noção inicial de completa irresponsabilidade e chegando a admitir-se uma responsabilização apurada segundo critérios objetivos.

          Nessa nova conjuntura, a função jurisdicional assume importância ímpar na concretização dos objetivos sociais, razão pela qual seu exercício deve ser pautado pela busca de qualidade, eficiência e agilidade.

          É certo que alternativas como a arbitragem, instituída pela Lei n.º 9.307/96, e a recente desjudicialização de procedimentos como inventário, separação e divórcio consensual trazida pela Lei n.º 11.441/07 constituem caminhos conducentes a uma menor dependência da máquina jurisdicional. Contudo, por razões de diversas ordens, dentre as quais podem ser destacadas as de cunho econômico e até mesmo culturais, a realidade demonstra que a procura pelo Poder Judiciário, que pode ser considerado uma espécie de "muro das lamentações" da sociedade, sofreu – e vem sofrendo – considerável recrudescimento, o que vem a ratificar sua singular importância para a pacificação social.

          Contudo, por mais cristalizada que se apresente a importância da missão do Poder Judiciário de fazer reinar a Justiça, não se pode olvidar que um dos maiores obstáculos à realização dessa nobre destinação consiste no atraso na entrega da prestação jurisdicional, decorrentes, dentre outros motivos, da insuficiência da magistrados e servidores para fazer frente ao excesso de demandas, bem como dos inúmeros artifícios processuais à disposição dos litigantes, de tal sorte que a análise em torno da obrigação de indenizar os danos decorrentes da atividade jurisdicional morosa mostra-se tarefa de inegável relevância, mormente à luz da disposição contida no art. LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, que consagrou como direito fundamental a razoável duração do processo.

          Em conseqüência, o tema é inspirador de acirradas divergências, tanto entre estudiosos do Direito, como também no âmbito jurisprudencial, no qual a caminhada rumo ao rompimento da resistência em admitir a responsabilização do Estado por atos jurisdicionais prossegue lentamente, revelando um descompasso entre a evolução teórica do instituto e a realidade fática da reparabilidade de danos decorrentes da atividade jurisdicional.

          Destarte, a relevância da problemática circunscrita ao assunto, sucintamente exposta linhas acima, aliada a sua atualidade mostram-se como fatores de inegável estímulo ao presente estudo, o qual, entretanto, não tem – e nem poderia ter – a pretensão de resolver todos os problemas afetos à responsabilidade civil do Estado pelo atraso na entrega da prestação jurisdicional, muito menos apresentar conclusões que sejam pacificamente aceitas.

          Feitas essas considerações, o trabalho principiará por um estudo do instituto da responsabilidade civil do Estado, onde se indagará a respeito de sua evolução histórica, disciplinamento legal, fundamentos, cuidando-se, ainda que superficialmente, de se proceder a uma análise em torno das excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal, da denunciação da lide do agente público e da ação de regresso, como forma de preparação ao enfrentamento do tema propriamente dito.

          Na referida etapa, por sua vez, primeiramente tratou-se de contextualizar a função jurisdicional e a figura do magistrado, procedendo-se, a seguir, a uma verificação da consistência dos argumentos erigidos em prol da irresponsabilidade estatal por atos do magistrado, para que, por derradeiro, fosse examinada a hipótese de reparação por conta da demora na prestação jurisdicional, que foi devidamente precedida de considerações acerca da problemática tempo versus processo.

          Eis, em linhas gerais, os contornos da presente monografia, que se desenvolve nos tópicos seguintes.


2 Aspectos gerais da responsabilidade civil do Estado

          Fachin (2001, p. 7-9), ao tecer seus primeiros apontamentos sobre a responsabilidade civil do Estado, relembra que

          "O Estado, realidade complexa, está presente na vida de cada um. Pode representar a salvaguarda dos valores mais caros da pessoa humana, mas, ao reverso, pode se constituir também no ‘carrasco’que suprime ideais, sonhos e até mesmo a própria vida humana [...] o Estado desempenha uma complexa gama de atividades [...] que pode interferir, sob as mais variadas formas, na vida de cada pessoa."

          Dessa forma, o atuar estatal traz implícito o problema da responsabilidade pelos danos dele decorrentes, vez que o Poder Público, como qualquer outro sujeito de direitos, nos dizeres de Bandeira de Mello (1980, p. 252) "pode vir a se encontrar na situação de quem causou prejuízos a outrem, do que lhe resulta a obrigação de recompor os agravos patrimoniais oriundos da ação ou abstenção lesiva." Aliás, ainda de acordo com o escólio do referido autor (1980, p. 253) "Um dos pilares do moderno direito constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, ao quadro da ordem jurídica, de tal sorte que a lesão aos bens jurídicos de terceiros engendra para o autor do dano a obrigação de repará-la."

          Cumpre, porém, antes de se avançar no tema, fazer menção à seguinte advertência, trazida por Serrano Júnior (1996, p. 47): "[...] diferentemente do que ocorre com as pessoas físicas ou jurídicas de natureza privada não prestadoras de serviço público, a responsabilidade do Estado é regida por princípios e normas próprios, cuja natureza é de direito público."

          Desse modo "a responsabilidade civil estatal não está somente disciplinada pelo direito civil, mas, principalmente, pelo direito público, ou seja, direito constitucional, direito administrativo e direito internacional público" (DINIZ, 2002, p 542), em que pese tenha no direito civil o manancial de inúmeros conceitos e elementos indispensáveis à sua estruturação.

          Comporta, ainda, o tema ora enfrentado, delimitações de três ordens, quais sejam, o campo de incidência da responsabilidade estatal, o tipo de responsabilidade, bem como os atos que lhe dão ensejo.

          No que tange à primeira, Dergint (1994, p. 30) observa que "relativamente ao Estado, apenas existe a responsabilidade civil", excluindo a responsabilização criminal nos seguintes termos (1996, p. 31):

          "Ainda que através de lei em sentido estrito, não se pode, todavia, logicamente conceber, no âmbito do Direito Interno, a responsabilização criminal do Estado (notadamente da União), justamente a quem compete, com seu poder soberano, segundo regras por ele mesmo prescritas, prevenir e reprimir os crimes, mediante penas cominadas a seus autores, para que se mantenham invioláveis os valores elementares da vida em sociedade."

          Além disso,

          "[...] o Direito Positivo pátrio não contempla e certamente não contemplará, no que se refere ao Estado (pessoa jurídica de Direito Público), senão a responsabilidade civil [...] e, embora teoricamente possível, muito difícil aceitar-se-ia a responsabilidade criminal de um Estado-membro." (DERGINT, 1994, p. 32)

          Num segundo momento, ressalte-se que o presente estudo cinge-se à chamada responsabilidade extracontratual do Estado, ficando excluída a responsabilidade contratual, regida por princípios próprios, afetos aos contratos administrativos. Essa responsabilidade extracontratual do Estado, por sua vez, de acordo com a lição de Bandeira de Mello (1980, p. 252) consiste na "obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos causados a terceiros e que lhes sejam imputáveis em decorrência de comportamentos comissivos e omissivos, materiais e jurídicos."

          Por derradeiro, registre-se que a responsabilidade estatal pode ser desencadeada não só por atos ditos ilícitos, como também por atos os quais, a princípio, não importam em ofensa à lei. Consoante Di Pietro (2002, p. 523),

          "Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo ela pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade." (grifo da autora)

          Em análise mais profunda sobre o assunto, Trujillo (1996, p. 100-101) assevera que "surge a responsabilidade do Estado quando, embora praticando atos nos limites previstos na legislação e visando atender sua própria finalidade, motiva danos a terceiros."

          Entretanto, a reparabilidade do dano, nesta hipótese, condiciona-se à satisfação de dois requisitos, quais sejam, a especialidade e a anormalidade:

          "Será indenizável o ato se, embora lícito, motivado pelo interesse público, causar um prejuízo especial e anormal, isto é, ato impositivo de sacrifício e não, simplesmente, restritivo de direito.

          Essa imposição, todavia, para motivar o reconhecimento da responsabilidade do Estado, exigirá a combinação desses dois requisitos mencionados: especialidade e anormalidade, posto que, ausentes essas condições, o ato será considerado restritivo de direitos sendo abrangente de toda a coletividade ficando, portanto, dentro da esfera de atuação no mundo social." (TRUJILLO, 1996, p. 100-101)

          A respeito desses elementos condicionadores da responsabilidade civil do Estado decorrente de atos lícitos, diga-se que a especialidade refere-se a um prejuízo particular ou a um certo número de vítimas determinadas, vale dizer, o ato considerado lesivo não deve espraiar seus efeitos sobre toda a sociedade, caso contrário, configuraria um ônus comum à convivência social; a anormalidade, por sua vez, implica num transbordo dos incômodos e inconvenientes ordinários e que são inerentes à própria vida em sociedade, frutos inafastáveis do convívio societário. (BANDEIRA DE MELLO, 1980, p. 259)

          Tais atributos, entretanto, por si só, não são capazes de supedanear a pretensão reparatória do lesado por ato lícito do Estado, sendo necessário, outrossim, o preenchimento dos demais requisitos que dão azo à responsabilidade civil, conforme se queira sustentá-la com base na Teoria do Risco Administrativo ou na Teoria da Falta do Serviço.

          Não se pode olvidar, por fim, consoante muito bem alerta Diniz (2002, p. 541-542) que a relação entre o Estado e seus agentes é orgânica, de tal sorte que, sendo este uma pessoa jurídica, não possui vontade nem ações próprias, manifestando-se através de pessoas físicas, é dizer, seus agentes, regularmente investidos nessa qualidade, cujas atitudes são atribuídas ao ente estatal por uma relação de imputação direta.

          2.1 Breve retrospecto histórico

          Segundo Dergint (1994, p. 35), a evolução da noção de responsabilidade estatal "perpetrou-se sobretudo como exigência de justiça social", de forma que o dever estatal de indenizar os danos oriundos de atividades de seus agentes não foi concebido como se apresenta atualmente, mas foi lentamente aperfeiçoado, em atenção à evolução da sociedade, principalmente por labor doutrinário e jurisprudencial, até que se obtivesse o seu reconhecimento através de texto legal.

          Não se observa uma uniformidade na divisão das etapas históricas que compreendem a evolução da responsabilidade estatal, existindo, inclusive, divergências terminológicas a respeito [1]. De qualquer forma, adotar-se-á, no presente estudo, a divisão tríplice de Dergint (1994, p. 35-36), para quem, o tema contempla três fases, "caracterizadas pelo regime político dominante em cada qual, quais sejam: 1.ª) fase da irresponsabilidade; 2.ª) fase civilística; e 3.ª) fase do Direito Público, em que se encontra a doutrina contemporânea", considerando-se, ainda, as subdivisões que comportam essas duas últimas fases. [2]

          2.1.1 Teoria da irresponsabilidade

          Nessa primeira fase, que teve seu ápice no período absolutista da história, o princípio fundamental era o da negativa da pretensão reparatória àqueles que viessem a sofrer algum dano decorrente de atividades desempenhadas por agentes estatais, de tal sorte que o Estado não poderia ser compelido a indenizar prejuízos oriundos de atividades que lhe fossem atribuídas. A soberania e a noção pela qual o Estado não poderia causar males ou danos a quem quer que fosse justificava a impossibilidade de se buscar a reparação por danos causados por seus agentes quando atuavam em nome do Poder Público. Nesse sentido, Dergint (1994, p. 36) assevera que:

          "Sob o domínio de governos absolutistas, regia a doutrina da irresponsabilidade do Estado, como corolário da idéia de soberania. Entendia-se que este não podia praticar atos contrários ao Direito. Daí os princípios regalengos de que ‘o rei não pode errar’ (the king can do no wrong, como se afirmava na Inglaterra; le roi ne peut mal faire, na França) ou de que "aquilo que agrada ao príncipe tem força de lei (quod principi placuit legis habet vigorem)."

          Entretanto, conforme expõe Bandeira de Mello (1980, p. 256),

          "Essas assertivas, contudo, não representavam completa desproteção dos administrados perante comportamentos unilaterais do Estado. Isto porque [...] admitia-se responsabilização quando lei específicas a previssem explicitamente [...].

          Demais disso, o princípio da irresponsabilidade do Estado era temperado em suas conseqüências gravosas para os particulares pela admissão da responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal, seu." [3] (grifo do autor)

          Assim, em que pese as portas da reparabilidade estarem fechadas ao lesado perante o Estado, o caminho para a busca de uma indenização frente ao funcionário apresentava-se como uma alternativa a ser explorada, bem como em certas hipóteses eram contempladas legalmente em diplomas que admitiam a indenização.

          Essa concepção, entretanto, passou a ser fortemente combatida, haja vista a sua não adequação à nova realidade moldada pela evolução dos tempos. A responsabilidade civil do Estado [4], então, passou a merecer um novo enfoque, surgindo teorias que procuravam justificá-la, as quais foram sendo lentamente lapidadas até que se chegasse à atual visão do instituto, pela qual a responsabilidade estatal encontra-se firmemente consolidada nas leis, na doutrina e na jurisprudência dos povos civilizados, de modo que a teoria da irresponsabilidade merece reporte meramente histórico. [5]

          2.1.2 Teorias civilistas

          Essas teorias representaram uma tentativa, inspirada pelo individualismo liberal do século XIX, de se transportar, para a seara da responsabilidade do Poder Público, preceitos que a norteiam no Direito Privado, qual seja, a noção de culpa, representando, assim, uma reação à irresponsabilidade do Estado, que não mais se harmonizava com o Direito, podendo ser dividida em duas etapas. Na primeira, essa mudança de panorama deu-se de um modo mais acanhado, distinguindo-se os atos estatais em atos de império e atos de gestão, sendo admitida a responsabilização somente por estes últimos, prevalecendo, quanto aos primeiros, a vetusta idéia de irresponsabilidade; na segunda fase dessa transição, abandonou-se essa distinção, passando a culpa a ser a questão nuclear.

          2.1.2.1 Teoria dos atos de império e atos de gestão

          Nessa etapa evolutiva, Dergint (1994, p. 37) assinala que:

          "Em uma segunda fase, marcada pelo individualismo liberal do século passado [século XIX], procurou-se resolver o problema da responsabilidade do Estado através de princípios de Direito Civil. Distinguia-se entre atos de gestão e atos de império do Poder Público."

          Nos termos dessa teoria, concebia-se o Estado como um ente dotado de dupla personalidade e, por via reflexa, os atos estatais poderiam apresentar-se por meio de duas modalidades, assim diferenciadas por Di Pietro (2002, p. 525-526):

          "Os primeiros [atos de império] seriam praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos [atos de gestão] seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão dos serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum."

          Como forma de abrandar a tese da irresponsabilidade do monarca, essa teoria foi o primeiro passo para o reconhecimento da responsabilidade estatal, ainda que de forma superficial e tímida, cuja configuração, admitida tão somente nos atos de gestão, norteava-se pelos princípios do Direito Privado, pelos quais competia ao lesado demonstrar, dentre os outros pressupostos da responsabilidade civil, a culpa do agente público.

          Como já é possível de se antecipar, essa teoria não logrou subsistir, por críticas de duas ordens. Primeiramente, é de se salientar que seu traço principal, é dizer, a divisão entre atos de império e atos de gestão, pelos quais o Estado, respectivamente, eximir-se-ia ou então deveria arcar com a responsabilidade, caso não fosse impossível de ser feita, não poderia ser fixada com o rigor e precisão devidos, além do fato pelo qual o Estado não possui duas personalidades distintas, "mas apenas uma, que é, a um só tempo, titular da soberania e dos direitos e deveres relativos à gestão do seu patrimônio e de seus serviços." (ARAUJO, 1981, p. 28)

          Assim, cedeu a teoria dos atos de império e de gestão frente a uma nova teoria que, por sua vez, dilatou um pouco mais o campo de admissão da responsabilidade estatal.

          2.1.2.2 Teoria da culpa civil

          Por essa doutrina, o Estado poderia ser obrigado a indenizar os danos que seus agentes, nessa qualidade, causassem a terceiro, desde que este se desincumbisse do ônus de provar a culpa daqueles, razão pela qual a afirmação da responsabilidade condicionava-se à demonstração do referido elemento anímico. A responsabilidade estatal, portanto, passou a ser norteada pelos princípios de Direito Privado, cuja aplicação era feita em sua integralidade. Indivíduo e Estado eram colocados num mesmo plano e em igualdade de condições.

          Como leciona Gasparini (2001, p. 822-823):

          "Por esse artifício o Estado tornava-se responsável e, como tal, obrigado a indenizar sempre que seus agentes houvesse agido com culpa ou dolo. [...] O Estado e o indivíduo eram, assim, tratados de forma igual. Ambos, em termos de responsabilidade patrimonial, respondiam conforme o Direito Privado, isto é, se houvesse se comportado com culpa ou dolo. Caso contrário não respondiam."

          Nesse contexto, não mais se distinguiam os atos estatais, como na teoria precedente, devendo o Estado indenizar desde que presentes os pressupostos da responsabilidade civil. Tal solução, entretanto, não se coaduna com a realidade fática e se mostra inegavelmente injusta. Realmente, é de Aguiar Dias (1983, p. 621) a seguinte observação:

          "Como o mau funcionamento do serviço público nem sempre se identifica com a falta de determinado funcionário, a aplicação de tal doutrina resulta em negação de responsabilidade sempre que não seja possível estabelecer a culpa do funcionário, muito embora se defronte a caso autêntico de defeito do serviço."

          Dessa forma, essa doutrina, apesar de representar mais um passo na trilha evolutiva da responsabilidade civil do Estado, ainda não se mostrava plenamente adequada no disciplinamento das relações entre o Poder Público e o particular, vez que era incompatível com as exigências de justiça social, por exigir demais deste último, obrigando-o a demonstrar, além do dano, a atuação culposa do agente público. Com muita sensibilidade, nota Meirelles (2003, p. 622) que

          "Realmente, não se pode equiparar o Estado, com seu poder e seus privilégios administrativos, ao particular, despido de autoridade e de prerrogativas públicas. Tornaram-se, por isso, inaplicáveis em sua pureza os princípios subjetivos da culpa civil para a responsabilização da Administração pelos danos causados ao administrados. Princípios de Direito Público é que devem nortear a fixação dessa responsabilidade."

          Ficam, assim, enunciadas as diretrizes que nortearão a próxima fase da evolução da responsabilidade estatal, na qual à culpa civil serão amalgamados princípios de Direito Público até que se chegue num estágio tal que referido elemento subjetivo perderá seu papel de protagonista na imputação de responsabilidade ao Estado pelos danos causados por seus agentes que atuarem nessa qualidade.

          2.1.3 Teorias publicistas

          No século XX, teve início a terceira fase da evolução teórica do instituto da responsabilidade civil estatal, coincidindo, pois, com a consagração do Estado Social (DERGINT, 1994, p. 38). Nessa fase, a responsabilidade civil do Estado passou a ser elaborada a partir de princípios de Direito Público, visão esta que teve origem no famoso caso Blanco, na França. [6] Nela, podem ser identificadas a teoria da falta do serviço ou da culpa administrativa e a teoria do risco, que se bifurca em risco administrativo e risco integral. [7]

          2.1.3.1 Teoria da falta do serviço

          Também denominada teoria da culpa administrativa, essa concepção consagra a falta de adequação dos princípios da culpa, nos moldes em que é concebida no Direito Civil, ao campo da responsabilidade civil do Estado, demandando o desenvolvimento de um mecanismo de adaptação, consistente na desvinculação da responsabilidade do Estado da idéia de culpa individual do funcionário, deslocando-a para a culpa do serviço público. Dergint (1994, p. 39-40) ensina que essa teoria "leva em conta a irregularidade no funcionamento do serviço para dele inferir a responsabilidade estatal. O fato gerador desta é, pois, a faute du service, isto é, o ‘funcionamento defeituoso do serviço’, que independe da culpa do agente público."

          Serrano Júnior (1996, p. 56), por seu turno, esclarece que:

          "[...] os danos decorrentes do mau funcionamento de um serviço público serão atribuídos como de responsabilidade da pessoa jurídica que o explora. A ‘faute du service’ se caracteriza quando o serviço público: a) funciona mal; b) não funciona; ou c) funciona tardiamente."

          Meirelles (2003, p. 622-623) identifica essa teoria como pertencente ao tronco comum da responsabilidade estatal dita objetiva, juntamente com as teorias do risco administrativo e do risco integral, representando o primeiro estágio na transição entre a doutrina subjetiva da culpa civil e a teoria objetivista da responsabilidade do Estado.

          Entretanto, não se deve perder de vista que esta teoria tem por fundamento a noção de culpa, ainda que revestida de um verniz especial, haja vista as peculiaridades do organismo estatal. Nesse sentido, é a lição de Cretella Júnior (2000, p. 614):

          "As exigências e a situação toda especial do Estado atraíram a atenção dos publicistas, que reelaboraram a teoria da culpa dentro do quadro sui generis do direito público.

          A culpa no direito público, se não se opõem à culpa do direito privado, apresenta-se com matiz mais rico e todo peculiar [...]

          No âmbito da responsabilidade administrativa, a culpa é compreendida de maneira ampla. É a culpa publicística que, positivada, obrigará o Estado a indenizar." (grifo do autor)

          Destarte, a culpa, para essa teoria, embora não tenha sua essência desnaturada de um modo absoluto, mostra-se desvinculada da idéia de culpa civil, "ora baseada na culpa "in eligendo" ou na "in vigilando" da pessoa jurídica sobre seus funcionários, ora por equiparação à responsabilidade do patrão ou comitente por atos ilícitos dos seus funcionários ou prepostos." (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 57, grifo do autor)

          A caracterização da responsabilidade civil do Estado, pelo prisma da teoria da falta do serviço, demanda, portanto, a chamada culpa impessoal ou anônima do serviço público, traduzida no descumprimento, diretamente imputado ao Estado, dos atos e omissões de seus agentes, no desempenho de seus misteres de garantir a prestação e o oferecimento satisfatórios dos serviços públicos. Não se discute a culpa individual do agente, tendo relevância apenas a circunstância pela qual houve ou não falha no serviço desempenhado pelo Estado através de seus agentes. (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 57)

          Dergint (1994, p. 40), citando Paul Duez e Guy Debeyre, enumera os seguintes traços gerais da responsabilidade, segundo a teoria ora em análise:

          "1.º) caráter autônomo (rege-se pelo Direito Público, independendo do Direito Civil); 2.º) caráter primário (o lesado pode acionar diretamente o Estado, que é declarado imediatamente responsável); 3.º) caráter anônimo (não se vincula necessariamente à idéia de culpa de um agente identificado, bastando estabelecer o defeito no funcionamento do serviço – on juge le service et non l’agent); 4.º) caráter ‘nuançado’ ou graduado (a falta de serviço público não engendra automaticamente a responsabilidade estatal: deve existir um certo grau de ‘defeituosidade’, isto é, de ‘gravidade’ da culpa, que varia conforme o tipo de serviço, circunstâncias de tempo, lugar, condicionamento do serviço etc. – o que deve ser apreciado em cada caso concreto); 5.º) caráter geral (aplica-se a todas as pessoas administrativas, sendo a teoria de base, embora alguns avanços da teoria do risco)"

          Ante o exposto, a teoria da falta do serviço deve ser concebida como uma modalidade intermediária entre as teorias civilistas, calcadas na noção de culpa preconizada pelo Direito Civil, e a teoria do risco, em suas duas modalidades, que secundariza a aferição de qualquer elemento subjetivo para a fixação da responsabilidade estatal, salientando-se, contudo, seu enquadramento entre as teorias ditas subjetivistas, tudo porque não abandonou completamente o conceito de culpa, recebendo este tempero publicístico em razão da especial condição do Estado.

          2.1.3.2 Teoria do risco administrativo

          Na teoria do risco administrativo, a responsabilidade civil estatal prescinde da aferição de qualquer elemento subjetivo, sendo bastante, para sua configuração, a relação de causalidade entre o dano suportado pelo lesado e a conduta do agente público, restando ausente qualquer causa excludente ou atenuante da responsabilidade civil do Estado.

          Se na teoria da falta do serviço ou culpa administrativa, exigia-se a falta do serviço, na teoria do risco administrativo exige-se simplesmente o fato do serviço (MEIRELLES, 2003, p. 653), secundarizando-se qualquer perquirição em torno da culpa do Estado ou de seus agentes, patente o fato de que a imputação da responsabilidade civil é feita por critérios objetivos. Assim, "a idéia de culpa é substituída pela de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço público e o prejuízo sofrido pelo administrado. É indiferente que o serviço público tenha funcionado bem ou mal, de forma regular ou irregular." (DI PIETRO, 2002, p. 527, grifo da autora)

          São, portanto, pressupostos da responsabilidade estatal, nos moldes da teoria ora exposta: "a) o fato do serviço; b) lesão ao direito de outrem; c) relação de causalidade entre aquele e esta." (FACHIN, 2001, p. 87)

          Merece destaque, nesta concepção, a admissibilidade de invocação, pelo Estado, de causa excludente ou atenuante da responsabilidade civil, na tentativa de descaracterizá-la ou mesmo mitigá-la. Consoante a lição de Rosa (2003, p. 168), a teoria do risco administrativo "Não autoriza o reconhecimento inexorável da responsabilidade civil do Estado, admitindo formas de exclusão (culpa da vítima, ausência de nexo de causalidade, força maior), ao contrário da teoria do risco integral."

          Ressalte-se ainda que, segundo Fachin (2001, p. 88) e Meirelles (2003, p. 623-624), foi esta a teoria adotada pelo constituinte brasileiro de 1988, seguindo a trilha da Carta Magna de 1946, questão esta que será abordada mais amiudemente em tópico próprio do presente capítulo.

          2.1.3.3 Teoria do risco integral

          A teoria do risco integral representa uma concepção da teoria do risco administrativo levada às suas últimas conseqüências, representando o ápice da responsabilidade objetiva do Estado. Segundo Meirelles (2003, p. 624), por essa fórmula radical,

          "[...] a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resultante de culpa ou dolo da vítima. Daí porque foi acoimada de ‘brutal’, pelas graves conseqüências que haveria de produzir se aplicada na sua inteireza."

          Essa teoria extrapola os limites do risco administrativo, vez que impõe ao Estado o dever de indenizar todo e qualquer prejuízo. "Tendo o Estado se envolvido no evento danoso, não se permite que produza a prova de que a vítima agiu com culpa ou que esteve presente qualquer outra causa de exclusão de responsabilidade." (FACHIN, 2001, p. 89)

          Em que pese existirem vozes em sentido contrário, essa teoria não foi acolhida pelo direito brasileiro, tudo porque, como é de fácil percepção, conduziria ao abuso e à iniqüidade social. Com efeito, impor ao Estado a obrigação de arcar com um prejuízo que ocorrer tão apenas por culpa exclusiva da vítima ou qualquer outra causa excludente, não lhe permitindo sua respectiva invocação, mostra-se incontestavelmente desarrazoado, tendo sido essa teoria rejeitada pela maioria da doutrina [8] e pela jurisprudência.

          Eis, em linhas gerais, um retrospecto histórico da responsabilidade civil estatal e das respectivas teorias que, inicialmente a excluíam, para, ao depois, darem-lhe suporte. Verifica-se, nesse panorama, que o instituto, ao longo da história, desabrochou lentamente, conforme as exigências sociais, partindo da completa irresponsabilidade, passando por fases de transição nas quais foi ganhando volume e identidade própria do Direito Público, nas concepções civilistas (etapas da teoria dos atos de império e de gestão e da culpa civil) e publicistas (falta do serviço ou culpa administrativa e teorias do risco) culminando, por derradeiro, numa responsabilização irrestrita e absoluta do Estado, preconizada pelo risco integral, sabiamente afastada.

          É interessante notar, com Gasparini (2002, p. 825), que,

          "[...] se tais teorias obedeceram a essa cronologia, não quer isso dizer que hoje só vigore a última a aparecer no cenário jurídico dos Estados, isto é, a teoria da responsabilidade patrimonial objetiva do Estado ou teoria do risco administrativo. Ao contrário, em todos os Estados acontecem ou estão presentes as teorias da culpa administrativa e do risco administrativo, desprezadas as da irresponsabilidade e do risco integral. Aquela (culpa administrativa) se aplica, por exemplo, para responsabilizar o Estado por danos decorrentes de casos fortuitos e de força maior, em que o Estado indeniza se tiver se omitido em comportamentos impostos por lei. Esta (risco administrativo), nos demais casos." (grifo do autor)

          Destarte, no entendimento atual, duas teorias podem ser invocadas para se configurar a responsabilidade civil do Estado, é dizer, a teoria da falta do serviço ou culpa administrativa, bem como a teoria do risco, admitidas, nessa hipótese, a invocação de excludentes e atenuantes da responsabilidade estatal, ou seja, a modalidade risco administrativo.

          2.2 Princípios fundamentais da responsabilidade civil do Estado

          Ao longo de sua evolução, o instituto da responsabilidade civil do Estado foi embasado por diversos princípios e teorias, o que denota uma preocupação perene de seus estudiosos, nas mais diversas épocas, em identificar-lhe um fundamento próprio e, embora haja uma constante, qual seja, a noção de eqüidade, no pensamento de todos os autores, o certo é que os limites precisos dessa tão procurada fundamentação ainda não foram fixados.

          Trujillo (1996, p. 57-58) arrola três teorias que visam dar suporte à responsabilidade civil do Estado. São elas a teoria do sacrifício especial, a teoria da igualdade dos encargos públicos e a teoria do seguro social.

          Pela primeira, desenvolvida por Otto Mayer a partir do princípio da eqüidade, a obrigação estatal de indenizar surge quando o particular é submetido a um prejuízo desigual em relação ao demais membros da coletividade, por força de uma atividade pública, lícita ou não, de forma a impor-lhe uma privação patrimonial.

          A segunda, por sua vez, tem como expoentes Tiraud, Teissier e Duez e preconiza a garantia constitucional da igualdade de todos na repartição dos encargos públicos, de forma que um cidadão não pode ser onerado mais gravosamente por uma atividade pública levada a efeito em proveito de todos, devendo os danos anormais decorrentes do interesse comum serem suportados por todos os beneficiários do serviço.

          A terceira corrente, vale dizer, a teoria do seguro social, sustentada por Duguit, considera a responsabilidade civil do Estado embasada na idéia de um seguro social a cargo do erário público em benefício de todos os eventualmente lesados por atividades públicas, vez que são elas exercidas no interesse de toda a coletividade.

          Referidas teorizações indicam a necessidade de maiores estudos na tentativa de se chegar a um consenso. Verifica-se, contudo, uma tendência preponderante de se considerar, como princípios fundamentais da responsabilidade civil do Estado, o princípio da legalidade e da igualdade, conforme se trate de atos ilícitos ou lícitos, respectivamente.

          Essa concepção bipartida é atribuída a Bandeira de Mello (1980, p. 260), que a expõe nos seguintes termos:

          "Ao nosso ver, o fundamento se biparte. No caso de comportamentos ilícitos, comissivos ou omissivos, o dever de reparar o dano é a contrapartida da violação da legalidade. No caso de atos lícitos, parece-nos que o fundamento da responsabilidade estatal é a idéia de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos. O que se pretende neste caso, através da responsabilidade do Estado é garantir uma repartição dos ônus provenientes dos atos lesivos, evitando que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião do exercício de atividade desempenhada no interesse de todos."

          Diniz (2002, p. 540) [9], partindo dessa noção, e dando especial destaque à necessidade de restabelecimento do equilíbrio, complementa as idéias do administrativista acrescentando que:

          "Funda-se a responsabilidade estatal, portanto, no princípio da isonomia, logo, deve haver igual repartição dos encargos públicos entre os cidadãos, pois, se em razão de atividade administrativa somente alguns particulares sofrerem danos especiais e anormais, isto é, não comuns da vida social, haveria um desequilíbrio na distribuição dos ônus públicos se somente eles suportassem o peso daquela atividade. Daí a imprescindibilidade de se restabelecer o equilíbrio, ressarcindo os lesado à custa dos cofres públicos. Conseqüentemente, ficará a cargo do Estado a obrigação de indenizar dano acarretado pelo funcionamento do Poder Público, evitando-se que se onerem alguns cidadãos mais que os outros." (grifo nosso)

          Considerando-se, portanto, que a responsabilidade estatal pode derivar tanto de atos lícitos como de atividades desprovidas de licitude, a bipartição dos princípios que a fundamentam ora exposta deve ser reconhecida como procedente. Tal solução, com raízes no Direito Público, compatibiliza-se perfeitamente com as nuanças próprias da responsabilidade estatal, elegendo os princípios da legalidade e da igualdade, os quais gozam de dignidade constitucional, para dar sustentáculo ao instituto, conforme se esteja diante de um ato ilícito ou lícito, respectivamente.

          Dessa forma, perante a violação de uma norma jurídica, o Estado deverá responder por força do princípio da legalidade; tratando-se, porém, de imposição ao particular de danos especiais e anormais, que ultrapassam os limites do tolerável na vida em sociedade, a responsabilização tem esteio no princípio da igualdade, cumprindo salientar que, em última análise, em ambas as situações a idéia de manutenção do equilíbrio sócio-jurídico.

          2.3 Responsabilidade civil do Estado no direito comparado: o sistema francês

          Ainda que por meio de uma abordagem bastante perfunctória, interessante se mostra, ao presente estudo, adentrar em sistema jurídico estrangeiro, no concernente ao modo pelo qual a responsabilidade civil do Estado é neles regulada, para que se possa traçar um comparativo entre esses disciplinamentos alienígenas e o brasileiro, bem como constatar que a responsabilização do Estado é uma tendência que goza de robustez em termos internacionais.

          Nesse passo, oportuna se mostra a advertência de Serrano Júnior (1996, p. 88), segundo a qual a responsabilidade do Estado adquire, em cada país, uma conotação própria, que varia segundo o poder de disposição das partes em relação ao processo, o grau de prestígio e criatividade do Poder Judiciário, o caráter público ou secreto de seus procedimentos e, principalmente, do valores sociais vigentes a cada época e em cada país.

          Em França, a adoção do sistema denominado contencioso administrativo, pelo qual as funções administrativas são separadas das judiciárias, sendo vedado ao Judiciário decidir questões pertinentes aos atos jurídicos praticados por entes da Administração, conferiu um traço peculiar à responsabilidade estatal nesse país consistente na possibilidade de formação de duas jurisprudências, às vezes conflitantes.

          Assim é que, no Direito francês, tem-se que, no concernente à organização do serviço judiciário francês, por força de sua dependência exclusiva do Poder Executivo, os danos daí provenientes serão regulados pelo direito comum da responsabilidade administrativa, estando sujeitos à apreciação pelo Conselho de Estado (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 93).

          Contudo, como nota Jean Rivero (1981, p. 342), questão de maior complexidade surge quando se está diante de danos provocados pelo funcionamento da justiça, porque se verifica uma cisão no tratamento da questão da responsabilidade estatal decorrente dos serviços judiciários, conforme se trate de atividade danosa praticada pela justiça administrativa, sujeita à apreciação do "juiz administrativo", ou de dano advindo de conduta levada a efeito pela justiça judiciária, cuja competência toca ao "juiz judiciário." Isso é dito porque, por conta desse desdobramento, há a formação de duas jurisprudências sobre a matéria, por vezes conflitantes.

          Face tal constatação, Réné Chapus (1985, p. 845) tece crítica no sentido de que essa distinção não se sustenta, vez que a atividade da justiça judiciária está sob gestão pública, o que justifica a aplicação, também nesta seara, dos princípios da responsabilidade do Poder Público.

          Assim como se deu no Brasil, em França o instituto da responsabilidade civil do Estado sofreu evolução ao longo do tempo, partindo da noção da irresponsabilidade até que restasse finalmente admitida a responsabilização estatal. Nesse percurso, merece destaque o advento da Lei n.º 72-620, em 1972, que, promovendo reformas no art. 11, do Code de procédure civile, inverteu o posicionamento então vigente, consagrando o princípio da responsabilidade estatal por dano causado no funcionamento do serviço judiciário.

          Acerca dessa alteração legislativa, André de Laubadère afirma que foi instituído um

          "(...) regime de responsabilidades inspirado no direito administrativo: distinção da responsabilidade do Estado por falta de serviço público e da responsabilidade do juiz por falta pessoal e sistema do cúmulo (e não mais da substituição) de responsabilidade." [10]

          Dessa forma, o acolhimento do princípio da responsabilidade estatal pela referida lei teve abrangência na jurisdição judiciária, com aplicabilidade tanto aos atos jurisdicionais propriamente ditos, como também aos atos jurídicos ou materiais de execução do serviço público da justiça. Além disso, muito embora tenha sido, a princípio, aplicável somente aos tribunais judiciais, essa lei levou o Conselho de Estado francês a modificar seu entendimento, passando a adotar a tese da responsabilidade por atos danosos oriundos das atividades jurisdicionais administrativas. (DERGINT, 1994, p. 86-87).

          Verifica-se, pois, essa tendência a responsabilizar o Estado por atos danosos, num sinal de atendimento aos anseios sociais e avanços da doutrina e da jurisprudência para que o ente estatal, por conta de sua significativa ingerência na vida do integrante do corpo social, responda pelos danos que porventura advenham dessa atividade.

          2.4. A responsabilidade civil do Estado à luz da Constituição Federal de 1988

          A Constituição Federal de 1988, cognominada de "Constituição Cidadã", por restabelecer os valores democráticos que foram eclipsados ao longo do período ditatorial, em linhas gerais, conservou a responsabilidade do Estado apurada mediante critérios objetivos, é dizer, independentemente de culpa do agente causador do dano, seguindo a tendência inaugurada em 1946, bem como o direito de regresso contra este último, oportunidade na qual a discussão ao redor do elemento subjetivo tem lugar.

          Merece destaque, nesse texto, uma alteração terminológica que colocou termo às divergências quanto à abrangência do vocábulo "funcionários" empregado no texto anterior, sendo o mesmo substituído pela expressão "agentes", conforme se constata por meio da leitura do art. 37, § 6.º, da Lei Maior [11]. Traz ainda referido dispositivo importante inovação ao estender a responsabilidade estatal às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços de natureza pública. A esse respeito, é de Di Pietro (2002, p. 529-530) o seguinte comentário:

          "A regra da responsabilidade objetiva exige, segundo o art. 37, § 6.º, da Constituição:

          1. que se trate de pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos; a norma constitucional veio pôr fim às divergências doutrinárias quanto à incidência de responsabilidade objetiva quanto se tratasse de entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos (fundações governamentais de direito privado, empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas permissionáris e concessionárias de serviços públicos), já que mencionadas, no art. 107 da Constituição de 1967, apenas as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Municípios e Distrito Federal, Territórios e autarquias);

          2. que essas entidades prestem serviços públicos, o que exclui as entidades da administração indireta que executem atividade econômica de natureza privada; assim é que, em relação às sociedades de economia mista e empresas públicas, não se aplicará a regra constitucional, mas a responsabilidade disciplinada pelo direito privado, quando não desempenharem serviço público;" (grifo da autora)

          O termo "agente", por seu turno, é de ser compreendido de uma forma ampla, abrangendo todas as categorias através das quais pode uma pessoa vincular-se ao serviço público, tanto em caráter permanente ou transitório. A respeito de sua adoção pelo constituinte de 1988, Meirelles (2003, p. 627) esclarece que:

          "A Constituição atual usou acertadamente o vocábulo agente, no sentido genérico de servidor público, abrangendo, para fins de responsabilidade civil, toda as pessoas incumbidas da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório. O essencial é que o agente da Administração haja praticado o ato ou omissão administrativa no exercício de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las. Para a vítima é indiferente o título pelo qual o causador direto do dano esteja vinculado à Administração; o que é necessário é que se encontre a serviço do Poder Público, embora atue fora ou além de sua competência administrativa." (grifo do autor)

          Assim delimitada a abrangência subjetiva do dispositivo constitucional, pode-se concluir, com Fachin (2001, p. 107), que o preceito não tolera exceções, abarcando a responsabilidade civil do Estado em todas as suas dimensões, não se incluindo apenas as atividades administrativas, mas também as legislativas e jurisdicionais. [12]

          Conforme mencionado linhas acima, a Constituição Federal acolheu a responsabilidade objetiva do Estado, de tal sorte que, para sua caracterização deve ser verificado, primeiramente, a ocorrência de um dano, uma conduta, comissiva ou omissiva, do Poder Público, a existência de um nexo causal entre esta e aquele, além da ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. (MORAES, 2004, p. 911)

          Acolheu-se, portanto, a teoria do risco administrativo, patente a possibilidade de invocação de causa excludente ou atenuante da responsabilidade, vedada qualquer possibilidade de previsão normativa de outras teorias, inclusive a do risco integral (MORAES, 2004, p. 911). O reconhecimento da adoção da teoria do risco administrativo também é verificável no plano jurisprudencial, sendo inclusive este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. [13]

          José Afonso da Silva (2001, p. 658), estabelecendo uma aproximação entre o princípio da impessoalidade e a teoria do risco administrativo, assevera que:

          "A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertencer o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano."

          E prossegue o constitucionalista (2001, p. 658), esclarecendo que, nessa teoria, o lesado

          "[...] não tem que provar que o agente procedeu com culpa ou dolo, para lhe correr o direito ao ressarcimento dos danos sofridos. A doutrina do risco administrativo isenta-o do ônus de tal prova, basta comprove o dano e que este tenha sido causado por agente da entidade imputada."

          Bandeira de Mello (1980, p. 266), endossando essa visão, argúi ainda interessante questão doutrinária, consistente na indagação pela qual a Constituição de 1967, vigente à época de sua obra, "apenas agasalha a responsabilidade objetiva, tornando-a suscetível de ser aplicada em alguns casos, de par com a responsabilidade subjetiva, cabível em outros tantos, ou se a responsabilidade objetiva tornou-se regra irrecusável na generalidade dos casos." (grifo do autor), questionamento este que, segundo Dergint (1994, p. 57), também é cabível em face do texto constitucional de 1988.

          Nesse debate, há defensores de ambas as posições, ressaltando-se, todavia, que a maioria da doutrina segue a segunda posição, é dizer, de acordo com termos do art. 37, § 6.º, da Constituição Federal, a regra, no Direito brasileiro, é a responsabilidade objetiva (MEIRELLES, 2003, p. 626). Contudo, é procedente a advertência de Dergint (1994, p. 59), afeta ao plano jurisprudencial, pela qual

          "Por vezes, na jurisprudência brasileira, encontram-se decisões que referem como seu fundamento a responsabilidade objetiva (afirmando ser adotada pela Constituição). Entretanto, nelas, aplica-se em verdade a responsabilidade subjetiva, com base na ‘falta do serviço’ [...]"

          Segundo Bandeira de Mello (1980, p. 267-268), a responsabilidade do Estado pode ser imputada tanto por critérios objetivos como também por parâmetros subjetivos, conforme a situação que se apresente. Com efeito, argumenta referido administrativista que no caso de atos lícitos causadores de prejuízo especial e anormal ao particular e de atos ilícitos por comissão, a responsabilidade estatal deve ser apurada objetivamente, estendida também aos danos causados pelo "fato das coisas", é dizer, o dano procede de acidentes ocorridos com coisas próprias da administração ou sob sua custódia; nos atos omissivos, por seu turno, a responsabilidade deve ser determinada pela teoria da culpa administrativa ou da falta do serviço, seja porque não funcionou, funcionou mal ou então tardiamente.

          Essa diferenciação, contudo, além de não encontrar respaldo nos Tribunais, também é combatida doutrinariamente. Realmente, Fachin (2001, p. 115) afirma categoricamente que a responsabilidade do Estado sempre será objetiva, não sendo relevante se o dano decorreu de um comportamento positivo ou negativo do agente.

          De qualquer forma, é importante que se ressalte a inquestionabilidade do dever indenizatório do Estado toda vez que o particular seja prejudicado por conta de ação ou omissão, vez que tanto o agir quanto a inércia tem o condão de lesionar bens jurídicos, obrigação esta que nasce de responsabilização apurada por critérios objetivos, nas linhas ditadas pela teoria do risco administrativo, não sendo de se desprezar, contudo, a responsabilização estatal nos termos da teoria da falta do serviço ou da culpa administrativa.

          O art. 37, § 6.º, da Constituição de 1988 merece, por fim, uma última consideração, relativa à dupla relação de responsabilidade que estabelece, assim descrita por Medauar [14] (1998, p. 387):

          "[...] o preceito estabelece duas relações de responsabilidade: a) a do poder público e seus delegados na prestação de serviços públicos perante a vítima do dano, de caráter objetivo, baseada no nexo causal; b) a do agente causador do dano, perante a Administração ou empregador, de caráter subjetivo, calcada no dolo ou na culpa." (grifo da autora)

          Dessa feita, na relação Estado-vítima, deverá ser observado o critério objetivo de imputação de responsabilidade, nos termos da teoria do risco administrativo, acatada pelo texto da Lei Maior; já a relação Estado-agente, porventura formada por ocasião do exercício do direito de regresso, terá como princípio norteador a teoria subjetiva, com vistas a se apurar o dolo ou a culpa strictu sensu do causador do dano.

          À guisa de remate, convém fazer menção ao advento do Novo Código Civil, cuja vigência teve início sob a égide da Constituição Federal de 1988, mais precisamente em 11 de janeiro de 2003. Trata o referido dispositivo legal do assunto responsabilidade civil do Estado em seu art. 43 [15] que seguiu as linhas traçadas pelo texto constitucional, omitindo, contudo a referência às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, o que, entretanto, não as exime de responsabilidade, face a previsão constitucional expressa nesse sentido. (MEIRELLES, 2003, p. 626)

          2.5 Excludentes e atenuantes da responsabilidade civil estatal

          O ordenamento jurídico brasileiro acolheu a teoria do risco administrativo, no que concerne à responsabilidade civil do Estado, que põe em relevo três elementos, vale dizer, a conduta lesiva, o dano sofrido e o nexo causal, possuindo este último importância capital na configuração do dever indenizatório por parte do Poder Público, de tal sorte que, como pondera Di Pietro (2002, p. 30), este "[...] deixará de incidir ou incidirá de forma atenuada quando o serviço público não for a causa do dano ou quando tiver aliado a outras circunstâncias, ou seja, quando não for a causa única. (grifo da autora)

          Assim é que, admitidas causas excludentes ou atenuantes da responsabilidade civil do Estado, colheu-se junto às lições de Araujo (1981, p. 35) o seguinte rol, igualmente trazido pela doutrina em geral: culpa da vítima, culpa de terceiro, força maior e estado de necessidade, sendo que, consoante Dergint (1994, p. 50), em nenhum deles, com exceção do estado de necessidade

          "[...] existe ato ou omissão do agente público no evento danoso. A equação da causalidade responsabilizante não chega a se formar, de modo que não são propriamente ‘excludentes’ da responsabilidade estatal. A análise de cada caso concreto, por outro lado, será necessária à determinação da exclusão ou não da obrigatoriedade indenizatória estatal."

          Feita essa ressalva, as causas excludentes supra indicadas serão analisadas em pormenor nos sub-tópicos adiante.

          2.5.1 Culpa da vítima

          Como bem esclarece Araujo (1981, p. 36), em certas oportunidades,

          "[...] mesmo utilizando-se de um serviço público, ou estando em algum edifício ou repartição públicos, pode ocorrer que um particular, mediante ação própria sua, cause um acidente em que o mesmo venha a se lesionar ou ter algum bem seu atingido, causando a si próprio, com isso, algum prejuízo, físico ou patrimonial."

          Desse modo, podem ocorrer certos danos nos quais o Poder Público não teve participação alguma em sua ocorrência, de tal sorte que sua causa não se mostra idônea para dar ensejo à responsabilidade do Estado. Na realidade, nessas hipóteses, o Estado não é responsável porque falta o nexo causal que ligue sua atividade ao dano.

          Registre-se, contudo que, quando ocorrer culpa da vítima, deve-se fazer uma distinção pela qual referido elemento subjetivo pode ser imputado com exclusividade à vítima ou houve concorrência com a atividade estatal; "no primeiro caso, o Estado não responde; no segundo, atenua-se sua responsabilidade, que se reparte com a da vítima." (DI PIETRO, 2002, p. 531). Destarte, a análise do caso concreto tem importância decisiva para a verificação da ocorrência ou não dessa excludente, bem como de seu desdobramento.

          2.5.2 Culpa de terceiro

          Nos termos da lição de Fachin, o fundamento desta excludente "é o mesmo invocado para o caso de culpa da vítima, eis que, também aqui, se está a focalizar o elemento culpa [...]." Em mais esta oportunidade, o Estado não deve responder pelos danos causados à vítima, vez que não se forma o nexo causal entre sua conduta e o prejuízo sofrido.

          Entretanto, no que tange à ação lesiva do terceiro, deve-se observar que a mesma não pode estar contida na esfera de acontecimentos que ao Estado competia evitar, sob pena de restar caracterizada a omissão estatal. Nesse sentido, Araujo (1981, p. 38) afirma que "havendo a ação direta de terceiro, que não possa ter sido objeto de neutralização pelo Estado, em termos razoáveis, dentro dos cuidados usuais exigíveis, não há como negar a hipótese excludente". Referido comportamento, portanto, há de ser inevitável para que se configure a excludente em apreço.

          2.5.3 Força maior

          Por força maior, entende-se o "acontecimento imprevisível, inevitável e estranho à vontade das partes, como uma tempestade, um terremoto, um raio." (DI PIETRO, 2002, p. 530). Assim, como bem ensina Araujo (1981, p. 39), tratando-se de força maior, "o fato é estranho ao Estado, comprovadamente irresistível, inevitável e imprevisível. Por isso, o Poder Público não será sujeito da relação jurídica da responsabilidade, que, na verdade, não se forma, não se completa."

          Desse modo, a força maior tem o condão de impedir a responsabilidade do Estado pelo fato segundo o qual o dano provocado ao particular não é possível de ser atribuído a qualquer conduta estatal. Todavia, mostra-se oportuna a advertência de Moraes (2004, p. 919), pela qual a força maior, via de regra, exclui a responsabilidade civil do Estado, "salvo porém se a essa ocorrência de força maior somar-se a omissão do Estado [...]. Nesses casos, haverá responsabilidade pela omissão estatal, consagrada pelo § 6.º, do art. 37 da Constituição Federal."

          A análise da plausibilidade ou não de invocação dessa excludente passa necessariamente pela indagação acerca do dever do Poder Público de tomar providências no sentido de se evitar o evento danoso, de tal sorte que apenas a resposta negativa é capaz de supedanear sua alegação como excludente da responsabilidade estatal.

          Tema que desperta polêmica na doutrina é a distinção entre força maior e caso fortuito, entendendo Araujo (1981, p. 39) que, neste último, "a causa do acidente danoso permanece desconhecida, ignorando-se como foi produzido o evento." Transportando-se essa noção para o Estado, verifica-se que a falha ocorrida atrela-se ao próprio funcionamento da máquina estatal, pelo que se infere não ser o caso fortuito excludente da responsabilidade civil do Estado.

          De qualquer forma, segundo Fachin (2001, p. 128), essa doutrina não mereceu o acolhimento da jurisprudência, que aceita tanto o caso fortuito como a força maior como eximentes da responsabilidade estatal, desde que o dano, em nenhuma hipótese, pudesse ser evitado por meio de atividade estatal. A isenção do Estado, portanto, condiciona-se à impossibilidade de o dano poder ser evitado.

          2.5.4 Estado de necessidade

          Em Direito Administrativo, o estado de necessidade como excludente da responsabilidade estatal tem o mesmo fundamento daquele que lhe é atribuído no Direito Penal como excludente de ilicitude, qual seja, a necessidade de se fazer prevalecer o interesse coletivo sobre interesses pessoais.

          Assim como, no crime, não comete ilícito aquele que pratica conduta típica e antijurídica sob o manto do estado de necessidade, também o Estado não deve arcar com os prejuízos oriundos de determinada atividade pública se esta foi levada a efeito visando a "predominância de interesses gerais, públicos, sobre conveniências, interesses, bens ou direitos particulares." (ARAUJO, 1981, p. 40)

          Desse modo, é o estado de necessidade causa hábil a afastar a responsabilização, em que pese nas hipóteses de sua invocação estarem presentes todos os pressupostos ensejadores da responsabilidade do Poder Público, vale dizer, uma conduta que produziu um dano, havendo entre ambos o nexo causal.

          2.6 Ação regressiva e denunciação da lide

          Estabelecida a responsabilidade do Estado em indenizar algum dano decorrente de atividades públicas e sendo referido ressarcimento levado a efeito, nasce a possibilidade de o Poder Público voltar-se contra o agente causador do dano, por meio do exercício do direito de regresso, na tentativa de reaver deste último a importância que fora desembolsada dos cofres públicos na composição do quantum indenizatório pago ao lesado.

          Segundo Meirelles (2003, p. 632-633), o êxito dessa ação condiciona-se a dois requisitos: "primeiro, que a Administração já tenha sido condenada a indenizar a vítima do dano sofrido; segundo, que se comprove a culpa do funcionário no evento dano."

          A respeito do direito de regresso, anota Rosa (2003, p. 174) que se trata de um direito

          "[...] submisso aos rigores do regime jurídico-administrativo, não assistindo ao administrador nenhuma possibilidade de deixar de buscar a responsabilização, salvo se inexistente a culpa do servidor. O direito tem característica de dever (vige a indisponibilidade do interesse público) e não está sujeito a prazo prescricional (CF, art. 37, § 5.º)."

          Desse modo, reunidas provas da culpa do agente, é dever do Estado o ajuizamento da ação regressiva, com o fito de reaver tudo o quanto efetivamente foi pago ao particular pelo dano suportado, ressaltando-se que "o falecimento, a demissão, a exoneração, a disponibilidade ou a aposentadoria do agente não obstam a ação regressiva, que pode ser ajuizada em face de herdeiros e sucessores." (ROSA, 2003, p. 174)

          Urge ressaltar, por ocasião da presente explanação acerca da ação regressiva, que ela é a sede própria para a discussão em torno da ocorrência de dolo ou culpa na conduta do agente causador do dano, de tal sorte que, o lesado, na ação indenizatória movida em face do Estado, não carece demonstrar qualquer elemento anímico do agente público, tudo conforme a teoria do risco administrativo. As perquirições a respeito do dolo e da culpa do agente fogem de sua esfera de abordagem, como esclarece Silva (2001, p. 658-659):

          "A culpa ou dolo do agente, caso haja, é problema das relações funcionais que escapa à indagação do prejudicado. Cabe à pessoa jurídica acionada verificar se seu agente operou culposa ou dolosamente para o fim de mover-lhe ação regressiva assegurada no dispositivo constitucional, visando a cobrar as importâncias despendidas com o pagamento da indenização. Se o agente não se houve com culpa ou dolo, não comportará ação regressiva contra ele, pois nada tem de pagar."

          Questão tormentosa e fonte de infindáveis divergências doutrinárias e jurisprudenciais é a possibilidade de o Poder Público, sendo acionado em demanda indenizatória movida por particular, e já identificado o agente causador do dano, lançar mão do instituto da denunciação da lide, em face do disposto no art. 70, inciso III, do Código de Processo Civil, que prevê ser obrigatória a denunciação da lide na hipótese de o denunciado estar obrigado, por lei ou contratualmente a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda, sabendo-se que o art. 37, § 6.º, da Constituição Federal, estatui o direito de regresso em favor do Estado.

          Nesse embate, duas posições podem ser delineadas. Pela primeira, a denunciação da lide não deve ser levada a efeito, conforme argumenta Moraes (2004, p. 921):

          "Entendemos não haver obrigatoriedade da denunciação da lide nessa hipótese, pois a Teoria do Risco Administrativo, adotada constitucionalmente, não exige demonstração do dolo ou culpa por parte do agente, sendo incabível e processualmente inadequado – em face da celeridade processual – discutir-se sua responsabilidade subjetiva que, repita-se não excluirá a responsabilidade do Estado.

          Essa exclusão da obrigatoriedade da denunciação da lide decorre da diferença de responsabilidade existentes entre prejudicado – Estado – agente público causador do dano."

          A mesma linha de raciocínio é seguida por Trujillo (1996, p. 124) ao afirmar que no instituto da responsabilidade do Estado, "não cabe a denunciação da lide", vez que somente acarretará maior demora no dever do Estado de indenizar os lesados por suas condutas.

          Argumenta-se ainda que na relação entre a o Estado e vítima, regida por critérios objetivos, compete a esta a demonstração do nexo causal entre a conduta estatal e o dano, sem a necessidade do aprofundamento nas questões pertinentes à ocorrência de dolo ou culpa do agente, a ser levado a efeito na ação regressiva, na qual este litigará contra o Estado, cujas relações são orientadas por critérios subjetivos. (MORAES, 2004, p. 921)

          Além disso, Medauar (1998, p. 391) acrescenta que a ausência de denunciação da lide não redunda na exclusão da discussão sobre o dolo ou culpa do agente, que deve ser realizado em sede própria, qual seja, a ação de regresso, proposta com o fito de obter o ressarcimento do erário.

          Por outro lado, Theodoro Júnior (1993, p. 127), embora admita a não obrigatoriedade da denunciação, firma posição pela qual não pode ser ela rejeitada caso o Estado faça uso do instrumento. São estas suas palavras: "A denunciação, na hipótese, para que o Estado exercite a ação regressiva contra o funcionário faltoso, realmente não é obrigatória. Mas, uma vez exercitada, não pode ser recusada pelo juiz."

          O fundamento da diferença de critérios de imputação da responsabilidade, porém, não convence o autor, vez que, na denunciação da lide "há sempre uma diversidade de natureza jurídica entre o vínculo disputado entre as partes e aquele outro disputado entre e denunciante e o denunciado" (1993, p. 127), não havendo como vedar ao Poder Público o recurso, pela combinação do art. 37, § 6.º, da Constituição Federal de 1988, com o art. 70, inciso III, do Código de Processo Civil.

          Em sede jurisprudencial, verifica-se, de igual forma, que não há uniformidade de tratamento da matéria, o que evidencia a necessidade de maiores estudos acerca do tema, no sentido de que se possa estabelecer um consenso. Registrada a riqueza da problemática, faz-se mister a tomada de posição, que é feita com esteio nas lições de Di Pietro (2002, p.537), que assim se manifesta:

          "[...] quando se trata de ação fundada na culpa anônima do serviço ou apenas na responsabilidade objetiva decorrente do risco, a denunciação não cabe, porque o denunciante estaria incluindo novo fundamento na ação: a culpa ou dolo do funcionário, não argüida pelo autor; [...]"

          Assim, se o requerente não suscita, em sua formulação inicial, o questionamento acerca do dolo ou culpa do agente, a denunciação não merece prosperar, tudo porque, optando o lesado em calcar sua pretensão em elementos outros que não o agir doloso ou culposo causador do prejuízo, esta indagação deverá ser realizada e apurada na sede própria, é dizer, a ação regressiva.

          Por outro lado, se a ação, mesmo fundada na responsabilidade objetiva, invocar aspectos relativos à culpa ou dolo do agente público, a denunciação tem lugar, vez que houve a antecipação, por opção do próprio lesado, da discussão a redor da culpa latu sensu do causador do dano, trazida para o bojo dos autos já por ocasião da peça exordial, razão pela qual a demanda regressiva perderia seu objeto. (DI PIETRO, 2002, p. 537) [16]


3. Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais

          3.1. Contextualização da função jurisdicional e sua caracterização como um serviço público

          Tendo em vista uma maior precisão técnica, pode-se afirmar que o poder estatal, traduzido na idéia de soberania, é uno e indivisível, admitindo-se, entretanto, sua partilha no que diz respeito à forma de exercício. Nesse sentido, idealizada por Aristóteles e Locke e posteriormente sistematizada por Montesquieu, a tripartição das funções estatais em executiva, legislativa e jurisdicional, na verdade, operacionaliza a manifestação em três faces de um mesmo poder. De fato, ao tratar da soberania como poder estatal, Fachin (2001, p. 59) observa que ela "[...] é atributo do Estado. Somente ele pode invocá-la. A soberania não pertence ao Poder Legislativo, ao Poder Executivo ou ao Poder Judiciário. É atributo do Estado, que não pode partilhá-la com ninguém."

          Essas três funções, por sua vez, são independentes e harmônicas entre si e, apesar de se organizarem e funcionarem independentemente, todo ato que delas provenha, dentro de seus respectivos raios de ação, representa uma manifestação completa, total, do poder soberano. Além disso, o entrosamento entre as funções executiva, legislativa e jurisdicional segue os ditames do denominado sistema de freios e contrapesos, concebido para que se tenha uma contenção do poder pelo poder, através do qual cada uma das funções estatais encontra nas outras as suas necessárias limitações, estabelecendo-se, pois, uma relação de interdependência entre elas.

          Nesse passo, Alcântara (1988, p. 18-19) salienta que a realidade veio a demonstrar que nem sempre cada poder exercita exclusivamente a função que lhe é própria, segundo parâmetros funcionais de atuação, de tal sorte que a distinção entre atos administrativos, legislativos ou jurisdicionais deve ser feita utilizando-se um critério formal ou do regime jurídico aplicável a cada uma deles. Assim é que a função administrativa compreende todos os atos materialmente administrativos, legislativos ou jurisdicionais, submetidos a um regime jurídico de Direito Administrativo, seja qual for o órgão que os emanar; a função legislativa, por seu turno, caracteriza-se pela produção de atos subordinados à Constituição inovadores do ordenamento jurídico.

          No que concerne à função jurisdicional, a ser destacada no âmbito do presente estudo, sua análise terá, como primeiro passo, a busca de um conceito de jurisdição, solucionada junto ao escólio de Cintra et al. (1996, p. 131), que a define como sendo

          "[...] uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve, com justiça. Essa pacificação é feita mediante a atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; e o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando imperativamente o preceito [...], seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece."

          Desse modo, o exercício da função jurisdicional pelo Estado consiste em fazer atuar a vontade da lei nos casos concretos que lhe são submetidos por aqueles que se consideram titulares de direitos lesados ou ameaçados de lesão.

          Denota-se, assim, o caráter de substitutivo da jurisdição, pelo que o Estado substitui, através de sua atividade, a atividade daqueles que estão envolvidos no conflito de interesses submetido à apreciação judicial. Os mesmos autores supra mencionados (1996, p. 132) traduzem a substitutividade da jurisdição nos seguintes termos:

          "Não cumpre a nenhuma das partes interessadas dizer definitivamente se a razão está com ela própria ou com a outra; nem pode, senão excepcionalmente, quem tem uma pretensão invadir a esfera jurídica alheia para satisfazer-se. A única atividade admitida pela lei quando surge o conflito é [...] a do Estado que substitui a das partes."

          Nos primeiros tempos da civilização, os conflitos eram resolvidos pelos próprios envolvidos, mediante qualquer tipo de solução, ainda que baseada na força ou poderio bélico, no que se convencionou chamar de autotutela. Posteriormente, essa forma de composição dos litígios foi sendo abandonada, adotando-se um sistema pelo qual a um terceiro, desinteressado e imparcial, cabia a solução da contenda. Tal solução, primeiramente facultativa, passou a ser, num segundo momento, obrigatória. Somente muito depois, com o desenvolvimento da noção de Estado de Direito é que a tarefa de solucionar conflitos de interesses foi admitida como função estatal, primeiro de competência do soberano e, mais tarde, do Poder Judiciário, sob a forma de monopólio [17]. (WAMBIER et al 2001, p. 35-36)

          Nos dias atuais, a jurisdição é monopólio estatal. [18] Conforme explica Serrano Júnior (1996, p. 103), "em determinado momento da evolução histórica, o Estado monopolizou o exercício da jurisdição, proibindo os particulares de fazerem justiça com as próprias mãos. Naquele momento, estabeleceu o direito de ação e outorgou-o ao cidadão. Em contrapartida, surge o dever de jurisdição, a ser prestado pelo Estado."

          Esse monopólio estatal, por seu turno, tem uma finalidade última, consistente na "manutenção da paz e da ordem social e, especialmente, na realização da justiça. Mediante o exercício da jurisdição, cujos escopos são a atuação do direito objetivo material e a pacificação social, satisfaz-se sobretudo o interesse da sociedade que compõe o Estado" (DERGINT, 1994, p. 93)

          Dessume-se, portanto, que ao Poder Judiciário compete precipuamente o exercício da função jurisdicional, por meio da aplicação das normas de direito positivo, tendo em vista pacificar os conflitos ocorridos na vida em sociedade, dispondo ainda o art. 5.º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que nenhuma lesão ou ameaça a direito individual poderá ser subtraída a seu exame.

          Segundo Dergint (1994, p. 88-89), a importância do Poder Judiciário é significativamente aumentada em países que adotam o sistema de jurisdição una, como o Brasil, onde toda a função jurisdicional é exercida por esse poder, diferentemente de países que, a exemplo França, adotam o denominado contencioso administrativo, pelo qual o Estado-Administração exerce a jurisdição em matérias de seu interesse.

          Da mesma forma que a função administrativa, o exercício da jurisdição pressupõe a aplicação da lei ao caso concreto, no que ambas diferenciam-se da função legislativa, de tal sorte que se afigura conveniente um aprofundamento na distinção entre referidas atividades estatais. Nesse sentido, Greco Filho (2000, p. 33), com base nas lições de imortal processualista italiano, leciona que:

          "Entende-se, modernamente, em especial em virtude do ensinamento do mestre Chiovenda, que a administração é uma atividade primária, espontânea, que aplica o direito por iniciativa própria, tendo em vista os interesses da própria administração. Já a atividade jurisdicional é atividade secundária, inerte, somente atua quando provocada e se substitui à vontade das partes, impedidas que estão de exercer seus direitos coativamente pelas próprias mãos."

          Desse modo, enquanto a função administrativa é primária, vale dizer, realizada pela Administração independentemente de provocação do interessado e, em alguns casos, até mesmo sem a sua participação, a jurisdição diz-se secundária, vez que não são as partes, por atividade e vontade próprias, que resolvem o conflito. É a atuação estatal que as substitui, dependendo, para isso, via de regra, de provocação, patente o princípio da inércia que norteia a atividade jurisdicional.

          Mencione-se ainda que, embora o administrador cumpra a lei, tendo-a como limite de sua atividade, o seu escopo é a realização do bem comum, diferentemente do juiz cujo agir prima em fazer atuar a lei, considerando-a em si mesma. (DERGINT, 1994, p. 92)

          Como último traço diferenciador entre as atividades administrativa e jurisdicional, aponta Dergint (1994, p. 95) que os atos administrativos não são definitivos, podendo ser revistos judicialmente em várias hipóteses, cabendo sempre ao Poder Judiciário a última palavra; já os atos jurisdicionais – e apenas eles – podem revestir-se da qualidade de coisa julgada, traduzida na imutabilidade dos efeitos da decisão, não podendo ser revistos por nenhum outro poder.

          A análise da função jurisdicional, por certo, inspira maiores considerações e enfoques, os quais, entretanto, escapam aos limites propostos no presente estudo, de tal sorte que, ora fechando este tópico, uma última observação deve ser apontada, consistente na diferença entre os termos "judicial" e "jurisdicional". Segundo Araújo (1981, p. 87), "tudo que emerge do Poder Judiciário será atividade judicial, quer se considere o aspecto formal, quer o material de seus atos." Serrano Júnior (1996, p. 106), por sua vez, completa essa idéia, aduzindo que o exercício da função jurisdicional

          "[...] necessita de uma série de atividades-meios, exercidas pelos diversos agentes judiciários [...], inclusive, o juiz [...] para atingir seu clímax. Do ajuizamento da ação até seu julgamento final, e, além deste, até a execução completa do julgado, [...] uma gama imensa de atividades foram realizadas."

          Nesse contexto é que são diferenciados os atos judiciais e os atos jurisdicionais. Os primeiros consistem naqueles atos desempenhados com o fito de dirigir o processo à prolatação da sentença, compondo o dinamismo processual; os segundos, por sua vez, são representados pelas sentenças de mérito, ponto culminante da prestação jurisdicional, e por outras decisões interlocutórias. É importante notar que, quanto aos atos judiciários, de índole materialmente administrativa, não existem controvérsias a respeito da possibilidade de indenização dos danos porventura deles decorrentes; no que concerne aos atos jurisdicionais, contudo, verifica-se certa resistência em se admitir sua indenizabilidade (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 107), conforme será abordado no item 3.3 deste capítulo.

          Feitas essas breves anotações a respeito da função jurisdicional, o passo seguinte será buscar seu enquadramento como um serviço público. Nesse sentido, para Di Pietro (2002, p. 99), serviço público pode ser definido como "toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio dos seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público."

          Infere-se, de tal conceito, que o serviço público é criado através de lei, o que representa uma opção do próprio Estado, o qual, reconhecendo a importância de determinada prestação para a coletividade, fixa-a como serviço público, tomando para si a responsabilidade de levá-la a efeito, seja diretamente ou por via indireta, como ocorre nas concessões e permissões.

          Na realidade, é preciso que se vislumbre uma concepção de serviço público que não se detenha tão somente nas funções administrativas prestadas pelo Estado. Assim é que Araújo (1981, p. 45) se expressa, ao escrever que serviço público "é toda atividade exercida pelo Estado, através de seus ‘poderes’ (legislativo, executivo e judiciário), para a realização direta ou indireta de suas finalidades."

          Destarte, a atividade jurisdicional do Estado deve ser incluída no rol dos ditos serviços públicos, até porque sua própria origem, com a avocação pelo ente estatal do monopólio de compor os conflitos de interesses, indubitavelmente, reveste-a do referido caráter. Tal afirmação encontra respaldo no escólio de Dergint (1994, p. 113), para quem "Se a prestação da tutela jurisdicional é exclusivamente incumbida ao Poder Público, em caráter obrigatório, não podendo os particulares ‘fazer justiça’ de mão própria, o serviço judiciário configura, inequivocamente, um serviço público." Completando esse raciocínio, Serrano Júnior (1996, p. 107) acrescenta que "Sendo o único possível de sua natureza, o serviço judiciário deve ser prestado com qualidade.O direito de ação importa, sem dúvida, no direito a um serviço judiciário de qualidade, ágil, eficiente, enfim, que atende às exigências de seus usuários."

          Desse modo, reconhecida o exercício da função jurisdicional como sendo a prestação de um serviço público, a responsabilidade civil do Estado por atos do magistrado começa a ganhar fortes contornos no sentido de ser uma decorrência do dever indenizatório imposto ao Estado por danos decorrentes dos serviços públicos, os quais se tornarão mais nítidos quando aclarada for a qualificação desse profissional como um agente público, levada a efeito nas linhas seguintes.

          3.2. Principais argumentos contrários à responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais e sua respectiva refutação

          3.2.1 Soberania do Poder Judiciário

          Durante muito tempo, esse argumento serviu de base para sustentar a irresponsabilidade do Estado no campo dos atos jurisdicionais, de tal sorte que o Poder Judiciário, por esse argumento, "[...] no exercício ‘soberano’ de suas atribuições era, assim, colocado em uma posição supra legem, não se admitindo tanto a responsabilidade estatal, quanto a pessoal do juiz." (DERGINT, 1994, p. 130)

          Entretanto, sob a óptica moderna que se tem da noção de soberania, esse argumento é inexoravelmente rechaçado. Nesse sentido, a síntese feita por Dergint (1994, p. 131) merece lembrança:

          "A soberania é um atributo da pessoa jurídica Estado, de forma una, indivisível e inalienável. Soberano é o Estado como um todo, e não o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário (independente ou conjuntamente). Estes, aliás, são mais propriamente ‘funções’ e não ‘poderes’do Estado. A cada qual compete unicamente o exercício da soberania estatal, dentro dos limites constitucionalmente traçados. A unidade e a totalidade caracterizam a idéia de soberania, que, em verdade, não designa o poder, mas uma qualidade do poder estatal – grau supremo desse poder."

          Assim, no desempenho da função jurisdicional, o Poder Judiciário, por meio do magistrado, realmente atua como expressão do poder estatal, que é soberano; entretanto, essa mesma manifestação é comum às demais funções, vale dizer, executiva e legislativa, sendo inconcebível, no Estado de Direito, a existência de um poder "que, à diferença dos demais, seja em si mesmo soberano." (ALCÂNTARA, 1988, p. 27)

          Além disso, como muito bem esclarece por Di Pietro (2002, p. 533-534): "Se fosse aceitável o argumento da soberania, o Estado também não responderia por atos praticados pelo Poder Executivo, em relação aos quais não se contesta a responsabilidade." Dessa forma, tanto o Executivo, quanto o Legislativo e o Judiciário são expressões do poder estatal, de tal sorte que ou se reconhece a responsabilidade por danos decorrentes das atividades desempenhadas por estas três funções, ou então seja ela negada em todos os casos de lesões advindas de atividades estatais, o que, como se sabe, é inaceitável atualmente.

          Concebendo-se, portanto, a soberania como um atributo do poder estatal e a unidade deste, pode-se concluir, com Fachin (2001, p. 69), que tais premissas ensejam duas conseqüências, a saber, a superação das teorias que defendem a irresponsabilidade do Estado por atos do magistrado, e a imposição do dever de o Poder Público reparar os danos oriundos do exercício da atividade jurisdicional, como de resto deve fazê-lo, igualmente, em relação às funções executiva a legislativa.

          3.2.2. Incontrastabilidade da coisa julgada

          Dentre os argumentos arrolados pelos defensores da irresponsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, a incontrastabilidade da coisa julgada, sem dúvida, é o mais sólido; todavia, também ele não resiste a uma contra-argumentação, pois admitir a responsabilização do Estado por atividades judiciárias não importa, de forma alguma, em ofensa à coisa julgada, instituto concebido com o intuito de satisfazer as necessidades de estabilização das decisões judiciais e garantia de segurança jurídica.

          A respeito da formação da coisa julgada e das razões pelas quais consistiria ela em obstáculo à responsabilização do Estado por atos jurisdicionais, Dergint (1994, p. 135) explica que

          "Contra a eventual injustiça das decisões judiciárias possuem as partes as vias recursais. O ato judicial decisório, quando não mais sujeito a recurso, torna-se definitivo, adquirindo a qualidade de coisa julgada. A decisão trânsita em julgado, ainda que contendo erro de fato ou de direito, cria sua própria ‘verdade’ e seu próprio direito (res iudicata facit ius). Por tal razão, pressuposta legítima, a decisão não pode ensejar a responsabilidade civil, que pressupõe dano gerado por ato contrário ao Direito. Na expressão medieval: res iudicata facit de albo nigrum et de quadrato rotundum."

          Por outro lado, Alcântara (1988, p. 31) insurge-se contra essa premissa, lançando o seguinte desafio ao defensores da irresponsabilidade do Estado por atos do magistrado que invocam esse argumento em sua defesa:

          "Aos que sustentam que a coisa julgada vem a ser o fundamento da irresponsabilidade do Estado por ato jurisdicional, perguntaríamos como se colocaria a questão dos atos jurisdicionais que não fazem coisa julgada, como os que não decidem o mérito

          Nessa hipótese qual seria o fundamento? A soberania? Não nos parece que a coisa julgada seja um impedimento, mas sim um limite a ser transposto antes de se pleitear a reparação patrimonial."

          Desse modo, o argumento ora analisado começa a dar seus primeiros sinais de fraqueza, consistentes na aludida limitação à alegação de ofensa à coisa julgada como óbice da indenizabilidade dos atos jurisdicionais, vez que há certos atos praticados pelo magistrado que não alcançam a dignidade de coisa julgada, os quais, entretanto, podem ter efetivo potencial lesivo.

          Costuma-se dividir a coisa julgada em formal e material. Assentindo nesse desdobramento, Serrano Júnior (1996, p. 133), com elogiável brevidade, esclarece que

          "Enquanto a coisa julgada formal torna a sentença imutável dentro do processo, como um ato processual, pondo-a, com isso, ao abrigo dos recursos, a coisa julgada material torna imutável os efeitos por ela lançados fora do processo. É a imutabilidade da sentença no mesmo processo ou em qualquer outro entre as mesmas partes, pelo que, nenhum juiz poderá novamente julgar, nem as partes litigar, nem o legislador dispor, sobre relação jurídica que foi objeto de pretensão jurídica com julgado dotado de tal qualidade."

          É justamente essa qualidade da sentença, vale dizer, a imutabilidade que tem sido alegada como impedimento ao dever de indenizar do Estado por atos jurisdicionais.

          Pondere-se, todavia, que tal princípio seria demasiadamente rigoroso caso se pretendesse defendê-lo de forma absoluta. Por tal motivo, foram estabelecidos, nas esferas civil e penal, os corretivos necessários a referida rigidez, representados, respectivamente, pelos institutos da ação rescisória e da revisão criminal. Nesse sentido, Dergint (1994, p. 142) assevera que

          "Por certo, a revisão criminal e a ação rescisória civil restringem a amplitude do princípio da imutabilidade da coisa julgada, que, então, impediria apenas a concessão ‘de plano’ de uma indenização contra uma decisão definitiva. Admitindo o processo de revisão (cível ou criminal) do ato jurisdicional, sendo ele anulado e substituído por outro (agora regular), a indenização [...] será a conseqüência lógica da nova decisão, sem que se fira a autoridade da coisa julgada.Destarte, a coisa julgada constituiria somente um obstáculo processual à responsabilidade do Estado, dentro do âmbito dos atos jurisdicionais propriamente ditos."

          É admitido, portanto o desfazimento da coisa julgada através dos meios processuais cabíveis, de tal sorte que não representa ela um valor absoluto e intangível, aliás, uma das tônicas do processo civil moderno é justamente a discussão acerca da relatividade da coisa julgada. Dito isto, mostra-se oportuno mencionar o fato pelo qual, na seara penal, a revisão criminal pode ser proposta a qualquer tempo, nos exatos termos do artigo 622, do Código de Processo Penal; ao passo que, no âmbito civil, de conformidade com o artigo 495, do Estatuto Adjetivo, a ação rescisória é admitida dentro de um lapso de interposição de dois anos, contados a partir do trânsito em julgado da decisão, de modo que, no primeiro caso, é dizer, no processo penal, não se forma a denominada coisa "soberanamente" julgada, como ocorre no processo civil após o decurso do aludido interregno.

          Nesta última hipótese, vale dizer, a formação da coisa "soberanamente" julgada, verificada no processo civil, surgem divergências a respeito do cabimento da ação indenizatória, pois a autoridade da coisa julgada firmou-se de modo irredutível. Nesse embate doutrinário, prevalece a posição pela qual a indenização prescinde da rescindibilidade da sentença, restando afastada, em mais esta oportunidade, o princípio da intangibilidade da coisa julgada como defesa da irresponsabilidade estatal por força de danos decorrentes da atividade jurisdicional. Advogando em favor dessa concepção, Araujo (1981, p. 143) argumenta que:

          "Realmente, apurada a falha determinante do erro no edifício de um procedimento judicial, se não mais se puder desabar por prescrita a rescisória, não se compreende porque não possa ser o prejudicado indenizado por esse erro do Estado-Juiz, mesmo mantendo-se o julgamento já transitado em julgado."

          Nesse caso, não será a validade da decisão que será impugnada através da ação indenizatória, está se manterá íntegra e continuará a vincular as partes, mas antes serão argüidas razões e fundamentos afetos à reparação dos danos dela provenientes, de forma que a eventual procedência da ação não implicará a modificação do teor do ato jurisdicional ou suspensão dos efeitos da coisa julgada.

          Na realidade, a improcedência do argumento ora rebatido tem cunho axiológico. Conforme pondera Dergint (1994, p. 145-146), o instituto da coisa julgada tem por finalidade manter

          "[...] a paz social e a segurança jurídica, para tanto devendo a decisão judicial, a certo ponto, pôr definitivamente fim a um litígio. Evidentemente, aqui, valores de ‘justiça’podem conflitar com o princípio. A razoabilidade há, no entanto, que ser encontrada em um equilíbrio de valores considerados válidos (in medio stat virtus)."

          Dessa forma, deve-se reconhecer a relatividade dos princípios jurídicos da paz social e da segurança jurídica, fundamentos da coisa julgada, de modo que, em conflito com o valor da justiça, deve ser buscado um equilíbrio que conduza a uma harmonização dos institutos da coisa julgada e da responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais.

          3.3 Demais argumentos: teor e inconsistência

          Ao lado dos dois argumentos expostos supra, que podem ser considerados os principais na defesa da tese da irresponsabilidade do Estado por atos do magistrado, podem ser mencionados, ainda, outros quatro, de maior fraqueza, quais sejam: a falibilidade contigencial dos juízes; o risco assumido pelo jurisdicionado; a independência da magistratura; e a ausência de texto legal expresso.

          O primeiro, a bem da verdade, além de ser extremamente frágil, representa mais uma razão que justifica que um argumento contrário à responsabilidade civil do Estado por atos do magistrado. Com efeito, os juízes não são deuses e, em sua condição humana, são passíveis de erro, como qualquer indivíduo, de modo que, pela relação de imputação direta dos atos dos agentes públicos ao próprio Estado, tem-se a circunstância pela qual os erros do magistrado são erros do Poder Público, restando inequívoca, portanto, a possibilidade de se pleitear a indenização pelos danos deles originados.

          O pensamento dos defensores do segundo argumento, vale dizer, o risco assumido pelo jurisdicionado, é assim traduzido por Fachin (2001, p. 176):

          "[...] o Estado não responde pelos danos causados pela atividade jurisdicional porque o jurisdicionado, ao deduzir em juízo sua pretensão, assume os riscos inerentes a esta espécie de serviço público. Os jurisdicionados, por meio da vontade manifestada tácita ou expressamente, anuíram que outros exercessem o poder. Se houve tal anuência, eles devem assumir os riscos decorrentes do exercício da administração e, portanto, da administração da justiça."

          Essa visão, contudo, mostra-se míope e distanciada de um preceito fundamental, qual seja, a noção pela qual a atividade jurisdicional é considerada um serviço público e, como tal, é desempenhada no interesse da coletividade e não simplesmente daqueles que a ela recorrem.

          Desse modo, com Dergint (1994, p. 150), pode-se concluir que a assunção, pelo jurisdicionado, dos riscos inerentes à atividade jurisdicional configura uma aberrante inversão da teoria do risco em matéria de responsabilidade estatal, vez que, conforme já examinado, é o Estado que deve assumir, perante os cidadãos, os riscos advindos da prestação dos serviços públicos.

          O terceiro argumento, por sua vez, também carece de sustentação. É certo que, para bem desempenhar sua função, de notável relevância do seio da sociedade, mostra-se indispensável ao magistrado a concessão de certas garantias que lhe assegurem a independência e a imparcialidade. Entretanto, em nome dessa independência, muitos têm propugnado pela irresponsabilidade do Estado por atos jurisdicionais, alegando a possível insegurança e temerosidade que se instalaria no espírito do julgador se admitida fosse a aludida responsabilização.

          Nesse passo, Di Pietro (2002, p. 535) assevera que:

          "As garantias de que se cerca a magistratura no direito brasileiro, previstas para assegurar a independência do Poder Judiciário, em benefício da Justiça, produziram a falsa idéia de intangibilidade, inacessibilidade e infalibilidade do magistrado, não reconhecida aos demais agentes públicos gerando o efeito oposto de liberar o Estado de responsabilidade pelos danos injustos causados àqueles que procuram o Poder Judiciário para que seja feita justiça." (grifo da autora)

          Dessume-se, portanto, que há um certo exagero na interpretação das garantias concedidas aos juízes com o escopo de lhes assegurar a independência e a imparcialidade, ao se afirmar que estas garantias teriam o condão de alijar a responsabilidade do Estado. Como pondera Dergint (1994, p. 152),

          "O valor da independência do juiz, certamente, é fundamental, porém não absoluto. Não deve ser considerado isolado de outros princípios e valores com os quais deve coadunar – entre eles o princípio da responsabilidade democrática dos titulares do poder público. Há que se conciliar ambos os princípios; um limita, mas não anula o outro."

          Principia, desse modo, a ruir a tese sustentada pelos defensores desse argumento, que cai definitivamente por terra quando se contra-argumenta no sentido que, no vigente sistema constitucional brasileiro, a concepção adotada estabelece a responsabilidade direta do Estado pelos danos advindos da prestação de serviços públicos, de tal sorte que o agente – na hipótese, o magistrado – apenas seria acionado em ação regressiva e, ainda assim, havendo elementos capazes de supedenear um agir culposo ou doloso de sua parte.

          Por derradeiro, àqueles que buscam supedanear a irresponsabilidade do Estado por atos praticados pelo magistrado na ausência de texto legal expresso, basta dizer que, à luz do preceito constitucional vigente, a responsabilidade civil do Estado por atos de seus agentes – dentre os quais os magistrado estão incluídos – já se encontra perfeitamente prevista no ordenamento jurídico pátrio, com requintes de norma constitucional, de tal sorte que também essa tese não merecer acolhimento.

          3.3 Atividades judiciárias danosas

          A atividade jurisdicional pode conduzir a uma gama considerável de hipóteses nas quais o particular pode ser lesado, de forma que uma exposição exaustiva de todas os casos nos quais o exercício da função jurisdicional poderia lesar a outrem configura tarefa de extrema dificuldade e, talvez, quase impossível de ser realizada. Feita essa ressalta, será objeto de considerações no presente artigo, apenas a questão relativa à demora da prestação na entrega jurisdicional, não se olvidando, contudo, que existem outros casos de atividades jurisdicionais consideradas lesivas, mencionadas, de modo mais ou menos constante pelos autores que enfrentam a matéria, dentre os quais podem ser citados o erro judiciário civil e penal, os danos provocados dolosa ou culposamente pelo juiz e a denegação da justiça, entre outros. Antes, porém, oportuna se mostra a análise, ainda que a passos largos, da questão relativa ao binômio tempo-processo, que será levada a efeito no tópico seguinte.

          3.3.1 A questão do tempo do processo

          Desde Carnelutti já se tem a noção de que "O tempo é um implacável inimigo do processo, contra o qual todos – o juiz, seus auxiliares, as partes e seus procuradores – devem lutar de modo obstinado." (CRUZ E TUCCI, 1999, p. 119).

          Aliás, Dinamarco (2001, p. 895), ao discorrer sobre os efeitos lesivos da lentidão na entrega da prestação jurisdicional, alerta que os males daí decorrentes são de três ordens, a saber, afetam tanto o direito da parte, que perece em razão da demora; atingem, de igual forma, o psiquismo do consumidor dos serviços forenses, causando angústia e incertezas; bem como provoca o desgaste e desprestígio do próprio processo, em decorrência do perecimento dos meios dos quais precisa valer-se para bem desempenhar dita missão. Diz o processualista:

          Há direitos que sucumbem de modo definitivo e irremediável quando a tutela demora, mas há também situações que, mesmo não desaparecendo por completo a utilidade das medidas judiciais, a espera pela satisfação é fator de insuportável desgaste, em razão da permanência das angústias e incertezas. Há também o desgaste do processo mesmo, como fator de pacificação com justiça, o que sucede quando o decurso do tempo atinge os meios de que ele precisa valer-se para o cumprimento de sua missão social (provas e bens).

          Com isso, a perquirição em torno de medidas capazes de combater os efeitos danosos decorrentes da lentidão na entrega da prestação jurisdicional é tarefa das mais importantes e os esforços para concretizá-la devem possuir, justificadamente, a maior amplitude possível, encampando, inclusive, o aspecto processual e o desenvolvimento de instrumentos hábeis a oferecer e proporcionar ao jurisdicionado uma tutela efetiva e em tempo razoável. Nesse sentido, conhecidas são as palavras de Luiz Guilherme Marinoni (1997, p. 23) que, focalizando o instituto da antecipação de tutela, com propriedade, chama atenção para a circunstância de que:

          Se o autor é prejudicado esperando a coisa julgada material, o réu, que manteve o bem na sua esfera jurídico-patrimonial durante o longo curso do processo, evidentemente é beneficiado. O processo, portanto, é um instrumento que sempre prejudica o autor que tem razão e beneficia o réu que não há tem!

          É preciso que se perceba que o réu pode não ter efetivo interesse em demonstrar que o autor não tem razão, mas apenas desejar manter o bem no seu patrimônio, ainda que sem razão, pelo maior tempo possível, com o que o processo pode lamentavelmente colaborar.

          Se o processo é um instrumento ético, que não pode impor um dano à parte que tem razão, beneficiando a parte que não a tem, é inevitável que ele seja dotado de um mecanismo de antecipação da tutela, que nada mais é do que uma técnica que permite a distribuição racional do tempo no processo.

          Além disso, é digno de menção ainda que diversas outras medidas legislativas têm sido tomadas com o fito de se otimizar a prestação jurisdicional e eliminar, de forma mais satisfatória possível, os entraves e atrasos na efetiva realização, no plano empírico, das determinações judiciais. Cite-se, a título de exemplo, as inovações trazidas pela Lei n.º 11.232, de 23 de dezembro de 2005, que deu novos contornos ao processo de execução, através da instituição da fase de cumprimento de sentença, consagrando, dessa maneira, o que se convencionou chamar de processo sincrético.

          Tem-se, pois, que a questão do tempo do processo, como não poderia deixa de ser, guarda estreita relação com a tão desejada efetividade na prestação da tutela jurisdicional, cuja busca, consoante salientado linhas acima, é dever de todos. Conforme leciona Cruz e Tucci (1997, p. 27):

          O processo é o instrumento destinado à atuação da vontade concreta da lei, devendo, na medida do possível, desenvolver-se sob a vertente extrínseca, mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional emerja realmente oportuna e efetiva. (grifo nosso)

          Em explanação muito feliz e fazendo síntese da relação existente entre o processo o tempo, Cruz e Tucci (1997, p. 65) conclui que:

          Em suma, o resultado de um processo "não apenas deve outorgar uma satisfação jurídica às partes, como também, para que essa resposta seja a mais plena possível, a decisão final deve ser pronunciada em um lapso de tempo compatível com a natureza do objeto litigioso, visto que – caso contrário – se tornaria utópica a tutela jurisdicional de qualquer direito. Como já se afirmou, com muita razão, para que a Justiça não seja injusta não faz falta que contenha equívoco, basta que não julgue, quando deve julgar."

          Além disso, essa tendência moderna de busca pela aceleração dos procedimentos e conseqüente incremento da efetividade do processo coaduna-se com a efetividade das próprias garantias constitucionais da ação e da defesa. Nesse sentido, veja-se, mais uma vez, a lição de Cruz e Tucci (1997, p. 129):

          Diante do exposto, fácil fica concluir que essa tendência atual, com a finalidade de acelerar a marcha procedimental, deve ser individuada na intolerância da excessiva lentidão da estrutura do processo tradicional, visto resultar pacífico que a rápida prestação jurisdicional é elemento indispensável para a efetiva atuação das garantias constitucionais da ação e da defesa.

          À guisa de remate, mister consignar que a preocupação com a tempestividade da entrega na prestação jurisdicional atingiu dignidade constitucional, com o advento da Emenda Constitucional n.º 45, que acrescentou o inciso LXXVIII ao art. 5.º, da Constituição Federal [19], pelo qual a todos, no âmbito judicial ou administrativo, são asseguradas a razoável duração do processo e meios que garantam celeridade em sua tramitação. Trata-se, assim, de mais um reforço, agora em sede constitucional, na tentativa de se abreviar os males da longa duração do processo e das conseqüências danosas dela advindas.

          Segundo Horácio Wanderlei Rodrigues (2005, p. 287), a existência do direito à prestação constitucional em um prazo razoável já era uma realidade, mesmo antes do advento da EC n.º 45, que o integrou ao texto constitucional de forma expressa, decorrendo dito direito, em primeiro lugar, do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário (art 5.º, XXXV [20]), do princípio do devido processo legal (art. 5.º, LIV [21]) e, no âmbito internacional, da adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica [22]), em 26 de maio de 1992.

          Apesar disso, a EC n.º 45 trouxe pontos importantes relativos à prestação jurisdicional em prazo razoável, quais sejam: a) eliminar qualquer discussão porventura existente a seu respeito; b) estabelece, ainda que indiretamente, a definição de que prazo razoável é o legal, ao impedir, no art. 93, inciso II, alínea "e", a promoção de juiz que retenha, injustificadamente, autos em sue poder além do prazo legal; c) trouxe também exigência da existência de meios que garantam a celeridade processual; e d) trouxe um conjunto de determinações afetas à organização do Poder Judiciário destinadas a auxiliar no cumprimento efetivo do comando constitucional (RODRIGUES, 2005, p. 288).

          Para esse autor (2005, p. 288), o novo preceito constitucional condensa duas normas, a saber, a garantia da razoável duração do processo e da existência de meios que garantam a celeridade processual. Possuem aludidas normas, ademais, um duplo direcionamento, estabelecendo direitos fundamentais que podem ser exigidos por qualquer cidadão, bem como dirigindo ao Poder Público uma ordem para que garanta o direito à prestação jurisdicional em prazo razoável e crie os meios necessários para que isso ocorra.

          Dessa maneira, agora destacada pelo novo comando constitucional, a busca de meios para o combate da lentidão na entrega da prestação jurisdicional e dos efeitos nocivos do tempo no processo, com vistas a dar uma maior efetividade na tutela jurisdicional, ganhou substancial relevo, devendo constituir uma preocupação constante para o estudioso e aplicador do Direito. Esse destaque constitucional, por sua vez, deve abranger não são a criação do ferramental necessário a emprestar maior celeridade à máquina judiciária, mas também direcionar e orientar a própria organização e estruturação do Poder Judiciário, de tal sorte que a responsabilização do Estado pela demora na prestação jurisdicional ganhou inegável reforço com a referida Emenda do texto constitucional.

          3.3.2. A demora na prestação da tutela jurisdicional

          Como descreve Alcântara (1988, p. 48), freqüentemente a demora da entrega da prestação jurisdicional é causa de perecimento de direitos e conseqüentes lesões ao patrimônio do particular. Com efeito, a lentidão do Poder Judiciário é uma realidade que provoca uníssono reclamo e descontentamento social, sendo causa que até mesmo desencoraja o recurso à via judicial para a resolução dos conflitos de interesse, estimulando a procura de meios alternativos, e contribui para que se semeie o gérmen do descrédito e da sensação de impunidade no meio social.

          Tendo o Estado tomado para si o monopólio da justiça, a prestação da tutela jurisdicional representa o único meio legítimo de se estabilizar definitivamente qualquer direito conflitado. Dessa forma, cumpre ao poder Público "zelar por um certo grau de perfeição na prestação do serviço judiciário, de modo que seu funcionamento tardio gera, como conseqüência lógica, seu dever de responder pelos danos que eventualmente causar." (DERGINT, 1994, p. 196)

          Segundo Jucovsky (1999, p. 69), "A demora na decisão judicial, em verdade, afigura-se prestação jurisdicional eivada de imperfeição", sendo seu raciocínio completado pela lição de José Augusto Delgado, que assim preleciona:

          "(...) a demora na prestação jurisdicional cai no conceito de serviço público imperfeito. Quer que ela seja por indolência do Juiz, quer que seja por o Estado não prover adequadamente o bom funcionamento da Justiça. E, já foi visto que a doutrina assume a defesa da responsabilidade civil do Estado pela chamada pela chamada responsabilidade civil do Estado pela chamada falta anônima do serviço ou, em conseqüência, do não bem atuar dos seus agentes, mesmo que estes não pratiquem a omissão dolosamente." (apud JUCOVSKY, 1999, p. 70)

          Dessa maneira, não constitui excludente da responsabilidade estatal a lentidão na entrega da prestação jurisdicional atribuída ao mau aparelhamento do Poder Judiciário, seja sob o aspecto material ou humano.

          Seja por conta do agir do magistrado [23], ou por insuficiência de recursos materiais ou humanos, é certo que a demora injustificada na prestação da tutela jurisdicional, se lesiva a direito do jurisdicionado, é causa que autoriza a propositura de demanda indenizatória contra o Estado, que poderia funcionar até mesmo como uma forma de cobrança para o solucionamento dos graves problemas que geram o emperramento da máquina judiciária. Aliás, como obtempera Fachin (2001, p. 209),

          "Se o Estado arrecada tributos e taxas judiciárias com a finalidade específica de executar essa modalidade de serviço público, deve prestá-lo com certo grau de qualidade. Ele deve fazer bem os serviços que presta. E entregá-los dentro de prazo razoável é corresponder ao que é seu dever e anseio dos jurisdicionados."

          Além disso, conforme destaca o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, relator do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.º 10.268-Bahia e publicado no DJ de 23/08/99, que foi julgado pela 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, "A prestação jurisdicional ofertada pelo Estado possui a mesma importância dos balcões de primeiros socorros em hospitais públicos", de tal sorte que seu oferecimento tempestivo e oportuno, mais que um direito do cidadão, é um dever do Estado, passível de responsabilização toda vez que falhar nesse mister.

          Dessa forma, não aproveita ao Estado o argumento segundo o qual o Poder Judiciário está sobrecarregado, há falta de juízes e a estrutura é precária, para que se exima do dever legal de prestar a tutela jurisdicional em um lapso temporal razoável, pois – insista-se – tomou para si o monopólio da jurisdição, com o que, elevada à categoria de serviço público, deve ser oferecida com um mínimo de qualidade, em obediência ao princípio da legalidade, salientando-se ainda que, para Diniz (2002, p. 561) o direito à prestação da tutela jurisdicional dentro dos prazos legalmente fixados constitui uma garantia individual implícita, nos termos do art. 5.º, LIX, da Constituição Federal. Cristalina, portanto, a conclusão segundo a qual os danos provocados por morosidade da Justiça são perfeitamente indenizáveis. [24]


4. Conclusão

          O instituto da responsabilidade civil do Estado representa uma conquista do Estado Democrático de Direito, resultando de um paulatino processo evolutivo que culminou por sua inserção no ordenamento jurídico, a nível constitucional.

          Muito embora não sejam poucos os que relutam a obrigação de indenizar no que pertine a atos do Poder Judiciário, resistência esta, inclusive, bastante acentuada em terreno jurisprudencial, as ponderações lançadas por ocasião da análise da responsabilidade civil do Estado podem e devem ser admitidas nesta seara, patente o caráter de serviço público da função jurisdicional, de tal sorte que, no Direito brasileiro, eventuais resquícios da tese da irresponsabilidade estatal por atos jurisdicionais, além do reprovável conservadorismo jurisprudencial, devem ser definitivamente banidos.

          Nesse sentido, não é demais lembrar que todos os argumentos articulados em defesa da imunidade de tais atos à responsabilização foram rechaçados e maioria esmagadora da doutrina advoga em favor da corrente que defende a responsabilidade civil do Estado por atos dessa natureza, a qual pode exsurgir independentemente de culpa, em conformidade com o critério objetivo de imputação, ou com esteio na culpa anônima do serviço.

          Desse modo, todas as modalidades de atividades jurisdicionais danosas, além daqueles atos com caráter meramente administrativo praticados pelo juiz, devem ser arrolados como hipóteses possuidoras do condão de deflagrar a responsabilização do Poder Público, tudo isso em obediência aos princípios consagrados pelo Estado Democrático de Direito.

          Nesse ponto, no que concerne especificamente à demora da prestação jurisdicional, é de clareza solar que representa ela um dos principais fatores de descrédito e também de danos ao cidadão necessitado dos serviços judiciários. Por essa razão, não se exclui ela, independentemente do motivo que a desencadeou, do raio de abrangência da responsabilidade do Estado, mormente a nova diretriz constitucional trazida pela Emenda n.º 45, bem como a gravidade dos efeitos lesivos que o tempo provoca ao processo.

          Destarte, não se pode perder de vista a circunstância pela qual o Poder Judiciário, dada a relevância de sua função, deve oferecer ao jurisdicionado uma prestação jurisdicional de qualidade, devendo buscar incessantemente uma melhoria na qualidade de seus serviços, de forma que os obstáculos comumente enumerados como causas do retardamento da prestação jurisdicional oportuna devem ser diligentemente combatidas, a fim de que o famoso brocardo cunhado por Rui Barbosa segundo o qual "Justiça tardia não é Justiça" restrinja apenas ao campo teórico, de forma que a finalidade da justiça, de dar a cada um o que é seu segundo uma igualdade, possa ser atingida de modo célere e eficaz.


Notas

  1. Essa heterogeneidade de tratamento da matéria é assim resumida por Di Pietro (2002, p. 524): "[...] o que alguns chamam de culpa civil, outros chamam de culpa administrativa; alguns consideram como hipóteses diversas de culpa administrativa e o acidente administrativo; alguns subdividem a teoria do risco em duas modalidades [...]"
  2. Alcântara (1988, p. 14), retrocedendo ainda mais no tempo, destaca uma época primitiva, que vai desde as origens da humanidade até Roma, na qual o Estado não era concebido como unidade jurídico-política, não se tendo sequer como se cogitar uma teoria da responsabilidade estatal. Segundo a autora, na Grécia Antiga a responsabilidade não era nem mesmo discutida, pois o soberano podia dispor livremente sobre os bens do cidadão, respondendo apenas perante a divindade; em Roma, o Estado não possuía personalidade jurídica, criando-se, pois, o Fisco, pessoa moral a quem pertenciam os bens que o Estado utilizava no cumprimento de suas finalidades, respondendo tão somente por obrigações contratualmente assumidas.
  3. Muito embora, nesses casos, a propositura da ação dependia de prévia autorização estatal, que raramente a concedia. Esse mecanismo era adotado, dentre outros, pela França e pela Alemanha. (BANDEIRA DE MELLO, 1980, p. 256)
  4. Embora a expressão "responsabilidade civil do Estado" esteja sendo utilizada insistentemente no corpo desse trabalho, deve ser ela entendida como responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público.
  5. A superação da tese da irresponsabilidade foi definitivamente consolidada, visto que as duas últimas nações que a sustentavam – Inglaterra e Estados Unidos – abandonaram-na, respectivamente, pelo Crown Proceeding Act, de 1947, e pelo Federal Tort Claims Act, de 1946. (MEIRELLES, 2003, p. 622)
  6. O caso Blanco foi julgado em 1.º de fevereiro de 1873, pelo Tribunal de Conflitos na França, que decidiu serem inaplicáveis as regras do Direito Privado para o julgamento de responsabilidade civil decorrente da prestação de serviços públicos. Esse caso envolveu Agnès Blanco, menina que foi atropelada por um vagonete da Cia. Nacional de Manufatura de Fumo, na cidade de Bordeaux. Inconformado com a morte da filha, seu pai moveu ação de indenização na qual obteve o reconhecimento de que é indevida a associação da responsabilidade civil do Estado francês com princípios de Direito Privado. (ROSA, 2003, p. 167)
  7. Alguns autores, como Di Pietro (2002, p. 527) e Dergint (1994, p. 45), mencionam que a divisão da teoria do risco nas duas modalidades supra mencionadas não é acatada pela maioria da doutrina. O que se percebe, entretanto, é uma mera divergência terminológica, inclusive no plano jurisprudencial, vez que parece ser consenso a idéia segundo a qual a responsabilidade do Estado, neste enfoque, possui caráter objetivo, admitidas causas que a excluem ou mitigam. Essa divisão, entretanto, será mantida no presente trabalho, tendo em vista sua finalidade de expor, de uma forma a mais completa possível, as concepções criadas a respeito do tema.
  8. Refutam a teoria do risco integral Rosa (2003, p. 168), Fachin (2001, p. 90), Moraes (2004, p. 911), Gasparini (2001, p. 825), dentre outros.
  9. Também perfilham essa corrente Serrano Júnior (1996, p. 49), Trujillo (1996, p. 59), Fachin (2001, p. 92), Gasparini (2001, p. 820) e Alcântara (1988, p. 17), dentre outros.
  10. Tradução livre.
  11. Eis o vigente preceito constitucional: "Art. 37. A administração pública, direta ou indireta de qualquer dos poderes da União, do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]
    § 6.º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."
  12. Há, contudo, vozes em sentido contrário, como a de Vera Lúcia Jucovski (1999, p. 67), para quem o texto constitucional alude apenas aos agentes administrativos e não, expressamente, aos agentes políticos, nos quais se incluem, segundo a autora, magistrados e parlamentares, pelo que conclui ela que o Estado, quanto a atos legislativos e judiciais, só poderia ser responsabilizado se restar demonstrada a culpa pelo fato causador do dano à vítima.
  13. Veja-se, a título de exemplo, o teor da decisão proferida no Recurso Extraordinário n.º 109.615-2/RJ, D. J. de 02.08.96, que teve como relator o Ministro Celso de Mello, assim ementado:
    "INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PODER PÚBLICO – TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO – PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS DE DETERMINAÇÃO DESSA RESPONSABILDIADE CIVIL – DANO CAUSADO A ALUNO POR OUTRO ALUNO IGUALMENTE MATRICULADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO – PERDA DO GLOBO OCULAR DIREITO – FATO OCORRIDO NO RECINTO DA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL – CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO MUNICÍPIO – INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL DEVIDA – RE NÃO CONHECIDO.
    [...]
    A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência do ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público." (grifos no original). (Disponível em: http://www.sttf.gov.br. Acesso em: 18 out. 2004)
  14. Também identifica essa dupla relação Di Pietro (2002, p. 529), para quem, no art. 37, § 6.º, "[...] estão compreendidas duas regras: a da responsabilidade objetiva do Estado e a da responsabilidade subjetiva do funcionário." (grifo da autora)
  15. "Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo."
  16. Na seqüência de seu raciocínio, a autora vai mais além em sua posição, defendendo que, nesse segundo caso, vale dizer, invocação do dolo ou culpa do agente, a ação seria cabível diretamente contra este, admitido também o litisconsórcio passivo com o Poder Público, idéia esta, contudo, que será rebatida oportunamente, pelo menos no que diz respeito à figura do magistrado.
  17. A sucessão dessas fases, contudo não se deu com a fixação de marcos nítidos, havendo períodos em que diferentes sistemas conviveram uns com os outros, com a predominância ora de um ora de outro. Aliás, ainda hoje verifica-se essa concomitância, permitido que é, em certas hipóteses, o exercício da autotutela, como no caso do esbulho possessório, no qual é autorizado o desforço imediato do lesado (cf. art. 1210, § 1.º, do Código Civil).
  18. Consoante Greco Filho (2000, p. 34), tal monopólio é decorrência dos princípios adotados pelo sistema constitucional brasileiro, admitindo certas exceções previstas em lei e justificadas pelas circunstâncias, como a auto-executoriedade dos atos administrativos, o direito de retenção e o direito de greve.
  19. "LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação."
  20. "XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;"
  21. "LIV – ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;"
  22. Item 1, do art. 8.º: "Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela,ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza."
  23. Um lamentável exemplo desse agir negligente pode ser extraído do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.º 10.268-BA, julgado pela Sexta Turma do STJ, no qual menciona-se que um magistrado durante 10 (dez) anos de judicatura prolatou apenas 4 (quatro) sentenças criminais de mérito e 33 (trinta e três) cíveis da mesma natureza. (DJ de 23/08/99)
  24. Muito embora, lamentavelmente, não tenha sido este o entendimento dos Tribunais superiores, inclusive o Supremo Tribunal Federal, nos quais essa tese tem encontrado muita resistência. (FACHIN, 2001, p. 210)

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CATOSSI, Vanessa Padilha. Responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1351, 14 mar. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9602. Acesso em: 26 abr. 2024.