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Análise da evolução das facções e de sua constituição em organizações criminosas

Análise da evolução das facções e de sua constituição em organizações criminosas

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Nem todas as facções criminosas trazem elementos que as configuram como ORCRIM. Algumas são meras gangues e, no máximo, associações criminosas.

RESUMO: As facções são um problema de segurança pública em fase de expansão em todos os estados do Brasil, causando problemas não somente no sistema penal, mas em todas as searas da sociedade. As facções podem ou não se constituir como Organizações Criminosas, dependendo de sua complexidade, de sua estabilidade e da forma de organização interna. A classificação da facção como ORCRIM é importante para a correta imputação penal de agentes faccionados.

PALAVRAS CHAVE: facções, organizações criminosas, impacto social, sistema penal, classificação.


1 INTRODUÇÃO

O fenômeno das facções criminosas é um evento recente na história brasileira, mas de inequívoco impacto no sistema de segurança pública. Surgidas como organização interna de presos, por motivos mais de sobrevivência ao sistema prisional, do que por outro motivo, as facções passaram a se configurar como organizações criminosas complexas. A complexidade se refere ao fato de que o fenômeno não se esgota tão-somente na questão penal. As facções se alimentam de problemas sociais degradantes e retroalimentam essa situação.

A capacidade de expansão das facções é maior do que a capacidade do Estado em frear tal expansão, ou dar respostas paliativas, seja em termos sociopolíticos, seja em termos criminais. Diversas legislações tem sido modificadas ou elaboradas, visando criar elementos aptos ao combate efetivo das facções criminosas, mas sem sucesso.

Para se enfrentar algo é preciso conhecimento. Nem todas as facções criminosas são ORCRIM. Algumas surgem como dissidências e tem existência tão efêmera que não se permitem organizar em estamentos mais ou menos fixos. Assim, uma facção pode se caracterizar como Organização Criminosa (ORCRIM), como associação criminosa (vide antigo crime de quadrilha, artigo 288 do Código Penal) ou meras gangues, com prática de crimes acessórios. Assim, o conhecimento acerca das facções, tanto com parâmetros reais quanto em tese, permitem fazer a classificação de cada uma delas, durante o seu enfrentamento pela estrutura do Estado.

O presente artigo tem como finalidade trazer um esboço acerca das principais facções criminosas, sua forma de organização, e análise quanto à tipicidade criminal.


2 DAS FACÇÕES CRIMINOSAS

2.1. ORIGEM DAS FACÇÕES CRIMINOSAS BRASILEIRAS

As facções criminosas surgiram dentro dos presídios, como forma de auto-organização dos presos, visando, em um primeiro momento, a busca por melhorias internas e sobrevivência dentro do brutal sistema prisional, e, em um segundo momento, a formação de grupos para atuação em diversos crimes, formando-se assim uma espécie de associação permanente para a prática de delitos e proteção dos seus agentes.

A primeira facção criminosa conhecida é o COMANDO VERMELHO, que surgiu no Rio de Janeiro. A sua origem está ligada com a união, dentro do Presídio da Ilha Grande, de presos comuns, vindo de morros cariocas, e de prisioneiros políticos, detidos com base na Lei de Segurança Nacional. Os presos trocaram experiência e passaram a se organizar para defesa de interesse mútuos dentro do Presídio, levando a organização para fora dos muros do sistema prisional.

O jornalista Carlos Amorim escreveu um livro-reportagem que explica a origem do Comando Vermelho. O autor se aprofunda na relação de simbiose entre o preso comum e o preso político, explicando como vem a surgir o crime organizado no Brasil. Para Amorim (AMORIM, 1993, página 42), "os piores criminosos do Rio estão trancados nas quatro galerias que formam o presídio, contrariando tanto o projeto arquitetônico do prédio quanto as intenções da Justiça (...) a Ilha Grande se transforma num depósito para os mais perigosos. Vira prisão de segurança máxima. E ainda se comete o erro de juntar o bandido dito irrecuperável com o velho presidiário, que trabalha de colono nas lavouras em torno do presídio. Muitos homens condenados por crimes menores também enfrentam a convivência com o que há de pior nos arquivos do Tribunal de Justiça. A Ilha Grande ganha status de um curso de pós-doutorado no crime. Quem entra ladrão sai assaltante. Aquele que tentava a sorte sozinho sai chefe de quadrilha".

O livro-reportagem citado traz os elementos básicos que explicam a origem de praticamente todas as facções brasileiras. A junção de presos de periculosidade diferentes (ladrão de galinha e assaltante de bancos), a repressão extrema do sistema prisional, a falta de dignidade humana dentro dos presídios, a corrupção do sistema e as linhas de oportunidades de lucro com o mercado negro são citados. Carlos Amorim cita a questão do uso da pobreza como escudo protetor por parte da facção. Cita a linha de ação do CV, no qual essa facção protegeria o pobre (AMORIM, 1993, página 136), e que o crime organizado ocupa as lacunas de assistência social que o Estado vai deixando para trás, ao sabor da crise econômica ou da insensibilidade política. A dominação sobre as comunidades pobres passa quase que necessariamente por esse tipo de estratégia, até porque o bandido mora na favela e é mais permeável às reivindicações do morador. A postura paternalista se mistura - até mesmo se confunde - com a aplicação da "lei do cão". E o favelado também compreende isso, numa aceitação de que a violência é natural num segmento da sociedade que já vive mesmo sem leis. A marginalização produz esse fenômeno social, ético e político.

Nessa toada as facções criminosas tem uma das características que é própria de grupos mafiosos, ou seja, a sensação de pertencimento a uma família, ou seja, a um núcleo social que acolhe o delinquente e sua família, disseminando um sentimento de confiança. Não á toa, a máfia há muito tempo já utilizava termos como "padrinho", "batismo", "cosa nostra" (coisa nossa), "afilhado", etc, justamente com esse intuito de fomentar uma relação próxima, de verdadeiro afeto entre os criminosos, impedindo ou dificultando a interferência de agentes externos ao grupo, como por exemplo o aparato policial. Neste ponto a "ormetá", ou seja, a lei do silêncio, é um ingrediente a mais, também de inspiração mafiosa, que está presente nas facções criminosas brasileiras, que se traduz em uma barreira quase intransponível para o desvendamento de crimes praticados por estes agentes. Nas buscas e apreensões realizadas em presídios brasileiros, por exemplo, é comum encontrar listas de presos cadastrados de determinada facção criminosa, onde são denominados de "irmãos", que "lutam em conjunto contra a opressão", que atuam em "defesa da família", é um verdadeiro estatuto, um "código de ética" do crime, que organiza e digamos que, até fideliza, os seus integrantes.

A outra facção de abrangência nacional é o Primeiro Comando da Capital, ou PCC. Essa facção surgiu na tarde do dia 31 de agosto de 1993, durante um jogo de futebol na Casa de Custódia Pinheirão.

O Primeiro Comando da Capital é a maior organização criminosa do Brasil, atuando a partir de São Paulo, e tendo como financiamento de sua organização o tráfico de drogas, roubo de cargas, assalto a bancos e sequestro.

Diante do enfraquecimento do Comando Vermelho do Rio de Janeiro, que tem perdido vários pontos de venda de droga no Rio, o PCC aproveitou para ganhar campo comercialmente e chegar à atual posição de maior facção criminosa do país, com ramificações em presídios de vários estados do Brasil como Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Minas Gerais e outros mais.

A partir do caso de sucesso do CV e PCC, surgiram dezenas de outras facções criminosas pelo país. O modelo, por ser um sucesso dentro do mundo do crime, expandiu-se rapidamente e tomando todo o país.

Um fato ocorrido em 02 de outubro de 1992, abalou todo o sistema prisional brasileiro, ecoando consequências das mais diversas formas na criminalidade pátria. O massacre do Carandirú, como ficou conhecido mundialmente, foi uma ação estatal no sentido de frear uma briga entre grupos rivais que ocorria na casa de detenção de São Paulo, a atuação policial sem planejamento acabou na morte de 111 detentos. Tal episódio, sem dúvida, fez com que a médio e longo prazo, as principais lideranças criminosas do país passassem organizar o crime, dentro e fora do sistema prisional, isto no afã de protegerem-se da atuação estatal, entendida pelos mesmos como opressora, guarnecer as necessidades dos criminosos e de seus familiares intra e extramuros, assim como implementar estratégias comerciais na atividade criminosa.

Alguns fatores explicam a expansão das facções criminosas pelo país, podendo ser citados:

a) a falta de sistemática do combate ao crime organizado, na qual cada Estado cuida da segurança pública de forma isolada, sem articulação nacional, sobretudo, ainda na pouca ênfase que é dada a expropriação patrimonial desses grupos criminosos, passando-se uma mensagem subliminar de que, na equação do crime, este compensa e recompensa, pois diante das probabilidades de insucesso na empreitada criminosa, a prospecção maior é a de auferimento rápido e vultoso de lucros;

b) o aumento do mercado consumidor de drogas, especialmente a cocaína e seu substrato, o crack, fazendo o Brasil sair de mercado essencialmente exportador para ser um importante mercado de consumo (MANSO e DIAS, 2018, página 173);

c) o aumento substancial da população carcerária, sem qualquer critério de separação entre presos, formando as chamadas Universidades do Crime; e

d) a vulnerabilidade das fronteiras brasileiras, faixas de terra ou água, por onde entram grande parte da maconha produzida no Paraguai e Bolívia, assim como cocaína advinda do Peru e Colômbia, além de armas contrabandeadas que alimentam o poderio bélico dos grupos criminosos, sobretudo os estabelecidos em favelas do sudeste do país.

2.2 PRINCIPAIS FACÇÕES CRIMINOSAS

2.2.1 FACÇÕES DE EXPRESSÃO NACIONAL

As duas principais facções criminosas do Brasil são o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. A terceira facção com grande expansão nacional é a FAMÍLIA DO NORTE, que, apesar de ter uma posição geográfica mais limitada ao Norte do Brasil, acaba por influir na disputa pelas rotas de importação e exportação de drogas e armas, o que lhe dá uma abrangência intermediária, entre a expansão nacional e regional.

2.2.1.1 QUADRO SITUACIONAL DO COMANDO VERMELHO.

O Comando Vermelho, conhecido pelas siglas CV e CVRL, é uma das maiores organizações criminosas do Brasil. Os fundadores e primeiros líderes, como Rogério Lemgruber, William da Silva Lima, o "Professor" e José Carlos dos Reis Encina, o escadinha, foram substituídos ou sucedidos por outros, como Luiz Fernando da Costa, o "Fernandinho Beira-Mar"; Márcio dos Santos Nepomuceno, o "Marcinho VP"; Gilberto Martins da Silva, o "Mineiro da Cidade Alta"; Elias Pereira da Silva, o "Elias Maluco"; e Fabiano Atanásio da Silva, o "FB". O CV possui ramificações em outros estados brasileiros como Acre, Amapá, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima e Tocantins.

A estrutura do CV, segundo levantamento do sítio nucleoconsult.com.br (disponível em: http://nucleoconsult.com.br/wp-content/uploads/2016/01/organograma-favelas-RJ.pdf, com acesso em 17/02/2022), tem no topo os chefes dos morros cariocas; seguido do STAFF, onde se incluem os serviços operacionais, como a central do arrego (propina a policiais e agentes públicos), assessoria jurídica, central de propaganda, central de operações e segurança etc.; central de produção (relacionado a droga); serviços logísticos; bocas de fumo, comandantes de áreas, vapores e aviãozinho (pequenos distribuidores), etc. O CV tende a manter alianças com facções de outros estados, ao contrário do PCC, que procura manter sintonias (franquias) locais, dentro de sua estrutura organizacional.

A disputa principalmente com o Primeiro Comando da Capital e com a Família do Norte é gerada pela necessidade de controlar duas das principais rotas de entrada de armas e drogas no Brasil, a rota paraguaia, e a rota do Solimões. Essa disputa gera conflitos gerais, como as chacinas em presídios, disputas locais, por bocas de fumo, ou assassinatos pontuais, como o caso do atentado a Jorge Rafaat, o antigo rei da fronteira, e que marcou o domínio do PCC na fronteira, em substituição ao Comando Vermelho, apesar de a guerra ainda continuar, com novos desdobramentos (vide: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/17/politica/1466198112_870703.html ).

O centro de comando do CV ainda é estabelecido no Rio de Janeiro, com as principais ordens vindo de dentro dos presídios federais, onde se encontram presos os seus líderes notórios, como Fernandinho Beira-Mar e Marcinho VP.

2.2.1.2 QUADRO SITUACIONAL DO PRIMEIRO COMANDO DA CAPITAL.

O PCC atualmente é a maior facção criminosa do país, estando em uma fase de mudança, deixando de apenas trabalhar na geração de recursos ilícitos, passando a ter capacidade de ocultar o patrimônio ilícito e reverter tal patrimônio em atividades lícitas. O apoio da NDRANGUETA, máfia italiana, tem sido essencial para essa evolução. A NDRANGUETA, maior máfia da Europa, aliou-se ao PCC para distribuição da cocaína no Velho Continente, além de prestar apoio logístico no processo de lavagem de capitais (vide Rizzi, Rícard Wagner, 2021, disponível em: https://faccaopcc1533primeirocomandodacapital.org/2019/08/15/a-alianca-entre-a-ndrangheta-e-o-pcc, com acesso em 16 de fevereiro de 2022).

O Primeiro Comando da Capital, conforme MANSO e DIAS (2018, página 333 e seguintes), tem influência em São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná, mas está presente em todos os estados brasileiros. A sua estrutura segue um organograma dividido em células, com relativa autonomia. No topo do sistema, conforme MANSO e DIAS, está a Sintonia Geral Final, sequenciada pelas Sintonia de São Paulo e Sintonia dos Estados e Países, seguindo-se as Sintonias Locais e Quebradas e Prisões. Além das Sintonias citadas, há as Sintonias de Apoio, incluindo as Sintonias dos Gravatas (advogados cadastrados e pagos pela facção), da Ajuda (para assistência às famílias dos presos), do Cadastro (para arregimentar novos membros), do Progresso (responsável pelo tráfico de drogas), da Cebola (responsável pelo recebimento da mensalidade, chamada de cebola), dentre outras.

O PCC tem política de hegemonia, não permitindo a existência de outras facções em seus territórios. O comando ainda é feito a partir dos presídios onde se encontram as principais lideranças, como Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que está no topo da facção, comandando o setor da SINTONIA GERAL FINAL. A sua estrutura funciona como uma empresa, com matriz em São Paulo, e filiais, em cada um dos estados da Federação.

2.2.1.3 QUADRO SITUACIONAL DA FAMÍLIA DO NORTE.

A terceira facção que atualmente pode ser considerada como facção de expressão nacional, é a FAMÍLIA DO NORTE, ou FDN. Apesar de localizada em um estado específico, o Amazonas, a repercussão dos atos da facção não são apenas locais. Isso porque está em jogo a chamada ROTA DO SOLIMÕES, porta de entrada da cocaína no Brasil. O domínio da rota é essencial para fazer a cocaína chegar tanto ao mercado consumidor brasileiro, quanto internacional (PAIVA, 2019).

Segundo RIZZI (2020), citando reportagem do sítio es.insight.crime (https://es.insightcrime.org/noticias-crimen-organizado-brasil/familia-del-norte-fdn/), o FDN foi criado entre 2006 e 2007 por José Roberto Fernandes Barbosa, apelido Zé Roberto da Compensa e Gelson Carnaúba, apelido Mano G . Além de dominar rapidamente o narcotráfico e outras economias criminosas no estado do noroeste do Amazonas, o FDN procurou interromper o avanço do Primeiro Comando da Capital (PCC) ao longo do rio Solimões, rota de narcotráfico que conecta a tríplice fronteira do Brasil, Colômbia e Peru com o Oceano Atlântico. Embora o FDN permaneça enraizado na Amazônia, estabeleceu conexões com outros estados brasileiros e até com a Venezuela, já tendo feito alianças com outras quadrilhas criminosas no Brasil.

No início de 2020, o FDN recebeu ataques constantes do Comando Vermelho (Comando Vermelho, CV) em Manaus, capital do Amazonas, e embora as consequências reais dessa guerra sejam desconhecidas, é provável que o FDN tenha sido bastante enfraquecido.

A guerra pelo domínio da ROTA DO SOLIMÕES levou às execuções em massa de presos, em 2017, praticadas principalmente por membros do FDN contra membros do PCC. A guerra ainda está em curso, com repercussões nos altos índices de crimes violentos no Brasil, entre 2016 e 2021.

2.2.2 FACÇÕES DE EXPRESSÃO REGIONAL

As facções CV e PCC se nacionalizaram, criando espécies de filiais pelo Brasil, como uma espécie de franquia do crime. Enquanto a matriz fornece armas e logística, as franquias fornecem recursos humanos e materiais. Não demoraram a surgir novas facções, a maioria delas por discordância das determinações das matrizes (CV e PCC), não sem antes de deixar um rastro de sangue nas guerras territoriais pelo caminho.

As facções locais têm dois tipos de origem: a) ou cisão, pura e simples, com as disposições da matriz, mantendo a estrutura dessa, apenas sem a vinculação hierárquica; ou b) surgimento para abarcar as características locais, com modelo organizacional próprio.

Há diversos levantamentos sobre facções criminosas, mas não há consenso sobre o seu número e área de expansão. A DW BRASIL (disponível em: https://www.dw.com/pt-br/brasil-tem-pelo-menos-83-fac%C3%A7%C3%B5es-em-pres%C3%ADdios/a-37151946) fez levantamento inconclusivo, indicando que há pelo menos oitenta e três facções em atuação no país. Algumas já ganharam a mídia, e merecem ser citadas, como: TCC Terceiro Comando da Capital (SP, RJ), PCMS Primeiro Comando do Mato Grosso do Sul (MS, ligada ao PCC), Terceiro Comando (RJ, BA), ADA Amigos dos Amigos (RJ, CE, ES), Bonde dos 40 (AM, PI), Primeiro Comando do Norte (AM, RR, CE), Primeiro Comando do Maranhão (MA), PCM - Primeiro Comando de Campo Maior (PI), Guardiões do Estado (CE), PCN - Primeiro Comando de Natal (RN), Comando da Paz (SE, BA), etc.

Por sua vez, a ELPAIS fez levantamento junto ao sistema prisional, informando que há mais de trinta facções dentro dos Presídios Federais, onde estão presos os maiores criminosos do país (disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-19/no-brasil-do-pcc-mais-de-30-faccoes-articulam-o-crime-organizado-no-sistema-penitenciario-federal.html ).

Certamente haverá distorções sobre a quantidade de facções, expansão e demais implicações sobre qualquer levantamento. Tal distorção é explicável pela mutabilidade do submundo. Alianças surgem e se desmancham rapidamente. Isso impacta nas estruturas de poder, influenciando a consolidação de facções e até provocando seu desaparecimento.

A questão central é ter critérios para classificar facção criminosa como organização criminosa, evitando dar prestígio demais a meras gangues de rua, que não tem qualquer um dos requisitos legais, seja para imputar a seus membros o tipo penal de PARTICIPAÇÃO EM ORCRIM, seja para movimentar esforços desproporcionais do Estado em seu combate.


3 DEFINIÇÃO DE ORCRIM E APLICAÇÃO AOS CONCEITOS DE FACÇÃO CRIMINOSA.

A definição de Organização Criminosa não é simples e, até certo ponto, é perigosa, já que, ao haver a definição, também se limita o conceito, prejudicando a imputação quando do surgimento de novas características da organização. É dizer que não se pode definir com absoluta exatidão o que seja organização criminosa através de conceitos estritos ou mesmo de exemplos de condutas criminosas. Isso porque não se pode engessar este conceito, restringindo-o a esta ou àquela infração penal, pois elas, as organizações criminosas, detêm incrível poder variante. Elas podem alternar as suas atividades delitivas, buscando aquela atividade que se torne mais lucrativa, para tentar escapar da persecução criminal ou para acompanhar a evolução mundial tecnológica e com tal rapidez, que, quando o legislador pretender alterar a Lei para amoldá-la à realidade aos anseios da sociedade-, já estará alguns anos em atraso.

GOMES e CERVINI (1997, páginas 99-100) identificam determinadas características marcantes que revelam a existência de uma associação ilícita organizada: hierarquia estrutural; planejamento empresarial; uso de meios tecnológicos avançados; recrutamento de pessoas; divisão funcional das atividades; conexão estrutural ou funcional com o poder público ou com agente do poder público; oferta de prestações sociais; divisão territorial das atividades ilícitas; alto poder de intimidação; alta capacitação para a prática de fraude; e conexão local, regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa. Os autores sugerem que três desses atributos seriam suficientes para qualificar como organizada qualquer associação ilícita. Apesar de a lição estar embasada juridicamente em lei revogada, ainda é válida do ponto de vista doutrinário.

A Lei 12.850/2013 redefiniu legalmente o conceito de organizações criminosas. Segundo o artigo 1º, parágrafo 1º desse diploma normativo, considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

A partir da definição dada pela Lei 12.850/2013, é possível fazer anotações sobre as ORCRIMs. Em primeiro lugar, o número de integrantes de uma organização criminosa passa a ser de 4 (quatro) e não 3 (três) como estipulado pela Lei 12.694/2012, alterando com isso o artigo 288, CP (o crime de quadrilha ou bando passa a se chamar associação criminosa); são mantidas a estrutura ordenada e a divisão de tarefas e o objetivo de obter direta ou indiretamente vantagem de qualquer natureza; por fim, há um aumento do campo de incidência da Lei, que abrange todas as infrações penais, seja crime ou contravenção penal. Infrações estas cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de caráter transnacional, não tendo relevância, nessa última hipótese, a pena cominada no tipo penal.

Os conceitos doutrinário e legal são importantes quando se busca definir, no mundo dos fatos, o que vem a ser uma organização criminosa. Para imputar a alguém o crime de participação em organização criminosa, deve-se, antes de qualquer coisa, definir, de forma preliminar, o que vem a ser ORCRIM. Existe a obrigação da autoridade policial e do Ministério Público, ao imputar a alguém tal crime, comprovar preliminarmente que esse alguém participa de uma organização com tais características, sejam cumulativas ou não.

Nem todas as facções criminosas trazem elementos aptos a serem configuradas como ORCRIM. Algumas são meras gangues e, no máximo, associações criminosas. Por isso é importante, ao se investigar e classificar juridicamente cada uma das entidades, classificá-las, fazendo o que se chama, popularmente, de separar o joio do trigo.

Assim, ao analisar no caso concreto a facção, deve-se verificar se essas trazem alguma das características abaixo:

i) Estrutura hierarquizada e permanente.

Existe uma escala hierárquica a ser obedecida entre os afiliados, tendo cada um deles que observar as determinações emanadas do seu superior direto. Além do mais, as organizações criminosas pretendem se perpetuar no tempo, desenvolvendo suas atividades de modo duradouro.

As principais facções descritas acima trazem de forma indelével tais características, como é o caso do CV e PCC, que seguem um organograma fixo, com células e estamentos bastante organizados. A maioria das facções brasileiras, que nasceram como braços do PCC (como BONDE DOS 40, do Maranhão), seguem o mesmo organograma, como um modelo de sucesso copiado.

ii) Busca incessante de lucros e poder econômico.

É evidente que toda organização criminosa tem suas atividades orientadas para a obtenção de lucros e, consequentemente, poder econômico.

As facções, quando se formam, são como um oásis no meio do deserto da miséria e desgraças sociais. Geram riquezas de forma permanente, atraindo assim novos membros. Muitos jovens de periferia se veem atraídos por essas entidades em busca da riqueza imediata. Por isso essa é uma das características mais fortes das facções criminosas. Vide favelas e vilas espalhadas pelos grandes centros. O herói, o modelo a seguir, costuma ser o traficante, chefe de boca, que tem seu carro ou motocicleta, casa com jacuzzi e todo o poder local. Miséria, riqueza ilícita e uma distribuição de renda, mesmo que torpe, é o que faz as facções serem tão fortes nas periferias (além da violência e poder de intimidação, descrito abaixo).

iii) Alto poder de intimidação, por meio de ameaças ou violência e grande poder de corrupção dos agentes públicos.

A criminalidade organizada mantém estreitas relações com o poder público, atuando na corrupção de seus agentes com o fito de garantir a continuidade de seus negócios escusos. As maiores facções atuam como máfias ou cartéis, seguindo a lógica popularmente relacionada a Pablo Escobar, em que é ofertado plata ou plomo (vide série NARCOS, disponível na plataforma NETFLIX). Ou seja, oferece uma parcela da riqueza amealhada ou o chumbo quente das armas. Um sistema organizado como as facções não sobreviveria sem o uso cirúrgico ou expansivo da violência e da corrupção policial ou política. O crime organizado é um câncer que se infiltra dentro das células do corpo social e o corrói aos poucos. Em um primeiro momento há convivência, e, em um segundo momento, o câncer (crime) destrói o corpo (sociedade). Desde as máfias clássicas, como a Yakusa e a cosa mostra, até os recentes cartéis mexicanos e colombianos, passando pela Ndrangueta italiana e máfia russa, todas tem essas características. Uso de força como coação e corrupção dos tecidos sociais e de agentes públicos.

A violência, no geral, não é boa para os negócios. Assim, quando há paz, geralmente as facções estão no auge do lucro. Durante processos de guerra civil entre facções (vide disputas entre FDN e PCC entre 2017 e 2020, amplamente noticiadas pela mídia) ou guerras das facções contra o Estado (ocupação das favelas do Rio, toques de recolher em Fortaleza ou ataque a agentes policiais em São Paulo), houve diminuição do lucro. Por isso se há disputas ou guerras, essas têm que ser rápidas e cirúrgicas. Se houver uma situação de empate, tréguas são assinadas, com sobrevivência mútua, já que o mercado permite a sobrevivência de mais de um grupo.

No geral, o uso de violência e corrupção, acaba corrompendo a estrutura de combate ao crime organizado. Policiais, Promotores de Justiça e juízes, por melhor intenção que tenham, são seres humanos, que temem por suas vidas. Facções e milícias (outra forma brasileira de ORCRIM, não objeto do artigo) demostram claramente que podem passar por cima de qualquer agente público estatal, e, assim, acabam desincentivando qualquer óbice às suas linhas de ação (vide caso da juíza Patrícia Acioli, executada pela milícia carioca e a execução de agentes prisionais a mando do PCC).

iv) Desenvolvimento de atividades de caráter social em substituição ao Estado.

As organizações criminosas aproveitam-se da inércia estatal, realizando prestações de toda espécie em favor da comunidade que está sob o seu domínio, angariando com tal conduta a simpatia e o respeito dos locais, o que dificulta ainda mais a atuação dos órgãos de persecução penal.

O Comando Vermelho tem uma CENTRAL DA AJUDA, que atua na distribuição de cestas básicas e outros benefícios sociais. Parte da população favelada, já acostumada a ver o Estado apenas quando esse sob o morro com fuzis, tende a dar apoio aos criminosos, criando travas às operações policiais (manifestações, fechamento de ruas etc.) ou os dando fuga. Esse processo, com maior ou menor grau, ocorre em todos os estados onde facções atuam.

A miséria, a cidade irregular e a péssima distribuição de renda não são desculpas de per si para que o excluído vire criminoso (já que as vítimas potenciais do crime são outros excluídos), mas são, inegavelmente, fatores que facilitam a expansão e estabilização do crime e do chamado Estado Paralelo.

v) Utilização de tecnologia avançada.

A tecnologia faz parte da rotina de grandes empresas e, como não poderia ser diferente, também é cada vez mais absorvida por organizações criminosas. Os meios de comunicação avançados, as técnicas modernas de ocultação patrimonial (lavagem de dinheiro), como uso de criptomoedas e uso de escritórios digitais (hackers e crackers), aliados à capacidade de mutação das ORCRIMs e da burocracia dos aparelhos de repressão, tem facilitado cada vez mais a expansão e consolidação do crime organizado no Brasil.

As facções criminosas inserem-se nas afirmações acima. O uso de aplicativos de celulares e ferramentas de videoconferência são cada vez mais utilizadas por essas entidades, seja no comércio de drogas e logística de outros crimes, seja na facilitação de reuniões entre células (centrais ou sintonias). O Estado repressor tem as barreiras legais da burocracia e da proteção à privacidade em sua linha de ação, barreiras essas que não se aplicam às facções.

vi) Impacto social negativo e interferência nas estruturas oficiais de poder.

Como afirmado acima, podemos nos referir ao crime organizado usando a metáfora do câncer. No início, a doença convive com o corpo, mas vai aos poucos absorvendo a energia vital desse, e, quando a metástase está completamente espalhada, o corpo morre. Há organizações tão engendradas com as estruturas oficiais que às vezes a própria entidade estatal se confunde com a ORCRIM.

A violência e a corrupção, inerente ao crime organizado, prejudicam a vida em sociedade. As facções criminosas, ao lado da tradicional corrupção brasileira do colarinho branco e das milícias, atingem o corpo social da mesma forma.

Em suma, para ser classificada como ORCRIM, a facção deve preencher os requisitos acima, mesmo que parciais. Segue abaixo algumas considerações específicas sobre as características de FACÇÕES CRIMINOSAS, para facilitar a sua classificação como ORCRIM.

vii) O interesse e a influência de grupos criminosos (facções, milícias, ORCRIm) no processo político eleitoral brasileiro.

Em entrevista feita de dentro da penitenciária por dois dos maiores criminosos brasileiros, líderes de facções criminosas, Marcinho VP e Fernandinho Beira Mar (Programa Câmera Record), os mesmos relataram com detalhes o flert das facções criminosas com a política. A própria filha de Fernandinho Beira Mar foi eleita vereadora de Duque de Caxias-RJ, em um processo eleitoral que pode ter relação com a facção criminosa comandada pelo pai (vide: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/03/4911513-vereador-e-morto-em-caxias-e-filha-de-fernandinho-beira-mar-assume-cargo.html , acesso em 08 de março de 2022).

É bem verdade que por consectário lógico, só um néscio poderia duvidar dessa realidade, sobretudo, ante a dominação territorial (morros, favelas e periferias em geral) por grupos criminosos. Desta feita, em regra, somente pessoas abençoadas por estes grupos têm acesso a tais áreas e, portanto, somente aqueles condescendentes de alguma forma com o crime tem trânsito livre nestes recintos (o filme Tropa de Elite, em que pese ser uma obra de ficção da cinematografia brasileira, retrata fatos reais que aconteceram nas campanhas eleitorais do Rio de janeiro, quando candidatos a governador, a deputado e até secretário de segurança pública tiveram o apoio de traficantes, os quais sem quaisquer escrúpulos comemoravam armados, com música e muita droga o apoiamento a tais políticos em showmícios).

A realidade nua e crua, infelizmente, é essa. Chefes de facções criminosas já se deram conta do poder político que detém em suas áreas de dominação e, que bem explorados, podem ser angariadores de vantagens múltiplas, desde a interferência direta em ações policiais (impedindo, por exemplo operações, em determinadas áreas), assim como implementação de políticas públicas em áreas escolhidas sob o crivo do crime, no afã de se conseguir cada vez mais apoio popular, alimentando e retroalimentando todo o sistema criminoso. Ademais, o crime tem cada vez mais evoluído, de tal forma, que não somente prestam apoio a políticos oportunistas sem caráter, como também têm lançado ultimamente suas próprias representações no cenário político, oriundos de núcleos criminosos.

O fato é que se se pensar em democracia como a escolha livre realizada pelo cidadão, afeta tão somente a sua própria consciência nesse processo político de escolha dos destinos de sua nação, através do sufrágio livre e universal, cláusula pétrea pela nossa Carta Magna (art. 60, § 4°, da CF/88), como não concluir que não está havendo um ataque direto ao próprio princípio democrático, quando se conclui que o voto está sendo exercido de forma inconsciente, molestado por interesses espúrios do subterrâneo das forças do crime organizado?

Talvez, hodiernamente, está seja a maior preocupação ante a escalada e a infiltração das facções criminosas, isto é, a possibilidade concreta de corroer e desacreditar nosso próprio sistema político e, portanto, a ideia de cidadania representativa.


4 INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS E ELEMENTOS DE PROVA PARA IMPUTAÇÃO.

A investigação de organizações criminosas é complexa e demorada. Seja em sede de Inquérito Policial, pelas polícias judiciárias, ou em sede de Procedimento de Investigação Criminal, por parte do Ministério Público, a investigação envolve diversos operadores, já que se investigam núcleos operacionais diversos. Não há um único padrão de investigação. No geral, as antigas técnicas de investigação, ainda em curso em casos simples (oitiva de testemunhas, interrogatório do investigado e indiciamento) não são eficientes em se tratando de Organizações Criminosas.

Ao investigar ORCRIMs, especialmente organizações criminosas violentas, como facções e milícias, o coordenador-investigador deve ter em mente a necessidade de limitar informações, com base no princípio da "necessidade de conhecer". Mário Pestana (Os princípios no tratamento de dados na LGPD, disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/artigo-marcio-pestana-lgpd.pdf ) define o princípio da necessidade como a "limitação da realização do tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de dados.

Por exemplo: imagine que haja uma investigação sobre um braço regional de uma facção criminosa. Essa atua em núcleos (centrais, torres, sintonias etc), que, apesar se seguirem ordens superiores, não tem necessariamente contato uns com os outros, como células de uma organização criminosa. Funcionam assim pelo simples motivo de que, ao cair uma célula (núcleo), as informações do corpo (organização) estarão preservadas. A investigação deve seguir tal lógica, para evitar vazamentos de informações por eventuais corrupção de agentes investigadores. Então deve-se fatiar a investigação por núcleos operacionais, fechando-se a cadeia de funcionamento da ORCRIM. No caso de facções, um dos grandes erros da estrutura do estado é ainda separar delegacias por especialidade (delegacia de entorpecentes e delegacia de homicídios, por exemplo). Tais delegacias investigam de forma autônoma e acabam sendo totalmente ineficaz no enfrentamento de facções criminosas, que, de um lado, tanto dominam o tráfico de droga, e do outro, são responsáveis pela maioria absoluta dos homicídios.

O objeto desse artigo não é trazer técnicas de investigação que, de toda forma, são variáveis, dependendo de grande capacidade de organização dos operadores-investigadores, e do apoio dos gestores, já que demandam tempo e recursos (humanos e materiais). O importante é frisar que a imputação a agentes faccionados, seja em relatórios de indiciamento, seja em denúncias ou em eventuais sentenças condenatórias, é um ato complexo, que necessita de duas fases: na primeira, comprova-se a existência da Organização Criminosa (facção), e na outra se prova a participação do agente (réu).

O operador deve indicar, de forma concreta, elementos que comprovem que existe uma organização criminosa (facção) ou um braço dela, em efetivo funcionamento, com os requisitos básicos previstos em Lei (art 1°, da Lei n° 12.850/13), respectivamente: concurso de quatro ou mais agentes, relação estruturada com divisão de tarefas (núcleos), objetivo de vantagem e prática de infrações penais graves. No caso de facções, deve-se apresentar o organograma da ORCRIM, indicando o papel de cada um dos denunciados e os crimes que praticam (em regra, roubos, tráfico e homicídios).

Após comprovar a existência da ORCRIM, passa-se à imputação individualizada, sendo a regra a imputação prevista no artigo 2º da Lei de regência, com as causas de aumento e agravantes previstas nos seus parágrafos. Vide os tipos:

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

§ 2º As penas aumentam-se até a metade se na atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo;

§ 3º A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução.

Ainda há a discussão sobre o concurso de crimes, já que, em regra, a investigação pelo crime de PARTICIPAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA atrairia, por conexão, os demais crimes praticados (tráfico, homicídios, roubos, lavagem de dinheiro, dentre outros). Pela complexidade e autonomia do tema e por depender de análise de regras específicas do processo criminal, não trataremos do assunto nesse artigo.

De todo modo, por ser autônomo, a imputação do crime previsto no artigo 2º da Lei 12.850/2013 não depende da comprovação de outros crimes, bastando-se comprovar, como dito, que existe uma ORCRIM (facção) e que o agente investigado (denunciado) tem ou teve papel dentro dessa organização.


5 CONCLUSÃO

Da intrínseca relação entre as mais diversas formas de delito, é inquestionável que interesse transversal em quase toda a matéria relacionada ao crime é a vantagem indevida, seja ela de cunho patrimonial ou não. É assim na essência dos crimes patrimoniais, violentos ou não, no comércio ilegal de armas de fogo, no tráfico de drogas, na corrupção, e também há a busca de alguma vantagem, até mesmo em relação, muitas vezes, aos crimes que atingem o bem jurídico vida, integridade física ou psicológica.

É que as facções para atingirem seus objetivos, inúmeras vezes, têm que lançar mão da prática de outros delitos, seja por exemplo, corrompendo um agente público, ou exterminando a vida de um desafeto ou concorrente da atividade comercial criminosa, desta feita, não obstante a necessária separação em tipos penais para fins de didáticos para definição das atribuições dos órgãos investigativos ou competência para os órgãos julgadores, o fato é que deve haver uma visão ampla da atividade criminosa, com o sentimento de que não se isolam, os crimes, em regra, em compartimentos estanques, mas que se comunicam a todo instante, isto inevitavelmente e principalmente quando se diz respeito às facções criminosas que se traduzem em verdadeiras ORCRIMs.

O sucesso na repressão desse fenômeno criminoso, necessariamente perpassa pela interlocução permanente dos mais diversos estamentos que reprimem os crimes nas mais diversas modalidades, por exemplo, o investigador que trata de crimes fiscais, junto com o que trata da lavagem de dinheiro e escamoteamento de capitais, com os que tem como atribuição o combate ao tráfico de drogas e ao homicídio. Nesse diapasão, por exemplo, já foi cunhada uma expressão nova na linguagem jurídico criminal na labuta diária, o traficídio, ou seja, as mortes decorrentes da briga pelo espaço e hegemonia da venda de drogas, crimes estes, que sem serem investigados conjuntamente, dificilmente haverá êxito no desvendamento das infrações criminais.

Nesta toada, lançar mão de novas técnicas de investigação, concatenados as novas tecnologias, estas entendidas como fonte rica de meios de prova, é imprescindível para um combate eficiente e eficaz a estes grandes criminosos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDÃO, Rômulo Paulo; LUZ, José William Pereira. Análise da evolução das facções e de sua constituição em organizações criminosas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6845, 29 mar. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96766. Acesso em: 6 maio 2024.