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O papel da Defensoria Pública como órgão da execução penal e a imprescindibilidade de sua atuação para a garantia dos direitos fundamentais dos reeducandos

O papel da Defensoria Pública como órgão da execução penal e a imprescindibilidade de sua atuação para a garantia dos direitos fundamentais dos reeducandos

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A importância da Defensoria Pública se reflete na sua evolução ao longo dos anos: de instituição meramente assistencialista a função essencial à Justiça.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo discutir o imprescindível papel da Defensoria Pública em sede de execução penal, especialmente após a publicação da Lei nº 12.313/2010, a qual prevê a assistência jurídica ao preso dentro do presídio e atribui competências à instituição. Para isso, primeiramente, analisa-se a evolução histórica da assistência jurídica gratuita no ordenamento jurídico brasileiro, desde suas primeiras incursões pontuais até o atual modelo constitucional de Defensoria Pública. Nesse sentido, faz-se necessária uma discussão acerca dos estágios evolutivos do acesso à justiça e o papel da instituição na efetivação desse direito fundamental junto às camadas menos favorecidas da população. Evoluindo esse raciocínio, passa-se à elaboração de um panorama acerca da execução penal no Brasil, analisando seus fundamentos, características e dificuldades na efetivação de seus princípios. Após a análise global da execução penal no país e dos seus princípios orientadores, chegamos à parte final do presente estudo, tecendo alguns comentários sobre o papel da Defensoria Pública como órgão da execução penal.

Palavras-chave: Defensoria Pública; Acesso à Justiça; Execução Penal.


INTRODUÇÃO

Frente ao caos em que se encontra o sistema prisional atual e a falência do modelo adotado, a busca por alternativas e soluções eficientes se mostra inadiável. É nesse contexto que se faz necessária a discussão acerca do papel de destaque que deve ser dado à Defensoria Pública como órgão da execução penal.

Discutir o papel da Instituição dentro do sistema penitenciário nacional é reconhecer que a população carcerária é formada em quase sua totalidade por pessoas pobres, marginalizadas, que não tiveram oportunidades e que precisam não só de punição por seus atos, mas de alguém que zele por eles e os encaminhe para um cumprimento de pena justo, adequado e que realmente os leve à tão almejada ressocialização.

É nesse contexto que o papel da Defensoria Pública se mostra imprescindível, especialmente pelo fato de que quase a totalidade da população carcerária nacional é formada por pessoas com condições econômicas desfavoráveis.

Diante disso, o presente trabalho objetiva analisar o imprescindível papel da Instituição em sede de execução penal, especialmente após a publicação da Lei nº 12.313/2010, a qual prevê a assistência jurídica ao preso dentro do presídio e atribui competências à Defensoria Pública.


1. O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO SISTEMA DE JUSTIÇA BRASILEIRO

Neste capítulo, temos como objetivo traçar um panorama acerca da evolução da Defensoria Pública no ordenamento jurídico pátrio, utilizando, para isso, de uma digressão histórica em relação às origens da instituição, sua caracterização como instrumento de acesso à justiça e de combate aos abusos perpetrados tanto por particulares como pelo Estado.

Dito isso, a Defensoria Pública, nos termos do artigo 134 da Constituição da República Federativa do Brasil, alterado pela Emenda Constitucional nº 80 de 2014, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV da CRFB.

Nesse sentido, vale ressaltar que a Constituição Cidadã afirma caber à Defensoria Pública a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, englobando a educação em direitos, a solução de controvérsias de forma extrajudicial, além do ajuizamento de ações junto ao Poder Judiciário. Esse leque de atribuições transforma a Defensoria Pública em porta de entrada para a inclusão social, através do acesso à justiça, consolidando direitos fundamentais, tais como liberdade, segurança, bem-estar e igualdade.

No que concerne ao processo penal brasileiro, objeto do nosso estudo, a instituição exerce papel de grande importância quanto à defesa técnica do assistido, sempre buscando o respeito e o reconhecimento dos princípios constitucionais, especialmente os do contraditório e da ampla defesa, direito inalienável e irrevogável previsto no artigo 5º, LV da CRFB.

Sendo assim, a Defensoria Pública, como instituição mais incipiente do sistema de justiça, deve ser valorizada e fortalecida, para que as normas constitucionais não possam ser vistas como mera carta de intenções.

1.1 PERSPECTIVA HISTÓRICA E A EVOLUÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

Um estudo acerca da evolução da Defensoria Pública em nosso ordenamento jurídico demanda, essencialmente, uma contextualização histórica dos institutos que levaram ao atual modelo defensorial, desde a previsão da assistência judiciária até o atual modelo de assistência jurídica integral e gratuita.

Dito isso, o instituto da assistência jurídica aos necessitados teve como marco inicial as Ordenações Filipinas. No decorrer dos séculos, diversas experiências nesse sentido foram realizadas, como nos casos do Decreto nº 2.457/1897, o qual estabeleceu as regras para o serviço de Assistência Judiciária no Distrito Federal (na época, o Rio de Janeiro); a criação, em 1919, da Assistência Judiciária Acadêmica (AJA) no Estado de São Paulo, precursora da Procuradoria da Assistência judiciária (PAJ).

Porém, somente em 1934, com a promulgação da Constituição Federal, houve uma mudança significativa desse cenário, sendo a primeira vez que a assistência judiciária gratuita era elevada ao status constitucional, em capítulo dedicado aos direitos fundamentais, cujo dispositivo determinava que a União e os Estados garantissem, através de órgãos especiais, a assistência judiciária (artigo 113, item 32).

Por outro lado, a outorgada Carta de 1937, foi omissa quanto à assistência judiciária, provavelmente por seu caráter autoritário e opressor. Porém, o legislador infraconstitucional andou bem e regulamentou o instituto nos Códigos de Processo Civil de 1939 e de Processo Penal de 1941.

Após período de instabilidade da política nacional, a assistência judiciária retoma seu assento constitucional, ainda que de forma tímida, com a Constituição de 1946 (artigo 141, §35), de perfil democrático, rompendo com o paradigma adotado pela ditadura getulista em 1937.

Em seguida houve a promulgação da Lei nº 1.060/1950, a qual uniformizou o tema da assistência judiciária em todo o território nacional, atribuindo-se ao Poder Público o dever de implementar e gerir o serviço, independentemente da participação da Ordem dos Advogados do Brasil-OAB ou dos Municípios.

A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 não trouxeram avanços na matéria.

Dessa forma, somente com a Carta Magna de 1988, a Defensoria Pública encontra guarida constitucional, sendo expressamente consignado que cabe a ela a implementação e gestão do serviço público de assistência jurídica, integral e gratuita aos necessitados em sentido amplo.

Aqui, valemo-nos das elucidativas lições de Lima (2014, p. 23):

A mudança de nomenclatura de assistência judiciária para assistência jurídica não ocorreu de forma irrefletida. Houve uma alteração de paradigma. A assistência, agora, ocorre não apenas dentro do processo (judiciária); ela se espraia também para fora dele (jurídica). O âmbito de sua atuação passou a desbordar das estreitas amarras do processo judicial, incumbindo-lhe, igualmente, a proteção na esfera extrajudicial, seja pela atuação nas lides administrativas, seja, dentre outros, no aspecto consultivo. Com esta nova modalidade, a assistência passa a ser completa (ou integral, como prefere a Constituição). Sucede antes, durante e depois do processo judicial; até mesmo independentemente dele. Pode se dar na esfera administrativa, no auxílio na elaboração e na interpretação de cláusulas de um contrato, na prevenção de lides judiciais (conciliação prévia), no esclarecimento de dúvidas a respeito da existência ou extensão de direitos etc. Enfim, desde que haja necessidade de auxílio no campo jurídico (judicial ou extrajudicial), a assistência estatal estará presente.

Nessa esteira, com o objetivo de definir a atuação da Defensoria Pública, é promulgada a Lei Complementar nº 80/1994, a qual regulamenta a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Distrito Federal e Territórios, bem como estabelece normais gerais para a Defensoria Pública dos Estados.

Por sua vez, no ano de 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, a qual, acrescendo o §2º ao artigo 134, consagrou a autonomia funcional, administrativa e orçamentária das Defensoria Públicas Estaduais. Essa prerrogativa foi posteriormente estendida às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal pela Emenda Constitucional nº 73 em 2013.

No ano de 2009, por sua vez, é promulgada a Lei Complementar nº 132, alterando a Lei Complementar nº 80/1994, a qual estabeleceu novas funções à Instituição, fortalecendo ainda mais seu papel constitucional.

Nessa linha, o novo artigo 1º da Lei Complementar nº 80/1994, alterado pela Lei Complementar nº 132/2009, é mais extenso e traz inúmeras características marcantes sobre o papel da instituição. Já não era desconhecido da comunidade jurídica que, anteriormente, a Defensoria Pública se tratava de instituição essencial à justiça. Porém, com a nova redação, a qual foi reproduzida em quase sua totalidade pela Emenda Constitucional nº 80 de 2014, que alterou, entre outros, o artigo 134 da Constituição da República Federativa do Brasil, podemos extrair três pontos de destaque: expressão e instrumento do regime democrático, promoção dos direitos humanos e defesa dos direitos individuais e coletivos:

Art. 1º. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

No que concerne ao regime democrático, o papel da Defensoria Pública é de impacto bastante relevante, uma vez que tutela os direitos dos necessitados, levando democracia e cidadania àqueles deixados à margem pela sociedade, os quais, sistematicamente, encontram-se alijados dos processos decisórios.

Com relação à promoção dos direitos humanos e à tutela de direitos individuais e coletivos, ninguém melhor que a Defensoria Pública para exercer essa função, na medida em que a instituição tem papel decisivo na efetivação desses direitos, mormente pelo fato de lidar diariamente com aquelas pessoas que mais sofrem com a violação de seus direitos.

Por fim, no ano de 2014, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 80, a qual veio colocar de vez a Defensoria Pública no patamar que merece. Seu texto é bastante elucidativo:

Art. 1º O Capítulo IV - Das Funções Essenciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes, passa a vigorar com as seguintes alterações:

TÍTULO IV- DA ORGANIZAÇÃO DOS PODERES

...

CAPÍTULO IV- DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA

... Seção III - Da Advocacia

...

Seção IV - Da Defensoria Pública

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

...

§ 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal."(NR)

Art. 2º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 98:

"Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.

§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.

Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Diante do exposto, verifica-se que a importância da Defensoria Pública reflete na sua evolução ao longo dos anos. Contudo, muita coisa há de ser feita, tendo em vista que os direitos relativos aos hipossuficientes são sempre os primeiros a serem questionados e marginalizados, ficando claro que o fortalecimento da Defensoria Pública anda lado a lado com a efetivação da cidadania.

1.2 O DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA E O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE SUA EFETIVAÇÃO

O acesso à justiça se caracteriza como um dos direitos primordiais em uma sociedade que se propõe democrática e garantidora de direitos. Tendo como premissa essa realidade, nossa Carta Constitucional de 1988 erigiu o acesso à justiça a direito fundamental, blindando-o contra possíveis retrocessos através de cláusula pétrea.

Vale ressaltar que o núcleo do direito ao acesso à justiça não se resume ao ingresso no Poder Judiciário, caracterizando-se pela sua abrangência em detrimento do mero formalismo, valendo-se, especialmente, de meios extrajudiciais de resolução de conflitos e da verdadeira concretização dos direitos postos em contenda de forma justa, célere e efetiva, sem dilações indevidas.

Nesse contexto, o direito fundamental de acesso à justiça encontra na Defensoria Pública um dos principais instrumentos para sua efetiva concretização, uma vez que a instituição se insere num profundo projeto de reforma do sistema de justiça brasileiro, de cunho eminentemente socializador, a partir da promulgação da Constituição cidadã.

1.2.1 Conceito de acesso à justiça

Elaborar um conceito fechado e definitivo de acesso à justiça é uma tarefa ingrata e, talvez, equivocada. Direito primordial, garante e concretiza os demais direitos e consiste na efetivação de uma ordem jurídica justa, carregada de valores e direitos essenciais ao ser humano, não se resumindo ao simples ingresso no Poder Judiciário, extrapolando o formalismo judicial e incluindo o reconhecimento de direitos e os diferentes meios de resolução dos conflitos.

Desta feita, faz-se necessária uma incursão histórica acerca das origens do instituto e sua evolução ao longo do tempo para que possamos entender como o acesso à justiça se apresenta na atualidade e quais os desafios que se vislumbram para o futuro.

1.2.2 Evolução histórica

Ao longo da história, a ideia de acesso à justiça evoluiu de forma bem heterogênea. Seu desenvolvimento começou com a crença primitiva em uma lei divina, baseada em crenças e mitos, adquirindo uma conotação eminentemente religiosa.

A medida que as civilizações evoluíam, outras formas de acesso à justiça foram sendo elaboradas, como o desenvolvimento do direito consuetudinário. Por sua vez, Gregos e Romanos foram os primeiros a se preocupar com o acesso à justiça por parte dos mais necessitados, disponibilizando aos mesmos advogados para defendê-los sem ônus algum. A Idade Média, por outro lado, foi marcada pela doutrina da caridade e pela ascendência da Igreja Católica, a qual financiava um sistema de assistência jurídica aos mais necessitados.

Ocorre que, apesar de toda a evolução acerca do instituto, o acesso à justiça era reconhecido apenas pelo seu caráter individual, totalmente indiferente à realidade social. Sua caracterização estava intrinsecamente ligada à possibilidade de se litigar perante o Poder Judiciário, numa concepção meramente formal, resumida à protocolização de petições e à defesa pela outra parte.

Com o passar do tempo, foram ocorrendo transformações, as quais fizeram com que fosse assumido um caráter mais coletivo que individual, em que a ideia de valores transindividuais mais humanos começa a se desenvolver, fruto do descontentamento dos cidadãos com o modelo até ali adotado.

O movimento em busca do efetivo acesso à justiça começou a se consolidar a partir dos estudos de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, os quais desencadearam um movimento chamado de ondas renovatórias, com o intuito de consolidar a Justiça em sentido amplo.

Nesse sentido, a primeira onda busca propiciar acesso à justiça àqueles que não podem arcar com as custas do processo. A necessidade de criação de um sistema que garantisse aos hipossuficientes uma efetiva proteção judicial levou ao desenvolvimento de diversos modelos de prestação de assistência judiciária, sendo 02 (dois) deles adotados no Brasil, o judicare e o salaried staff model.

O sistema judicare define a assistência judiciária gratuita como um direito do cidadão hipossuficiente, sendo bastante que se enquadre no perfil definido pela legislação, onde advogados particulares pagos pelo Estado executam o serviço.

O judicare ainda é encontrado no Brasil. Nos lugares onde não existe Defensoria Pública instalada, é comum a nomeação de advogados particulares para cumprir o múnus da assistência judiciária em proveitos dos hipossuficientes, com o pagamento posterior das verbas honorárias pelo Estado, especialmente na defesa de réus em processos criminais.

Por sua vez, temos o modelo atualmente em vigor no Brasil, o salaried staff, consistente na remuneração de agentes públicos pelo Estado para desenvolverem a assistência judiciária gratuita.

É nesse contexto que se insere a Defensoria Pública como órgão responsável pela assistência jurídica integral e gratuita em nosso país. Nas elucidativas palavras de Lima (2014, p. 59):

A Defensoria Pública é o reflexo da adoção, pelo Brasil, do salaried staff model de prestação de assistência judiciária gratuita, porquanto consubstancia instituição designada pela Constituição com o fim específico de auxiliar juridicamente os carentes de recursos financeiros, sendo aparelhada com uma complexa estrutura organizacional e aprovisionada de agentes públicos cuja missão se traduz na proteção jurídica aos hipossuficientes.

A Lei Complementar 132/90 acresceu o §4º ao art. 4º da Lei Complementar 80/94, que prescreve que a assistência jurídica integral e gratuita custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública. A medida reforça a ideia de que o salaried staff é o modelo em vigor no Brasil, pois impede qualquer outra forma de custeio ou fornecimento de assistência jurídica estatal que não seja por intermédio da Defensoria Pública.

A despeito disso, a previsão legal tem cedido campo à realidade, impondo que, nos lugares onde a Defensoria Pública não se encontre estruturada, ainda vigore, no Brasil, o modelo judicare.

Tecidas as considerações acerca da primeira onda do acesso à justiça, temos que a segunda onda busca solucionar a problemática relacionada aos direitos difusos, individuais homogêneos e coletivos, os quais têm como preocupação central a extensão do direito de acesso à justiça não mais de forma exclusiva aos indivíduos, mas, sim, a grupos e categorias.

Por sua vez, a terceira onda, batizada de novo enfoque do acesso à justiça, tem por objetivo tornar a justiça efetivamente mais acessível, dando ênfase a fórmulas que simplifiquem os procedimentos judiciais, investindo-se em meios alternativos de acesso à justiça ou composição de litígios não restritas ao ordenamento processual, como por exemplo a mediação, a conciliação informal e a arbitragem, além do papel de prevenção de disputas.

Apesar dos diversos avanços conquistados ao longo do tempo, o direito ao acesso à justiça continua sendo implementado de forma deficiente. Problemas estruturais, legais e orçamentários não foram superados, especialmente em países menos desenvolvidos como o Brasil. Todos esses entraves põem em cheque o próprio Estado Democrático de Direito, afinal, o processo histórico de construção, afirmação e positivação dos direitos humanos falece de sentido quando não se é garantido o acesso à justiça de forma igualitária e universal.

Desta feita, lapidar se mostra a lição de Sadek (2014 in RÉ, 2014, p. 20) quando afirma que:

O direito de acesso à justiça é o direito primeiro, é o direito garantidor dos demais direitos, é o direito sem o qual todos os demais direitos são apenas ideais que não se concretizam. A assistência jurídica voltada para os hipossuficientes é, pois, o móvel indispensável para a realização dos direitos e, em consequência, da igualdade.

Em um País marcado por extremas desigualdades econômicas, sociais e culturais, os preceitos relativos à igualdade e à inclusão poderiam soar como pura abstração ou como componentes de uma carta de intenções. A possibilidade real, contudo, de transformação de mandamentos igualitários em realidade concreta encontra na Defensoria Pública o motor mais importante na luta pela efetivação dos direitos e pela prevalência da igualdade.


2. A EXECUÇÃO PENAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

Após a análise do desenvolvimento e das funções da Defensoria Pública no ordenamento jurídico nacional e da problemática do acesso à justiça, o presente capítulo tem como objetivo traçar um panorama da execução penal no país, analisando seus fundamentos, características e dificuldades na efetivação de seus princípios.

Fixada essa premissa, temos que o artigo 1º da Lei nº 7.210/1984 afirma que a execução penal é a fase do processo penal onde o estado faz valer a sua pretensão punitiva, ora convertida em pretensão executória.

Nas palavras de Marcão (2014, pp. 31-32):

A execução penal deve objetivar a integração social do condenado ou do internado, já que adotada a teoria mista ou eclética, segundo a qual a natureza retributiva da pena não busca apenas a prevenção, mas também a humanização. Objetiva-se, por meio da execução, punir e humanizar.

No que concerne a sua natureza jurídica, apesar de algumas divergências doutrinárias, e da sua caracterização como atividade complexa, desenvolvida simultaneamente nos planos jurisdicional e administrativo, tem-se que a execução penal possui natureza jurisdicional.

Tendo, pois, o processo de execução penal natureza jurisdicional, o apenado, aqui caracterizado como sujeito ou parte da relação processual, é titular de direitos, sendo-lhe garantido o direito a um processo de execução com todas as garantias a ele inerentes.

2.1 PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS À EXECUÇÃO DA PENA

Afirmar a natureza jurisdicional da execução penal implica admitir sua sujeição aos princípios e garantias constitucionais incidentes. Dessa forma, é indispensável que o processo de execução da pena observe os princípios e as garantias constitucionais, tais como: legalidade, devido processo legal, imparcialidade, igualdade, contraditório e ampla defesa, entre outros.

Nessa esteira, o artigo 3º da Lei de Execução Penal, no mesmo sentido do artigo 38 do Código Penal brasileiro, assevera que, salvo os casos obviamente incompatíveis com a condição peculiar de preso, devem ser assegurados aos custodiados a conservação de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre.

Dessa forma, observadas as limitações jurídicas e constitucionais da pena, todos os direitos não atingidos pela sentença criminal permanecem a salvo.

2.1.1 Princípio da legalidade

O princípio da legalidade possui assento constitucional no artigo 5º, XXXIX, entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Nessa mesma esteira, o artigo 1º do Código Penal também prevê o referido princípio. Por sua vez, a Lei de Execução Penal o estabelece nos seus artigos 2º e 3º.

Dessa forma, o princípio da legalidade deve nortear a execução penal em todas as suas fases, dirigindo-se a todas as autoridades que participam do processo, sejam elas administrativas ou judiciais, de forma a impedir que o seu desvio ou excesso comprometa a dignidade e a humanidade na aplicação das penas.

2.1.2 Princípio da isonomia ou igualdade

O princípio da igualdade é um dos pilares da democracia e tem como finalidade garantir os direitos dos cidadãos de terem um tratamento igualitário perante a lei e a justiça, vedando-se a discriminação.

Dessa forma, o preceito do artigo 5º, caput, da Constituição Federal, não pode ser interpretado como uma mera igualdade formal, não considerando as peculiaridades de cada grupo humano. Não há dúvidas de que esse mandamento constitucional se dirige ao legislador e ao aplicador da lei, como forma de estabelecer tratamento justo e equânime entre os cidadãos.

É nesse sentido que o parágrafo único do artigo 3º da Lei de Execução Penal prevê:

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.

Destarte, ninguém poderá sofrer tratamento discriminatório durante a execução de sua pena, salvo as distinções em face do mérito pessoal do sentenciado e das características individuais de cada procedimento executório.

2.1.3 Princípio do contraditório

O contraditório deve ser visto basicamente como o direito de participar, de manter uma contraposição em relação à acusação e de estar informado de todos os atos desenvolvidos durante o procedimento. Os dois polos da garantia do contraditório são: informação e reação.

O princípio em questão deve ser aplicado em todos os processos, sejam judiciais ou administrativos, consoante disposto no artigo 5º, LV, da Constituição Federal.

No que tange à execução penal, diversas decisões são tomadas em patente prejuízo ao reeducando, e devem ser postas em análise a partir do princípio do contraditório. Não se admite, por exemplo, a regressão de regime prisional, medida extremamente gravosa, sem que se proceda à oitiva do apenado, permitindo-lhe o exercício pleno de sua defesa. Nesse sentido, também deve ser o procedimento quando do processo de apuração para a perda ou não dos dias remidos. O desrespeito a esse princípio acarreta flagrante e odioso constrangimento ilegal.

2.1.4 Princípio da proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade demanda um juízo de ponderação acerca da relação existente entre a gravidade do fato e a gravidade da reprimenda. Nesse sentido, rechaça o estabelecimento de cominações legais e a imposição de penas que não possuam relação valorativa com o fato cometido considerado de forma geral.

Sendo assim, o princípio da proporcionalidade desempenha papel fundamental no sentido de legitimar e limitar o poder de punir do Estado, atuando em diferentes momentos: primeiramente, quando da criação do tipo penal e da fixação dos patamares mínimo e máximo das penas. Em um segundo momento, destina-se ao magistrado quando da fixação da pena. Por fim, após a fixação do quantum da reprimenda e da natureza da sanção penal, dirige-se a adequada execução da pena.

Nesse último caso, a proporcionalidade será estabelecida a partir da classificação do condenado, devendo haver uma correlação no que se refere ao apenado e a forma como a sanção a ele cominada deve ser adequadamente executada.

2.1.5 Princípio da individualização da pena

O princípio em comento está insculpido no artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal, consubstanciando-se numa garantia individual do condenado frente ao Estado quando do cumprimento da pena.

Vale ressaltar que a Lei de Execução Penal pormenoriza alguns aspectos referentes à individualização da pena, conforme se observa no seu artigo 5º: Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.

Nas palavras de Marcão (2014, p. 43):

A classificação dos condenados é requisito fundamental para demarcar o início da execução científica das penas privativas de liberdade e da medida de segurança detentiva. Visa a assegurar os princípios da personalidade e da proporcionalidade da pena, elencados no rol dos direitos e garantias individuais. Adequada a classificação, cada sentenciado terá conhecida a sua personalidade, recebendo o tratamento penitenciário adequado, atendendo também ao princípio da individualização da pena e da medida de segurança.

2.1.6 Princípio da humanidade das penas

O princípio em questão tem como base a dignidade da pessoa humana e dele se originam não apenas normas limitadoras da atividade punitiva estatal, mas também normas de caráter positivo, que obrigam o Estado a agir.

Prevista no artigo 1º, III, da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana se caracteriza como um princípio relativo ao regime político e um valor supremo que engloba todos os direitos fundamentais, inclusive o direito à vida.

Dito isso, é importante ressaltar que o princípio da humanidade da pena encontra guarida não só na Constituição Federal, mas também junto a tratados internacionais e à Lei de Execução Penal.

A Lei de Execução Penal prevê o princípio em alguns de seus artigos relacionados à integração social do condenado, à assistência ao preso, ao respeito à integridade física e moral dos condenados, à vedação de sanções que possam colocar em perigo a integridade física e moral dos apenados, entre outros (artigos 1º, 10, 11, 40, 41, 45, 83, 88).

Nesse sentido, o princípio da humanidade das penas é fruto de um processo histórico de massificação de penas cruéis e degradantes, surgindo como forma de trazer racionalidade e proporcionalidade às penas aplicadas. Desta feita, tem-se que o supracitado princípio é a pedra basilar de todo o sistema punitivo.

2.2 A DEFENSORIA PÚBLICA COMO ÓRGÃO DA EXECUÇÃO PENAL

Após a análise global da execução penal no país e dos seus princípios orientadores, chegamos à parte final do presente estudo, tecendo alguns comentários sobre o papel da Defensoria Pública como órgão da execução penal.

A Lei nº 12.313/2010, ao concretizar a Defensoria Pública como órgão da execução penal, consagra a garantia de pleno acesso à justiça aos presos, egressos e seus familiares, os quais não possuíam recursos financeiros para constituir advogado. A alteração demanda a prestação de serviços de assistência jurídica integral e gratuita pela Defensoria Pública dentro e fora dos estabelecimentos penais, reforça a necessidade de prestação de auxílio material, estrutural e pessoal à Instituição em todas as unidades federativas, além de reservar espaço próprio ao órgão no interior dos estabelecimentos prisionais.

Nesse sentido, os artigos 81-A e 81-B da Lei de Execução Penal estabelecem um rol de prerrogativas e atividades que devem ser desenvolvidas pela Defensoria Pública, tais como o acompanhado processual ordinário através de requerimentos de aplicação de lei posterior mais benéfica, declaração de extinção da punibilidade, unificação de penas, detração e remição das mesmas, progressão de regime, suspensão condicional da pena, livramento condicional, comutação da pena, indulto, saídas temporárias, entre outros. Além disso, incumbe à Defensoria Pública requerer a emissão anual do atestado de pena a cumprir, visitar os estabelecimentos penais, podendo, inclusive, requerer sua interdição, além de representar ao juiz da execução ou à autoridade administrativa para a instauração de sindicância ou procedimento administrativo em caso de violação das normas referentes à execução.

Desta forma, quis o legislador alçar a Instituição a um patamar em que possa ter poder de transformação mais evidente e efetivo. A atuação ampla e independente dos membros da Defensoria Pública é imprescindível à execução penal, tendo em vista seu poder de articulação, seu contato mais próximo com o reeducando e seus familiares, reduzindo, sobremaneira, os riscos de rebeliões, superlotações, corrupção, torturas e teratologias processuais. De fato, um grande passo para a Instituição e para nosso sistema de justiça.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetiva analisar o imprescindível papel da Defensoria Pública em sede de execução penal, especialmente após a publicação da Lei nº 12.313/2010, a qual prevê a assistência jurídica ao preso dentro do presídio e atribui competências à Defensoria Pública.

Desta feita, consoante as questões trabalhadas acima, verifica-se que a importância da Defensoria Pública reflete na sua evolução ao longo dos anos. De instituição meramente assistencialista a função essencial à justiça, responsável pela prestação de assistência jurídica integral e gratuita a todos os hipossuficientes.

Nesse contexto, o direito fundamental de acesso à justiça encontra na Defensoria Pública um dos principais instrumentos para sua efetiva concretização, uma vez que a instituição se insere num profundo projeto de reforma do sistema de justiça brasileiro, de cunho eminentemente socializador, a partir da promulgação da Constituição cidadã.

Especificamente em relação à execução penal, a Lei nº 12.313/2010, ao concretizar a Defensoria Pública como órgão da execução penal, consagrou a garantia de pleno acesso à justiça aos presos, egressos e seus familiares, os quais não possuíam recursos financeiros para constituir advogado. Nessa esteira, a Defensoria Pública assume um papel de protagonismo dentro e fora dos estabelecimentos penais, reforçando a necessidade de prestação de auxílio material, estrutural e pessoal à instituição em todas as unidades federativas, além de reservar espaço próprio ao órgão no interior dos estabelecimentos prisionais. O avanço trazido pela lei tem grande impacto na forma como os reeducandos são tratados, ao contarem agora com uma fiscalização efetiva de quem busca para eles não só punição por seus crimes, mas verdadeira ressocialização.

Contudo, muita coisa há de ser feita, tendo em vista que os direitos relativos aos hipossuficientes, especialmente na será criminal, são sempre os primeiros a serem questionados e marginalizados, ficando claro que o fortalecimento da Defensoria Pública anda lado a lado com a efetivação da cidadania.

Sendo assim, a Defensoria Pública, como instituição mais incipiente do sistema de justiça, deve ser valorizada e fortalecida, para que as normas constitucionais não possam ser vistas como mera carta de intenções.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______________. Temas aprofundados da Defensoria Pública, volume 1. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2014.

______________. Temas aprofundados da Defensoria Pública, volume 2. Salvador: Jus Podivm, 2014.


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ASSIS, Victor Hugo Siqueira de. O papel da Defensoria Pública como órgão da execução penal e a imprescindibilidade de sua atuação para a garantia dos direitos fundamentais dos reeducandos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6890, 13 maio 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97596. Acesso em: 2 maio 2024.