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A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor

Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista

A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor: Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista

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A eficácia social da norma esbarra numa visão jurisprudencial que ainda rejeita a máxima utilização dos mecanismos legais existentes, sem ter a sensibilidade de que, em algumas situações, tal restrição importa a impossibilidade absoluta do acesso à justiça.

Sumário: 1) Apresentação do Tema; 2) O Status Constitucional dos Direitos do Consumidor; 3) A Constituição e seus Mecanismos de Auto-Implementação; 4) Em Busca da Eficácia dos Direitos do Consumidor; 4.1) Internalizando Externalidades; 4.2) A Eficácia Social da Norma; 5) Algumas Considerações sobre o Garantismo; 6) O Papel do Ministério Público na Defesa do Consumidor; 7) Conclusão; 8) Referências Bibliográficas.


1) A Apresentação do Tema

            Boaventura de Sousa Santos inicia sua obra "A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência" [01] afirmando: "Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu".

            E é exatamente essa sensação que invade o jurista ao analisar os direitos sociais hoje na sociedade brasileira.

            O consciente coletivo brasileiro, já bastante impregnado pela máxima das leis que não "pegam" e descrente da própria democracia, se viu surpreendido por uma Constituição repleta de princípios e normas programáticas que aos poucos foram sendo delineadas pelos intérpretes e aplicadores do direito.

            Certamente o Brasil não foi o mesmo após o advento da Constituição Federal de 1988, sobretudo com a descoberta, ou melhor dizendo, a redescoberta dos direitos transindividuais.

            A consagração no texto constitucional de um sem número de direitos transindividuais e respectiva instrumentalização dos meios de sua defesa, dentre os quais sobressai o perfil dado ao Ministério Público, forneceram os ingredientes necessários a uma mudança de atitude da sociedade no que tange a sua postura frente ao direito.

            Num primeiro plano cresceram as demandas judiciais relativas aos direitos transindividuais, sobretudo por iniciativa do Ministério Público.

            E num segundo momento, sobretudo em função da cobertura jornalística, cresceu o interesse da população em participar dos debates acerca do tema, o que acaba por criar um ciclo em expansão; quanto maior for a iniciativa dos legitimados para as ações coletivas (em sentido lato) maior será a demanda da população, que por sua vez realimenta os legitimados para novas ações.

            Nesse cenário deve ser destacada a tutela dos direitos do consumidor.

            Essencialmente após a edição da Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) se implementou um processo social de conscientização progressiva dos direitos do consumidor.

            Tal conclusão é extraída do incremento das ações individuais e coletivas nessa área e da importância que o tema assumiu na mídia, a tal ponto que é difícil lembrar de algum jornal que não mantenha de modo permanente uma coluna dedicada ao tema.

            No mesmo sentido, verificou-se uma sensível (mas significativa) mudança de atitude do empresariado, que reagiu ao movimento de demandas procurando se adequar ao Código, adotando práticas até então tidas como desnecessárias, como por exemplo, a manutenção de serviços de atendimento ao consumidor e a elaboração de manuais ilustrados para esclarecimentos de contratos.

            Se por um lado não se permite a ingenuidade de afirmar que o empresariado brasileiro se modernizou para atender os direitos do consumidor, tampouco se permite o ceticismo de não se vislumbrar qualquer mudança de atitude.

            Porém, tal mudança de atitude se dá à custa da implementação dos comandos constitucionais, cuja concretude depende da iniciativa dos legitimados para tanto.


2) O Status Constitucional dos Direitos do Consumidor

            O direito do consumidor foi incorporado ao texto constitucional sob duas formas: como direito humano fundamental, no art. 5°, inciso XXXII, e como princípio geral da atividade econômica, no art. 170, inciso V.

            Como direito humano fundamental, verifica-se a presença de dois dos três momentos a que se refere Bobbio [02]. Dependendo do aspecto a que se dê relevância se apresentam como direitos de segunda ou de terceira geração.

            Em sua já clássica lição Bobbio analisa a evolução dos direitos fundamentais identificando a fase dos direitos relativos à liberdade, marcado pelo absenteísmo estatal, a que chama de direitos de primeira geração; a fase dos direitos sociais, em que a intervenção estatal se faz marcante para mitigar as desigualdades que resultaram no conflito de classes; e a fase dos direitos difusos, onde o mote seria a proteção de interesses da sociedade (ou da humanidade) como um todo.

            É necessário nesse ponto deixar claro que o direito do consumidor, em termos absolutos, não representa o direito de uma classe. Representa uma meta de igualdade material que corporifica no campo contratual o ideal da eqüidade.

            Assim, a identificação do direito do consumidor como um direito de classe, de uma corporação, implica uma armadilha, qual seja a de se setorizar um interesse que é pertencente a toda a sociedade.

            Diferentemente de outros direitos, o consumo, na sociedade contemporânea, é imanente ao ser humano, incutindo-se na própria personalidade do ser.

            A pessoa é o que consome (ou o que deixa de consumir).

            Tal perspectiva é importante para se ter em mente a relevância do tema.

            Porém, por óbvio, conforme o pedido deduzido em juízo, preponderam aspectos menos eloqüentes do direito tutelado (há, por certo, maior relevância social numa ação coletiva ajuizada para retirar do mercado um produto cancerígeno do que numa ação individual proposta com o intuito de se obter a restituição em dobro de valor indevidamente pago).

            Voltando a Bobbio, o direito do consumidor apresenta-se como uma simbiose entre os direitos humanos de segunda e terceira geração, os quais, como o próprio autor assume, ainda não possuem definição clara [03].

            Assim, em última análise, o pedido deduzido em juízo empresta maior ou menor relevância ao interesse social intrínseco nas normas de defesa do consumidor, mas este sempre deve iluminar a aplicação da lei.

            Há, por certo, no nível empírico, uma maior tendência a se sensibilizar pelos problemas consumeristas quando neles se vêem imbricadas questões relacionadas a interesses outros tidos como de maior relevância, como a saúde, a educação ou segurança.

            Mas, em função de seu assento constitucional e da dicção expressa da lei (art. 1° da Lei n° 8.078/90), as normas de proteção ao consumidor representam, por si só, normas de ordem pública e de interesse social, reclamando a pronta atuação estatal na sua implementação [04].

            Como princípio da ordem econômica o enfoque é diverso.

            Os princípios, na verdade, definem as metas a serem buscadas tanto pelo legislador quanto pelo aplicador da lei. Configuram parâmetros previamente estipulados e que norteiam o ordenamento jurídico.

            Porém, são normas e não meros instrumentos de hermenêutica.

            Contudo, caracterizam-se por um teor elevado de abstração, carecendo de uma "densificação" [05] através de subprincípios e de regras que diminuam o âmbito de interpretação do aplicador da lei.

            Porém não se permite dizer que os princípios sejam despidos de conteúdo normativo, independentemente da existência de produção normativa posterior.

            Por si só, os princípios trazem um comando normativo que prescinde de qualquer processo de integração.

            Assim, por mais amplo que seja, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, bastaria seu simples enunciado para que se pudesse concluir pelo banimento de penas cruéis do ordenamento jurídico.

            Os princípios máximos de um ordenamento estão, por certo, guardados na Lei Fundamental, ainda que de forma implícita.

            Portanto, é na Constituição que se deve buscar os princípios vetores do ordenamento jurídico.

            Mas é necessário frisar, antes de tudo, que não é incomum que dentro de um mesmo texto constitucional estejam prescritos princípios que colidam uns com os outros.

            Melhor esclarecendo, no caso das Constituições compromissórias [06] como a brasileira, em que o texto final é fruto de tensões entre segmentos organizados da sociedade, verdadeira síntese de ideologias conflitantes e multifacetadas, a regra é a consagração de princípios aparentemente conflitantes, mas que na verdade devem ser aplicados harmonicamente.

            Em sede de direitos do consumidor, o art. 170 do Constituição Federal é emblemático no que pertine ao tema de conflitos entre princípios.

            Isto porque o referido artigo consagra a defesa do consumidor como princípio geral da atividade econômica, a qual é fundada, por força do mesmo preceito constitucional, na livre iniciativa.

            Obviamente que a questão ora suscitada deve ser analisada à luz de uma aparente antinomia de normas e não de uma antinomia real, vez que o ordenamento pressupõe um conjunto harmônico de normas e de métodos de solução de antinomias aparentes [07] [08]. Uma norma que de forma absoluta não encontre respaldo do sistema, de fato, é um corpo estranho ao ordenamento, uma não-norma, cuja aplicação o intérprete deve necessariamente excluir [09].

            Veja-se que as aparentes antinomias entre normas-regra funcionam de forma diversa em relação às antinomias, por igual aparentes, entre normas-princípio.

            Naquelas o intérprete concluirá pela aplicação de uma regra em total detrimento da outra, ou seja, as regras conflitantes se excluem reciprocamente, de acordo com os critérios clássicos de solução de conflitos (especialidade, cronológico e hierárquico).

            Todavia, tratando-se de princípios não prevalece o mesmo mecanismo. Os conflitos entre princípios resolvem-se pela ponderação dos valores [10] que lhes são ínsitos, de modo que não se cogita tão-somente de validade, como no conflito entre regras, mas também de valor ou peso [11].

            Notadamente, numa constituição multifacetada como a nossa, os princípios nela incorporados colidem entre si, mas diante do princípio (este interpretativo) da unidade da constituição, há que se buscar uma aplicação harmônica do direito [12].

            Presentemente, nos interessa registrar que a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica infiltra-se, como valor, na iniciativa privada e na intervenção estatal no domínio econômico, de modo que impossível se mostra não associar a atividade econômica à defesa do consumidor, a qual, por sua vez, não pode chegar ao ponto de inviabilizar a livre iniciativa, igualmente protegida através de princípio constitucional.

            Mas, longe de serem conflitantes, tais princípios harmonizam-se se considerada a dignidade da pessoa humana como princípio vetor de toda a ordem constitucional e que se sobrepõe à própria ordem econômica, vez que elevado a fundamento (ou melhor, princípio fundamental) da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF).

            Somente uma visão fragmentada da constituição poderia antever conflito entre os dois princípios em comento.

            Na verdade o texto constitucional é fruto da história e consagra em suas páginas a própria evolução do capitalismo, consagrado como sistema econômico nacional (art. 1º, inciso IV, 2ª parte, da CF) e que para sua própria sobrevivência não prescinde de mecanismos de prevenção contra suas distorções.

            Assim, a natureza de princípio confere à defesa do consumidor a condição de característica da atividade econômica, a qual só poderá ser tida como lícita se obediente ao escopo fixado constitucionalmente.

            Transfigurado como direito fundamental ou como princípio, a defesa do consumidor consubstancia atualmente verdadeiro limite à iniciativa privada.

            Juntamente com a defesa do meio ambiente e a função social da propriedade, a defesa do consumidor é apresentada como uma espécie de princípio densificador de outros princípios, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana.

            Isto porque é possível verificar-se, ainda que empiricamente, que alguns princípios (que inevitavelmente traduzem-se em direitos) são positivados de forma mais ampla e abstrata que outros.

            Assim acontece com o princípio [13] da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF) e o princípio da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, 2ª parte, CF).

            Em várias passagens o próprio texto constitucional desdobra tais princípios, tornando-os mais concretos (mais densos), como, por exemplo, no art. 5º, incisos XIII, XVIII, XXII, XLIX; art. 7º, inciso XXX; art. 227, caput etc.

            E da mesma forma ocorre em relação aos direitos do consumidor, que nada mais são do que uma densificação dos princípios gerais da iniciativa privada e da dignidade da pessoa humana. A defesa do consumidor constitui subprincípio para o qual convergem os princípios estruturantes em comento.

            Desta forma, não há que se cogitar de conflito entre a livre iniciativa e a defesa do consumidor, pois a livre iniciativa só se reputa reconhecida como princípio constitucional na medida em que é exercida sem a lesão dos direitos básicos do consumidor.


3) A Constituição e seus Mecanismos de Auto-Implementação

            Faz-se necessário fixar a premissa de que a norma pode ser juridicamente eficaz sem ser socialmente eficaz.

            Tal entendimento não é novo e viu-se consagrado, sobretudo na já clássica obra "Aplicabilidade das Normas Constitucionais [14]" de autoria de José Afonso da Silva segundo o qual "uma norma pode ter eficácia jurídica sem ser socialmente eficaz, isto é, pode gerar certos efeitos jurídicos, como, por exemplo, o de revogar normas anteriores, e não ser efetivamente cumprida no plano social".

            Um dos obstáculos à eficácia social dos direitos do consumidor já foi superado com a edição do Código de Defesa do Consumidor.

            Muito embora o reconhecimento dos direitos do consumidor no texto constitucional, seja como direito fundamental seja como princípio da ordem econômica, já se mostre por si só como medida suficiente à aplicação da norma, não é despiciendo registrar que a edição do Código facilita a aplicação da norma na medida em que delineia seu conteúdo.

            Em sede de direito do consumidor, mister se faz ressaltar que a norma constitucional em comento tem como destinatário o Estado, tanto na sua função executiva quanto na sua função legislativa, e o particular [15].

            E, por certo, a densificação da norma através da edição de legislação infraconstitucional facilita a atuação do intérprete e reduz a vacuidade que caracteriza o enunciado constitucional.

            Porém, a edição do Código de Defesa do Consumidor não se mostra apta, por si só, a garantir a prevalência, no plano social, dos desígnios do legislador constituinte.

            Tendo em vista tal assertiva, é que o próprio constituinte instituiu mecanismos de implementação da norma.

            Nesse passo, se faz oportuno consignar que a própria edição do Código foi determinada pelo constituinte no ato das disposições constitucionais transitórias, em seu art. 48, cumprida, é bem verdade, com algum atraso.

            Aliás, a redação do art. 5°, inciso XXXII, da Carta, já traz, em si, embutida a idéia de implementação, de concretização da norma, quando enuncia: O Estado implementará, na forma da lei, a defesa do consumidor.

            Nesse sentido a Constituição já estrutura a atuação do Estado para a consecução dos objetivos determinados pelo constituinte.

            E o faz, em especial, ao atribuir ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis.

            Na verdade, coube ao Código de Defesa do Consumidor melhor delinear os mecanismos de implementação da proteção do consumidor, sendo de se destacar, nesse sentido, o capítulo II, do título I, que trata da política nacional das relações de consumo, o título III, que trata da defesa do consumidor em juízo, e o título IV, que trata do sistema nacional de defesa do consumidor.

            Esses mecanismos estão ligados à expressão enforcement, que por sua vez traduz a idéia do "reconhecimento da necessidade de serem estabelecidos mecanismos eficazes que assegurem o cumprimento das leis" [16].


4) Em Busca da Eficácia dos Direitos do Consumidor

            Sem embargo do que já foi dito antes, de nada adiantaria a previsão, ao nível da norma, de mecanismos de implementação dos direitos sociais, se tal cabedal de possibilidades não fosse posto em uso.

            Muito embora a atuação do legislador ainda seja necessária para a implementação de tais direitos, na medida em que a mutação constante da sociedade faz surgir novas situações cuja regulamentação se faz premente, é na esfera de atuação do poder executivo e judiciário que o comando constitucional deve ecoar com maior expressão.

            Consoante estabelecido pelo CDC, em consonância com o princípio vetor constitucional, a proteção do consumidor se dará, em linhas gerais, através da estruturação de órgãos de defesa do consumidor, da intervenção do Estado na economia e da ampliação do acesso à justiça.

            Nesse trabalho se dará destaque ao último enfoque.

            A questão do acesso à justiça comporta ainda, a grosso modo, uma bipartição para fins de análise: uma baseada nos conflitos individuais e outra nos transindividuais.

            Tanto num como noutro aspecto o Código de Defesa do Consumidor se valeu de uma série de mecanismos como o propósito de facilitar a atuação do consumidor em juízo.

            Nesse sentido são, a título de exemplo, as regras previstas no art. 6°, inciso VI, VII e VIII; no art. 82; e art. 101, do CDC.

            A adoção de mecanismos de facilitação da defesa judicial dos direitos do consumidor tem no mínimo uma repercussão de ordem econômica, no campo da redução das externalidades, e outra jurídica, na seara da eficácia social da norma.

            4.1) Internalizando Externalidades

            À luz da economia, externalidade pode ser conceituada como o "impacto das ações de uma pessoa sobre o bem-estar de outras que não participam da ação" [17] [18].

            A adoção do termo é mais comum para se caracterizar o efeito dos danos ambientais decorrentes da produção (externalidade negativa) ou os benefícios de uma invenção (externalidade positiva).

            Assim, quando uma indústria polui um rio com seus dejetos causa um dano não indenizado aos moradores vizinhos que dependem daquelas águas para atividades rotineiras, eis a externalidade.

            O conceito parte da premissa de que alguns bens são apropriados pelo empreendedor sem que haja qualquer pagamento por seu uso, como seria de se esperar.

            Ao produzir o empreendedor paga pela matéria-prima e pela mão de obra, gastos que representam o custo da produção. Porém, a degradação do rio, enquanto não for indenizada representa uma apropriação indevida de bem de uso comum, em prejuízo de terceiros.

            A adoção de medidas tendentes a impedir o dano ambiental ou o pagamento de indenizações internalizam as externalidades, ou seja, fazem com que o empresário insira como custo as intervenções indevidas no bem-estar alheio.

            A defesa do consumidor passou a ser reconhecida juridicamente como uma externalidade da iniciativa privada(Ulhoa trabalha essa idéia) a partir do momento em que tal direito foi elevado a princípio da ordem econômica e principalmente a direito fundamental do cidadão.

            Ou seja, tais normas implicaram num aumento do custo da atividade empresarial, como as normas de proteção ao trabalhador.

            Contudo, o empresário dispõe de meios para compensar, ou melhor, internalizar as externalidades, adaptando sua atividade aos novos parâmetros constitucionais sem que a mesma reste inviabilizada.

            Segundo Fábio Ulhoa Coelho [19], "a transposição da noção de "internalização de externalidades" do campo do conhecimento econômico para o contexto da reflexão jurídica tem o grande mérito de alertar para o fato de que as obrigações jurídicas impostas ao empresário têm a natureza de elemento custo."

            Porém, é necessário lembrar, contra os que vislumbram no direito do consumidor um entrave à atividade empresarial, que o entendimento do direito do consumidor como direito-custo permite a conclusão de que, no final das contas, quem arca com o preço da melhoria do mercado é o próprio consumidor, vez que as adaptações a que a atividade empresarial se vê compelida a fazer traduzem-se em custo da produção, repassada, obviamente, para o preço final de produtos e serviços. [20]

            De qualquer modo, os mecanismos que facilitam a proteção dos direitos do consumidor em juízo acabam por forçar os fornecedores a internalizar as externalidades.

            Registra-se a título de exemplo a inversão do ônus da prova.

            Caso fosse adotada a regra geral do Código de Processo Civil, a dificuldade para a prova seria premente em certos casos, como os de saque indevido em conta corrente.

            Aplicada a inversão, a tendência natural é que o fornecedor, frente a inúmeras decisões desfavoráveis, passe a implementar mecanismos de segurança, como filmadoras em caixas eletrônicos ou a adoção de senhas mais complexas, despendendo mais recursos financeiros no oferecimento do serviço.

            Logo, insere-se no custo elementos antes desprezados pelo empresário.

            Caso fosse mantida a regra tradicional de distribuição do ônus da prova, eventuais falhas na prestação do serviço seriam suportadas, independentemente de qualquer indenização, pelo consumidor, que não teria condições de provar o dano.

            Invertido o ônus da prova, o custo da produção aumentará em função da internalização da externalidade.

            4.2) A Eficácia Social da Norma

            Alguns dos dispositivos processuais oferecidos ao consumidor contribuem sobremaneira a emprestar maior eficácia social à norma.

            Há de se destacar nessa seara os dispositivos reguladores das ações coletivas que permitem a dedução em juízo de questões que a princípio não teriam como ser levadas ao conhecimento do judiciário pela via tradicional [21].

            Na medida que a lei legitima determinados entes para a defesa dos interesses transindividuais permite que, através do judiciário, uma gama maior de normas seja implementada.

            É necessário registrar que a eficácia social da norma tem repercussão direta na internalização das externalidades, vez que a atuação do empresário se pauta na realidade dos fatos e não no plano abstrato normativo.

            Ou seja, na medida em que as normas se tornam realidades sociais é que os fornecedores atuarão no sentido de mitigar os efeitos negativos da implementação normativa, assumindo uma postura de prevenção, mais coerente e menos onerosa do que uma postura de reparação.

            Assim, os dispositivos processuais de defesa do consumidor se comportam como instrumentos de implementação da norma, na medida que permitem de maneira célere a concretização do direito.


5) Algumas Considerações sobre o Garantismo

            A teoria do garantismo, mais voltada para o direito penal é bem verdade, se presta também a embasar a atuação dos operadores do direito no que se refere a aplicação das normas de defesa do consumidor.

            Um dos significados emprestados ao garantismo pelo próprio Luigi Ferrajoli [22] é o de que ele seria "uma teoria jurídica da "validade" e da "efetividade" como categorias distintas não só entre si mas, também, pela "existência" ou "vigor" das normas. Nesse sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o "ser" e o "dever ser" no direito; e, aliás, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente antigarantistas), interpretando-se como a antinomia – dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica – que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas".

            Assim sendo não basta para a garantia dos direitos seu enunciado na norma, mas sim a tradução em prática social constante.

            Segundo Sérgio Cademartori [23], com base nas idéias de Ferrajoli, o garantismo "designa também uma filosofia do direito e crítica da política, condensando-se numa filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado a carga de sua justificação externa, isto é, um discurso normativo e uma prática coerentes com a tutela e garantia dos valores, bens e interesses que justificam sua existência".

            E como a filosofia do garantismo pode ser útil ao direito do consumidor?

            A resposta a essa questão se faz mais premente em sede da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais homogêneos.

            Sobretudo nessa seara a jurisprudência tem se mostrado vacilante ao admitir a legitimidade para defesa dos direitos do consumidor ao argumento de que o Ministério Público só estaria legitimado a agir em defesa de interesses que além de individuais homogêneos fossem concomitantemente indisponíveis, o que limita sobremaneira a atuação ministerial, já que tais direitos dos consumidores são eminentemente patrimoniais.

            Porém, mormente em função da dispersão de lesados, muitos desses direitos ficam carentes de proteção judicial à falta de quem se disponha a deduzir em juízo questões de valor individual ínfimo.

            São muitos os exemplos a serem citados, como a cobrança indevida de tarifas bancárias ou erros de cálculo na cobrança de impostos embutidos nas tarifas públicas.

            Nesses casos a probabilidade da ilicitude ficar impune é imensa e só a legitimação para a ação coletiva permitirá o restabelecimento da ordem jurídica.

            Sob o ponto de vista econômico, como visto anteriormente, a não legitimação de entes para a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos representa para o fornecedor a apropriação indébita de patrimônio alheio e para o consumidor uma externalidade, já que faltarão meios para compelir o empresário faltoso a indenizar os consumidores lesados.

            Tal perspectiva gera na sociedade um descrédito nas instituições, haja vista a existência de verdadeiros vácuos, onde a ilicitude é permitida sem qualquer sanção.

            Dita possibilidade afronta a visão garantista do direito.

            Cappelletti [24] chega a mencionar que se vivencia um momento do garantismo coletivo, verbis: "Emerge, dall’altro lato, um lento ma necessário movimento di transformazione, Che coinvolge funditus l’intera temática del diritto processuale. Perfino nel campo del "garantismo", Che ha rappresentato per tanti anni ormai la nostra "fede" di processualisti, si assiste al necessario movimento verso uma forma nuova, che chiamerei di garantismo sociale o collettivo, e che significa superamento, appunto, del garantismo in senso individualistico tradizionale".


6) O Papel do Ministério Público na Defesa do Consumidor

            Especificamente no que tange à defesa dos direitos do consumidor, a legitimidade do Ministério Público também deflui do texto constitucional, art. 5°, inciso XXXII, art. 127, caput, e art. 129, inciso III.

            Editado em função de comando constitucional (art. 48 do ADCT), o Código de Defesa do Consumidor inseriu, de modo expresso, o Ministério Público como um dos legitimados para a defesa coletiva dos direitos do consumidor (art. 82, I) [25].

            Muito embora o Código de Defesa do Consumidor seja expresso ao conferir ao Ministério Público legitimidade para a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sobre esta última modalidade de interesse transindividual recaem os maiores questionamentos quanto à interpretação da norma.

            Tudo porque o texto constitucional ao tratar da instituição do Ministério Público não previu de forma expressa a possibilidade da defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos [26], preferindo o constituinte ora prever a atuação ministerial na defesa dos direitos individuais indisponíveis (art. 127, caput), ora em defesa somente dos interesses ou direitos difusos e coletivos (art. 129, inciso III).

            A opção majoritária feita pelos tribunais superiores tem sido a de interpretar a norma conjugando o direito individual homogêneo com a sua concomitante indisponibilidade, de modo a permitir a atuação do Ministério Público apenas com a presença de ambos os requisitos.

            Essa corrente traz à baila, em reforço de seus argumentos o art. 25, inciso IV, alínea "a", da Lei n° 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), que dispõe incumbir ao MP a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos [27].

            A partícula aditiva "e" autorizaria a conclusão no sentido de que o interesse cuja tutela fosse pretendida pelo Ministério Público devesse possuir simultaneamente as características da indisponibilidade e da homogeneidade.

            Sem embargo do respeito que merecem os defensores dessa orientação, permite-se concluir que a mesma parte de premissas equivocadas e de paradigmas ultrapassados.

            Primeiramente, verifica-se uma influência de uma visão dicotômica do direito que possibilitaria vislumbrar na esfera do direito privado os direitos disponíveis e no direito público os indisponíveis.

            Não é incomum encontrar no bojo de acórdãos expressões como "interesse meramente patrimonial" associadas a "direito disponível" [28], como se a realidade atual fosse característica de uma sociedade compartimentada onde ainda prevalecesse o dogma da autonomia da vontade.

            Hodiernamente, é justamente sobre o patrimônio das pessoas é que incide a maioria das violações aos direitos fundamentais (ex: bloqueio de cruzados, juros abusivos, taxas inconstitucionais, como a de iluminação pública).

            Embutido nesse raciocínio ainda se insere a visão tradicional do contrato, repelida pelo legislador consumerista e ainda não totalmente assimilada pelos intérpretes do direito.

            Sob tal ótica a atuação ministerial representaria uma indevida intromissão na esfera de vontade do particular.

            Mas no rigor de tal lógica, quase todo direito proveniente das relações de consumo, até mesmo os difusos e coletivos, deveriam ser considerados disponíveis, pois se referem a direitos de ordem eminentemente patrimonial.

            Contudo, deve se perceber que, independentemente da espécie de interesse coletivo, em sentido lato, que se pretenda proteger, a base de validade da atuação do Ministério Público na defesa do consumidor há de ser a mesma.

            E dito fundamento de validade não repousa na indisponibilidade do direito do consumidor, mas sim na defesa da ordem jurídica e do interesse social.

            Outra não é a conclusão de Marcos Antônio Maselli de Pinheiro Gouvêa [29]: "Impõe-se a conclusão de que a atuação ministerial, nos termos do dispositivo mencionado, também se respalda nas funções institucionais de defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais. São estes valores, mais do que uma interpretação extensiva da defesa dos interesses indisponíveis, que fundamentam a tutela molecular dos direitos individuais homogêneos, tutela esta cuja provocação é constitucionalmente cometida, por excelência, ao Ministério Público. Se a apropriação indevida de uma quantia que deveria pertencer a consumidor é realizada por uma empresa, não configura isto um atentado contra a ordem jurídica, a demandar a intervenção do Parquet? Se, para a satisfação de seus direitos – direitos, por vezes, a quantias ínfimas – milhares de pessoas têm de propor uma enxurrada de ações individuais, atravancando juizados especiais e juízos comuns, não haverá aí interesse social na solução rápida de inúmeras lides, através da atuação molecular do Ministério Público?".

            No mesmo sentido é o entendimento de Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery [30], também citado por Maselli: "O que legitima o MP a ajuizar ação na defesa de direitos individuais homogêneos não é a natureza destes mesmos direitos, mas a circunstância de sua defesa ser feita por meio de ação coletiva. A propositura de ação coletiva é de interesse social, cuja defesa é mister institucional do MP (CF, 127, caput), razão por que é constitucional o CDC 82, I, que legitima o MP a mover ação coletiva na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. No mesmo sentido, tese de NELSON NERY JUNIOR aprovada por unanimidade no 9° Congresso Nacional do Ministério Público (Salvador-BA, setembro de 1992)".

            Mas como aferir o interesse social que legitimaria a atuação do Ministério Público?

            Note-se que entender que a indisponibilidade do direito não se mostra apta a permitir divisar as hipóteses em que exsurge a legitimidade do Ministério Público para a tutela de interesses coletivos, na verdade, importaria em deslocar o foco da discussão para o problema do interesse social, sem, no entanto, resolver a questão.

            Ora, o que se deve entender por interesse social?

            Um das chaves para a resposta do problema em comento vem do que Ronaldo Porto Macedo Junior [31] chamou de moderno direito social.

            Segundo o autor "o direito contemporâneo, típico do Welfare State, também chamado Direito social, caracteriza-se, grosso modo, por sua estruturação feita com base em um novo padrão ou paradigma de racionalidade jurídica. Nesse paradigma de pensamento jurídico a Justiça é pensada como um princípio de equilíbrio (ou balanceamento) de interesses sociais irredutíveis a uma medida de Justiça transcendente ou universal..."

            E prossegue mais adiante: "O papel do Ministério Público está diretamente relacionado às novas características do Direito Social, à medida que o fundamento de intervenção do promotor de justiça no âmbito do Aparelho Judicial é o de defensor direto dos interesses sociais (sejam eles coletivos, difusos ou individuais homogêneos imbuídos de interesse social)..."

            Dentre os interesses que justificam a atuação do MP está o interesse na tutela do consumidor coletivamente considerado.

            Na verdade, o interesse social que legitima a atuação ministerial é o interesse constitucionalmente eleito, oriundo do princípio da dignidade da pessoa humana, na perspectiva de um equilíbrio real e não meramente formal nas relações de consumo.

            Trata-se de um verdadeiro mecanismo de mitigação do desequilíbrio contratual nas relações de consumo, que, em última análise, tem como meta a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, inciso I, da CF) e a erradicação das desigualdades sociais (art. 3°, inciso III, da CF/88) e como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III, da CF).

            Assim, por exemplo, com base no interesse social [32], se admitiu a inclusão da defesa dos adquirentes de lotes em loteamentos clandestinos no rol dos interesses tuteláveis pela via coletiva através de ação movida pelo Ministério Público [33].

            Muito interessante enfatizar sobre a questão do interesse social a posição adotada pelo Ministro Sepúlveda Pertence em voto proferido por ocasião do julgamento do recurso extraordinário n° 213.631-0/MG [34], em que se discutia a legitimidade do Ministério Público na defesa do contribuinte.

            Naquela ocasião o Ministro Sepúlveda Pertence, ao observar a dificuldade de se calcar num conceito aberto como o de interesse social o parâmetro de aferição da legitimidade ministerial em sede de ações civis públicas, propôs o critério a que denominou de "interesse social conforme a Constituição", traduzido da seguinte forma: "afora o caso de previsão legal expressa – a afirmação do interesse social para o fim cogitado há de partir da identificação do seu assentamento nos pilares da ordem social projetada pela Constituição e na sua correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da república, nela consagrados".

            Por certo, há certo paralelo entre a expressão utilizada pelo Ministro Sepúlveda Pertence e o critério da interpretação conforme a Constituição que procura dentre as várias possibilidades hermenêuticas a que melhor se coadune com os princípios constitucionais, afastando, via de conseqüência, as interpretações incompatíveis [35].

            O que há de mais interessante nesse raciocínio é que na medida em que se confere uma interpretação conforme a Constituição, ao mesmo tempo se empresta concreção aos princípios vetores da Carta.

            Tal posição possui o mérito de permitir divisar com maior nitidez o interesse social como critério definidor de legitimidade nas ações coletivas.

            Mas, a contrario sensu, não se prestou a embasar a legitimidade do Ministério Público na defesa do contribuinte, já que o acórdão do STF em referência [36] concluiu pela ilegitimidade, com a anuência do próprio Ministro Sepúlveda Pertence, muito embora o relevante interesse social da atuação ministerial nessa área. [37]

            Note-se que, no mais das vezes, quando se trata de proteção de interesses individuais homogêneos, a visão do julgador não se atém ao direito do consumidor, reclamando que a este direito venham atrelados outros direitos, como o direito à saúde, à educação ou à vida.

            Assim o foco de atenção acaba muitas vezes desviado da tutela do consumidor para a tutela de outros interesses a ele vinculados, de modo que mesmo que não existentes as normas de proteção ao consumidor a prestação jurisdicional seria favorável aos demandantes, ainda que calcada em base legal não contratual.

            Nesse sentido é sintomática a questão das mensalidades escolares, na qual a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ação civil pública foi aos poucos sendo pacificada nos Tribunais não em função do direito do consumidor, mas em função do direito à educação [38].

            É claro que tais direitos analisados em conjunto só enfatizam o interesse social no ajuizamento da causa, interesse este que acaba por justificar a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público.

            Contudo, a questão do interesse social como critério de aferição da legitimidade do MP para a defesa do consumidor fica ainda sem definição.

            O interesse social que se deve aferir para exame da legitimidade ministerial na defesa do consumidor é o interesse intrínseco nas normas de proteção do CDC, consoante disposição expressa do art. 1°, caput, da Lei n° 8.078/90.

            Sob tal aspecto, a defesa do consumidor consubstanciaria um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no direito positivo pelo art. 1°, inciso III, da Constituição Federal.

            E como tal representa um novo paradigma de equilíbrio contratual que extrapola os limites das relações de consumo.

            Este é o caminho que, por exemplo, o direito alemão parece seguir com a recente reforma de seu Código Civil, através da qual inseriu no referido Codex normas tendentes a adequar os dispositivos legais vigentes à correta proteção da parte contratante vulnerável, característica da sociedade de massa, o consumidor.

            Optou o legislador alemão por não criar um código próprio para o consumidor.

            Cláudia Lima Marques [39] ao analisar o novo texto do Código alemão tece a seguinte observação: "Como se observa, o futuro do Direito do consumidor começou a mudar. De elemento descodificador e especial, renasce como elemento unificador e harmonizador do Direito Privado, reforçando o Direito Civil geral, impregnando-o de valores sociais, de justiça distributiva e de tratamento desigual e pós-moderno aos sujeitos de direito, desiguais e importantes na estrutura da sociedade de massas atuais. Tudo sem quebrar o sistema e sim fazendo parte do sistema, adaptando-o às novas realidades sociais e culturais. Os alemães tentam iniciar um DIREITO CIVIL GERAL E SOCIAL. Bem conhecendo a solidez, tenacidade e força criativa da doutrina alemã, é esta sem dúvida uma novidade a ser noticiada e uma experiência a ser acompanhada de perto por todos os juristas".

            Muito embora no Brasil tenha havido uma opção pela adoção de um Código próprio para as relações de consumo, não se pode negar que a elevação de tais direitos ao patamar constitucional revela uma verdadeira mudança de paradigmas no tratamento legal dos contratos.

            O homem é colocado no centro das preocupações jurídicas.

            O ordenamento pátrio passou a preocupar-se, de maneira prioritária, com a concretude dos direitos da personalidade, relegando a um segundo plano questões de ordem puramente patrimonial.

            Nesse sentido, os órgãos estatais, dentre eles o Ministério Público, passaram a ter o dever de zelar pela aplicação dos princípios constitucionais de valorização do ser humano, na busca de sua felicidade e, em sede contratual, do ideal de eqüidade.

            Há por determinação constitucional relevante interesse social no equilíbrio real e não meramente formal das relações de consumo, e toda vez que restar ameaçado tal equilíbrio devem ser disparados os mecanismos de correção das distorções, dentre os quais se insere a atuação do Ministério Público na tutela coletiva do consumidor.

            O MP é, portanto, um ente estatal de concreção dos direitos da personalidade em suas mais variadas formas de manifestação.


7) Conclusão

            À luz de tudo o que foi exposto, forçoso é concluir que o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para a defesa em juízo dos direitos individuais homogêneos do consumidor é um forte instrumento de eficácia social da norma consumerista.

            Mesmo as objeções que são feitas esbarram no argumento de que, em algumas situações (e não são poucas), a violação ao direito do consumidor ficaria impune, à falta de meios de acesso à justiça que obstem a atuação lesiva do infrator e desestimulem práticas semelhantes de seus pares.

            É necessário reconhecer que a elevação de um direito à condição de fundamental e sua consagração no texto constitucional, por si só, não é suficiente para garantir o seu reconhecimento na sociedade.

            Aliás, a consagração de um direito sem a criação de mecanismos correlatos que permitam sua tutela equivale è negação do próprio direito.

            Nesse sentido, mostra-se extremamente interessante a seguinte passagem do voto divergente do Ministro Marco Aurélio no RE 213.631-0/MG, em que se tratava da legitimidade o Ministério Público para a defesa do contribuinte: "Chegou ao meu conhecimento que certa vez, discutindo se a constitucionalidade, ou não, de um diploma que majorava ou introduzia tributo, indagou-se a percentagem, e seria essa expressão, "a percentagem de inconstitucionalidade", a qual estaria norteada não pelo teor da norma em cotejo com a Carta da República mas pelo número de cidadãos que, de regra, vêem, no acesso ao Judiciário, o exercício de um direito inerente à cidadania e formalizam a irresignação para vê-la apreciada pelo Judiciário".

            Na verdade, a "percentagem da constitucionalidade" a que se refere o i. Ministro nada mais é do que a probabilidade do infrator ser compelido a respeitar a norma.

            Sendo mínima tal probabilidade, a infração acaba sendo estimulada.

            Em sede de direitos do consumidor tal infração traduz-se em lucro para o fornecedor, provocando uma externalidade para o cliente, lesado em seu patrimônio pela queda da qualidade do produto ou do serviço prestado, em decorrência do desrespeito à norma protetiva.

            É preciso perceber que a falta de mecanismos de proteção pode decorrer tanto de uma omissão legislativa quanto de uma interpretação jurídica.

            E esse último aspecto é o que se afigura mais preocupante, sobretudo no que tange à defesa dos direitos individuais homogêneos.

            Isto porque, apesar do arcabouço legal já existente para a tutela coletiva dos direitos do consumidor, a eficácia social da norma esbarra numa visão jurisprudencial que ainda rejeita a máxima utilização dos mecanismos legais existentes, sem ter a sensibilidade de que em algumas situações, tal restrição importa a impossibilidade absoluta do acesso à justiça.

            Muito embora não se refira exatamente aos consumidores a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à ilegitimidade do Ministério Público para a defesa do contribuinte é emblemática para exemplificar o acima referido [40].

            Também o Superior Tribunal de Justiça tem adotado a mesmo orientação [41].

            Não se pretende aqui a adoção da idéia de que a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos deve ser reconhecida sempre, de forma indiscriminada.

            Porém, o elastério da norma permite sua aplicação em situações que tem sido rejeitadas pelos Tribunais Superiores com base em premissas falsas, quais sejam a de que a legitimidade que ora se comenta deve vir atrelada à indisponibilidade do direito e ao interesse social.

            A rigor, tratando-se de direito do consumidor, as premissas seriam sempre preenchidas ante a dicção expressa do art. 1° da Lei n° 8.078/90 que estabelece que as normas de proteção ao consumidor são de ordem pública, e portanto indisponíveis, e de interesse social.

            Ou seja, a lógica argumentativa que lastreia a posição jurisprudencial dominante é falha.

            Porém, é de se reconhecer que o Ministério Público não pode se prestar a deduzir em juízo pedido em defesa de indivíduos que, por conta própria, mostrar-se-iam capazes de fazê-lo, até mesmo com maior desenvoltura.

            Além disso, o excesso de demandas coletivas pode diminuir a participação direta da sociedade civil no processo, acabando por se submeter à tutela de um ente estatal, como é o Ministério Público.

            Eis a razão da preocupação dos intérpretes da lei: o desvirtuamento das funções ministeriais e o desestímulo à participação direta da sociedade civil no processo.

            Mauro Cappellletti [42], ao estudar o problema da dedução dos direitos coletivos (em sentido amplo) em juízo, vislumbrou alguns obstáculos a serem transpostos, os quais divide em problemas reais e fictícios.

            Os fictícios relacionam-se aos aspectos políticos e psicológicos do problema, os quais embora nominados de fictícios não são menos importantes.

            Para o autor a revolução por que deverá passar o direito processual para recepcionar as demandas coletivas encontra entraves políticos porque implicará em abertura de espaço para novos tipos de demandas que afetarão interesses até então intocados.

            Naturalmente, que as dificuldades processuais das demandas coletivas pressupõem uma omissão estatal que acaba por beneficiar os eventuais réus dessas ações (poluidores, conglomerados empresariais, dentre outros).

            No que tange aos empecilhos psicológicos, tem-se a rejeição ao novo que exsurge no mais das vezes no seio da comunidade jurídica, cuja formação profissional lastreou-se em paradigmas que terão que ser alterados para dar passagem às adaptações necessárias à tutela dos interesses coletivos.

            Quanto aos óbices reais à tutela coletiva, Mauro Cappelletti os identifica em número de quatro: a legitimidade, o direito de defesa, a coisa julgada e a prestação jurisdicional.

            O primeiro item refere-se ao fato de que, sendo supraindividual o direito tutelado, a quem deveria ser conferida a legitimidade para ajuizar as ações correspondentes?

            Para Cappelletti, a análise da legitimação não prescinde de uma averiguação pelo juiz da adequação da parte que se apresenta em juízo para a defesa do interesse que pretende tutelar, análise esta que deverá ser feita caso a caso.

            Contudo, reconhece os perigos de se entregar exclusivamente à discricionariedade judicial a aferição da legitimidade, reputando conveniente a prévia definição de pressupostos legais, os quais só poderão ser desenvolvidos através da experiência judiciária.

            Critica o autor o despreparo do Ministério Público para tais demandas [43].

            O segundo obstáculo seria a questão do direito de participação processual dos substituídos. Ou seja, como viabilizar uma adequada representação processual sem lesar o direito de acesso à justiça das pessoas diretamente interessadas no pleito deduzido em juízo?

            Tal problema seria resolvido com a adequada representação do interesse coletivo o que remete a análise novamente ao problema da legitimidade.

            O terceiro problema real seria a questão da coisa julgada. Devem ou não seus efeitos materiais se estenderam a todos os interessados, ainda que não tenham figurado com parte no processo?

            Para o autor, sendo adequada a representação deve a coisa julgada atingir os co-legitimados, de modo a impedir a dedução da mesma questão coletiva em juízo.

            Por fim, vislumbra Cappelletti a própria prestação jurisdicional tradicional como obstáculo à tutela coletiva, vez que, em muitas situações o aparelho processual não se tem mostrado preparado para solução de conflitos que não se reduzam a valores econômicos.

            Assim, em muitas das situações apresentadas, a tutela que se pretende é eminentemente preventiva, sendo o ressarcimento do prejuízo inócuo para satisfazer a pretensão da coletividade.

            É o que ocorre, por exemplo, com uma ação que tenha como objetivo retirar do mercado um produto considerado cancerígeno. De que valerão indenizações, ainda que milionárias, diante da perda de várias vidas à custa de grande sofrimento?

            Em seu estudo Cappelletti traz grande contribuição ao direito ao vislumbrar no fenômeno da coletivização do processo o que chama de garantismo social ou coletivo, que exigirá uma profunda reforma no direito processual, conclamando os operadores jurídicos a uma postura crítica diante de um direito que não responde aos anseios sociais.

            E é nesse sentido que deve ser analisada a questão da legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos: um verdadeiro mecanismo de eficácia social da norma.


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9.Notas

            01 2ª edição, São Paulo: Cortez Editora, 2000, p. 41.

            02 A Era dos Direitos. 4ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus. 1992.

            03 "Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata". Op. cit., p. 41.

            04 Aliás, a redação do comando constitucional é enfática nesse sentido: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5°, inciso XXXII, da Constituição Federal).

            05 O termo "densificação" é utilizado com uma felicidade ímpar por Canotilho (apud ESPÍNDOLA. Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo: RT. 1998, p. 233), que esclarece:

            "Densificar uma ‘norma’ significa preencher, complementar e precisar o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos.

            As tarefas de concretização e de densificação de normas andam, pois, associadas: densifica-se um espaço normativo (=preenche-se uma norma) para tornar possível sua concretização e a conseqüente aplicação a um caso concreto".

            06 Na lição de Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª edição. Coimbra: Almedina. 1998, p. 211) "numa sociedade plural e complexa a constituição é sempre um produto do "pacto" entre forças políticas e sociais. Através de "barganha" e de "argumentação", de convergências e "diferenças", de cooperação na deliberação mesmo em caso de desacordos persistentes, foi possível chegar, no procedimento constituinte, a um compromisso constitucional ou, se preferirmos, a vários "compromissos constitucionais".

            07 Bobbio (in Teoria do Ordenamento Jurídico, 5ª edição. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Unb. 1994. p. 92) assevera que apenas as antinomias insolúveis são reais.

            08 Ao tratar do princípio da unidade da Constituição, Luís Roberto Barroso (in Interpretação e Aplicação da Constituição. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 196) ressalta a idéia de antinomias aparentes: "O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico-normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente detectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela legítima exclusão da incidência de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte disposto nesse sentido."

            09 Eros Roberto Grau (in A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 97), abeberando-se em Dworkin, ao distinguir os princípios das regras, o faz com base na realidade das antinomias, o que destoa um pouco da posição ora defendida. Para o autor as antinomias reais (ou próprias ) só existem entre regras, sendo o conflito resolvido com a necessária eliminação de uma das regras do sistema. Enquanto em relação aos princípios, o conflito não importa a eliminação do princípio desprestigiado, o qual poderá prevalecer em conflito semelhante numa situação posterior. Contudo, preferimos, juntamente com Bobbio, entender que as antinonias solúveis são aparentes, sejam entre regras, sejam entre princípios.

            A idéia parte de Bobbio. Teoria do ordenamento jurídico.

            10 A idéia de valor, notadamente em sede de princípios da Constituição brasileira, assume relevância se considerarmos a natureza comunitária de nossa Carta. Sobre o tema, mostra-se de grande valia a obra Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Jures. 1999, p. 46, em que A Prof. Gisele Cittadino assevera: "...na linha do constitucionalismo "comunitário", o cumprimento dos princípios fundamentais equivale a uma realização de valores. A dimensão axiológica supera, portanto, a dimensão deontológica, pois o conceito de bom tem primazia sobre o de dever ser, na medida em que os princípios expressam os "valores fundamentais" da comunidade."

            11 A idéia é de Robert Alexy (apud GRAU, Eros Roberto Grau. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 3ª edição. São Paulo: Malheiros. 1997, p. 98).

            12 Ao salientar tal aspecto em relação à Constituição Portuguesa, que muito se assemelha à nossa, Canotilho (Op. cit., p. 1055/1056) esboça as regras gerais de solução de conflitos:

            "O facto de a constituição constituir um sistema aberto de princípios insinua já que podem existir fenómenos de tensão entre vários princípios estruturantes ou entre os restantes princípios constitucionais gerais e especiais. Considerar a constituição como uma ordem ou sistema de ordenação totalmente fechado e harmonizante significa esquecer, desde logo, que ela é, muitas vezes, o resultado de um compromisso entre vários actores sociais, transportadores de ideias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagónicos ou contraditórios. O consenso fundamental quanto a princípios e normas positivo-constitucionalmente plasmados não pode apagar, com é óbvio, o pluralismo e o antagonismo de ideia subjacentes ao pacto fundador.

            A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológico-normativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo entre os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma "lógica do tudo ou nada", antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu "peso" e as circunstâncias do caso."

            13 A despeito de serem tratados como fundamentos são verdadeiro princípios estruturantes do Estado de Direito Brasileiro.

            14 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998.

            15 Muito se discute acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Isso porque, em sua origem os direitos fundamentais representaram uma defesa do cidadão frente ao Estado. As desigualdades oriundas do sistema capitalista levaram ao surgimento de outros direitos tidos como fundamentais, mas que se prestavam à proteger o economicamente mais fraco da classe social hegemônica, cujos componentes eram igualmente sujeitos de direitos fundamentais. Daí o questionamento quanto à vinculação de particulares aos direitos fundamentais. Sobre o tema, surgiram, principalmente na Alemanha, várias teorias, dentre as quais se destaca a teoria da aplicação direta defendida por Nipperdey, segundo a qual as normas que positivam direitos fundamentais dirigem-se também aos cidadãos, fazendo surgir um direito subjetivo de um indivíduo em face do outro, e a teoria da aplicação indireta, defendida por Günther Dürig, segundo a qual a aplicação das normas que corporificam os direitos fundamentais não prescindem da intermediação do legislativo na edição de ato normativos dirigidos, estes sim, aos particulares, e da intermediação do Judiciário, no julgamento dos casos concretos em que lançará mão dos direitos fundamentais como normas de interpretação e de integração. Sem embargo da crítica efetuada por Alexy, de que ambas as teorias levariam às mesmas conseqüências práticas, filiamo-nos à posição adotada por Ingo Wolfgang Sarlet ("Direitos Fundamentais e Direito Privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais".In Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, nº 36, outubro/dezembro 2000, p. 54/104), que opta pela aplicação imediata de tais direitos aos particulares, asseverando que "a opção por uma eficácia direta traduz uma decisão política em prol de um constitucionalismo da igualdade, objetivando a efetividade do sistema de direito e garantias fundamentais no âmbito do Estado Social de Direito, ao passo que a concepção defensora de uma eficácia apenas indireta encontra-se atrelada ao constitucionalismo de inspiração liberal-burguesa." No mesmo sentido a posição adotada por Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª edição. Coimbra: Almedina. 1998), muito embora não concorde com a visão de um "poder privado" ou "poder social", que norteia a tese de Nipperdey.

            16 Ferraz, Antonio Augusto Mello de Camargo e Ferraz, Patrícia André de Camargo. Ministério Público e Enforcement (Mecanismos que Estimulam e Imponham o Respeito às Leis). In Ministério Público: Instituição e Processo. São Paulo: Atlas. 1997, p. 117.

            17 Mankiw, N. Gregory. Introdução à Economia: princípios de micro e macroeconomia. Tradução da 2ª edição original de Maria José Cyhlar Monteiro. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

            18 No dizer de Fabio Ulhoa Coelho "externalidade é todo efeito (negativo ou positivo) que uma pessoa produz sobre a atividade econômica, a renda ou o bem-estar de outra, sem compensar os prejuízos que causa nem ser compensada pelos benefícios que traz". (In Curso de Direito Comercial. Vol 1. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1999, p. 32).

            19 Op. cit., p. 36.

            20 Nesse sentido ULHOA, op. cit. p. 44.

            21 Imagine-se um determinado banco que resolva, a título de cobrança de uma taxa não prevista em contrato ou em qualquer ato normativo do BACEN, descontar das contas de seus correntistas R$1,00.

            Certamente poucos seriam os consumidores que tomariam alguma medida concreta, ainda que extrajudicial, no intuito de contrapor-se ao ato nitidamente ilícito.

            Todavia, se imaginarmos, ainda, que o Banco de nosso exemplo, possua 500.000 clientes, seu ato terá possibilitado um ingresso de caixa na ordem de R$500.000,00, em detrimento da massa de seus consumidores.

            Em situações como esta apenas a ação coletiva propiciará a manutenção da ordem jurídica e a higidez do mercado.

            22 In Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT. 2002, p. 684.

            23 In Estado de Direito e Legitimidade, Uma Abordagem Garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1999.

            24 In Appunti Sulla Tutela Giurisdizionale di Interessi Collettivi o Diffusi. Padova: CEDAM. 1976.

            25 Além da Lei n° 8.078/90, a legitimidade do Ministério Público para a defesa do consumidor está prevista em outros atos normativos infraconstitucionais: art. 25, inciso IV, alínea "a", da Lei n° 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e art. 1°, inciso II, c/c o art. 5°, caput, da Lei n° 7.347/85. No caso do Estado do Rio de Janeiro, a constituição estadual prevê a proteção do consumidor como função institucional do Ministério Público (art. 173, inciso III).

            26 Muito embora tenha havido certa divergência terminológica entre a utilização de direito ou interesse, preferiu o legislador fugir à polêmica, abarcando as duas acepções no texto legal. De modo geral tal opção mereceu aplausos até mesmo para impedir interpretações divergentes do comando constitucional de proteção ao consumidor. Sobre tal discussão ver MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Manual do Consumidor em Juízo. 2ª edição. São Paulo: Saraiva. 1998, p. 23 e segs..

            27 Art. 25 - Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

            ...

            IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:

            a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos;

            ...

            28 A título de exemplo permite-se citar o seguinte acórdão:

            AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. ILEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

            - Inafastável o reconhecimento da ilegitimidade ativa do agente do Ministério Público para, em ação civil pública, pleitear a tutela de interesses individuais homogêneos de cunho meramente patrimonial, disponíveis, portanto, sem relevância ou repercussão para a coletividade em geral. (TJ-RS – Ac. Unân. da 3ª Câm. Cív., de 26-8-99 – Ap. 599.291.697 – Rel. Des. Luiz Azambuja – Ministério Público x Grêmio Esportivo Brasil).

            29 A Legitimidade do Ministério Público para a Defesa de Direitos Individuais Homogêneos. In Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n° 11, jan./jun. 2000, p. 199/233.

            30 In Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil em Vigor. 3ª edição. São Paulo: RT. 1997, p. 1.029.

            31 Evolução Institucional do Ministério Público Brasileiro. In Ministério Público: Instituição e Processo. São Paulo: Atlas. 1997, p. 53.

            32 É necessário registrar que, muito embora haja um forte apelo social na questão dos loteamentos clandestinos, o que de certa forma tem sensibilizado os Tribunais no acolhimento da legitimidade ministerial, não se pode deixar de lembrar que a solução da questão é facilitada pela Lei n° 6.766/79 que prevê expressamente a participação do Ministério Público na fiscalização da regularidade dos loteamentos (art. 38).

            33 No STJ: Resp 137.889/SP (DJ 29/05/00); Resp 108.249-SP (DJ 22/05/00).

            34 Recurso Extraordinário n° 213.631-0. Pleno. Relator Ministro Ilmar Galvão. Não conhecido por maioria. Julgado em 09 de dezembro de 1999. Publicado em 07 de abril de 2000.

            35 Nesse sentido LARENZ. Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Goulbekian. 1997, p. 479/484.

            36 RE-213631/MG – Rel. Min. Ilmar Galvão – maioria – 1ª turma – 09/12/99. Ver nota n° 40 infra.

            37 Interessante análise crítica sobre a posição que acabou por se sedimentar nos Tribunais Superiores acerca da ilegitimidade do Ministério Público para a defesa do contribuinte encontra-se em GARCIA, Emerson. Da Legitimidade do Ministério Público para a Defesa dos Contribuintes. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n° 12, jul/dez 2000.

            38 EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. MENSALIDADES ESCOLARES: CAPACIDADE POSTULATÓRIA DO PARQUET PARA DISCUTI-LAS EM JUÍZO.

            1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127).

            2. Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III).

            3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

            3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos.

            4. Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos.

            4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas.

            5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.

            5.1. Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal.

            Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação. (RE 163231-3/SP, unân., rel. Min. Maurício Correa, Pleno, j. em 26.12.97, publicado no DJ de 29.06.01, p. 00055). Sem grifo no original.

            39 Código Civil Alemão Muda para Incluir a Figura do Consumidor – Renasce o "Direito Civil Geral e Social" ?. Mimeo.

            40 MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIO NOVO-MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO PÚBLICA, SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELO SEU NÃO-CABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS. 102, I, a, E 125, § 2°, DA CONSTITUIÇÃO.

            Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por não configurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais considerados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva.

            Recurso Não conhecido.

            RE-213631/MG – Rel. Min. Ilmar Galvão – maioria – 1ª turma – 09/12/99.

            41 AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS INDIVIDUAIS DISPONÍVEIS. ICMS. ILEGITIMIDADE DO MP

            - Estabelece o artigo 127, caput, da Constituição Federal, que o Ministério Público "é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e indisponíveis". Assim, cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. A Lei Complementar n° 75/93 atribui a ele competência para proteção de interesses individuais homogêneos (art. 6°), indisponíveis (art. 6°, inciso VII, letra "d"). Sua legitimidade é para cuidar de interesses sociais difusos e coletivos e não para patrocinar direitos individuais, privados e disponíveis. A defesa a título coletivo só será por ele exercida, quando se tratar de direitos difusos ou interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, de acordo com o Código do Consumidor (art. 81, caput), os transindividuais de natureza indivisível (parágrafo único, item II). Para estas finalidades está ele legitimado (artigo 81, inciso I). Só tem o Ministério Público legitimidade para propor ação civil pública, versando proteger o meio ambiente, o consumidor, os bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, qualquer outro interesse difuso, ou coletivo e a ordem econômica (Lei n° 7.347/85, art. 1°). No caso concreto, ação civil pública não foi proposta por nenhuma destas hipóteses. Nela, não se pretende proteger o consumidor ou qualquer interesse difuso ou coletivo e sim os interesses privados de alguns contribuintes, disponíveis. O interesse ou direito difuso, para efeito do Código do Consumidor, são "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" (Lei n° 8.078/90, artigo 81, inciso I). Ora, no caso, não se trata de nenhum direito transindividual, de natureza indivisível de que sejam titulares pessoas indeterminadas. Interesses ou direitos coletivos são os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si com a parte contrária por uma relação jurídica base (Lei n/ 8.078/90, artigo 81, inciso II). Na hipótese não se trata de direitos transindividuais de natureza indivisível. Os contribuintes do ICMS incidente sobre a circulação de energia elétrica não são considerados consumidores e não estamos diante de direitos individuais homogêneos indisponíveis. (STJ – Ac. Unân. Da 1ª T., publ. em 29-5-2000 – Resp. 248281-SP – Rel. Min. Garcia Vieira – Fazenda Pública Estadual x Ministério Público)

            42 In Appunti Sulla Tutela Giurisdizionale di Interessi Collettivi Diffusi. Le Azioni a Tutela di Interessi Collettivi. Padova: CEDAM. 1976.

            43 Imperioso é registrar que Cappelletti já afirmou que tais críticas, que, via de regra, espelham a opinião da doutrina européia "não se aplicam ao Ministério Público brasileiro, sobretudo depois que sua independência foi assegurada pela Constituição, e, em conseqüência também do fato de que em algumas cidades do Brasil se criaram seções especializadas em matéria de interesses difusos, nos quadros do Ministério Público" (Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: Conceito e Legitimação para Agir. 4ª edição. São Paulo: RT. 1997, p. 199).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho de. A legitimidade do Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos do consumidor: Um caminho para a eficácia social da norma dentro de um modelo garantista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1397, 29 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9818. Acesso em: 10 maio 2024.