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Direito de apelar em liberdade

Direito de apelar em liberdade

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No livro Direito de apelar em liberdade (escrito por nós em 1994: São Paulo, RT) defendíamos, dentre outras, a tese da sua total separação frente à prisão cautelar. Prisão é prisão, duplo grau é duplo grau. Em outras palavras: o duplo grau de jurisdição não pode ser afetado pelo fato de o réu não ter sido preso. Independentemente do cumprimento desse ato de constrangimento, dizíamos, deve subir a apelação interposta. A base primeira dessa nossa tese residia na Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8, 2, "h" (que assegura sempre, no âmbito criminal, o duplo grau de jurisdição).

Treze anos depois, finalmente, o STF (Primeira Turma, por unanimidade), acabou incorporando ao seu repertório jurisprudencial garantista a tese acima referida: "Condenado a seis anos de prisão por crimes contra a ordem tributária, C.D.C. Jr teve Habeas Corpus (HC 88420) concedido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Com a decisão, o réu poderá apelar da sentença mesmo não estando preso. Consta nos autos que C.D. estaria foragido desde a decretação de sua prisão preventiva, antes mesmo de ser condenado definitivamente. Os advogados de defesa alegaram que a decisão da 2ª Vara Federal Criminal Federal de Curitiba (PR), bem como do Superior Tribunal de Justiça (STJ) - que negou seguimento a habeas idêntico impetrado naquela corte, teriam ferido o disposto no artigo 5º, LIV, LV e LVII, da Constituição Federal. Neste habeas, a defesa pedia ao STF que determinasse ao juízo da 2ª Vara Criminal Federal de Curitiba novo exame de admissibilidade do recurso de apelação, garantindo assim o direito ao duplo grau de jurisdição."

Voto do relator: "Para Ricardo Lewandowski, a ação trata do confronto de dois preceitos legais. Por um lado, o duplo grau de jurisdição (conforme artigo 8º, II, ‘h’, do Pacto de São José da Costa Rica – incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por força do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição Federal). De outro lado, a exigência de recolher-se o réu condenado à prisão para que sua apelação seja processada (de acordo com artigo 594 do Código de Processo Penal - CPP). O que a defesa pretende é interpor em favor do réu, condenado em 1º grau, recurso de apelação, independentemente de seu recolhimento ao cárcere.

Lewandowski afirmou considerar que o direito ao duplo grau de jurisdição tem "estatura constitucional, ainda que a Carta Magna a ele não faça menção direta". Isso porque, prossegue o ministro, o ‘due process of law’, constante do artigo 5º, LXVI, contempla a possibilidade de revisão por tribunal superior de sentença proferida por juízo monocrático.

Para ele, o ‘duplo grau’ deve prevalecer sobre o artigo 594 do CPP. "Tal direito integra o sistema pátrio de direitos e garantias fundamentais, conforme decidido pelo Supremo na ADI 1675", confirmou. O relator ponderou que a incorporação desse direito foi posterior à edição do CPP (Decreto-Lei 689/41). Isso porque a ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (o Pacto de São José) foi em 1992. "Assim, qualquer disposição em contrário da lei processual encontra-se, senão revogada, ao menos substancialmente mitigada".

Quanto ao habeas em julgamento, Lewandowski disse que "o reconhecimento ao duplo grau não infirma a legalidade da custódia cautelar decretada em desfavor do paciente, podendo ela subsistir independentemente de admitir-se o recurso".

Assim, a Primeira Turma concedeu a ordem de habeas corpus, por unanimidade, seguindo o voto do relator, para que seja recebida a apelação do condenado, interposta perante a 2ª Vara Criminal de Curitiba nos autos da ação penal, sem prejuízo do cumprimento da prisão preventiva contra ele decretada, caso persistam os motivos que a determinaram."

Dois foram os fundamentos invocados pelo Relator para admitir a tese separatista (direito de apelar versus prisão preventiva): (a) o duplo grau de jurisdição no crime tem "estatura constitucional"; (b) a incorporação da Convenção Americana de Direitos Humanos ao direito brasileiro (1992) é posterior ao art. 594 do CPP. Ou seja: norma superior prepondera sobre norma inferior ou lei posterior derroga lei anterior. O primeiro fundamento é muito mais sólido e adequado.

Recordemos: os tratados de direitos humanos podem ser incorporados no Direito interno brasileiro: (a) como Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º) ou (b) como Direito supralegal (voto do Min. Gilmar Mendes) ou (c) como Direito constitucional (posição doutrinária fundada no art. 5º, § 2º, da CF) ou (d) como direito ordinário (antiga posição do STF).

A primeira possibilidade vem disciplinada no parágrafo 3º, do artigo 5º, da CF, inserido pela Emenda Constitucional 45/2004. A segunda foi sustentada no voto do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22.11.06, ainda não concluído). A terceira emana de uma forte corrente doutrinária ((Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Ada Pelegrini Grinover, L. F. Gomes etc.) que já conta com várias décadas de existência no nosso país. Em favor dessa corrente há inclusive alguns votos no STF (HC 72.131 e 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi majoritária na Suprema Corte de Justiça. A quarta retrata a velha e provecta jurisprudência do STF, que tradicionalmente seguia o entendimento da paridade (entre os tratados e as leis ordinárias).

O ponto comum entre as três primeiras posições citadas reside no seguinte: os tratados de direitos humanos contam com status supralegal, ou seja, acham-se hierarquicamente acima do Direito ordinário. Essa premissa nos parece totalmente acertada. Na atualidade, tendo em vista a nova configuração do Estado e o valor do Direito humanitário internacional, que não se confunde com o Direito internacional humanitário (Direito que cuida das guerras), impõe-se ao STF abandonar sua clássica posição paritária.

Conclusão: os tratados de Direitos Humanos contam com status diferenciado. Possuem valor constitucional (CF, art. 5º, § 2º) ou, no mínimo, supralegal (voto do Min. Gilmar Mendes). Esse é o fundamento principal do direito ao duplo grau de jurisdição no âmbito criminal, independentemente de eventual prisão preventiva decretada. Em outras palavras: a prisão não limita (nem impede) o duplo grau. É isso o que diz nosso atual Estado constitucional e humanitário de Direito.


Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

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GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1407, 9 maio 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9856. Acesso em: 28 mar. 2024.