Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/99189
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira

Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira

Publicado em .

A última constituinte pretendeu sepultar de vez a experiência militar enquanto fator de equilíbrio político.

RESUMO: O artigo pretende, em linhas gerais, analisar o desenvolvimento do status institucional das Forças Armadas no decorrer da história constitucional brasileira, de modo a verificar se o antigo manejo das instituições militares como instrumento de estabilização política ocorria ou não em consonância com as premissas fixadas pelas Constituições anteriores. Tendo em vista a atual subordinação das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, o texto objetiva, ainda, a partir de uma exegese intrínseca às respectivas realidades históricas, verificar se tal emprego era conveniente para o homem político, inclusive para os políticos militares, trazendo à tona, por oportuno, diversos debates travados a respeito do tema durante a realização da Assembleia Nacional Constituinte. Por fim, analisar-se-á como se dá, no âmbito da defesa nacional e da garantia da lei e da ordem, o emprego das Forças Armadas, bem como sua ampla subordinação aos Poderes Constitucionais.

Palavras-chave: Forças Armadas. Missão constitucional. Estabilidade institucional.


1 Introdução

O artigo objetiva, de um modo geral, analisar como se operou a evolução do status das Forças Armadas ao longo da história constitucional brasileira, de modo a verificar se o pretérito emprego das instituições militares enquanto instrumento de estabilização política ocorria ao arrepio das Constituições anteriores, bem como averiguar se, a partir de uma interpretação consentânea com as respectivas realidades históricas, tal emprego era convenientemente interessante para o homem político, inclusive para os políticos militares, situação absolutamente incogitável na quadra atual, tendo em vista a ampla subordinação das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, conforme assevera, inclusive, a pesquisadora Maria Celina DAraujo, segundo a qual os comandantes militares de hoje não se apresentam mais como atores políticos, mudança extremamente positiva e que indica o fortalecimento da democracia no Brasil (DARAUJO, 2009), constatação que por si só justifica o presente estudo. Para tanto, recorreu-se à pesquisa bibliográfica e documental, em que se buscou, por meio de textos historiográficos, jornalísticos e jurídicos, compor um quadro político-jurídico-militar das Forças Armadas na história do Brasil.

Em seguida, ainda dentro de um contexto constitucional, analisaremos os debates travados na Assembleia Nacional Constituinte sobre a missão constitucional das Forças Armadas na Constituição de 1988, bem como a razão que motivou a construção dada ao texto atual (BRASIL, 1988, art. 142).

Outrossim, discorreremos a respeito de como se dá o emprego das Forças Armadas na defesa nacional e na garantia da lei e da ordem, conforme dispõe o art. 142 da Carta vigente, o qual preconiza que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Por fim, avaliaremos se é mesmo possível afirmar, diante desse quadro normativo, que as Forças Armadas efetivamente se subordinam aos Poderes Constitucionais.

Tal estudo, empreendido por meio de pesquisa bibliográfica e documental, permitiu a visualização de um mosaico em que as Forças Armadas protagonizaram ações e intervenções políticas que, mesmo impensadas na conjuntura de hoje, encontravam, ocasião, amparo em textos legais.


2 Do Manejo Pretérito das Forças Armadas Enquanto Instrumento de Estabilização Político-Institucional

De início, sem qualquer pretensão exaustiva, apenas para pontuar os principais episódios que, a nosso ver, contaram com a efetiva participação das Forças Armadas, cumpre recordar que em 1822 o Exército atuou de modo fundamental para a conquista da independência nacional. Ainda no período imperial, segundo pacífica opinião da historiografia especializada, foi peça essencial para a garantia da integridade do território brasileiro. A guisa de exemplo, a vitória na Guerra da Tríplice Aliança (ou Guerra do Paraguai, 1864-1870) contribui para que o Exército brasileiro emergisse como uma instituição dotada de força capaz de ditar os rumos políticos do país. Posteriormente, liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, possibilitou e sustentou a instauração da República, erguida, literalmente, por intermédio da espada, tanto que tal época era denominada de República das Espadas.

Mais recentemente, através do movimento político-militar de 1964, impediu a instalação da ditadura do proletariado no Brasil, esta com indisfarçável viés marxista. Assim, antes de qualquer crítica que se queira lançar sobre a Instituição, o Exército e demais Forças exerceram e exercem papel de indiscutível relevância para a manutenção da integridade do território nacional, um dos elementos indispensáveis à própria existência do Estado.

A respeito do papel político desempenhado pelas Forças Armadas antes de 1964, Dreifuss e Dulci (2008) afirmam ter ocorrido, em primeiro lugar, uma legitimação de seu intervencionismo no sistema político. Reconhecia-se, assim, o famoso poder moderador das Forças Armadas, responsável pela restauração da ordem vigente em momentos de crise.

Lígia Osório Silva (2006), sintetizando os aspectos desse papel castrense, assevera que a participação dos militares na política brasileira remonta à proclamação da República, sendo considerada, por alguns, como uma força tutelar, um poder moderador ou, ainda, como um instrumento dos poderes constituídos.

Pérez (1980), explicando o aludido poder moderador das Forças Armadas na história dos regimes militares na América Latina, aduz que, na etapa na qual dominava a oligarquia tradicional, os governos militares atuavam para defender os interesses criados pelas classes dominantes e para impedir a ascensão das camadas populares, enquanto que o poder civil adotava um comportamento em dois níveis: o 1º, quando estava no poder político e se utilizava dos militares como fator de equilíbrio ou de arbitragem; o 2º, quando se encontrava na oposição, ocasião em que trabalhava incessantemente para que os militares derrubassem o governo constitucionalmente estabelecido e proporcionassem oportunidades para que assumisse ou recuperasse o poder político.


3 Das Missões Constitucionais das Forças Armadas nas Constituições Brasileiras

Entendemos que o antigo manejo das Forças Armadas enquanto instrumento de estabilização política pode ser explicado, entre outros argumentos, a partir de uma análise das missões conferidas às Forças Armadas pelas diversas Constituições do país, o que passamos a fazer. Para tanto, transcrevemos abaixo, de acordo com a grafia da época, os dispositivos que versam sobre a matéria:

a) Na Constituição de 1824:

Art. 147. A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legitima.

Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente à Segurança, e defesa do Imperio. (BRASIL, 1824)

b) Na Constituição de 1891:

Art. 14. As forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior.

A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais. (BRASIL, 1891)

c) Na Constituição de 1934:

Art. 162. As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei. (BRASIL, 1934)

d) Na Constituição de 1937:

Art. 161. As forças armadas são instituições nacionais permanentes, organizadas sobre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência à autoridade do Presidente da República. (BRASIL, 1937)

e) Na Constituição de 1946:

Art. 177. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. (BRASIL, 1946)

f) Na Constituição de 1967:

Art. 92. As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

§ 1º. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem. (BRASIL, 1967)

g) Na Emenda Constitucional nº 1, de 1969:

Art. 90. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

Art. 91. As Forças Armadas, essenciais à execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem. (BRASIL, 1969)

h) Na Constituição de 1988:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Sintetizando, a Constituição de 1824 dizia que a Força Militar era essencialmente obediente. A Carta de 1891, por sua vez, previa que as Forças de Terra e Mar eram incumbidas da defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior, sendo obrigadas a sustentar as instituições constitucionais. Nos termos da Constituição de 1934, eram destinadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a ordem e a lei. A Carta de Vargas, de 1937, impunha às Forças Armadas uma fiel obediência à autoridade do Presidente da República, fundamentais que eram para alicerçar aquele regime ditatorial. Segundo a Lei Magna de 1946, eram dedicadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem. A Constituição de 1967 e a EC nº 1, de 1969, estabeleciam que as Forças Armadas eram destinadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. Por fim, na Carta de 1988, as Instituições Militares passam a ser responsáveis pela defesa da Pátria, pela garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Ainda em relação à Constituição de 1988, prevê o art. 84, XIII, que compete privativamente ao Presidente da República exercer o comando supremo das Forças Armadas. Com efeito, nos termos do citado art. 142, caput, as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais; e, por iniciativa de qualquer destes, à garantia da lei e da ordem.

Conforme explica Ferreira Filho (2008, p. 239), as duas primeiras destinações mencionadas no aludido dispositivo em vigor (defesa da Pátria; garantia dos poderes constitucionais) retratam o papel elementar das Forças Armadas, sendo relativas à própria ideia de soberania do Estado brasileiro. A última, por sua vez, traduz hipótese em que as Forças Armadas poderão ser empregadas na garantia da lei e da ordem, por solicitação de qualquer um dos poderes constitucionais, pleito que, registre-se, será submetido à decisão do Presidente da República. No último caso, tal emprego somente poderá ocorrer quando constatado o exaurimento dos órgãos destinados à preservação da segurança pública, conforme previsão contida no art. 144 da Constituição Federal.

Interessante destacar que, desde a primeira Constituição republicana, há expressa referência às Forças Armadas enquanto instrumento de: a) sustentação das instituições constitucionais, conforme preceituava o art. 14 da Constituição Federal de 1891 (BRASIL, 1891a), b) garantia dos poderes constitucionais, consoante previam o art. 162 da Constituição Federal de 1934 (BRASIL, 1934) e o art. 177 da Constituição Federal de 1946 (BRASIL, 1946), c) garantia dos poderes constituídos, nos termos do art. 92, § 1º, da Constituição Federal de 1967 (BRASIL, 1967) e art. 91 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969 (BRASIL, 1969), d) garantia dos poderes constitucionais, na forma do vigente art. 142, caput, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).

Segundo Faoro (1984), o estabelecimento, na Constituição de 1891, de um acentuado papel das Forças Armadas (defesa das instituições constitucionais) teria trazido importantes consequências políticas para o Estado brasileiro, citando o autor, como exemplo, o denominado Golpe de 3 de novembro de 1891, quando Deodoro dissolveu o congresso nacional, conforme previsto no Decreto nº 641, de 3 de novembro de 1891 (BRASIL, 1891b).


4 Do Debate na Assembleia Nacional Constituinte sobre a Missão Constitucional das Forças Armadas na Constituição de 1988

A leitura dos dispositivos constitucionais de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, todos acima transcritos, permite concluir que a redação prevista no art. 142, caput, da atual Carta Magna, notadamente a expressão por iniciativa de qualquer destes, não era encontrada nas demais Constituições, o que certamente não ocorreu por acaso. A nosso ver, a razão ponderável para a construção dada ao texto atual (BRASIL, 1988, art. 142) foi justamente evitar o manejo, antes frequente, das Forças Armadas como instrumento de estabilização política, como tantas vezes ocorreu durante o século passado.

Cumpre, então, entender como a mencionada expressão em questão restou introduzida no Texto Magno de 1988. Para tanto, socorremo-nos de recortes jornalísticos publicados por ocasião dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, na qual intensos debates foram travados acerca da missão das Forças Armadas no novo cenário que se desenhava, conforme registrou o jornal O Globo, na matéria Forças armadas debatem seu papel na constituição, p. 3, edição de 14 de janeiro de 1986:

O papel constitucional das Forças Armadas será o principal tema da reunião entre os três Ministros Militares e os Chefes do Serviço Nacional de Informações, Estado-Maior das Forças Armadas e do Gabinete Militar da Presidência da República. A reunião será hoje no Quartel General do Exército e terá início às 10h30m. (O GLOBO, 1986).

O mesmo tema também foi alvo de assunto publicado no Jornal do Brasil, p. 5, em 29 de agosto de 1987, de autoria do jornalista Ricardo Noblat:

O general Leônidas conheceu um artigo, mas o que saiu impresso no substitutivo foi outro. Os ministros militares queriam - e continuarão querendo - que o artigo reservado ao emprego das Forças Armadas fizesse expressa menção à função delas de garantirem, também, a lei e a ordem, como está dito, por exemplo, na Constituição atual. A referência à manutenção da lei e da ordem desapareceu no substitutivo de Cabral. Poderá retornar depois que o substitutivo for examinado na Comissão de Sistematização. (NOBLAT, 1987)

A questão relativa à definição da função constitucional das Forças Armadas era mesmo tormentosa e, a toda evidência, envolvia os diversos partidos políticos existentes à época, fato constatado através da leitura do denominado Jornal da Constituinte (BRASIL, 1987b), órgão de divulgação das atividades da Assembleia Nacional Constituinte, cujo texto permite visualizar as várias vertentes existentes à época sobre a função constitucional das Forças Armadas, a saber: a) para o PMDB, preservar e defender a soberania nacional, bem como, dentro das fronteiras, ter uma ação na manutenção da ordem pública, sem, contudo, interferir nas instituições civis; b) o PFL, por sua vez, entendia desnecessário promover, quanto ao tema em discussão, qualquer alteração, cabendo às Forças Armadas não apenas assegurar a soberania nacional, garantindo as fronteiras e o País de ameaças de inimigos externos, mas também tem função das mais relevantes na manutenção da ordem interna e garantia das constituições legalmente constituídas, sob o comando do Presidente da República; c) o PDS afirmava que as Forças Armadas deveriam cuidar, sobretudo, do problema relacionado com o perigo de intervenção externa, não sendo descartada, no entanto, a possibilidade de participação das Forças Armadas no plano interno, com a atuação restringida pela autoridade do presidente da República; d) o PDT, atento à problemática do desvirtuamento do emprego das Forças Armadas, achava interessante impedir as seguidas intervenções das Forças Armadas na vida nacional, não lhes competindo, portanto, manter a atitude de tutela da vida política do País; e) para o PTB, o papel das Forças Armadas deveria se restringir à fiscalização das fronteiras nacionais, sendo que, internamente, o poder militar deveria ter atuação na sociedade apenas quando solicitado pelo Presidente da República; f) o PCB concebia as Forças Armadas como instituições garantidoras das fronteiras brasileiras contra agressões externas e participantes, quando solicitadas pela mais alta autoridade civil do País; g) quanto ao PT, o novo Texto Constitucional não deveria permitir, a nível interno, a intervenção das Forças Armadas na vida política do País, restringindo-se sua atuação à garantia da soberania em casos de agressão externa; h) o PDC defendia que a Constituição deveria manter as missões tradicionais das Forças Armadas na defesa contra agressões externas, bem com ter responsabilidade na manutenção da segurança interna; i) segundo o PC do B, as Forças Armadas deveriam resguardar o País de agressões externas, sem, contudo, se imiscuírem nos problemas internos do Brasil, bem como nos movimentos populares; j) o PMB era contrário a qualquer modificação nas atribuições constitucionais das Forças Armadas, sendo que, para o então Senador Antônio Farias, líder do partido, o cerne da questão não estava na legislação em vigor, mas sim nos eventuais desvios no entendimento desse papel das Forças Armadas, verificados em diversas oportunidades; l) já o PSB preconizava um o papel limitado à defesa do País de ameaças estrangeiras. Interessante destacar, ainda, que o Senador Jamil Haddad, então líder do PSB, ao afirmar que as Forças Armadas, a nível interno, não deveriam mais ter uma atuação tutelar sobre a sociedade, reconheceu que a implantação dessa nova concepção encontraria um obstáculo, o cidadão brasileiro, o qual, segundo o referido Senador, teria se acostumado a ver as Forças Armadas como elemento de intervenção no tecido social. (BRASIL, 1987b, p. 12-13)

Ressalte-se que, quanto ao assunto em tela, o Projeto de Constituição não trazia a redação que, ao final, acabou por vingar. O seu art. 247, por exemplo, não contemplava a expressão (por iniciativa de qualquer destes) hoje encontrada no art. 142, caput, da Carta de 1988. Vejamos a redação originalmente prevista no Projeto:

Art. 246. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República.

Parágrafo único. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

Art. 247. As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.

Parágrafo único. Cabe ao Presidente da República a direção da política de guerra e a escolha dos Comandantes-Chefes. (BRASIL, 1987a)

No entanto, o Substitutivo às emendas de Plenário, aprovado pela Comissão de Sistematização, passou a mencionar algo bem parecido com a aludida frase:

Art. 160. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de um destes, da lei e da ordem.

§ 1º. Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. (BRASIL, 1987c, grifo nosso)

Nota-se que a redação prevista no art. 160, caput, do Substitutivo em muito se assemelha à que finalmente restou aprovada em 1988.

Newton Rodrigues, em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 2 de setembro de 1987, sob o título As Forças Armadas e sua função institucional, corrobora a opinião de que o Judiciário de então, apesar de formalmente independente, ainda não havia alcançado o status institucional atual, tanto que, ao comentar a o debate travado acerca da controvertida expressão (por iniciativa de qualquer destes), demonstrou, por via oblíqua, o papel que as Forças Armadas exerciam naquela ocasião:

O artigo do substitutivo Bernardo Cabral, que tanta celeuma causa é suscetível de melhor redação. Mas está sendo atacado no que tem de melhor, no seu conteúdo fundamental e imprescindível, consistente em negar aos militares a atribuição incontrolável de intérprete da lei (função do Judiciário) e em sujeitar sua atuação coercitiva ao pedido dos poderes constitucionais. (RODRIGUES, 1987)

Após intensas disputas na Constituinte, a expressão por iniciativa de qualquer destes, ora prevista no art. 142, caput, da Constituição de 1988, foi finalmente aprovada, conforme relata a matéria publicada em 13 de abril de 1988, na Folha de São Paulo, de autoria de Dalton Moreira:

Apenas os partidos de esquerda foram contra a aprovação do artigo que regulamenta o papel constitucional das Forças Armadas. Por 326 a 102 votos e cinco abstenções, o plenário do Congresso constituinte manteve ontem o texto da Comissão de Sistematização (idêntico ao do Centrão) que permite aos militares defender o território nacional, garantir os poderes constitucionais e, por iniciativa de um destes (referência aos três Poderes), a lei e a ordem. [...].

Se manteve a tutela militar porque a extensão da expressão da lei e da ordem é muito abrangente. Pode ser tanto uma intervenção numa greve quanto um golpe militar", disse o deputado José Genoíno (PT-SP), autor da tentativa de restringir os poderes das Forças Armadas. Sua emenda, que reproduzia integralmente o texto da ex-comissão de Estudos Constitucionais presidida pelo hoje senador Afonso Arinos (PFL-RJ), limitava a ação dos militares à defesa "da ordem constitucional. (MOREIRA, 1988, p. 6)

Diante do quadro constitucional desenhado a partir da Constituição de 1988, entendemos como pertinente a introdução da referida expressão, de modo a não deixar qualquer margem de dúvida quanto ao papel das Forças Armadas no que se refere à garantia da lei e da ordem, atuação absolutamente atrelada à iniciativa dos poderes constituídos, conforme trataremos em seguida.


5 Do Emprego das Forças Armadas na Defesa Nacional e na Garantia da Lei e da Ordem

Com efeito, e após intensos debates, dispõe o art. 142 da Carta vigente que as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A Constituinte também determinou que as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas fossem estabelecidas através de Lei complementar (BRASIL, 1988, art. 142).

As Forças Armadas, desde a Constituição de 1891, sempre foram empregadas na garantia da lei e da ordem (GLO), missão que se manteve, como vimos, na Carta atual. A despeito dessa tradição, por conta do comando inserto no art. 142, § 1º, da Lei Maior, foi preciso, para se evitar que antigos episódios se repetissem, que o papel das Forças Armadas, particularmente quanto à garantia da lei e da ordem, estivesse devidamente delineado e em perfeita consonância com os contornos próprios de um Estado Democrático de Direito, inviabilizando, portanto, qualquer possibilidade de ação ex officio.

Assim, objetivando balizar de vez o emprego das Forças Armadas em missões dessa natureza, a regulamentação do art. 142, § 1º, da Constituição de 1988 deu-se através da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, nos termos da qual o Ministro da Defesa exerce a direção superior das Forças Armadas, competindo-lhe, além das demais competências previstas em lei, formular a política e as diretrizes referentes aos produtos de defesa empregados nas atividades operacionais, inclusive armamentos, munições, meios de transporte e de comunicações, fardamentos e materiais de uso individual e coletivo (art. 11-A), sendo assessorado pelo Conselho Militar de Defesa, órgão permanente de assessoramento, pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e pelos demais órgãos, conforme definido em lei (art. 9º).

Ademais, o art. 15 da citada Lei Complementar assevera que o emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro da Defesa a ativação de órgãos operacionais. Da mesma forma, o parágrafo 1o do mesmo art. 15 confere ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Ademais, nos termos art. 15, § 2º, a atuação das instituições militares na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, depois de esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

Ao tratar do tema garantia da lei e da ordem, a Estratégia Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008), estabelece como importante providência compatibilizar a legislação e adestrar meios específicos das Forças Armadas para o emprego episódico dessas missões, tudo em sintonia com os exatos termos da Constituição Federal. Isso evidencia que a atuação das Forças Armadas, no plano atual, encontra-se constitucional e legalmente delineada.

Consoante dispõe o Livro Branco de Defesa Nacional (BRASIL, 2012a), a expressão defesa nacional pode ser caracterizada como o conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas.

Por sua vez, conforme previstos na Política Nacional de Defesa, aprovada pelo Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2006 (BRASIL, 2006), os objetivos nacionais de defesa são: garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior; contribuir para a preservação da coesão e da unidade nacionais; contribuir para a estabilidade regional; contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais; intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais; manter Forças Armadas modernas, integradas, adestradas e balanceadas, e com crescente profissionalização, operando de formas conjunta e adequadamente desdobradas no território nacional; conscientizar a sociedade brasileira da importância dos assuntos de defesa do País; desenvolver a indústria nacional de defesa, orientada para a obtenção da autonomia em tecnologias indispensáveis; estruturar as Forças Armadas em torno de capacidades, dotando-as de pessoal e material compatíveis com os planejamentos estratégicos e operacionais; e desenvolver o potencial de logística de defesa e de mobilização nacional.

Nota-se que a atuação das Forças Armadas, consoante o arcabouço normativo citado (Constituição Federal, Lei Complementar nº 97/99, Estratégia Nacional de Defesa, Livro Branco de Defesa Nacional, Política Nacional de Defesa) encontra-se muito bem definida, o que não ocorria em tempos passados, quadro que permitiu uma verdadeira guinada na concepção estratégia das instituições marciais.

Tendo em vista a importância dos quais se revestem, os três últimos documentos norteadores da atuação das Forças Armadas foram lembrados, inclusive, pelo General Enzo Martins Peri, por ocasião de seu discurso de despedida do Comando Exército Brasileiro, em 5 de fevereiro de 2015, ora sintetizado:

Alinhados com a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa criamos uma nova Concepção Estratégica para o Exército. Avançamos na direção de uma nova Doutrina de emprego da Força, assentada em interoperabilidade, interagência e preparação por capacidades. Passamos a atuar no espaço cibernético. Buscamos novas formas de racionalização e valorização dos nossos Recursos Humanos. Enfim, escalamos novo patamar na busca de novas estruturas, novos materiais, nova doutrina e novas competências. Demos passos largos e seguros para que a Força Terrestre ingressasse na Era do Conhecimento - condição imposta pela crescente estatura do Brasil no cenário internacional. (BRASIL, 2015)

A propósito, cumpre destacar que o Comandante Enzo, em nenhuma linha sequer de seu discurso, teceu qualquer comentário de natureza política, o que apenas reforça o nosso entendimento de que as Forças Armadas, definitivamente, conhecem o importante lugar que ocupam no quadro institucional brasileiro.

Tal modo de proceder certamente faz parte da ordem do dia do atual Comandante do Exército, General Villas Bôas, o qual, quando ainda ocupava o Comando Militar do Amazonas, ao conferenciar na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, na série de audiências públicas realizadas para debater os Rumos da Política Externa 2011-2012, cujo 3º Ciclo tratou da questão inerente à Defesa Nacional, afirmou que apesar de a questão fronteiriça ser uma das preocupações do governo [...] poderemos caminhar numa direção bastante complexa [...], se não anteciparmos uma série de providências em algumas áreas da nossa fronteira, tendo registrado, inclusive, que o Brasil, em vias de se tornar a quinta economia do mundo, é um ator global que tenta desenvolver capacidades em todos os campos de projeção de poder, mas ainda possui metade do seu território não ocupado e não integrado à dinâmica do desenvolvimento nacional. (BRASIL, 2012b, p. 123)

Diante desse amplo mapa normativo, pode-se afirmar que, nos termos do art. 142, caput, da Constituição em vigor, as Forças Armadas cumprem um duplo papel. No plano principal, destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constitucionais. Secundariamente, por iniciativa de qualquer dos poderes constituídos, garantem a lei e a ordem, o que somente acontecerá subsidiariamente, ou seja, quando verificada a impossibilidade de os órgãos de segurança pública (BRASIL, 1988, art. 144) fornecerem uma resposta à demanda constatada, nos termos do art. 15, § 2º, da Lei Complementar nº 97/99 (BRASIL, 1999). Por conseguinte, o emprego das Forças Armadas em missões de GLO deve ser entendido como algo excepcional, passível de acontecer somente em situações que efetivamente fogem à ação dos órgãos de segurança pública, pela razão simples de que tal atuação, nos termos da lei de regência, deve ser subsidiária. Nesse sentido, afirma José Afonso da Silva:

Só subsidiária e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a polícia federal e as polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal. Sua interferência na defesa da lei e da ordem dependem, além do mais, de convocação dos legítimos representantes de qualquer dos poderes federais: Presidente da Mesa do Congresso Nacional, Presidente da República ou Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ministro não é poder constitucional. Juiz de Direito não é poder constitucional. Juiz Federal não é poder constitucional. Deputado não é poder constitucional. Senador não é poder constitucional. São simples membros dos poderes e não os representam. (SILVA, 2005, p. 772)

Assim, considerando a missão (excepcional e sempre subsidiária) conferida pelo art. 142, § 1º, da Constituição às Forças Armadas, bem como a disciplina assentada na Lei Complementar nº 97/99, o Poder Executivo editou o Decreto nº 3.897, de 24 de agosto de 2001, através do qual foram fixadas as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, matéria de competência exclusiva do Presidente da República (art. 2º), sendo que tal decisão presidencial poderá ocorrer por sua própria iniciativa, ou dos outros poderes constitucionais, representados pelos Presidentes do STF, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados (BRASIL, 1988, art. 2º, § 1º).

Em necessária adição, prescreve o art. 3º do mencionado decreto que, no caso de atuação das Forças Armadas em missões dessa natureza, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso dedicados (BRASIL, 1988, art. 144), lhes incumbirá, sempre que se faça indispensável, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência (constitucional e legal) das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico.

Em perfeito arremate, o parágrafo único do art. 3º do Decreto nº 3.897/01 preceitua que consideram-se esgotados os meios previstos no art. 144 da Constituição, inclusive no que concerne às Polícias Militares, quando, em determinado momento, indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. Reforçando ainda mais a ideia de subsidiariedade inerente ao tema, dispõe o art. 5º do citado decreto que o emprego das Forças Armadas na GLO deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível.

Cite-se, como exemplo da atuação das Forças Armadas em cumprimento de missão de GLO, o seu contemporâneo emprego no Complexo da Maré, localizado no Rio de Janeiro, um conjunto de 15 comunidades onde residem cerca de 130 mil pessoas, o que se dá com amparo no art. 142, § 1º, da Constituição Federal, na Lei Complementar nº 97/99, no Decreto nº 3.897/01, bem como na Diretriz Ministerial nº 9, assinada pelo Ministro da Defesa, que autoriza as Forças Armadas a realizarem patrulhamento, abordagens, revistas e prisões em flagrante.


6 Da Ampla Subordinação Atual das Forças Armadas aos Poderes Constitucionais, em Especial ao Poder Judiciário

Pontuamos, antes, quão regrada é atuação das Forças Armadas em missões de garantia da lei e da ordem. Incogitável, portanto, que o emprego militar ocorra ao alvedrio de algum Comandante de Força. Isso decorre da ampla subordinação (constitucional e legal) das Forças Armadas aos poderes constitucionais, e não aos integrantes dos mesmos, inexistindo, portanto, o vácuo jurídico de outrora, de modo que hoje é quase impossível imaginar os militares ostentando o poder político de ocasiões passadas, lacuna que, de certa forma, permitia as diversas intervenções experimentadas em momentos de crise, quando os castrenses, literalmente, tomavam (ex officio) as rédeas da situação, muitas das vezes, importante registrar, estimulados por lideranças civis de então, para as quais a atuação marcial era por demais conveniente, seja para a manutenção do poder (pelo governo), seja para a sua destituição (pelos opositores).

É também a opinião de Maria Celina D'Araujo (2009), para quem a antiga experiência brasileira de envolver as Forças Armadas na política e no combate político estigmatizou profundamente as instituições militares, cicatriz institucional que, diga-se de passagem, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) fez questão de aprofundar, nomeadamente ao recomendar, no seu relatório final o seguinte:

O conteúdo curricular dos cursos ministrados nas academias militares e de polícia deve ser alterado, considerando parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Educação (MEC), a fim de enfatizar o necessário respeito dos integrantes das Forças Armadas e dos órgãos de segurança pública aos princípios e preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos. Tal recomendação é necessária para que, nos processos de formação e capacitação dos respectivos efetivos, haja o pleno alinhamento das Forças Armadas e das polícias ao Estado democrático de direito, com a supressão das referências à doutrina de segurança nacional. (BRASIL, 2014)

Definitivamente, a CNV desconhece o amplo mapa normativo (constitucional e infraconstitucional) acima elencado, derivado, na essência, de decisão soberana emanada da Assembleia Nacional Constituinte, a qual, como visto, deliberou e inseriu, no art. 142, caput, da Carta de 1998, uma expressão (por iniciativa de qualquer destes) que tornou as Forças Armadas absolutamente subordinadas aos poderes constitucionais, inviabilizando práticas interventivas de outrora, quando, não raro, os governos civis eram o primeiro a incentivar a insubordinação e a quebra da hierarquia e da disciplina, valores tão caros para os militares. Nesse sentido, discorrendo sobre o comportamento (antecedente à eclosão do movimento político-militar de 1964) adotado por Jango, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista ao site UOL Notícias, em 30 de março de 2014, anotou:

A situação era de impossibilidade de alguma solução. Jango fez um erro enorme que foi permitir a quebra de hierarquia de militar. Quebrou a hierarquia, como é que se faz? Quem é que segura a tropa? Ele quebrou [a hierarquia] no tribunal dos sargentos (revolta dos sargentos em Brasília, em 1963), que ele foi lá e fez discurso aos sargentos. Os generais, os coronéis, os oficiais ficaram com medo. Jango foi ficando num beco sem saída. (CARDOSO, 2014)

O desfecho daquele ano de 1964, quando as Forças Armadas instauram o Regime Militar, todos nós o sabemos e está devidamente registrado na história. No entanto, é possível dizer que, com o advento da Constituição de 1988, as Forças Armadas deixaram de intervir na vida constitucional e se restringiram ao seu papel clássico, próprio de um Estado Democrático de Direito, como, aliás, foi o desejo de Castello Branco ao instituir os fundamentos ideológicos do movimento político-militar de 1964, segundo, inclusive, reconhece o insuspeito jornalista A. C. Scartezini (2015):

Ao assumir o poder, o Marechal Castelo Branco providenciou uma reforma nas Forças Armadas que criou a chamada expulsória: a partir dos 70 anos, os militares passam à reserva automaticamente.

Além da idade, duas providências abreviaram a carreira de generais: nenhum oficial podia ser general por mais de 12 anos; e cada um dos três graus do generalato devia renovar anualmente um quarto de seu quadro. [...]. Os coronéis deviam permanecer na patente por pelo menos sete anos, mas não mais do que nove.

A ideia era castrar o amadurecimento de lideranças internas entre militares [...]. (SCARTEZINI, 2015)

Assim, não há como negar a evolução institucional vivenciada pelas Forças Armadas de hoje, cuja subordinação constitucional aos poderes constituídos não permite mais o seu emprego como mecanismo de solução política.

Afinal, como bem advertiu o Ministro Celso de Mello, quando de sua posse na Presidência do STF, em 22 de maio de 1997 (BRASIL, 1997), as crises políticas devem ser solucionadas dentro do quadro normativo delineado pelo ordenamento constitucional, com os instrumentos jurídicos nele previstos e com fundamento exclusivo no predomínio da Constituição e das leis, o que confere ao Judiciário como um todo, e em particular ao STF enquanto guardião do Texto Magno, um relevante papel, assim desenhado por Celso de Mello, Relator do Mandado de Segurança nº 26.603/DF, Tribunal Pleno, julgamento em 4 de outubro de 2007:

O exercício da jurisdição constitucional, que tem por objetivo preservar a supremacia da Constituição, põe em evidência a dimensão essencialmente política em que se projeta a atividade institucional do Supremo Tribunal Federal, pois, no processo de indagação constitucional, assenta-se a magna prerrogativa de decidir, em última análise, sobre a própria substância do poder. (BRASIL, 2007)

Na mesma linha de dicção, Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à Revista Esquerda 21, edição de janeiro de 1996, nº 1 (CARDOSO, 1996), assentou que as Forças Armadas já possuem uma noção a respeito de qual é o papel delas num Estado democrático. O mesmo ex-Presidente, em artigo ("Chegou a hora") publicado no jornal Estadão, em 1º de fevereiro de 2015, ao analisar a atual crise (moral, política, econômica, energética, etc.) vivida pelo país, assentou que:

Tudo isso é preocupante, mas não é o que mais me preocupa. Temo, especialmente, duas coisas: o havermos perdido o rumo da História e o fato de a liderança nacional não perceber que a crise que se avizinha não é corriqueira a desconfiança não é só da economia, é do sistema político como um todo. [...].

Nada se consertará sem uma profunda revisão do sistema político e mais especificamente do sistema partidário e eleitoral. Com uma base fragmentada e alimentando os que o sustentam com partes do Orçamento, o governo atual não tem condições para liderar tal mudança. E ninguém em sã consciência acredita no sistema prevalecente. Daí minha insistência: ou há uma regeneração por dentro, governo e partidos reagem e alteram o que se sabe que deve ser alterado nas leis eleitorais e partidárias, ou a mudança virá "de fora". No passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se vêem sinais.

Resta, portanto, a Justiça. Que ela leve adiante a purga; que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, aos delegados ou à mídia. Que tenham a ousadia de chegar até aos mais altos hierarcas, desde que efetivamente culpados. Que o STF não deslustre sua tradição recente. E, principalmente, que os políticos, dos governistas aos oposicionistas, não lavem as mãos. Não deixemos a Justiça só. Somos todos responsáveis perante o Brasil, ainda que desigualmente. Que cada setor político cumpra a sua parte e, em conjunto, mudemos as regras do jogo partidário eleitoral. Sob pena de sermos engolfados por uma crise que se mostrará maior do que nós. (CARDOSO, 2015, grifo nosso)

Vê-se, portanto, que FHC reconhece que a atual conjuntura, diversamente do que ocorria no passado, impede que os militares resolvam adotar alguma solução golpista para os graves problemas que atingem o país, justamente por estarem absolutamente compromissados com os alicerces de um Estado Democrático de Direito.

Questionada quanto à distinção entre os comandantes militares da época do Regime Militar e os atuais, Maria Celina DAraujo situou a seguinte distinção:

O que observamos entre os comandantes militares atuais é uma diferença abissal. Hoje os comandantes militares têm uma ideia de profissionalismo muito mais forte, eles não têm um projeto político, são servidores do Estado e obedecem ao governo democrático de direito e à Constituição. Não se apresentam mais como atores políticos, que podem ter um projeto próprio ou falar em nome de um setor. É uma mudança muito grande e positiva que indica o fortalecimento da democracia no Brasil. As democracias têm como característica a subordinação dos militares ao poder civil e democrático. Isso dá mais segurança ao regime democrático. (DARAUJO, 2009)

Por terem essa visão democrática quanto à função que lhes reservou o Documento Fundamental do Estado, certamente as Forças Armadas sequer deram ouvidos, e muito menos se deixaram contaminar ideologicamente, pelas recentes manifestações (muitas das quais veiculadas pela mídia) contra o resultado das eleições presidenciais de 2014, ocasião em que grupos (antidemocráticos) de manifestantes chegaram a pedir a intervenção da Caserna em relação à reeleição da Presidenta Dilma Rousseff.

Ao contrário, tendo em vista o princípio da subordinação, as Forças Armadas de hoje demonstram rejeitar qualquer proposta autoritária, seja de esquerda ou de direita, estando perfeitamente conscientes do papel institucional que lhes foi reservado no contexto do Estado Democrático de Direito, bem como de sua absoluta subordinação aos poderes constitucionais.


Conclusão

A partir da análise do amplo conjunto de dados pesquisados, é possível traçar o seguinte panorama sobre o assunto versado no presente artigo.

Em primeiro lugar, está devidamente comprovado que as Forças Armadas atuaram efetivamente, mormente a partir da Proclamação da República, como instrumento de estabilização.

À relevante importância institucional das Forças Armadas somava-se, ao reverso, certo desprestígio do Poder Judiciário, um poder que, de algum modo, pouca ou nenhuma voz possuía no cenário estatal.

Ressalte-se, ademais, que o emprego das instituições militares enquanto instrumento de estabilização política não se dava ao arrepio da Constituição. A análise das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, permite concluir, a partir de uma interpretação consentânea com as respectivas realidades históricas, que tal emprego era, de um modo geral, constitucionalmente válido, bem como convenientemente interessante para o homem político, inclusive para os políticos militares. Assim, não há como afirmar que tal manejo, absolutamente impensável nos dias atuais, ocorresse em afronta aos Textos Magnos.

Corrobora a afirmação que acabamos de fazer o fato de que a Assembleia Nacional Constituinte preocupou-se em consagrar ao dispositivo constitucional relativo à missão das Forças Armadas (BRASIL, 1988, art. 142) uma redação diferente daquelas previstas nas Constituições anteriores.

Ora, como cediço, a lei não contém palavras em vão. Se a Constituinte foi tão marcada por debates a respeito do tema, isso certamente decorreu, conforme atestam os recortes jornalísticos mencionados no texto, da pretensão de se sepultar de vez a experiência militar enquanto fator de equilíbrio político. Essa ilação, a nosso ver, é bastante ponderável, mormente se considerarmos que, desde 1988, cujo art. 142, com nova roupagem, subordina as Forças Armadas aos poderes constitucionais, não se observa mais tal emprego.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1891a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1946. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição da República Federativa do Brasil, 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Decreto nº 641, de 3 de novembro de 1891b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D641.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

______. Decreto nº 3.897, de 24 agosto de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/d3897.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

______. Decreto nº 5.484, de 30 junho de 2006. Política Nacional de Defesa. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/END-PND_Optimized.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2015.

______. Decreto nº 6.703, de 18 dezembro de 2008. Estratégia Nacional de Defesa. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/projetosweb/estrategia/arquivos/estrategia_defesa_nacional_portugues.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2015.

______. Emenda Constitucional nº 1, 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em: 26 jan. 2015.

______. Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 99. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp97.htm>. Acesso em: 25 abr. 2016.

______. Assembleia Nacional Constituinte. Projeto de Constituição (do Relator Bernardo Cabral), v. I. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal. Jul. 1987a. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-223.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2015.

______. Câmara dos Deputados. Jornal da Constituinte, n. 1, 1º jun. 1987. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1987b. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/103487>. Acesso em 12 mar. 2015.

______. Substitutivo do Relator. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal. Set. 1987c. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-242.pdf>. Acesso em 30 jan. 2015.

______. Comissão Nacional da Verdade. Relatório Final, Parte V, Conclusões e Recomendações. 2014. Disponível em: <http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Parte_5.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2015.

______. Ministério da Defesa. Livro Branco de Defesa Nacional. 2012a. Disponível em: <http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2015.

______. Palavras de Despedida do Comandante do Exército, General de Exército Enzo Peri. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/terrestre/noticia/18145/Gen-Enzo-Peri---Discurso-de-Despedida-/>. Acesso em: 6 fev. 2015.

______. Senado Federal. Diplomacia e defesa: uma missão constitucional ativa do parlamento. Brasília: Senado Federal, 2012b, p. 123-125. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/243014/00050.pdf?sequence=3>. Acesso em: 28 fev. 2015.

______. Supremo Tribunal Federal. Discurso de Posse do Ministro Celso de Mello na Presidência do STF. Brasília, DF, 1997. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/bibliotecadigital/Plaquetas/210995/PDF/210995.pdf#search=%27210995%20210995%27>. Acesso em: 4 fev. 2015.

______. Mandado de Segurança nº 26.603/DF, Tribunal Pleno, julgamento em 4 out. 2007. Relatoria do Ministro Celso de Mello. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=570121>. Acesso em: 29 jan. 2015.

CARDOSO, Fernando Henrique. Chegou a hora. Artigo publicado no jornal Estadão, 1º fev. 2015. Disponível em: <http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,chegou-a-hora-imp-,1627774>. Acesso em: 15 fev. 2015.

______. Além dos militares, não sei qual força poderia impor uma situação nova. Entrevista concedida ao site UOL Notícias em 30 mar. 2014. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2014/03/30/fhc-nao-sei-qual-forca-que-poderia-alem-dos-militares-impor-uma-situacao-nova.htm>. Acesso em: 5 fev. 2015.

______. Entrevista concedida à Revista Esquerda 21, nº 1, jan. 1996.

D'ARAUJO, Maria Celina. O papel das Forças Armadas no Brasil e na América Latina. 28 nov. 2009. Disponível em: <http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/print.asp?cod_noticia=13821&cod_canal=41>. Acesso em: 4 fev. 2015.

DREIFUSS, R. A; DULCI, O. S. As forças armadas e a política. In: SORJ, B.; ALMEIDA, M. H. T., (Org.). Sociedade política no Brasil pós-61 [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. p. 132-181. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/b4km4/pdf/sorj-9788599662632-05.pdf>. Acesso em: 5 fev. 2015.

FAORO, Raymundo. Democratização e Forças Armadas. Revista Senhor, n. 185, 3 out. 1984, São Paulo, p. 1-5.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

O GLOBO. Forças armadas debatem seu papel na constituição, 14 jan. 1986, p. 3. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/114532/1986_JAN%20a%20JUL_008.pdf?sequence=1>. Acesso em: 30 jan. 2015.

MOREIRA, Dalton. Constituinte mantém atribuições das Forças Armadas. Folha de São Paulo, 13 abr. 1988, p. 6. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/108099/1988_10%20a%2015%20de%20Abril_%20068b.pdf?sequence=3>. Acesso em: 30 jan. 2015.

NOBLAT, Ricardo. Anistia não é o alvo de Leônidas. Jornal do Brasil, 29 ago. 1987, p. 5. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/127872/Agosto%201987%20-%200555.pdf?sequence=1>. Acesso em: 30 jan. 2015.

PÉREZ, José Lorenzo. Democracia limitada y poder militar. Nueva Sociedad, n. 47, mar./abr. 1980, p. 5-13. Disponível em: <http://www.nuso.org/upload/articulos/708_1.pdf>. Acesso em 30 jan. 2015.

RODRIGUES, Newton. As Forças Armadas e sua função institucional. Folha de São Paulo, 2 set. 1987. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/127512/Setembro%2087%20-%200027.pdf?sequence=1>. Acesso em 30 jan. 2015.

SCARTEZINI, A. C. Rara Lição da Ditadura, O Globo, 22 maio 2015. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao/rara-licao-da-ditadura-16229204>. Acesso em 1 jul. 2015.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVA, Ligia Osório. Desenvolvimentismo e intervencionismo militar. E-premissas: Revista de Estudos Estratégicos. Dossiê Dreifuss, n. 1, jun./dez. 2006. Disponível em: <http://www.unicamp.br/nee/epremissas/pdfs/01.07.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2015.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Do status institucional das Forças Armadas na história constitucional brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7041, 11 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99189. Acesso em: 8 maio 2024.