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Guarda compartilhada com alternância de residência e o mito da criança mochileira

Guarda compartilhada com alternância de residência e o mito da criança mochileira

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Deve ser desconstruído o mito de que a guarda compartilhada, com alternância de residência, é prejudicial ao filho, transformando-o em um mochileiro, que vaga sem raízes e identidade.

Outrora, existiam três espécies de guarda: unilateral, compartilhada e alternada. Com o advento da Lei 11.698/2008, mantiveram-se apenas as duas primeiras, o que também ocorreu com a posterior Lei 13.058/2014. Esta passou a prever, como regra, a guarda compartilhada, que poderá ser com alternância de residência, ou seja, sendo consideradas, para todos os fins, como morada do filho, as casas de ambos os genitores.

Conforme se verá a seguir, trata-se de importante evolução, que surte efeitos psicológicos positivos nos envolvidos. Mas, infelizmente, ainda há alguns resistentes, que alegam ser prejudicial, pois torna a criança mochileira, no sentido de não ter base física e emocional em determinado local:

Dizem que a criança está sempre na casa do pai ou na casa da mãe, nunca se sentindo em casa; que ela desenvolve dupla personalidade, tendo que conviver a cada período com regras e hábitos diferentes. Chamam-na de mochileira, numa alusão à mochila que sempre precisa estar carregando, com objetos pessoais seus, que leva de uma casa para a outra (PAULO, 2018, p. 14).

Este posicionamento é equivocado. A guarda compartilhada com alternância de residência não retira do filho sua referência física de lar, mas a amplia, no sentido de que possui dois lares (PEREIRA, 2018), duas bases, duas raízes: a residência do pai e da mãe.

A psicologia constata que, na verdade, não é o número de residências que faz o filho ter ou não identidade, mas sim a forma como ele se vê nos locais. Indo além, entende-se que, no contexto de separação dos genitores, quando sadia e prezando pelo bem-estar do filho, ter duas moradias pode lhe ajudar a desenvolver potencialidades, sobretudo, no que se refere à compreensão do "pós-relacionamento":

Minha experiência profissional me mostrou que a criança que vive entre duas casas, além de lucrar com a convivência e igual possibilidade de trocas com ambos os genitores, aprende rápido que as diferenças existem e devem ser respeitadas. E desenvolve bem antes de outras a opinião própria e seu raciocínio lógico. Ademais, elas se sentem sim em casa, em ambos os ambientes (PAULO, 2018, p. 14).

Em outras palavras, ao invés de ser negativa, a alternância de residência pode ser benéfica ao filho, caso ocorra em ambientes propícios para o seu autodesenvolvimento, bem como o desenvolvimento do vínculo com seus genitores.

Não há, no Brasil, tanta produção científica sobre o tema, mormente no que se refere aos desdobramentos emocionais da alternância de residência na criança e no adolescente. Todavia, em Portugal encontram-se estudos consistentes, com conclusões no sentido de um melhor desenvolvimento das crianças, com reflexos na qualidade de vida, inclusive, dos pais (DELGADO, 2018). Na Suécia, segundo Malin Bergström, do Instituto Karolinska, de Estocolmo, crianças em residências alternadas têm melhor saúde física e mental (ibidem). Pesquisas feitas na Austrália e Nova Zelândia demonstraram que a maioria dos filhos desejava passar mais tempo com o genitor não residente, sendo que um desses estudos, direcionado a adolescentes, comprovou que jovens submetidos à guarda unilateral (ou mesmo à guarda compartilhada sem divisão de residências) expressaram mais sentimentos de perda e frustrações do que aqueles que cresceram em lares de custódia conjunta, com divisão igualitária do tempo de convivência (ibidem).

Em seu best seller "O menino do pijama listrado", Boyne disse que "nossa casa não é uma construção, ou uma rua, ou uma cidade, ou coisa alguma tão artificial quanto os tijolos e a argamassa. O lar é onde mora a família de alguém" (2010, p. 24). Assim, lar não é o(s) imóvel(ies) em que reside o filho, mas sim onde se sente em família. Por isso, encerramos essa reflexão nos valendo das acertadas palavras de Pereira sobre o tema: "dois lares são melhores do que um" (2018, p. 5).


REFERÊNCIA

BOYNE, John. Trad. Augusto Pacheco Calil. O menino do pijama listrado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

DELGADO, Mário Luis. Guarda alternada ou guarda compartilhada com duas residências? Consultor Jurídico, São Paulo, ano 25, 23 dez. 2018. Processo Familiar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-23/processo-familiar-guarda-alternada-ou-guarda-compartilhada-duas-residencias. Acesso em: 29 jul. 2022.

PAULO, Beatrice Marinho. Uma análise a respeito da guarda compartilhada com alternância de residência. Revista IBDFAM: igualdade parental - guarda compartilhada com duas residências?, Belo Horizonte, ed. 40, p. 14, Ago./Set. 2018.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dois lares são melhores que um. Revista IBDFAM: Igualdade parental - guarda compartilhada com duas residências?, Belo Horizonte, ed. 40, p. 5-7, Ago./Set. 2018.


Autor

  • João Gabriel Fraga de Oliveira Faria

    Advogado (OAB/SP n. 394.378). Especialista em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Constitucional Aplicado. Cursou especialização em Direito Público. É especialista em Direito Empresarial. Fez especialização em Direito e Processo Civil. É presidente da comissão de Direito de Família da 52º Subseção da OABSP. Foi membro da diretoria do núcleo regional (Lorena/SP) do IBDFAM. E-mail para contato: [email protected].

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, João Gabriel Fraga de Oliveira. Guarda compartilhada com alternância de residência e o mito da criança mochileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6972, 3 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99452. Acesso em: 28 mar. 2024.