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A palavra da vítima como único elemento probatório frente as denunciações caluniosas e a imprescritibilidade do crime de estupro

A palavra da vítima como único elemento probatório frente as denunciações caluniosas e a imprescritibilidade do crime de estupro

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1 - CONTEXTO HISTÓRICO ACERCA DO ESTUPRO

Segundo o Minidicionário da língua portuguesa (Silveira Bueno, 2007, p.333): Estupro, sm. Ato de abusar sexualmente, com violência, de outra pessoa.

Pela história, delitos de natureza sexual sempre tiveram destaque, sendo positivado a priori no Código de Hamurabi, o estupro estava tipificado em seu artigo 130, que assim previa: Se alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto e a mulher irá livre.

Na Grécia antiga, a infância era marcada por muitas ocasiões eróticas, sendo que em muitos casos as próprias filhas eram estupradas por seus pais e, nessa cultura, muitas mulheres da Grécia antiga não tinham seu hímen integro. Não obstante, destaca-se que não eram apenas as mulheres vítimas desse abuso, pois muitos filhos homens eram entregues a homens mais velhos desde os 07 (sete) anos, pelos quais eram abusados sexualmente até completarem 21 (vinte e um) anos. (HISGAIL, 2007).

No Brasil, o Código Criminal do Império, primeiro código autônomo da América Latina, elaborado por D. Pedro I e sancionado na data de 16 de dezembro de 1830, já legislava sobre questões sexuais. Acerca deste tema, Prado leciona:

O Código Criminal do Império de 1830 elencou vários delitos sexuais sobre a rubrica genérica estupro. A doutrina da época, todavia, repudiou tal técnica de redação. O legislador definiu o crime de estupro propriamente dito no artigo 222, cominando-lhe pena de prisão de três a doze anos mais a constituição de um dote em favor da ofendida. Se a ofendida fosse prostituta, porém, a pena prevista era de apenas um mês a dois anos de prisão. (PRADO, 2001, p. 194-195).

Posteriormente, no dia 11 de outubro do ano de 1890, fora editado o Código Penal Republicano, que em seus artigos 268 e 269 assim previa:

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão cellular por um a seis annos. § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão cellular por seis mezes a dous annos. § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher, seja virgem ou não. Por violencia entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos.

Ulteriormente, o Decreto-Lei 2.848 de 1940, comumente conhecido como Código Penal, editado pelo então presidente da República, Getúlio Vargas, deu fim a cinquenta anos da legislação de 1890, o qual trouxe como uma das principais alterações, a maioridade penal.

O referido códex, que permanece vigente até os dias atuais e que passou por recentes alterações nesta matéria, em virtude das disposições advindas da Lei 12.015/2009, prevê, em seu artigo 213, o crime de estupro da na forma seguinte, e o qual faz-se menção mais a frente:

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:          (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.          (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009) § 1o  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:           (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.             (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2o  Se da conduta resulta morte:             (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

          

2 - O CRIME DE ESTUPRO NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL

Como já mencionado anteriormente, encontra-se o tipo penal previsto no artigo 213 do Código Penal Brasileiro, e a objetividade jurídica [1]do mesmo é a capacidade de livre opção do parceiro sexual. Neste crime, a vítima é constrangida, oprimida a realização de ato sexual. O pressuposto do fato é, desta forma, o dissentimento que abrange a vítima, ou seja, quando se realiza a ação sem que haja sua vontade.

Ademais, a Lei 12.015/2009 trouxe ainda dispositivo legal em que deixou de haver distinção entre os crimes de atentado violento ao pudor e estupro, sendo a partir desta, um só crime de nome estupro.

Com esta nova legislação, o estupro deixa de ser apenas ato de conjunção carnal cometido por homem contra uma mulher, e passa a ser entendido como a prática de todo e qualquer ato libidinoso, podendo ter como agente ativo e passivo toda e qualquer pessoa.

Outrossim, deve ser uma divergência clara, que demonstre que a vítima não aderiu a qualquer momento à conduta do agente. Logo, não haverá crime se não houver repreensão e negativa enérgica e clara, contudo não se faz necessário que fique configurado a chamada resistência heroica, sendo este caracterizado quando o sujeito passivo reage fisicamente ao agente ativo até que se esgotem suas forças. Temos por exemplo a hipótese de um agente ativo armado, estando destarte, perfeitamente regulado o crime em razão da grave ameaça.

Em outros termos, pela nova lei haverá estupro quando da conjunção carnal ou de qualquer outra prática de ato sexual, sendo essa mais abrangente, pois a partir de sua vigência, haverá crime quer o agente tenha obrigado a vítima a praticar o ato, quer tenha obrigado a permitir que com ela se pratique, colocando a vítima no sentido passivo desta relação.

Para que se configure o crime, portanto, é desnecessário que haja contato físico entre autor e vítima, assim, se o agente ativo usar de grave ameaça para que a vítima realize auto toque já se encontra configurado crime de estupro, bem como se forçada a realizar ato sexual com terceiro.

Vale salientar que o tipo penal exige ato de natureza sexual, não configurando crime se o agente se limita a usar palavras indecorosas. Bem como é importante salientar que se difere estupro de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do CPB: Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.

Lado outro, com o advento da já mencionada Lei 12.015/09, o estupro deixou de ser crime mão própria e passou a ser crime comum em relação ao sujeito ativo, sendo admitido, ainda participação e coautoria.

Desta forma, aquele que emprega violência ou grave ameaça contra o sujeito passivo, sem, contudo, realizar com ela qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal, com a finalidade de se permitir que o sujeito coparticipante o faça, será, portanto, considerado coautor.

Tal ação é denominada coautoria funcional, no que concerne à cisão de atos executórios. Em contrapartida, aquele que concorre para o delito sem, contudo, realizar ato executório, responde por participação.

Admite-se ainda, nesse tipo penal, a tentativa, tendo o agente empregado violência ou grave ameaça contra a vítima, sem, contudo, conseguir a consumação de qualquer ato, por circunstâncias que fogem ao seu controle e vontade. O ato que dá início à execução do crime é aquele que configura o emprego de violência ou grave ameaça com dolo de obter ato sexual, e não o início deste por si só.

Contudo, o texto legal não reivindica que tenha o agente ativo a intenção específica de satisfação de sua lascívia. Pode, portanto, configurar-se sob a intenção de vingança, ou mera humilhação com a prática sexual.

Há ainda entendimentos no sentido de que, após a inserção de dispositivo no art. 226, II, do CPB, pela Lei 11.106/05, haverá majorante quando o crime sexual for cometido por cônjuge ou companheiro.

3 - O INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO E SUA APLICABILIDADE NA LEI PENAL BRASILEIRA

Primordialmente deve-se citar a natureza jurídica da prescrição penal, objeto de controvérsias doutrinárias, há aqueles que considerem matéria de direito penal, lado outro, há quem o considere matéria de direito processual penal, havendo ainda quem atribua ao instituto caráter misto.

Dentro do direito Penal, a prescrição pode ser definida segundo Nucci (2014, p. 485): É a perda do direito de punir do Estado pelo não exercício em determinado lapso de tempo. Não há mais interesse estatal na repressão do crime, tendo em vista o decurso do tempo e porque o infrator não reincide, readaptando-se à vida social.

Cumpre-se observar o disposto no Código Penal, artigo 107, inciso IV, o qual define a prescrição como uma das causas de extinção da punibilidade.

Podendo ainda ser conceituado, na lição de Cleber Masson (2017) como a perda da pretensão punitiva ou da pretensão executória em face da inércia do Estado durante determinado tempo legalmente previsto.

Há no direito penal diversas teses que fundamentam a prescrição, como por exemplo a teoria do esquecimento que diz que pelo decurso de tempo, variando de acordo com a gravidade do delito, a memória desse se esvai da lembrança da sociedade, não existindo, portanto, o temor causado por seu ato, deixando desta forma de haver razão para que haja punição.

Podemos citar ainda a teoria da expiação moral, a qual baseia-se no fato de que, com o passar do tempo, o delinquente sofre a expectativa de poder ser, a qualquer momento, descoberto, sofrendo o processo e a devida punição, o que já lhe serviria como suficiente aflição, fazendo-se desnecessária a aplicação de pena.

Ademais, temos a teoria da emenda do criminoso a qual lastreia-se no fato de que a passagem temporal por si só trará a devida mudança comportamental do indivíduo, sendo presumida a sua recuperação e explicitando a desnecessidade de punição.

Bem como a teoria da dispersão das provas, que se funda na ideia de que a passagem temporal provocaria a perda de provas; dessa forma, seria praticamente impossível que se pudesse realizar um julgamento justo após cometido o crime, devido ao lapso temporal. Haveria, portanto, grande possibilidade de erro judiciário.

Não só essas, mas também a teoria psicológica que se baseia no conceito de que, após lapso temporal, o suspeito não mais pensaria ou seria o mesmo, sendo, portanto, pessoa diversa da que cometera o delito, havendo, assim, a motivação para não se aplicar uma pena.

Em suma, a totalidade dessas teorias dão razão para a existência da prescrição, sendo esta uma medida proveitosa e útil, diante da apatia de um Estado diante de seu dever na investigação e esclarecimento do delito.

O instituto da prescrição tem natureza jurídica de direito material; dessa forma, as regras que a ela são inerentes guiam-se pelo princípio constitucional segundo o qual as normas penais não retroagem, a não ser que sejam benéficas ao acusado. Em suma, se criada nova lei que aumente prazo prescricional, ou crie nova causa interruptiva, a mesma não poderá retroagir.

Insta mencionar que a Carta Magna antevê somente duas espécies de crimes que são considerados imprescritíveis, sendo eles o racismo e aqueles decorrentes de ações de grupos armados, civis ou militares.

Menciona-se ainda o fato de que o Senado Federal aprovou a PEC 64/2016 de autoria do senador Jorge Viana, a qual propõe alteração no artigo 5º da Constituição com o intuito de que se inclua no rol de crimes imprescritíveis, o estupro. A PEC segue em análise juntamente à Câmara dos Deputados. Acerca da PEC 64/2016 o parecer de nº 23, de 2017, da relatora Senadora Simone Tebet disserta;

Da mesma forma, não existem vícios de constitucionalidade material na proposição em exame. A mais recente doutrina destaca que o tema da prescrição não é materialmente constitucional, mas de intrínseca natureza legal, mais especificamente de natureza penal.

Verifica-se, no entanto, que a Constituição efetiva como regra a prescritibilidade das infrações penais, ficando certo, portanto, de que todo sujeito ativo de ilícito penal possui direito público subjetivo a ter reconhecido a prescrição após prazo anteriormente determinado em lei.

3.1 DOS PRAZOS PRESCRICIONAIS

Uma vez que fora devidamente conceituado, cabe tratar dos prazos para prescrição penal, uma vez que ultrapassados tais prazos, extingue-se a punibilidade do fato. Para verificar-se o prazo prescricional da pretensão punitiva é preciso que seja analisado o limite máximo da pena em abstrato que fora imposta no tipo penal, e enquadra-lo em uma das hipóteses legais previstas no artigo 109 do CP.

Prescrição antes de transitar em julgado a sentença

Art. 109.  A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;

II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;

III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;

IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;

V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;

VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

(Lei nº 12.234 de 2010, altera os artigos 109 e 110 dos Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal).

3.2 PRESCRIÇÃO NO CRIME DE ESTUPRO

Como já citado anteriormente, a prescrição é definida como a perda do direito do Estado de punir. Neste sentido podemos citar que, aguarda apreciação no plenário da Câmara a Proposta de Emenda Constitucional 64/2016 de autoria do deputado Jorge Viana, a PEC já fora aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e tem como objetivo incluir o crime de estupro no rol de crimes imprescritíveis, alterando o inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal.

Contudo, caso a mesmo passe a vigorar, há de se analisar os reflexos acerca da imprescritibilidade perante a sociedade, visto que o prazo prescricional atual já conta com 16 anos (CP, artigo 109, II).

O Estado possui o poder-dever de punir, contudo, tal poder não pode ser ilimitado e irrazoável (sic), sob pena de se ferir direitos essenciais do submetido. Assim, o jus puniendi estatal possui limitações, sendo uma delas a prescrição penal, que impede a eternização da possibilidade de, independentemente do momento, instaurar-se persecução penal ou execução de uma sanção penal contra um indivíduo, até mesmo pela perda da capacidade de produção de provas adequadas (acusatórias/defensivas). (ROSA, Alexandre Morais da. et al. A imprescritibilidade do crime de estupro e o Direito Penal Simbólico, 2018).

Logo, pode-se verificar que a matéria em tela abre precedente para que haja a finitude do direito fundamental da prescrição, vez que, se aprovada, permitirá que haja aplicação de pena ao indivíduo, independentemente do tempo transcorrido desde o suposto deleito.

3.3 DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE PRESCRICIONAL

Primeiramente, é necessário que se estabeleça os dois tipos penais que constituem o rol taxativo de crimes imprescritíveis, a Constituição Federal prevê em seu artigo 5º, incisos XLL e XLIV, quais sejam respectivamente, Racismo e Ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, sendo esses crimes inafiançáveis.

Salienta-se, ainda, que por se tratar de rol fechado com caráter taxativo, esse não pode ser alterado, ainda que por emenda constitucional, dado que está inserido nos direitos e garantias fundamentais, havendo dessa forma, vedação de ordem material, em face do que prevê o §4º. Inciso IV, do artigo 60 da Constituição Federal, sendo esse, cláusula pétrea.

Nesse sentido, analisa-se a inconstitucionalidade da proposta de emenda constitucional 64/2016, a qual, como já supracitado, tem como matéria incluir o crime de estupro no rol de crimes imprescritíveis. Contudo, a eventual ampliação do rol de crimes imprescritíveis estaria indo de frente a taxatividade das hipóteses constitucionais e a proibição de penas de caráter perpétuo.

Não existe na listagem penal crime que, por mais hediondo que se apresente ao sentimento jurídico e ao consenso da comunidade, possa merecer a imprescritibilidade, máxime se atentarmos que as expectativas comunitárias de reafirmação da validade da ordem jurídica não perduram indefinidamente (ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 645).

Mister mencionar que, apesar de a imprescritibilidade não ser vista como pena, por não vir de uma sentença condenatória, a sua instituição por si só expressa possibilidade de aplicação de pena, podendo esta se dar a qualquer momento. Tão logo percebe-se que, ainda que a prescrição não seja uma pena de caráter perpétuo, a mesma franqueia que sejam aplicadas penas de forma perpétua, porquanto dure a vida do acusado. Acerca desse posicionamento, Evinis Talon (2016) discorre:

Não há fundamento constitucional para novas hipóteses de imprescritibilidade. Qualquer lei que estatuir como imprescritíveis outros crimes além dos previstos na Constituição Federal viabilizará, por via indireta, as penas de caráter perpétuo (TALON, Evinis. O risco da imprescritibilidade penal, 2016)

4 AS PROVAS E A VALORIZAÇÃO DA PALAVRA DA VÍTIMA COMO ÚNICO ELEMENTO PROBATÓRIO

A expressão prova vem do latim probatio e é o conjunto de atos praticados pelas partes, pelo juiz (CPP, arts. 156, 2ª parte; 209 e 234) e por terceiros, destinado a levar ao magistrado a convicção acerca da existência ou inexistência de um fato, da falsidade ou veracidade de uma afirmação.

Para Capez (2010, p.132) provas são como os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual.

Temos que o objeto da prova compreende os fatos principais e secundários; no sentido processual, esses fatos abrangem o mundo exterior, ligando-se na reconstrução histórica do fato tipificado.

Portanto, temos que o objeto da prova é o conceito analítico do crime. Alerta Badaró (Processo Penal, 4ª edição, p. 399) que o verdadeiro objeto da prova não é o fato, mas a existência do fato (ISHIDA, Valter Kenji, 8ª edição, p. 282).

Ao discorrermos sobre o delito de estupro e sua prescrição, acomete-nos em algum momento que os meios de prova desse delito são, em sua grande maioria, frágeis e perecíveis, visto que se tratam de materiais genéticos, e corpo de delito que tende a desaparecer com o lapso temporal, quais sejam: hematomas, lacerações, digitais, e outros sinais.

No crime de estupro, a palavra da vítima torna-se uma viga mestra probatória, uma vez que, se suas imputações são seguras e firmes e se de acordo com as demais provas, proporciona sustento a condenação do agressor (Delmanto, 2016).

Observamos, portanto, que, apesar da palavra da vítima possuir importante valor, faz-se necessário que haja outros meios de prova que corroborem para a comprovação do delito, visto que, do contrário, estaríamos mitigando o valor constitucional da presunção de inocência, e corroborando para a insegurança jurídica quando da não aplicação do instituto processual penal do in dubio pro reo[2].

A palavra da vítima tem especial importância para o convencimento do magistrado acerca dos fatos, entretanto havendo falta de concordância entre o depoimento da vítima e os elementos do processo ou ainda na insuficiência de provas, a absolvição do acusado é a medida mais segura. (MATOS, Karima Neto de; SOUZA, Fernando Machado de. 2021).

Deve ainda ser colocado em pauta a relação do réu e da vítima, posto que, estabelecer histórico de vínculo são essenciais para que se estabeleça uma ligação entre fatos e depoimentos.

Em regra, as palavras da vítima não possuem o mesmo valor probante de uma prova testemunhal, que passa por juramento de dizer a verdade sobre as declarações prestadas, sob a pena de incorrer no crime de falso testemunho. Não obstante, é evidente que as palavras da vítima têm grande relevância em relação à autoria e circunstâncias para o esclarecimento dos fatos (Machado, 2011). Nesse sentido, insta mencionar a tese criminológica conhecida como síndrome da mulher de Potifar, decorrente da Bíblia. Sobre essa discorre Greco:

Diz a Palavra de Deus que Jacó amava mais a José do que aos outros irmãos, o que despertava neles ciúmes e inveja. Certo dia, a pedido de seu pai, José foi verificar como estavam seus irmãos, que tinham levado o rebanho a pastorear. Ao avistarem José, seus irmãos, destilando ódio, resolveram matá-lo, depois de o terem jogado em um poço, mas foram dissuadidos por seu irmão mais velho, Rúben. No entanto, ao perceberem que se aproximava uma caravana que se dirigia ao Egito, resolveram vendê-lo aos ismaelitas por 20 barras de prata. Ao chegar ao Egito, José foi vendido pelos ismaelitas a um egípcio chamado Potifar, um oficial que era o capitão da guarda do palácio real. Como era um homem temente a Deus, José logo ganhou a confiança de Potifar, passando a ser o administrador de sua casa, tomando conta de tudo o que lhe pertencia. Entretanto, a mulher de Potifar, sentindo forte atração por José, quis com ele ter relações sexuais, mas foi rejeitada. A partir de agora, vamos registrar a história narrada pela própria Bíblia, com a nova tradução em linguagem de hoje, no capítulo 39, versículos 6 a 20, para sermos mais fidedignos 1146 com os fatos que motivaram a criação da aludida teoria criminológica: José era um belo tipo de homem e simpático. Algum tempo depois, a mulher do seu dono começou a cobiçar José. Um dia ela disse: Venha, vamos para a cama. Ele recusou, dizendo assim:
Escute! O meu dono não precisa se preocupar com nada nesta casa, pois eu estou aqui. Ele me pôs como responsável por tudo o que tem. Nesta casa eu mando tanto quanto ele. Aqui eu posso ter o que quiser, menos a senhora, pois é mulher dele. Sendo assim, como poderia eu fazer uma coisa tão imoral e pecar contra Deus? Todos os dias ela insistia que ele fosse para a cama com ela, mas José não concordava e também evitava estar perto dela. Mas um dia, como de costume, ele entrou na casa para fazer o seu trabalho, e nenhum empregado estava ali. Então ela o agarrou pela capa e disse: Venha, vamos para a cama. Mas ele escapou e correu para fora, deixando a capa nas mãos dela. Quando notou que, ao fugir, ele havia deixado a capa nas suas mãos, a mulher chamou os empregados da casa e disse:
Vejam só! Este hebreu, que o meu marido trouxe para casa, está nos insultando. Ele entrou no meu quarto e quis ter relações comigo, mas eu gritei o mais alto que pude. Logo que comecei a gritar, ele fugiu, deixando a sua capa no meu quarto.
Ela guardou a capa até que o dono de José voltou. Aí contou a mesma história, assim: Esse escravo hebreu, que você trouxe para casa, entrou no meu quarto e quis abusar de mim. Mas eu gritei, e ele correu para fora, deixando a sua capa no meu quarto. Veja só de que jeito o seu escravo me tratou! Quando ouviu essa história, o dono de José ficou com muita raiva. Ele agarrou José e o pôs na cadeia onde ficavam os presos do rei. E José ficou ali.

Através da chamada síndrome da mulher de Potifar, cabe aos julgadores o discernimento para que, ao avaliar os fatos trazidos a eles pela vítima, julguem se os mesmos são ou não verdadeiros. Em outras palavras, comprovar a verossimilhança da palavra da vítima, visto que, outrora, esta contradiz a negativa do acusado.

Ora, todo e qualquer agente do direito que tenha atuado no setor criminal pode confirmar que, por vezes, aquele que está em posição de vítima, deveria, contudo, ocupar o banco dos réus. Portanto, a carência de crédito atribuída à vítima poderá ocasionar a absolvição do acusado, ao passo que a verossimilhança de seu testemunho decidirá acerca de uma possível condenação.

5 DA HONRA FRENTE AS DENUNCIAÇÕES CALUNIOSAS

5.1 Acerca do Tipo Penal

A honra figura entre os mais preciosos atributos da personalidade que traz consigo o homem ao longo de sua vida em sociedade. Com o objetivo de trazer proteção jurídica a este atributo, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, tornou a honra inviolável, passando a figurar como direito fundamental do indivíduo.

Embora calúnia não esteja inserida no rol de crimes contra a administração da justiça, urge mencioná-la, uma vez que possui tênue afinidade com a denunciação caluniosa, e reclama, pois, uma breve exposição. Calúnia, artigo 138 do Código Penal Brasileiro, diz respeito à conduta em que o agente ativo imputa a alguém de forma pública fato tido como criminoso, podendo esta exposição acontecer de forma pessoal ou virtual, configurando essa ação um dos crimes que compõe o rol dos delitos contra a honra.

Neste sentido introduzimos o artigo 339 do Código Penal Brasileiro, o presente dispositivo penal sofreu recente alteração, sendo sancionada pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro a lei 14.110 de 18/12/2020, que altera o art. 339 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para dar nova redação ao crime de denunciação caluniosa.

Art. 339. Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente.

(...) O delito constitui um atentado contra as instituições do Estado, que se converte quando da prática desse crime, em instrumento de justiça contra um inocente. (MALULY, Jorge Assaf. Pág. 27, Denunciação caluniosa. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006).

Importante salientar neste momento que os fatos típicos supracitados possuem distinções entre si, vejamos: no tocante ao crime tipificado no artigo 138 do CPB, temos o delito de imputação falsa de crime, sendo a honra objetiva o objeto jurídico sob tutela, a ação penal é, em geral, privada, e é admissível a retratação.

Quando tratamos do artigo 339, temos o delito de imputação falsa de crime ou contravenção, sendo a administração jurídica o objeto jurídico sob tutela, a ação penal é pública incondicionada à representação, e esse não admite retratação.

Urge ainda a inevitabilidade de mencionar que ambos se diferenciam do crime de falsa comunicação de crime, previsto esse no artigo 340 do Código Penal: Art. 340 Provocar a ação de autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de crime ou de contravenção que sabe não se ter verificado.

À vista disso, faz-se perceber que no tipo penal supracitado a ação não envolve a imputação da ação a alguém com objetivo de instauração de processo ou investigação contra esse indivíduo, bastando que seja comunicado às autoridades um crime fictício, sem indicação de suposta autoria, ou até mesmo de autoria de pessoa inexistente, com o simples dolo de, por meio da inverdade, movimentar os órgãos do Estado na apuração de delito que não existe.

Insta ainda mencionar que tramita no Plenário o Projeto de Lei nº 3379/2019 de autoria do deputado Celso Sabino do PSDB/PA, o qual prevê aumento de pena para o crime de denunciação caluniosa quando a falsa imputação se tratar de crime sexual. Em sua justificativa o deputado discorre:

A existência das falsas acusações de estupro não é um fato novo, esse desserviço que coloca em risco as verdadeiras vítimas de crimes contra a dignidade sexual, já é narrado em diversas histórias antigas.

A falsa acusação de crimes sexuais consiste em ato ilícito com repercussões tanto na esfera cível quanto na penal. A perniciosa atitude de quem se passa por vítima desses crimes, muitas vezes hediondos, não se limita ao dever de indenizar, contra ela havendo também respostas do legislador criminal.

E prossegue afirmando mais adiante:

Procede com o dolo, ou seja, a vontade pura e consciente de mover o aparato estatal por meio da atividade policial ou judicial. O dissimulado faz chegar ao conhecimento da autoridade competente o ocorrido, sabendo do seu caráter calunioso. Ocorre que, nos últimos anos parece surgir uma verdadeira indústria de falsas acusações de estupro. A impunidade da denunciação caluniosa permite que pessoas esculpidas de má fé, continuem dia após dia, parceiro após parceiro, a praticar esse ato criminoso.

Para o professor de direito penal e processual penal e delegado de polícia civil, Jefferson Botelho Ninguém pode acionar a máquina judiciária para distribuir injustiças e semear discórdias, levando em conta que o agente passivo da ação penal é inocente:

Pessoas que praticam esse crime (339, CP), além de revelar um perigoso narcisismo, zombam, ridicularizam e desrespeitam as leis, assim como transformam o princípio regente do processo penal in dubio pro reo em mero acessório. Falsas acusações de estupro não são casos isolados, e tampouco merecem a aplicação do princípio da bagatela, pois a lesividade não é mínima e seus prejuízos e danos envolvem muitas vidas. (SABINO, Celso, Justificativa PL 3.379/19).

O Projeto de Lei nº 3.369/19 de autoria do deputado Carlos Jordy do PSL/RJ conta com mesma matéria, e foi apelidada de Neymar da Penha, vez que o jogador em questão fora vítima do crime no ano de 2019, tendo sido acusado de estupro pela então modelo Najila Trindade. O processo em questão fora arquivado por falta de provas.

5.2 Consumação e tentativa

A denunciação caluniosa consuma-se no momento e no local em que é iniciada a investigação policial ou o processo judicial. Por tratar-se de crime material que admite a tentativa, quando o agente ativo comunica o fato a autoridade e esse não instaura procedimento persecutório por ter sido demonstrada a inocência do acusado, reconhece-se a possibilidade da tentativa.

Apesar de necessitar apenas da instauração de inquérito policial, procedimento investigatório criminal, inquérito civil, processo judicial ou processo administrativo disciplinar para que o delito esteja consumado, o mesmo não conta com a constatação imediata, vez que os elementos probatórios somente serão elucidados com o devido andamento de cada um dos procedimentos acima mencionados.

Contudo, trata-se de investigação policial, onde os procedimentos adotados pelas autoridades competentes, terão finalidade de esclarecer a autoria e a materialidade delitiva. Ainda segundo Hungria (1959), tão somente uma investigação preliminar bastaria para o reconhecimento do crime de denunciação caluniosa, ainda que não reste produzida através das formalidades do inquérito policial.

Maluly (2006) discorre sobre o tema A exigência do encerramento da investigação policial ou do processo judicial provocados pelo agente é um dos temas mais importantes que a doutrina questiona para o reconhecimento da denunciação caluniosa. Pois possui objetivo de evitar sentenças contraditórias, desta forma, se o denunciante efetivamente provar na ação penal em que responde pela denunciação caluniosa do crime de estupro que o réu praticou de fato o crime, logo o processo em que o denunciante figura como denunciado estaria prejudicado.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto acima, verifica-se que a palavra da vítima como único elemento probatório no crime de estupro pode ocasionar insegurança jurídica e a violação de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Ante a inobservância dos princípios do in dubio pro reo e do contraditório e ampla defesa.

Ademais, tratando-se da prescrição, é certo que a adição do crime de estupro no rol dos crimes imprescritíveis, conforme proposta do projeto de lei já mencionada, poderá gerar a longo prazo a possibilidade de acusações sem a existência de provas efetivas, ocorrendo conforme já mencionado a perecividade das provas neste tipo penal, levando, mais uma vez, a insegurança jurídica.

Outrossim, frente às denunciações caluniosas no crime de estupro, realça-se mais uma vez a importância de provas concretas e não somente testemunhais, vez que se faz movimentar a máquina pública, em investigações e procedimentos acerca de crime inexistente, sendo esta uma verdadeira afronta à administração judiciária, devendo ser severamente punida e reprimida, fazendo valer da função social da pena.

REFERÊNCIAS

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