A liberdade contratual e as quebras de contratos de créditos na pandemia

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RESUMO

O artigo objetiva promover a reflexão da liberdade contratual como instrumento emancipador nas relações privadas e seus efeitos no comportamento racional das partes do contrato, especificamente, a proposta de alteração dos contratos de créditos pelos Poderes Judiciário e Legislativo para alterar face à pandemia do COVID-19. Para o percurso teórico, tomou-se como suporte a Análise Econômica do Direito (AED), com reflexões sobre falhas de governo.

PALAVRAS-CHAVES: Liberdade; Contrato; Análise Econômica; Desenvolvimento; Falha de Governo; Crédito.

INTRODUÇÃO

Refletir sobre a liberdade contratual a partir do desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos possibilita o deslocamento de conceitos estritamente políticos ou jurídicos, para uma dimensão de maior robustez, agregando aspectos econômicos, culturais e sociais. Criando, dessa forma, um ambiente multidisciplinar das atividades humanas.

Nessa linha, nas contratações de serviços, por exemplo, devem garantir direitos contratuais tanto do consumidor quanto do prestador de serviços, uma vez que os contratos refletem a vontade das partes na liberdade da contratação, principalmente em se tratando de vontades bilaterais. O trato faz lei entre as partes. As cláusulas contratuais refletem a vontade das partes quanto aos direitos, deveres e obrigações.

No âmbito do Poder Legislativo, com o intuito de suspender os pagamentos das parcelas de várias linhas de créditos durante o período da emergência pública, em 2020 foram apresentadas na Câmara dos Deputados 82 proposições e 34 no Senado Federal. A pesquisa foi filtrada com Projetos de Lei (PL) e Projetos de Lei Complementar (PLP), nos sites oficiais dos órgãos.

Nessa linha de pensamento, trazemos a lume a primeira decisão judicial na Ação Popular (AP) nº 1022484-11.2020.4.01.3400 contra o Banco Central do Brasil (BCB), a qual foi deferida tutela provisória de emergência para que, dentre os pedidos requeridos, seja prorrogada as parcelas dos créditos consignados aos aposentados, por quatro meses, sem adição de encargos de qualquer natureza, impondo, portanto, uma alteração contratual compulsória, que traz insegurança jurídica às partes contratantes.

A par dessas considerações, a compreensão das relações contratuais sob a percepção e funcionamento da liberdade de contratar é um elemento que se relaciona diretamente com o comportamento racional dos agentes envolvidos, tomar-se-á como como suporte teórico a Análise Econômica do Direito que possibilitará a reflexão sobre o direito contratual, o Código Civil de 2002, o Princípio da Liberdade de contratar e a imprevisibilidade contratual.

LAW AND ECONOMICS E SEU LUGAR NA ANÁLISE DO DIREITO: UMA COMPREENSÃO NECESSÁRIA

A partir das considerações iniciais sobre o tema, a epistemologia jurídica a ser utilizada como suporte para o desenvolvimento da presente reflexão será o law and economics podendo esta ser entendida como um método que promove o estudo e a análise da teoria econômica concernente à estruturação, impacto e consequências comportamentais referente à aplicação de institutos jurídicos ou textos normativos, ou ainda, nas palavras de Caliendo (2009, p. 15) sob outra perspectiva, a análise econômica do Direito

[...] pretende não apenas descrever o Direito com conceitos econômicos, mas, encontrar elementos econômicos que participam da regra de formação da teoria jurídica. Desse modo os fundamentos da eficácia jurídica e mesmo o de validade do sistema jurídico deveriam ser analisadas tomando em consideração valores econômicos.

Para tanto, a fim de se valer dessa relação, necessário pensar que a análise econômica deve considerar o ambiente normativo no qual os agentes e o direito atuam ao estabelecer as normas e regras de conduta que modelam a relação entre pessoas devendo levar em conta os impactos econômicos que dela derivarão além de considerar ainda os efeitos sobre

[...] distribuição ou alocação dos recursos e os incentivos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos privados. Assim o direito influencia e é influenciado pela Economia, e as organizações influenciam e são influenciados pelo ambiente institucional. A análise normativa encontra a análise positiva, com reflexos relevantes na metodologia de pesquisa nessa interface (ZYLBERSZTAJN, 2005, p. 30).

Sendo assim, o sistema de referência do Law and Economics trata da [...]racionalidade econômica do direito, uma visão dos acontecimentos em mundos ideais (VITA, 2011, p. 52), se apresentando como um método de pesquisa sobre o comportamento humano, um conjunto de instrumentos analíticos, ou seja, objeto da moderna ciência econômica que abrange toda forma de comportamento humano que requer a tomada de decisão. Além de possibilitar a identificação de possíveis falhas de mercado e de governo.

Seguindo nessa direção, Caliendo (2009, p. 15) assevera que o direito pode, sim, ser observado por uma perspectiva normativa tendo em vista o fato de que qualquer descrição sempre vai partir de postulados que se norteiam por valores e juízos de valor de forma que quando se analisa [...] determinada instituição econômica a própria definição do que venha a ser eficiente leva em consideração juízos de valor.

Tem-se, então, que a análise econômica do direito é em última análise

[...] a aplicação do instrumental analítico e empírico da economia, em especial da microeconomia e da economia do bem-estar social, para se tentar compreender, explicar e prever as implicações fáticas do ordenamento jurídico, bem como da lógica (racionalidade) do próprio ordenamento jurídico. Em outras palavras, a AED é a utilização da abordagem econômica para tentar compreender o direito no mundo e o mundo no direito (GICO, 2010, p. 12).

Dessa forma, refletir sobre a liberdade de contratar se torna perfeitamente possível dentro da perspectiva da análise econômica do direito, pois, no ambiente normativo do direito contratual cujos agentes econômicos (partes) atuam, há comportamento racional em busca de emancipação das vontades com o fito de realizar transação cujos efeitos ressoarão para toda uma coletividade.

A LIBERDADE CONTRATUAL E SUA RELAÇÃO COM DESENVOLVIMENTO

O desenvolvimento pode e deve ser compreendido como um mobilizador de mudanças e de transformação das sociedades e dos indivíduos.

A liberdade como promotora dos direitos fundamentais, não está dissociada de ser aplicada na esfera negocial, econômica e racional, pois, ao se conceber a liberdade de contratar como princípio contratual há também efeitos de ordem emancipadora entre as partes e a relação destas com terceiros e coletividade que receberão os reflexos do imbricamento negocial, funcionando como mecanismo de incentivos para as partes e de geração de cooperação social (TIMM, 2019).

Para o autor, o primeiro princípio e principal pilar que rege o contrato é o da liberdade de contratar que implica outros elementares princípios que ressoam no direito contratual, a exemplo do pacta sunt servanda em que os contratos devem ser cumpridos sob pena de execução forçada, também a autonomia da vontade, onde cada parte escolhe como e quando irá se obrigar, e, ainda, os efeitos relativos dos contratos, que determina que o contrato cria obrigações tão somente para aqueles que com o instrumento concordarem, evitando que as partes criem externalidades propositais e prejudiquem terceiros e, por fim, a liberdade da forma que, no silêncio da lei, permite a elaboração e a celebração de qualquer contrato em forma livre conforme previsão do art. 107 do Código Civil (TIMM, 2019).

Francisco Amaral (2000 p. 112), ensina que a autonomia privada, resultante do grande princípio da liberdade de contratar, traduz o poder diretamente ligado ao direito de propriedade, dentro do sistema do mercado de circulação de bens por meio da troca, onde o instrumento jurídico próprio é o negócio jurídico.

Nessa mesma direção Timm (2019, p. 163) assevera que o princípio da liberdade de contratar explica porque a maioria das regras de direito contratual devem ser tidas como supletivas à vontade das partes (default rules) sempre permitindo que possam afastar o regramento padrão da lei ou da jurisprudência.

Ademais, segundo Timm (2008, p. 73) não há como se pensar no todo social, em uma relação contratual, sem descurar do ambiente em que é celebrado que é indubitavelmente o mercado, ou seja, a análise não pode ter como foco tão somente a relação em si, por ser esta bilateral, mas, deve considerar a sociedade, a coletividade que sempre estará representada nos participantes diretos e indiretos, pois, integram o que o autor denomina de mercado, pois é esta a instituição que melhor responde ao dilema de lidar com as necessidades ilimitadas diante de recursos escassos.

Portanto, a liberdade enquanto princípio promove o deslocamento da relação meramente bilateral para promover resultados na esfera da coletividade, pois, ao contratar, as partes devem se ater à obrigação de cumprir o contrato sob pena de a máquina do sistema de justiça ser movido para atender aos reclames da inexecução contratual (pacta sunt servanda) ou, ainda, celebrar o contrato considerando a autonomia da vontade das partes, implicando na ideia de que as partes devem estar livres para buscar o que é melhor para si já que o mote final do contrato é a criação de riquezas.

O comportamento na relação contratual é racional e, por ser racional, tem papel fundamental na economia moderna conforme afirma Sen (1999, p. 31) e, portanto, a busca de fazer todo o possível para obter o que gostaríamos, pode ser parte da racionalidade.

A liberdade de contratar resgata essa noção de racionalidade, pois, as partes ao contratarem têm liberdade de exercer a contratação e, a liberdade tem fundamento na racionalidade do comportamento que busca como motivação final o alcance dos benefícios e resultados positivos a partir do enlace negocial que, consequentemente, reverbera no mercado, este compreendido como espaço de interação social e coletiva (TIMM, 2008), de modo que o mercado, no entendimento do autor, não está separado da sociedade, mas, é parte integrante dela, pois não se pode olvidar que existem interesses coletivos porá trás das relações contratuais (2008, p. 78).

Ademais, da mesma forma que a liberdade econômica é enquadrada como uma das causas do desenvolvimento, seja ele o econômico ou o humano, haja vista que é a própria liberdade de atuação que impulsiona a criação e circulação de riquezas (PONTES, 2014, p. 42), pode-se conceber que a liberdade contratual, sob o espeque da racionalidade, também é um fator que contribui para o desenvolvimento tendo em vista que ela possibilita que a transação ocorra sob a perspectiva e expectativas dos agentes econômicos partes do contrato a fim de que sejam alcançadas e, consequentemente, interagindo-se com o mercado que, como dito outrora, é considerado como um espaço de interação social e coletiva.

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E, não longe, tal análise está do clássico entendimento de Pontes de Miranda (1972) ao alertar que não há autonomia absoluta ou ilimitada da vontade e que esta tem sempre limites, pois, os limites que se constata através de uma análise econômica do princípio da liberdade de contratar é justamente a relação e efeitos do comportamento racional dentro e a partir da coletividade também compreendida como mercado.

Essa perspectiva é possível quando o suporte teórico da Análise Econômica do Direito traz como fundamento a segurança e previsibilidade ao ordenamento jurídico, pois, da mesma maneira que os mercados, para serem dotados de um funcionamento adequado necessitam desses postulados, a AED tenta afretar maximização, equilíbrio e eficiência as relações jurídicas (MONTEIRO, 2006, p. 36).

E é no equilíbrio, eficiência das relações jurídicas que os agentes econômicos podem ponderar custos e benefícios na hora de decidir, sendo que uma alteração na estrutura de incentivos poderá levar a adotar outra conduta/escolha (GICO, 2011), ou seja, adoção do comportamento racional pelas partes que resultará, em última análise e, segundo o Teorema de Coase, em soluções socialmente eficientes (TIMM, 2019).

ESTUDO DE CASO A INTERFERÊNCIA DO ESTADO NOS CONTRATOS DE CRÉDITO

Na tentativa de amenizar os efeitos da pandemia sobre o orçamento dos brasileiros foram apresentadas 116 proposições legislativas em 2020 para suspender, exclusivamente, o pagamento de consignados, de crédito imobiliário, financiamento de veículo, crédito agrário e suspensão das execuções judiciais, a fim de que os valores das parcelas fossem usados em despesas de maior essencialidade durante a calamidade pública, em resumo. Não bastasse, foram ajuizadas várias medidas judiciais com o idêntico fim, causando, portanto, uma instabilidade para o mercado financeiro.

Para ilustrar o problema da interferência indevida nos contratos privados, especialmente os referentes a concessão de empréstimos foram escolhidos o PL 1328/2020[4], de autoria do Senador Otto Alencar (PSD-BA), o qual foi aprovado no Senado Federal e está aguardando constituição de Comissão Especial na Câmara dos Deputados, além de possuir mais de trinta Projetos apensados, e, a Ação Popular nº 1022484-11.2020.4.01.3400

Começando pela análise do PL 1328/2020 que tem por escopo:

Suspende, durante 120 (cento e vinte) dias, os pagamentos das obrigações de operações de créditos consignados em remunerações, salários, proventos, pensões e benefícios previdenciários, de servidores e empregados, públicos e privados, ativos e inativos, bem como de pensionistas.

A justificativa para o referido projeto de lei é muito vaga, mas afirma que há uma (...) realidade macroeconômica deprimida (...) é que se faz necessário o esforço de todos os setores. Nesse caso, o PL parte da premissa de que as instituições financeiras lucraram 19% em 2019, então, pode dar a sua contribuição com a suspensão dos recebimentos dos empréstimos consignados por 120 dias.

Não fica claro qual é o objetivo, mas, pela justificativa, o PL entende que essa suspensão poderá amenizar a crise econômica com (...) uma ação de grande alcance social (...) e não comprometerá a solidez do sistema financeiro.

Com efeito, a pandemia da Covid-19 ainda exige grande desafio para enfrentar as consequências econômicas. As opções à proposta as políticas públicas adotadas pelo executivo bem como a própria dinâmica do mercado.

A suspensão indiscriminada de pagamento dos consignados vai de encontro ao art. 192 da Constituição Federal[5], bem como ao art. 1º, IV, da CF[6] pois há uma intervenção indevida na livre iniciativa com grande possibilidade de comprometimento da solidez do SFN. Ademais, não foi identificado qualquer estudo referente ao impacto de aprovação da referida, o que viola, de plano o disposto no art. 5º da Lei nº 13874/2019[7].

Para melhor entender os riscos econômicos e jurídicos, destaca-se a importância da análise do risco do inadimplemento para o funcionamento do Sistema Financeiro Nacional, com destaque para as medidas tomadas pelo Banco Central que visavam a dar maior liquidez ao Sistema Financeiro Nacional e facilitar o acesso ao crédito ao cidadão sem comprometer a robustez do Sistema Financeiro Nacional[8].

De fato, ao conceder um empréstimo, a instituição financeira deve fazer um cálculo para saber qual a taxa a ser cobrada[9] e um dos fatores que mais interfere é o risco da inadimplência.

Fonte: Banco Central do Brasil[10]

Ou seja, é justificado para os contratos da instituição financeira que quanto maior o risco de que o consumidor não pague, maior a taxa de juros a ser cobrada.

Não bastasse, de acordo com a Resolução BCB nº 2682 de 21 de dezembro de 1999, nos artigos 1º e 2º[11] diz que as instituições financeiras devem classificar as suas operações de crédito de acordo com o risco de inadimplemento e a qualificação do devedor tem um importante peso nessa análise, como exemplos, deve-se observar a situação econômico-financeira, o grau de endividamento e a pontualidade e atrasos nos pagamentos.

Ao determinar a suspensão do pagamento simplesmente, toda essa análise que é necessária para a concessão do crédito torna-se inócua. Para tratar especificamente do problema do crédito consignado, esses é tido como uma das menores taxas de linhas de crédito porque o risco de que a instituição financeira não receba, diminui consideravelmente.

O que o PL 1328/2020 propõe é o não pagamento dos créditos que têm recebimento quase certo. Com isso, as instituições financeiras não terão fôlego para renegociar os contratos que efetivamente necessitariam de reanálise e que provavelmente não serão quitados. Toda a análise de risco de crédito e provisionamento do setor bancário é afetado, comprometendo a solidez do Sistema Financeiro Nacional.

Uma medida que dá benesses a quem tem direito ao consignado, prejudica todos os outros que dispõe de linhas de crédito mais caras para honrar seus compromissos. Beneficia uma categoria que não teve seus rendimentos comprometidos e prejudica a todos, Essa sistemática foi bem analisada por Amanda Flávio e Fernando Meneguin no artigo intitulado Moratória e serviços essenciais: medida bem-intencionada com efeitos indesejáveis[12]:

Admitindo o fato de que as pessoas respondem a incentivos, ou seja, tomam suas decisões de forma estratégica, é inevitável perceber que o mecanismo criado por uma moratória legalizada e generalizada gera incentivos para que os agentes procurem se beneficiar disso, maximizando sua utilidade individual. Esse movimento acontece tanto de um lado, quanto de outro das partes de um contrato.

A instituição de uma moratória nos contratos, preliminarmente destinada a ajudar o consumidor individual, se universalizada e legitimada, irá prejudicá-lo no agregado.

Esse prejuízo manifestar-se-á, por exemplo, na quebra generalizada dos vínculos contratuais, ou no aumento de preço para aqueles que não aderirem à moratória, a ponto de torná-lo proibitivo.

A saída encontrada foi cada instituição financeira analisar os seus contratos e entender, caso a caso, em quais a renegociação era necessária. Não bastasse, as próprias instituições financeiras conseguiram fazer a análise de suas carteiras e suspender a cobrança de alguns pagamentos bem como estenderam os prazos para negativação do nome de seus clientes. O resultado foi a diminuição da inadimplência, como se nota no gráfico[13] abaixo:

De outro lado, o governo brasileiro tomou uma série de medidas com vistas a amenizar os efeitos da pandemia. A representação gráfica demonstra uma parte destas[14]:

Especificamente quanto ao Banco Central, a ideia foi aumentar a liquidez do Sistema Financeiro Nacional e aumentar o acesso ao crédito e assim viabilizou o estudo por parte das instituições financeiras de eventuais prorrogações necessárias[15]:

Estudo feito pelo Banco Central demonstrou que a maior parte das novas contratações do período foram para grandes empresas[16], mas o maior número de repactuação referiu-se a pessoas físicas[17]:

Repactuações

Novas contratações

Como visto, a regulação afeta ao setor bem como a dinâmica do mercado bancário permitiram uma melhor resposta à pandemia do que simplesmente suspender o pagamento.

O que o projeto de lei faz é transformar um contrato de adimplemento quase certo em um contrato que vai ter seu cumprimento comprometido, o que desestrutura todo o provisionamento feito pelas instituições financeiras.

Por causa da pandemia muitos correntistas não conseguiram e não vão conseguir honrar seus compromissos financeiros porque tiveram seus recebimentos afetados. E as instituições financeiras sofreram o impacto da inadimplência. O cenário que o PL 1328/2020 proporciona é intensificar o impacto da inadimplência em uma classe, servidores públicos, aposentados e pensionistas, que não teve comprometimento dos seus recebimentos.

Todo o planejamento de risco de crédito das instituições financeiras seria ignorado e não haveria fôlego para auxiliar os que mais necessitavam de repactuação de seus contratos. A solidez do SFN estaria colocada em xeque.

Não há dúvidas de que despesas extraordinárias foram realizadas por todos. Mas a solução de renegociação caso a caso se mostrou mais acertada.

Tamanho o clamor social pela suspensão dos pagamentos, foram também ajuizadas ações com a mesma finalidade. Cumpre destacar a Ação Popular (AP) nº 1022484-11.2020.4.01.3400. Trata-se de ação ajuizada em face do Conselho Monetário Nacional, Banco Central do Brasil e Roberto Campos Neto com o objetivo, dentre outros, de vincular algumas das Resoluções do Banco Central[18] editadas com o fim de promover a maior liquidez do SFN à suspensão do pagamento dos consignados dos aposentados por quatro meses.

A liminar foi deferida nos seguintes termos:

A liminar gerou uma forte comoção, sendo noticiada ostensivamente até a sua reforma em sede de Agravo de Instrumento interposto pela União[19] em que o TRF 1 afirma textualmente que política pública para enfrentamento da pandemia não é da alçada do poder judiciário, entendimento reiterado na sentença.

Sob a ótica da AED resta identificada uma das ferramentas desta análise: falha de governo, são intervenções do Estado que agravam mais os problemas da situação que se pretendeu resolver. Nesta situação, o juiz não levou em consideração as ações em andamento do Banco Central ferindo frontalmente o princípio da separação dos poderes. Ademais, essa decisão inicial não está baseada em estudos técnicos, apenas no relato de um indivíduo, inclusive, os ensinamentos para que haja a intervenção do Estado é que o benefício da ação ou da política pública deve estar baseada em resultado para o coletivo e não na intenção ou no individual, apenas.

As proposições apresentadas nas Casas do Congresso Nacional para suspender as parcelas de créditos com base na emergência pública são de alcance indistinto, incluindo aqueles que não tiveram prejuízos salariais ou em seus rendimentos, tal como o caso da Ação Popular. Inclusive, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) prevê a possibilidade de revisão dos contratos em caso de fato superveniente não previsto pelas partes quando da conclusão do contrato.

Providências arbitrárias como essas terão como resultado prático a diminuição da oferta do produto financeiro e o aumento de juros, dado que o aumento da inadimplência será fator determinante para a retração do crédito. Ademais as linhas de crédito são muito importantes para a população, para a atividade econômica e para a manutenção de postos de trabalho.

Impende ressaltar que a liberdade contratual, como solução de mercado, iniciativas tomadas pelas principais instituições financeiras do País que, espontaneamente e certamente sensíveis à nossa realidade, promoveram não apenas a suspensão de pagamentos por prazo de 60 dias, mas também assegurando aos devedores o direito de promover renegociações visando beneficiá-los quando da retomada dos pagamentos.

CONCLUSÃO

A reflexão desenvolvida através deste ensaio trouxe como discussão a temática da liberdade de contratar e sua relação com o desenvolvimento. Entretanto, para que fosse possível tal enfrentamento, necessário foi compreender como a noção de liberdade se apresenta em um nível muito maior de complexidade de cunho social e como reflete diretamente na promoção de direitos e garantias individuais.

Portanto, após deslocar a noção de liberdade de um campo mais vasto, complexo e de cunho social para a ambiência mais específica do direito contratual sob o suporte teórico da Análise Econômica do Direito, foi possível compreender de forma mais retilínea que o princípio da liberdade de contratar relaciona-se diretamente com o comportamento racional em busca de emancipação das vontades que resultarão em transações cujos efeitos, em última análise, ressoarão para toda uma coletividade, o comércio.

Por todo o exposto, há de se considerar que, para além da crise econômica natural devido o momento de calamidade pública instalada no país, uma decisão judicial no campo econômico-financeiro e de mercado é extremamente crítica por ampliar a instabilidade, a desconfiança e insegurança no mercado financeiro e no sistema financeiro, além do aumento do risco de crédito.

De mais a mais, na composição do spread bancário a Inadimplência é a maior parte do valor, isso quer dizer que tais intervenções do Estado pode encarecer ainda mais o crédito no Brasil, fazendo que aconteça efeitos contrários ao pretendido incialmente.

Porém, não foram consideradas as providências que as instituições financeiras, por iniciativas próprias e de acordo com suas projeções, tomaram para proteger os contratos firmados e amenizar o sofrimento financeiro que seus clientes possivelmente estariam vivendo (soluções de mercado). Dessa forma, em mais um aspecto, por meio do Poder Legislativo, o Estado desrespeitou o liberalismo econômico e a liberdade contratual.

O Poder Judiciário, não pode desprezar os efeitos externos que as decisões podem resultar, decisões não sistemáticas. Atualmente, nota-se muitas decisões baseadas em pretensas justiças social indo de encontro com às normas consolidadas, tais como: CDC, Código Civil e a própria Constituição Federal, restando claro rompimento com o princípio da liberdade de contratar, da autorregulação do mercado e outros princípios balizadores do direito. Outrossim, produzindo mais inseguranças jurídicas e contribuindo para a instabilidade dos sistemas de crédito.

No caso das iniciativas dos congressistas, apesar de terem a liberdade de propor leis para atender seus eleitorados, não podem agir de maneira irresponsável sem antes compreender as regras vigentes e os impactos no mercado financeiro. Como visto nas argumentações, o contrato é o resultado da combinação do interesse de uma pessoa por um serviço ou coisa com o serviço ou coisa oferecida por outra pessoa. O contrato é baseado em leis consolidadas, não cabendo, portanto, a interferência justiceira de terceiros.

Em que pese a discussão ter sido mais acirrada no início da pandemia, infelizmente, não estamos imunes a um recrudescimento. É preciso estar vigilante para que inciativas governamentais supostamente bem-intencionadas não tragam um prejuízo ainda maior.

REFERÊNCIAS

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GICO Jr, Ivo T. Metodologia e Epistemologia da Análise Econômica do Direito. Economic Analysis of Law Review, V. 1, nº 1, p. 7-32, Jan-Jun, 2010;

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TIMM, Luciano Benetti. O novo direito civil: ensaios sobre o mercado, a reprivatização do direito civil e a privatização do direito público. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

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____________ Sobre Ética e Economia. Trad. Laura Teixeira Motta. 1ª Ed. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

VITA, Jonathan Barros. Teoria geral do direito: direito internacional e direito tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2011.

ZYLBERSZTAJN, Decio. Sztajn, Rachel. Análise econômica do direito e das organizações. Erio de Janeiro. Elservier. 2005. 6 ed.

  1. .....

  2. .....

  3. .....

  4. https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2259210

  5. Art. 192 da Constituição Federal - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.

  6. Art. 1º, IV, da Constituição Federal - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; 

  7. Art. 5º da Lei nº 13874/2019 - As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico. 

  8. O spread bancário é definido pelo Banco Central do Brasil (BCB) como a diferença em pontos percentuais entre a taxa de juros pactuada nos empréstimos e financiamentos (taxa de aplicação) e a taxa de captação.3 Em outras palavras, é a diferença entre a taxa de juros paga pelo consumidor e a taxa de captação dos recursos pelas instituições financeiras.

    O spread bancário é composto por quatro fatores: (i) inadimplência; (ii) despesas administrativas; (iii) tributos e FGC e (iv) margem financeira do indicador de custo de crédito, ou seja, o lucro da instituição financeira.

  9. Relatório de economia bancária 2020 p. 83

  10. Art. 1º Determinar que as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil devem classificar as operações de crédito, em ordem crescente de risco, (...);

    Art. 2º A classificação da operação no nível de risco correspondente é de responsabilidade da instituição detentora do crédito e deve ser efetuada com base em critérios consistentes e verificáveis, amparada por informações internas e externas, contemplando, pelo menos, os seguintes aspectos: I - em relação ao devedor e seus garantidores: a) situação econômico-financeira; b) grau de endividamento; c) capacidade de geração de resultados; d) fluxo de caixa; e) administração e qualidade de controles; f) pontualidade e atrasos nos pagamentos; g) contingências;

    h) setor de atividade econômica; i) limite de crédito;

  11. OLIVEIRA, Amanda Flávio de; e MENEGUIN, Fernando. Moratória e serviços essenciais: medida bem-intencionada com efeitos indesejáveis. Publicado em Jota Info em 16.4.2020. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/moratoria-e-servicos-essenciais-medida-bem-intencionada-com-efeitos-indesejaveis-16042020.

  12. https://www3.bcb.gov.br/sgspub/consultarvalores/consultarValoresSeries.do?method=consultarGrafico

  13. Fonte: https://www.bcb.gov.br/conteudo/home-ptbr/TextosApresentacoes/Apresentacao_RCN_TCU_17.8.20.pdf consultado em 7.12.2021.

  14. Nesse sentido, vale novamente destacar os ensinamentos de Oliveira e Meneguim que destacaram no artigo já mencionado: Nesse cenário, o papel mais seguro a ser desempenhado pelo Estado deve ser o de facilitar e fomentar a negociação privada, inclusive criando meios para esse fim. As revisões unilaterais dos contratos, impostas pelo Poder Público e universalizadas, tendem a prejudicar a todos. Deve-se dar preferência à diminuição dos custos de se efetivar negociações, ou, em linguajar econômico, à diminuição dos custos de transação, conforme ensina o Professor Ronald Coase, também ganhador de um prêmio Nobel de Economia[2] (Coase, 1988).

    Se houver a necessidade de intervenção do Estado por conta de uma falha de mercado, como é o caso de hipossuficiência específica de uma das partes na negociação, que ela seja realizada setor a setor, por meio dos entes reguladores que detêm a expertise necessária relacionada ao mercado em questão, e com foco nas pessoas que realmente precisam ser assistidas. Essa é a melhor forma de se atuar minimizando efeitos adversos.

  15. o Banco Central no início da pandemia promoveu ações para acesso ao crédito para micro e pequenas empresas, mas ao invés disso o crédito foi em sua maior parte para empresas de grande porte que tinham mais acesso a informações e condições de liquidez, ao que foi atribuído pelo presidente do BC de fenômeno álcool gel Fonte: https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/04/03/bc-ve-cenario altamente-recessivo.ghtml consultado em 7.12.2021

  16. https://www.bcb.gov.br/conteudo/homeptbr/TextosApresentacoes/Apresentacao_RCN_TCU_17.8.20.pdf consultado em 7.12.2021.

  17. Resoluções do Banco Central nº 4782 e 4783 ambas de 2021.

  18. Agravo de instrumento nº AI 1011434-03.2020.4.01.0000

Sobre as autoras
Adriane Ap. Barbosa do Nascimento

Advogada, mestranda em Economia, no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)

Juliana Kirmse M. B. Brito

Relações Institucionais e Governamentais, bacharela em Direito, mestranda em Economia, no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Natália Alves Duarte Barbosa

Procuradora do Banco Central, mestranda em Economia, no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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