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Exame qualificador de escritura pública de cessão de direitos de ocupação de terreno de marinha apresentada para registro perante o Registro Geral de Imóveis

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Não obstante sejam irregulares os atos praticados no passado, os direitos de ocupação já lançados no Livro 2 da Lei Federal nº 6.015/73 devem ser mantidos por força da regra do art. 252 da mesma lei, o qual dispõe que enquanto não cancelado, o registro produz todos os efeitos legais

PARECER:

Exame qualificador de escritura pública de cessão de direitos de ocupação de terreno de marinha apresentada para registro perante o registro geral de imóveis

Resumo

: Solução de questão prática em registro de imóveis, envolvendo o exame de qualificação registral de uma escritura pública de cessão de direitos de ocupação de terreno de marinha apresentada para registro junto ao Livro n. 2 do Cartório de Imóveis.

Considere a seguinte hipótese: 4 lotes de terreno de marinha (direito de ocupação). Dos 4 lotes, 3 deles possuem matrícula junto ao Livro 2, e um deles não, constando ainda registrado junto ao antigo Livro 4. Os 4 terrenos são contíguos, formando juntos uma área retangular, sobre a qual foi edificado um prédio de 10 andares. Pretende-se a unificação dos 4 lotes, e posteriormente pretende-se proceder o registro do instrumento de instituição e especificação de condomínio, nos moldes da Lei 4.591/64, razão pela qual foi postulado o registro da escritura pública de cessão de direitos de ocupação relativamente ao 4º lote, para fins de que este seja matriculado junto ao Livro 2. Constata-se que muitos outros terrenos de marinha em regime de ocupação encontram-se matriculados na serventia. Pergunta-se: A escritura pública de cessão de direitos de ocupação apresentada pode ser registrada? Podem ser praticados atos de registro nas matrículas abertas para os terrenos de marinha em regime de ocupação? Se você fosse o oficial de registro de imóveis, qual solução apresentaria ao caso? Por quê?

Apresentarei a seguir, após brevemente discorrer sobre o instituto jurídico em enfoque, a solução que pessoalmente reputo mais adequada para o caso. Como qualquer parecer, será também este aqui passível de críticas e opiniões em contrário, as quais desejo conhecer para poder avançar cada vez mais no tema.


1.DELIMITAÇÃO DO OBJETO EM ESTUDO:

Sabemos que a ocupação de terreno de marinha é exercida à título precário, não conferindo direito real ao ocupante. Terreno de marinha é bem que pertence à União e que recebe um tratamento todo diferenciado em legislação própria.

Quando falamos em terrenos de marinha, estamos falando de um instituto antigo, polêmico, criticado e que muitos desejariam que acabasse, mas não vamos aqui adentrar nessa questão, que é mais política do que propriamente jurídica.

Conforme o Decreto-lei 9.760, de 5-9-1946, os terrenos de marinha são aqueles localizados em uma faixa de terra com 33 metros de largura, contada a partir da linha da preamar média de 1831, adjacente ao mar, rios e lagoas, no continente ou em ilhas, desde que no local se observe o fenômeno das marés, com oscilação de pelo menos cinco centímetros:

Art. 2º - São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio de 1831:

a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;

b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se façam sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

A expressão medidos horizontalmente visa a evitar que nos locais onde haja aclives ou declives, a faixa dos terrenos de marinha, por efeito trigonométrico, ficasse reduzida a menos de 33 metros, se a medição se efetuasse segundo a inclinação da área. Para a razão de ser não mais ou não menos a largura de 33 metros, não encontramos até o momento nenhuma explicação satisfatória.

O Decreto-lei 9.760, de 5-9-1946, em seu art. 9º, atribuiu ao Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.), atualmente denominado de Secretaria do Patrimônio da União - permanece a sigla -, a tarefa de determinar a posição das linhas do preamar médio do ano de 1831; e em seu art. 10, preceituou que essa determinação deva ser realizada à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos ao ano de 1831, ou, quando não obtidos, por outros produzidos em data próxima àquele ano, veja:

Art. 9º É da competência do Serviço do Patrimônio da União (S.P.U.) a determinação da posição das linhas do preamar médio do ano de 1831 e da média das enchentes ordinárias.

Art. 10. A determinação será feita à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou, quando não obtidos, a época que do mesmo se aproxime.

Os procedimentos utilizados pela S.P.U. para a determinação da posição dos terrenos de marinha e seus acrescidos encontram-se detalhados na Orientação Normativa GEADE 002 de 12-3-2001, e para quem desejar se aprofundar no tema, encontra-se a norma Disponívelem: <http://homspu.serpro.gov.br/arquivos_down/spu/orientacao_normativa/ON_geade_002.PDF>. Acesso em: 12-8-2011.

Essa norma estabelece alguns critérios para a definição da linha de referência, tais como a utilização de dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da Diretoria de Hidrografia e Navegação do Comando da Marinha (que dispõe de um banco de dados oceanográficos), mapoteca do Itamarati, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, museus, Diretoria do Serviço Geográfico do Exército, empresas de aerolevantamentos, Biblioteca Nacional, bibliotecas regionais e locais, associações culturais, câmaras de vereadores, prefeituras, igrejas, cartórios, depoimentos de moradores e/ou pescadores antigos.

Sem pretender aqui avançar na discussão acerca da confiabilidade dos métodos oficialmente utilizados para a determinação da posição da linha do preamar médio do ano de 1831, previstos no art. 10, do Decreto-lei n. 9.760/46, e na Orientação Normativa anteriormente mencionada, indagamos se com o degelo das calotas polares, o gradativo aumento do nível do mar e as naturais transformações geomorfológicas da costa, não estaria essa linha imaginária hoje submersa em várias regiões do país? Podemos aqui trazer como exemplo o litoral da cidade de Marataízes/ES, que sem querer alarmar, estaria sendo parcialmente engolido pelo oceano. Seriam os documentos produzidos em 1831, ou em data próxima àquele ano, hoje, úteis para essa determinação?

Sob essa perspectiva, alguns estudiosos, como o engenheiro cartógrafo Obéde Pereira Lima, em sua Tese de Doutorado Localização geodésica da linha da preamar-média de 1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos, defendem ser hoje possível, em razão do desenvolvimento técnico e científico, determinar com uma maior precisão onde se encontra a linha (fonte: <http://sosterrenosdemarinha.org.br>. Acesso em 11-08-2011). 

A Tese de Doutorado do Prof. Obéde está Disponível em: <http://www.redimob.com.br/Biblioteca/Interna/10-06 10/Tese_de_doutorado.aspx>. Acesso em: 11-08-2011, sendo recomendada a sua leitura por parte daqueles que pretendem se aprofundar no tema.

Feitas as considerações retro, e retomando o nosso foco, cumpre-nos definir a natureza jurídica dos terrenos de marinha, que como informado, são bens da União, portanto, bens públicos. 

Os bens públicos podem ser classificados em: (1) bens públicos de uso comum do povo (ruas, rios, lagos, praias e praças, por exemplo); (2) bens públicos de uso especial (prédios onde a administração pública direta e/ou indireta encontra-se sediada, por exemplo); e, (3) bens públicos dominiais, também chamados dominicais (imóveis de propriedade das pessoas jurídicas de Direito Público, mas que não se destinam ao uso comum do povo e nem possuem uma destinação especial). No último caso, temos os terrenos de marinha como exemplo.

É preciso ter cuidado para não confundir praia (bem de uso comum do povo) com terreno de marinha (bem dominial da União). Nem todo terreno de marinha estará localizado na praia, e nem toda praia terá sua extensão limitada à faixa de marinha.

A Lei Federal n. 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, definiu em seu art. 10, § 3º, praia como sendo a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema, veja:

Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

§ 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.

§ 2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.

§ 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

As praias, portanto, tem dimensão variável, e o critério legal demarcador dos terrenos de marinha previsto no Decreto-lei n. 9.760/46, pode fazê-los ultrapassar a faixa da praia, bem como esta também pode ultrapassar a dos terrenos de marinha. Logo, praia e faixa de marinha podem não coincidir, pois os critérios legais para a determinação geográfica de uma e outra são distintos.

Um relevante ponto a considerar, ainda, é o de que dentre os bens da União, apesar de dominiais, os terrenos de marinha encontram expresso impedimento constitucional para a sua alienação plena, estando em sua origem relacionados à idéia de segurança da costa contra possíveis agressões estrangeiras.

Por força do disposto no art. 49, § 3º , do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CR/88, a enfiteuse deverá continuar a ser aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, que encontrem-se situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. Aplicar o regime da enfiteuse significa alienar apenas o domínio útil ou direito real de uso, jamais o domínio pleno.

A essa altura, cumpre-nos chamar a atenção também para a distinção entre os conceitos de faixa de marinha e faixa de segurança. A faixa dos terrenos de marinha, que é aquela que mede 33m a contar do preamar médio do ano de 1831, não pode ser confundida com aquela que podemos chamar de faixa de segurança da costa, ou faixa de segurança costeira, prevista no art. 100, "a", do Decreto-lei n. 9.760/46, e que mede 100m de largura ao longo da costa. 

Trata-se, portanto, de dois institutos jurídicos distintos, muito embora a localização e posição espacial de um possa em parte se sobrepor à do outro; e ainda que ambos, em suas origens históricas, tenham sido concebidos em razão da preocupação em se proteger o litoral contra prováveis invasões estrangeiras. Consistem, ou pelo menos consistiam por ocasião de sua criação, em áreas de interesse militar e estratégico.

Na faixa de 100m da costa, na faixa de fronteira - que é de 150km, conforme o art. 20,  § 2º , da CR/88, e art. 1º, da Lei Federal n. 6.634/79 -, e em um raio de 1.320m em torno das fortificações e estabelecimentos militares, o Decreto-lei n. 9.760/46 impõe como condição para a aplicação do regime de aforamento, a necessária e prévia audiência dos militares, senão vejamos:

Art. 100. A aplicação do regime de aforamento a terras da União, quando autorizada na forma deste Decreto-lei, compete ao S.P.U., sujeita, porém, a prévia audiência:

a) dos Ministérios da Guerra, por intermédio dos Comandos das Regiões Militares; da Marinha, por intermédio das Capitanias dos Portos; da Aeronáutica, por intermédio dos Comandos das Zonas Aéreas, quando se tratar de terrenos situados dentro da faixa de fronteiras, da faixa de 100 (cem) metros ao longo da costa marítima ou de uma circunferência de 1.320 (mil trezentos e vinte) metros de raio em tôrno das fortificações e estabelecimentos militares.

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Até aqui destacamos no que consistem os terrenos de marinha, sua natureza jurídica e qual é a forma estabelecida em lei para a sua demarcação. Cumpre-nos agora tratar do chamado direito de ocupação dos terrenos de marinha, colocando-o sob o enfoque dos registradores imobiliários no enfrentamento de questões surgidas com a prática registrária, sem perder de vista os ditames da Lei Federal n. 6.015/73, e os das leis que a antecederam e sucederam. 


2. DIREITO DE OCUPAÇÃO SOB O ENFOQUE REGISTRAL:

Sob o enfoque registral, iniciamos pela análise do Decreto-lei n. 1.561/77, que ao dispor sobre a ocupação dos terrenos da União e dar outras providências, foi bastante claro ao informar em seu art. 1º, § 1º, que a inscrição, ressalvados os casos de preferência ao aforamento, terá sempre caráter precário, não gerando para o ocupante quaisquer direitos sobre o terreno ou a indenização por benfeitorias, in verbis:

Art. 1º - É vedada a ocupação gratuita de terrenos da União, salvo quando autorizada em lei.

Art. 2º - O Serviço do Patrimônio da União promoverá o levantamento dos terrenos ocupados, para efeito de inscrição e cobrança de taxa de ocupação, de acordo com o disposto no Título II, Capítulo VI, do Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946, com as alterações deste Decreto-lei.

§ 1º - A inscrição, ressalvados os casos de preferência ao aforamento, terá sempre caráter precário, não gerando, para o ocupante, quaisquer direitos sobre o terreno ou a indenização por benfeitorias realizadas.

§ 2º - A inscrição será mantida enquanto não contrariar o interesse público, podendo a União proceder ao seu cancelamento em qualquer tempo e reintegrar-se na posse do terreno após o decurso do prazo de 90 (noventa) dias da notificação administrativa que para esse fim expedir, em cada caso.

Art. 3º - Nas ocupações que vierem a ocorrer posteriormente à vigência deste Decreto-lei, a taxa de ocupação será cobrada em dobro.

Art. 4º - (REVOGADO pela Lei 9.636/98)

Art. 5º - Fica revogado o § 3º do artigo 5º da Lei n. 4.947, de 6 abril de 1966, no que se refere aos terrenos de marinha.

Art. 6º - O presente Decreto-lei não se aplica aos terrenos rurais de domínio da União, sujeitos a planos de Reforma Agrária, nem altera o regime de ocupação das terras devolutas federais, estabelecidas em lei.

Art. 7º - Este Decreto-lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Nesse mesmo sentido, a Lei Federal n. 9.636, de 15 de maio de 1998, em seu art. 7º, reafirmando a precariedade do ato administrativo de inscrição de ocupação, dispõe ser ele resolúvel a qualquer tempo, in verbis:

Art. 7º - A inscrição de ocupação, a cargo da Secretaria do Patrimônio da União, é ato administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo, que pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante, nos termos do regulamento, outorgada pela administração depois de analisada a conveniência e oportunidade, e gera obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação.

O Fólio Real, via de regra é destinado ao registro dos direitos reais sobre imóveis. Não encontra o ato administrativo de inscrição de ocupação, exercido precariamente, qualquer previsão no rol do art. 167, da Lei Federal n. 6.015/73, não podendo, portanto, ser levado à registro.

Não consistindo em um direito real imobiliário, não é a ocupação de terreno de marinha um ato suscetível de registro, a teor do art. 172, da Lei Federal n. 6.015/73, que inserido no Capítulo II, ao tratar da escrituração, assim dispõe:

Art. 172. No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade.

Ao enfrentar o assunto, o professor Walter Ceneviva, em nota ao art. 167 da LRP, em sua conhecida obra "Lei dos Registros Públicos Comentada, 19ª edição, Saraiva, pág. 385", assim leciona, in verbis:

412. Mera ocupação não dá direito ao registro – A ocupação de um imóvel, não aforado, em faixa de marinha, não gera direito real, sendo insuscetível de registro. Estando, porém, sob o regime de aforamento, o ingresso do respectivo título no registro imobiliário é obrigatório. Decorria antes do art. 116 do Decreto-Lei n. 9.760/46. A Lei n. 9.636/98 dispôs sobre regularização, administração, aforamento e alienação de imóveis do domínio da União e deu outras providências. Seus arts. 6º a 10 tratam do cadastramento das ocupações, incidindo em vedação às previstas no art. 9º e permitindo o cancelamento de inscrições efetuadas (art. 10). Com a edição do Estatuto da Cidade a ocupação de imóvel urbano passou a ser causa de aquisição dominical com o usucapião especial coletivo, conforme se explica no n. 447.

Nessa mesma linha, é o entendimento da Prof. Maria Helena Diniz, que em sua inusitada obra Sistemas de Registros de Imóveis, 7ª edição, Saraiva, pág. 267, entre os atos insuscetíveis de registro, tal como os de cessão de direitos hereditários, promessa de permuta, opção de compra e outros, acaba por também incluir o direito de ocupação, in verbis:

Ocupação de terreno não aforado, em faixa de marinha, que, por não criar direito real, será insuscetível de registro (RT, 499:116), mas, se estiver sob o regime de aforamento, deverá ser registrada.

Assim como na doutrina (Ceneviva, Diniz et al.), parece também existir um consenso entre os registradores quanto à impossibilidade de registro das escrituras públicas de cessão de direitos de ocupação de terrenos de marinha junto aos registros de imóveis. Então, para prosseguirmos com relação à solução do caso hipotético em análise, vamos tomar referida impossibilidade de registro como uma de nossas premissas.


3. INDENPENDÊNCIA DO OFICIAL NO EXERCÍCIO DE SUAS ATRIBUIÇÕES:

Na prática, será sempre um problema para o registrador, quando ao assumir uma serventia se deparar com a existência de lançamentos de registros de direito de ocupação junto ao Livro n. 2, relativamente a alguns imóveis de marinha e a outros não. Em minha cidade, a gloriosa Guarapari no Espírito Santo, isso não seria difícil de acontecer, até porque de fato aconteceu. Verifica-se um considerável número de terrenos de marinha sob o regime de ocupação, que no passado foram matriculados, e outros que não foram e nem podem ser matriculados.

Referidos lançamentos irregulares no Livro n. 2, assim como outras irregularidades - registrais e não registrais envolvendo o nosso chão -, como o parcelamento irregular do solo urbano; a outorga indiscriminada de títulos de aforamento de terras municipais em troca de votos; a vista grossa das autoridades com relação ao desmatamento; os latifúndios e minifúndios; a edificação e venda de unidades autônomas sem registro do memorial de incorporação; a construção em morros e encostas; a deficitária ação fiscalizadora da S.P.U. com relação aos bens da União; os condomínios fechados, impedindo o livre acesso às praias; o esgotamento de nossos recursos hídricos; o lamentável estado de desertificação vivido pelo Espírito Santo; a desenfreada expansão imobiliária disputando espaço com a mãe natureza e muitos outros problemas, são desafios a serem enfrentados pela sociedade, pelos governantes, por nós advogados, e - por quê não ? - também pelos oficiais de registro de imóveis.

Nesse panorama, os oficiais de registro continuam não sendo meros carimbadores de papel, arrecadadores de emolumentos e expectadores passivos do desenvolvimento urbano e rural desordenado. Ao contrário, devem os oficiais impedir com rigor que títulos que não satisfaçam as exigências legais venham a ingressar no Fólio Real.

O registrador não deve favor a nenhum eleitorado ou partido, não exerce cargo eletivo e o seu ingresso na atividade está condicionado à aprovação em concurso público de provas e títulos. É profissional do Direito dotado de independência, não subordinado a nenhuma autoridade ou governo. Não toma decisões políticas e sim jurídicas.

Preceitua o art.  1º, da Lei Federal n. 8.935/94, que os serviços notariais e de registro são serviços de organização técnica e administrativa, e os arts.  3º e 28, daquele mesmo diploma legislativo, preceituam que notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito que gozam de independência no exercício de suas atribuições, in verbis:

Art. 1º Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

Art. 3º Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro.

Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.

O art. 28, da Lei Federal n. 8.935/94, ao conferir a esses profissionais o atributo da independência, quis dizer que não estão eles subordinados a nenhuma autoridade superior, mas apenas à Constituição e às leis. Ouso dizer mais, entendo que em determinados aspectos não estão subordinados nem mesmo ao Poder Judiciário, que por força do art. 236, § 1º, da Constituição da República de 1988, possui a incumbência de fiscalizar seus atos.

Nessa esteira de pensamentos, tenho que ao examinar um título, o oficial age com absoluta independência intelectual. O Poder Judiciário, mesmo detendo o chamado poder de polícia sobre os serviços notariais e registrais, ou seja, mesmo detendo o poder de fiscalizá-los, não tem o poder de retirar-lhes a independência intelectual conferida pela Lei Federal n. 8.935/94.  

Mutatis mutandis, essa independência dos notários e registradores compara-se à independência dos juízes. Não está o juiz obrigado a decidir dessa ou daquela forma, ou a decidir da mesma forma que decide o seu Tribunal, não podendo a Corte impor ao magistrado como deverá julgar um determinado caso concreto. Da mesma forma que os juízes ao julgarem, os registradores de imóveis atuarão com independência ao examinarem os títulos que lhes forem apresentados para registro ou averbação.

E é com essa independência, que o registrador submete todo e qualquer título ou documento que lhe é apresentado, independentemente de sua origem e forma, se judicial, extrajudicial, público ou particular, não importa, ao chamado exame de qualificação, verificando se o título encontra previsão legal para registro, e encontrando, se atende ou não, em seu aspecto formal, os requisitos legais.

No final, tenho que a independência com que deverá agir o oficial relaciona-se com a sua necessária imparcialidade e com a almejada segurança jurídica. Deverá o oficial registrador sempre mirar o que é certo, o que é lícito, sem qualquer receio de desagradar os poderosos e as autoridades. Por isso que retirar do oficial registrador a garantia de independência no exercício de suas atribuições, seria caminhar em sentido contrário ao que toda sociedade deseja, que é a proteção do patrimônio imobiliário. 

Não podemos esquecer que o solo é um dos elementos integrantes de nosso Estado soberano. Sob esse ângulo de visão, ao se tratar de imóvel rural adquirido por estrangeiro, ou de imóveis em regiões estratégicas, como nas faixas de fronteira, na faixa de segurança costeira, na amazônia legal e outras posições mais pelo país afora, os ofícios imobiliários adquirem o papel não só de garantir a segurança jurídica, mas também o de cumprir e fazer cumprir normas que objetivam garantir a segurança nacional.

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Sobre o autor
Phelipe de Monclayr Polete Calazans Salim

Advogado, graduado em Direito Pelo Centro Superior de Ciências Sociais de Vila Velha, com pós-graduação em Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho, Direito Ambiental e Direito Previdenciário pela Consultime e Faculdade Cândido Mendes, e pós-graduando em Direito Notarial e Direito Registral pelo Instituto Brasileiro de Estudos e a Faculdade Arthur Thomas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALIM, Phelipe Monclayr Polete Calazans. Exame qualificador de escritura pública de cessão de direitos de ocupação de terreno de marinha apresentada para registro perante o Registro Geral de Imóveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3059, 16 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/20434. Acesso em: 28 mar. 2024.

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