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Da impossibilidade de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, face à impossibilidade da prisão civil do depositário infiel

Da impossibilidade de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, face à impossibilidade da prisão civil do depositário infiel

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RESUMO: Com a palavra final do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, em qualquer tipo de depósito, a conversão da ação de busca e apreensão (fundada em contrato de alienação fiduciária em garantia) em ação de depósito perdeu seu sentido. Com efeito, a ação de depósito perdeu seu principal atrativo, qual seja, a possibilidade da prisão civil, fornecendo ao credor no final do processo, tão somente, eventual título executivo judicial consubstanciado numa ordem para entregar o bem ou o equivalente em dinheiro, medidas que ele já dispunha antes mesmo do pedido de conversão. Isso implica na falta de interesse em se buscar a mencionada conversão para ação de depósito, haja vista faltar necessidade e utilidade em tal pleito.

PALAVRAS-CHAVE: Prisão civil do depositário infiel; impossibilidade; ação de busca e apreensão; conversão em depósito; impossibilidade.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. BREVE ESBOÇO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO E DA AÇÃO DE DEPÓSITO. 3. O STF E O JULGAMENTO DO RE 466.343: A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL, SALVO POR INADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIO E INESCUSÁVEL DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. 4. CONSEQUÊNCIAS DA IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL SOBRE A AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. 5. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa discutir a impossibilidade da conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, haja vista a não mais possível prisão civil do depositário infiel nestes casos, entendimento este que fora sedimentado pelo STF através do julgamento do RE 466.343. Não se visa aqui tergiversar sobre a inviabilidade da prisão civil nesses casos (o que já foi magistral e definitivamente decidido pelo STF), mas a conseqüência disso, ou seja, a falta de interesse em se buscar a mencionada conversão para ação de depósito, já que não mais possível o principal meio coercitivo desta última ação. Nesses casos, pelo fato de o devedor não poder mais ser preso civilmente, a conversão para a ação de depósito perde o seu único atrativo, já que o credor poderá buscar seu ressarcimento econômico através de outros meios processuais, como, por exemplo, a execução judicial de forma direta, onde poderá tentar, dentre outros, a penhora on-line de ativos financeiros, ou, ainda, a penhora de quaisquer outros bens (móveis ou imóveis), inclusive, mas não só (como na ação de depósito), do próprio veículo alienado fiduciariamente.

Em sua atividade como Juiz de Direito, o autor depara-se diariamente com inúmeras demandas de busca e apreensão em que o veículo alienado fiduciariamente não consegue ser encontrado (e, consequentemente, o requerido citado), fato previsto no art. 4º, do Decreto Lei 911/69, surgindo para o requerente a possibilidade de converter o feito em ação de depósito. Esta última, cujo objetivo é exigir a restituição da coisa depositada (art. 901, do CPC), se processará nos mesmos autos da ação de busca e apreensão, tendo como diferencial a prisão civil do réu. Na verdade, quando o autor da ação de busca e apreensão escolhe a via da conversão, está ele partindo para o caminho da ameaça, da coerção, com o intuito de intimidar o devedor em seu grau máximo, atingindo o seu direito de liberdade.

Conforme o art. 902, do CPC, o autor da ação de depósito pedirá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias, entregar a coisa (o que, provavelmente, não ocorrerá, já que o veículo já não foi encontrado quando da tentativa de busca e apreensão), depositá-la em juízo (também, muito provavelmente, não ocorrerá pelas mesmas razões) ou consignar-lhe o equivalente em dinheiro (essa hipótese nem o banco tem esperança), ou, ainda, contestar a ação (esta, sim, pode ocorrer). Deixando de lado as inúmeras hipóteses possíveis durante o seu trâmite, e passando logo para a sentença da ação depositária, caso o Juiz julgue-a procedente, ordenará a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro (art. 904, caput, do CPC), que, não sendo cumprido, ensejará (ou melhor, ensejava) a decretação da prisão do depositário infiel (art. 904, parágrafo único, do CPC). Esta, portanto, a principal ferramenta intimidante do credor.

Entretanto, em que pese a previsão legal da prisão civil do devedor fiduciante, equiparado ao depositário infiel, de há muito a jurisprudência pátria já vinha afastando a segregação da liberdade, entendendo-a impossível nesses casos. Pacificando de uma vez por todas tal entendimento, o STF, ao julgar o RE 466.343, decidiu por unanimidade, que não é mais possível a prisão civil do depositário infiel, seja qual for o tipo de depósito. Entendeu, também, que a conversão da ação de busca e apreensão em depósito é possível, devendo ser retirada da sentença, entretanto, a cominação de prisão civil.

Ou seja, a ação de busca e apreensão pode ser, teoricamente, convertida em ação de depósito, que, sendo julgada procedente, resultará, em verdade, numa sentença letra morta, pois o devedor, muito provavelmente, não entregará a coisa e nem o equivalente em dinheiro, não sendo, por isso, tampouco preso.

Daí já se vê que todo o desenrolar da ação de depósito resta inócuo, desnecessário, haja vista não modificar nem um pouco a situação fática anterior da ação de busca e apreensão: o credor continua sem o veículo e sem ser ressarcido, enquanto o devedor continua inadimplente e sem devolver o bem. Pergunta-se: qual a utilidade, então, dessa ação de depósito? Nenhuma. Somente consumirá mais tempo e dinheiro do Poder Judiciário.

Para nós, em que pese o STF entender que a mencionada conversão é possível, sustentamos que a mesma padece de falta de interesse processual, ou seja, não é nem necessária e nem útil, recaindo sobre ela a pecha da carência da ação, levando, por conseguinte, à extinção sem resolução do mérito da ação de busca e apreensão, com fuste no art. 267, VI, (falta da condição da ação denominada interesse de agir) e IV (falta de um pressuposto processual, qual seja, a citação, já que esta só ocorre após a busca e apreensão do veículo, que, por sua vez, não fora encontrado).

Isso porque, não encontrado o veículo alienado fiduciariamente, remanesce para o credor a possibilidade da ação executória, onde poderá ele tentar expropriar outros bens do devedor, não ficando limitado ao bem financiado (como na ação de busca e apreensão), observando a ordem do art. 655, do CPC, a exemplo de dinheiro (penhora on-line do Bacenjud), veículos (o próprio alienado ou outros), bens móveis e imóveis em geral etc. Ressai, portanto, muito mais proveitosa (e, portanto, útil) a via executória, que, inclusive, já vem prescrita no art. 5º, do Decreto Lei 911/69. Ademais, o próprio STF, no julgamento do RE 466.343, sobrelevou a possibilidade alternativa da execução, da ação reivindicatória e da ação de reintegração de posse, em que pese serem essas duas últimas destituídas de tanto proveito quanto o feito executivo.

Destarte, o objetivo deste artigo é demonstrar a desnecessidade e inutilidade e, portanto, a falta de interesse da conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, quando não encontrado o bem alienado, devendo o magistrado, à vista de um pedido de conversão, extinguir o feito sem resolução de mérito, por flagrante falta de uma condição da ação (qual seja o interesse processual) e um pressuposto processual (consubstanciado na citação do requerido).


2. BREVE ESBOÇO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO E DA AÇÃO DE DEPÓSITO

A alienação fiduciária em garantia é o contrato pelo qual uma pessoa, o devedor fiduciante, a fim de garantir o adimplemento de obrigação e mantendo-se na posse direta, obriga-se a transferir a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito a outra pessoa, o credor fiduciário, que fica adstrito a retransmitir o direito de propriedade ou a titularidade do direito ao devedor fiduciante, assim que paga a dívida garantida [01].

Sua natureza é a de um contrato em que as partes estipulam direitos e obrigações recíprocas. De tal acordo surge para o credor um direito real de garantia, haja vista sua oponibilidade erga omnes. Para o devedor conseguir de volta o domínio, ele precisa adimplir integralmente o contrato, isto é, a existência do contrato se sujeita ao implemento de uma condição, qual seja, o adimplemento da obrigação por parte do devedor fiduciante, o que põe fim à alienação, com a consequente remancipação da coisa.

Nos termos do art. 1º, do Decreto Lei 911/69,

a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.

Tal contrato, sem sombra de dúvidas, faz crescer o número de vendas de bens móveis e imóveis, principalmente, porque faz recair a garantia sobre o próprio bem financiado, reduzindo, portanto, teoricamente, os riscos para o credor fiduciário.

Se tudo correr como planejado, isto é, se o devedor adimplir regular e integralmente seu débito, não há falar-se em problemas, que somente surgem quando há inadimplemento do débito.

No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver [02]. Essa saída não é muito utilizada, pois, pressupõe a entrega voluntária do bem pelo devedor ao credor, o que, diga-se de passagem, é raríssimo.

O mais comum é o credor se valer da ação de busca e apreensão do bem, buscando a entrega forçada do mesmo, podendo obtê-la liminarmente, desde que comprove a mora ou o inadimplemento do devedor, ex vi art. 3º, do mencionado diploma legal. Este, portanto, o nosso campo de trabalho: o processo de busca e apreensão.

Calha trazer à baila a redação dos §§ 1º a 5º, do art. 3º, desse multicitado Decreto Lei:

§ 1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária.

§ 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.

§ 3º O devedor fiduciante apresentará resposta no prazo de quinze dias da execução da liminar.

§ 4º A resposta poderá ser apresentada ainda que o devedor tenha se utilizado da faculdade do § 2º, caso entenda ter havido pagamento a maior e desejar restituição.

§ 5º Da sentença cabe apelação apenas no efeito devolutivo.

Todas essas hipóteses somente acontecem depois da apreensão do bem, assim como a citação, que também é posterior à execução da liminar.

Entretanto, caso o bem não seja encontrado, o art. 4º, desse diploma legal, confere ao credor a faculdade de requerer a conversão para ação de depósito. Para melhor compreensão, transcrevemos sua redação:

Art. 4º Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.

Caso o credor se utilize de tal faculdade, o magistrado converterá a ação de busca e apreensão para ação de depósito, cujo delineamento vem previsto nos arts. 901 a 906, do CPC.

Em tal ação, que visa a restituição da coisa apreendida, o requerente pedirá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias, entregar a coisa, depositá-la em juízo ou consignar-lhe o equivalente em dinheiro, podendo, ainda, o requerido contestar o feito. No pedido de conversão, o credor poderá também pedir a cominação da pena de prisão civil até um ano, sem o que o Juiz não poderá decretá-la, eis que vedada tal segregação de ofício, nos termos do art. 902, § 1º, do CPC.

Supondo que o réu não entregue o bem, não o deposite em juízo e nem consigne seu equivalente em dinheiro, ao revés, seja revel ou conteste o feito e o Juiz julgue o pedido procedente, ser-lhe-á direcionado mandado judicial para a entrega do bem ou equivalente em dinheiro em 24 (vinte e quatro) horas, prazo esse que, não sendo cumprido, ensejará (leia-se: ensejaria) a decretação de sua prisão. Nesse ponto, surge a discussão acerca da possibilidade ou não da prisão civil do devedor fiduciante, o que será tratado no próximo capítulo.


3. O STF E O JULGAMENTO DO RE 466.343: A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL, SALVO POR INADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIO E INESCUSÁVEL DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR

O STF, ao julgar o RE 466.343, decidiu por unanimidade sobre a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, seja de qual tipo de depósito for. Para a nossa Suprema Corte, a prisão civil só é cabível em caso de inadimplemento voluntário de dívida alimentar.

Tal Recurso Extraordinário foi interposto pelo Banco Bradesco S/A contra acórdão do TJSP que, no julgamento de uma apelação, confirmou a sentença de procedência da ação de depósito, fundada em alienação fiduciária em garantia, deixando de impor a cominação de prisão civil do devedor fiduciante em caso de não entrega do bem.

No magistério de Dirley da Cunha Júnior [03], ao tratar do assunto:

O Plenário estendeu a proibição de prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição Federal de 1988, à hipótese de infidelidade no depósito de bens e, por analogia, também à alienação fiduciária, tratada nos dois recursos. Assim, a jurisprudência da Corte evoluiu no sentido de que a prisão civil por dívida é aplicável apenas ao responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

Em que pese a grande repercussão desse julgamento à época, o que dispensa maiores comentários acerca de sua importância, cabe trazermos algumas considerações sobre os votos dos Ministros Cezar Peluso (então relator) e Gilmar Mendes.

Para o Ministro Relator Cezar Peluso, não há semelhança entre a alienação fiduciária em garantia e o depósito. Enquanto neste último deve-se "guardar" e "restituir" a coisa quando solicitado, na primeira, "usar" é o verbo chave, sem se falar em restituir, pois é da essência da mesma a aquisição.

O Ministro Gilmar Mendes, em magistral voto, após tecer comentários acerca do status normativo dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, conclui pela tese da supralegalidade dos mesmos (acolhida pela Corte), assim como pela inaplicabilidade da previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel, ante a falta de base legal para tanto, consoante a seguir transcrito:

"Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei 911, de 1º de outubro de 1969.

Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei 10.406/2002), que reproduz disposição idêntica ao art. 1287 do Código Civil de 1916.

Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel".

Portanto, ainda que se deixe de lado a questão da equiparação entre o depositário infiel e o devedor fiduciante, a prisão civil não é possível para nenhum tipo de depósito, e não só para aquele "supostamente" equiparado, como pensam alguns em relação à alienação fiduciária em garantia. Isto se dá pela falta de base legal para aplicação do art. 5º, LVII, da CF/88, decorrente da eficácia paralisante do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7) em relação à legislação infraconstitucional disciplinadora da matéria, quais sejam, o art. 652, do Código Civil e arts. 902, § 1º e 904, parágrafo único do CPC.

O eminente Ministro pontuou ainda sobre a falta de proporcionalidade da prisão civil, uma vez que o nosso ordenamento jurídico prevê outros meios processuais executórios à disposição do credor fiduciário, não passando, assim, a prisão civil, no exame da proporcionalidade como proibição de excesso (Ubermassverbot), em sua tríplice configuração: adequação (Geeingnetheit), necessidade (Erforderlichkeit) e proporcionalidade em sentido estrito.

Cumpre, também, ressaltar que, dentro do julgamento mencionado, fora questionada pelo saudoso Ministro Menezes Direito a revogação da Súmula 619, do STF ("A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura da ação de depósito"), o que foi efetivada no julgamento do HC 92.566, que tratava de matéria conexa.

Por fim, à guisa de arremate, colaciono a ementa de julgamento do tão falado RE 466.343:

PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 (grifos nossos e no original).

Sedimentada a demonstração da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, passemos adiante a tratar sobre as conseqüências de tal impossibilidade sobre a ação de busca e apreensão fundada em contrato de alienação fiduciária em garantia.


4. CONSEQUÊNCIAS DA IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL SOBRE A AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO

Ultrapassadas e fincadas as premissas da possibilidade "teórica" do pedido de conversão da ação de busca e apreensão em depósito, e da impossibilidade da prisão civil de qualquer depositário infiel, questiona-se: há utilidade em se pleitear a mencionada conversão? Acreditamos que a resposta correta é a negativa, passando a fundamentá-la nas linhas seguintes.

Com efeito, caso o credor fiduciário se utilize de tal faculdade, e o magistrado a defira, o processo seguirá o procedimento previsto nos arts. 901 a 906, do CPC, conforme visto no Capítulo 1 deste trabalho.

Caso a sentença (da ação de depósito) seja de procedência (e nos termos do que o STF já decidira), o magistrado não poderá mais consignar a cominação de prisão civil para o caso de descumprimento do mandado previsto no art. 904, caput, do CPC. Deverá ele, segundo a orientação de alguns Ministros daquela corte, julgar procedente a ação de depósito (óbvio, se for mesmo o caso de procedência) e determinar a expedição de mandado de entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro, cuja consequência do descumprimento será, apenas (e caso o credor requeira), o prosseguimento, nos mesmos autos, do procedimento da execução por quantia certa. Eis a redação do art. 906, caput, do CPC:

Art. 906. Quando não receber a coisa ou o equivalente em dinheiro, poderá o autor prosseguir nos mesmos autos para haver o que lhe for reconhecido na sentença, observando-se o procedimento da execução por quantia certa.

Em outras palavras, caso o devedor fiduciante não cumpra o quanto determinado na sentença de depósito, o máximo que poderá lhe acontecer é ter direcionado contra si (repita-se, caso o credor requeira) um procedimento executivo por quantia certa, conforme prescreve o art. 906, do CPC, porém, nunca poderá ser preso civilmente.

Percebe-se, portanto, que, após o pedido de conversão ser deferido, é iniciado um novo processo, desta feita de depósito, sendo determinada nova citação e atos processuais posteriores, demandando tempo até que se chegue a uma nova sentença, cuja eficácia prática seria a formação de um título a ser executado em novo processo executivo (por quantia certa), já que, muito provavelmente (como a prática forense nos demonstra), o devedor não entregará o bem e nem o equivalente em dinheiro. Registre-se que, quando o art. 906, do CPC fala em execução por quantia certa, deve-se ler cumprimento de sentença, nos moldes exatos do art. 475-J e seguintes do Código de Ritos.

Assim, ao final da ação de depósito (caso julgada procedente) o credor terá em mãos uma sentença apta a ser executada, ou seja, caso ele (credor) não desista de se ressarcir financeiramente, terá que iniciar novo procedimento, desta feita executivo (que, em verdade, deve ser tratado como uma fase de cumprimento de sentença, nos mesmos autos da ação de depósito).

Qual, então, a utilidade dessa ação de depósito, se levarmos em conta que o credor já poderia ter iniciado o processo executivo muito antes; previamente, inclusive, ao pedido de conversão, sem ter a necessidade de passar por todo o desenrolar de um novo processo (o de depósito)? Nenhuma. Na verdade, pode-se dizer que o credor perdeu tempo, o que não se coaduna com a idéia de interesse processual. Diante de dois caminhos que levam ao mesmo lugar, sendo um mais curto, menos penoso que o outro, não há porque se escolher o mais longo e tortuoso.

Bastaria o credor (ainda na ação de busca e apreensão), ao invés de pleitear a conversão para a ação de depósito, passar logo para a ação executiva, consoante lhe autoriza o art. 5º, do Decreto-Lei 911/69 [04]. Nesse feito executivo, consoante já dito em linhas anteriores, poderá ele tentar expropriar outros bens do devedor, não ficando limitado ao bem financiado (como na ação de busca e apreensão), observando a ordem do art. 655, do CPC, a exemplo de dinheiro (penhora on-line do Bacenjud), veículos (o próprio alienado ou outros), bens móveis e imóveis em geral etc. Ressai, portanto, muito mais proveitosa (e, portanto, útil) a via executória.

Daí que, em casos onde o bem não é encontrado, sustentamos a falta de interesse no pleito de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, por flagrante desnecessidade e inutilidade da medida. O que, à primeira vista, pode parecer apenas questão de escolha do credor, revela-se, ante as condições da ação, verdadeira via inútil e, portanto, carecedora de interesse processual.

O interesse se concretiza na utilidade potencial da jurisdição, por ser esta capaz de conferir, pelo menos em tese, uma vantagem ou benefício jurídico efetivo ao autor, bem como ao Estado, face o excessivo custo do processo.

Para Nelson Nery Jr., o interesse processual (de agir) reside na necessidade e utilidade da jurisdição, ao afirmar que "existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático" [05].

Em obra específica sobre o interesse processual, Rodrigo da Cunha Lima Freire assevera que,

na utilidade da tutela jurisdicional muitos vislumbram, entretanto, a própria necessidade da tutela jurisdicional, dentre outros elementos. Com efeito, a necessidade da jurisdição, que alguns autores entendem deva possuir conceito distinto da utilidade da jurisdição, para outros, em verdade, é elemento constitutivo da mesma. É a posição de Cândido Rangel Dinamarco, por exemplo, que adota posicionamento de Liebman [06].

Donaldo Armelin nos traz a seguinte lição:

A utilidade jurídica repele ações ajuizadas com abuso de direito ou com fins subalternos ou ilícitos, e compreende, em seus graus, desde a necessária atuação do Judiciário, no caso de determinadas ações constitutivas, até a inadequação do provimento ou procedimento postulados, tendo, por outro lado, a vantagem de conectar o exercício do direito de ação com o princípio da economia processual, que veda a atuação inócua ou despicienda da jurisdição [07].

Destarte, não se pode buscar o Judiciário pleiteando algo inútil, do ponto de vista prático, eis que, nessa situação, carecerá a parte de interesse processual, como vimos nas lições acima transcritas. A providência solicitada do Poder Judiciário deve ser necessária e útil, o que não entendemos restar presente no pedido de conversão da ação de busca e apreensão em depósito.

Como o pedido de conversão, caso deferido, gerará uma nova ação (de depósito), deve essa nova ação preencher as condições da ação, além, é claro, dos pressupostos processuais. Não preenchendo, portanto, a condição denominada interesse processual (por flagrante inutilidade), deve o pleito de conversão ser indeferido de plano.

Ao indeferir a mencionada conversão, o processo de busca e apreensão não deverá permanecer "vivo", já que, até então, a citação do réu (que é posterior à busca e apreensão liminar do veículo, a qual não ocorreu), pressuposto processual, não terá se operado. Nesse caso, por não ser ad eternum, o processo deverá ser extinto pela falta de citação e de interesse processual, ex vi art. 267, IV e VI, do CPC.

Não deve o magistrado deferir a conversão e, então, extinguir a nova ação de depósito (por falta de interesse), pois isso seria contra os princípios da economia processual e celeridade, já que tal providência já pode ser tomada ainda no processo de busca e apreensão, sem a necessidade de se inaugurar novo processo. Entretanto, caso já tenha deferido a conversão, esse (a extinção) é o caminho a ser tomado.

Este é, portanto, o nosso entendimento acerca da matéria.


5. CONCLUSÃO

Objetivamos, destarte, demonstrar ao longo deste trabalho, que, após a pá de cal jogada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a questão da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, é patente a falta de interesse processual da conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito.

Em que pese a previsão legal de tal conversão no Decreto Lei 911/69, quando não encontrado o bem alienado, entendemos que a mesma esbarra hodiernamente na falta de necessidade e de utilidade, isto é, na falta de interesse, haja vista já ter o credor à mão o que visa obter ao final da ação de depósito, qual seja a via executória aberta para si. A ação de depósito, por ter perdido seu principal atrativo (possibilidade de prisão civil), é desnecessária e inútil nesses casos, pois só pode dar ao credor o que ele já dispõe (possibilidade de executar o devedor).

Assim, face à impossibilidade de prisão civil do depositário infiel, adunada à já disposição pelo credor da via executiva, deve o magistrado, à vista de um pedido de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, extinguir o feito sem resolução de mérito.


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BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Recorrente: Banco Bradesco S/A, Requerido: Luciano Cardoso Santos. Julgamento em 03 dez. 2008. Publicação no DJ: 05 jun. 2009. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 29 out. 2009.


Notas

  1. FIUZA, César. Novo Direito Civil: Curso Completo. 6. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.774
  2. Cf. art. 2º, do Decreto Lei 911/69.
  3. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed., Salvador: JusPODIVM, 2010, p.712.
  4. Art. 5º. Se o credor preferir recorrer à ação executiva ou, se fôr o caso ao executivo fiscal, serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos bastem para assegurar a execução
  5. NERY JR., Nelson. Condições da ação. Repro, n. 64, São Paulo: RT, 1991, p.37
  6. FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p.159.
  7. ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p.64-65.

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PIMENTA, José Marcelo Barreto. Da impossibilidade de conversão da ação de busca e apreensão em ação de depósito, face à impossibilidade da prisão civil do depositário infiel. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2688, 10 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17792. Acesso em: 3 maio 2024.