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Do republicanismo clássico ao neorepublicanismo

Do republicanismo clássico ao neorepublicanismo

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O debate republicano contemporâneo não se restringe ao embate entre liberais, comunitaristas e libertaristas, pois inclui outros temas como a democracia de massa, a constitucionalização de direitos fundamentais, o Estado providência, o comunismo etc.

A expressão “república” pode ser utilizada no sentido fraco e no sentido forte. No sentido fraco, república é, simplesmente, o governo não hereditário; assim, república no sentido fraco se opõe à monarquia, também entendida no sentido fraco; seguindo esse entendimento, a ideia de república se confunde com a ideia de democracia representativa, isto é, confunde-se com uma organização política em que os governantes são eleitos para mandatos determinados, sujeitos, portanto, a periódicas eleições. Em sentido forte, república se opõe às formas tirânicas, despóticas, autocráticas e absolutistas de governo. Nesse sentido, a princípio, a monarquia em sentido fraco não se opõe à república em sentido forte. O republicanismo é uma teoria sobre o sentido forte da república.


Modelos históricos do republicanismo

Preferiu-se, também, fazer a distinção entre o republicanismo clássico e o republicanismo contemporâneo (neorepublicanismo). Considera-se republicanismo clássico, apenas para fins didáticos, toda a tradição republicana desde a Antiguidade grega até as revoluções liberais na Europa e nos Estados Unidos dos séculos XVII e XVIII. Nesse sentido, a república se manifestou originalmente na Grécia (como politeia) e em Roma (como res publica, inclusive durante o Império); a segunda onda republicana foi promovida pelo humanismo italiano (especialmente em Veneza e em Florença); a terceira onda republicana se manifestou na commonwealth inglesa (no século XVII), nos Estados Unidos e na França (no final do século XVIII). O republicanismo contemporâneo (ou neorepublicanismo) ressurgiu no contexto do debate sobre a boa sociedade (sobre a organização justa da sociedade) entre liberais e comunitaristas. O neorepublicanismo, portanto, é herdeiro de uma larga tradição, e não a renega; assim, o republicanismo é uma teoria pragmática por excelência, adaptando-se a cada situação para alcançar seus fins; o passado fundamenta e explica o presente e o presente é voltado para o futuro.

Uma teoria republicana contemporânea, portanto, precisa considerar três aspectos recepcionados da teoria tradicional: (a) conjugar os modelos de república no âmbito comunitário, nacional e universal, (b) mediar a rivalidade entre os modelos democrático e aristocrático de república e (c) compreender a associação entre as ideias de governo das leis, governo moderado e governo misto.


Republicanismo da cidade-Estado

Durante muito tempo, defendeu-se que a república só era possível em pequenas comunidades; esse era o entendimento dominante desde Aristóteles e Platão até Montesquieu e Rousseau; logo, a república cabia apenas no tamanho da cidade-Estado. Mesmo em Roma, durante o Império, vigoravam dois princípios, o republicano, válido para os romanos (a pequena comunidade dos romanos), e o princípio despótico, válido para os outros povos que integravam o Império. Há cinco casos bastante conhecidos de experiência republicana em cidades-Estado: Atenas, Esparta, Roma, Veneza e Florença. Os três primeiros exemplos são cidades antigas e os dois últimos são cidades modernas (do século XV).

As três repúblicas antigas nasceram como comunidades pequenas rigidamente coesas por laços sangüíneos e religiosos. Fustel de Coulanges[1] descreveu como essas comunidades antigas se formaram a partir do culto familiar aos deuses domésticos (relacionados aos antepassados[2]) e da associação entre famílias (para cultuar outros deuses); assim, as famílias se organizaram em fratrias[3], que se organizaram em tribos[4], que se organizaram na cidade[5]; a cidade, no entanto, não era a aniquilação das organizações anteriores, mas uma espécie de confederação de famílias[6]. A cidade antiga (a comunidade) resultava em uma relação tirânica entre o chefe da família (o pater) e os seus dependentes e, ao mesmo tempo, em uma relação igualitária (republicana) dos chefes de família (patrícios, cidadãos) entre si.

A cidade antiga, no entanto, não deve ser confundida com a cidade moderna; aquela se constituía apenas da comunidade de famílias patrícias que se reuniram originalmente para o culto do deus da cidade; não fazia parte da cidade, ainda que habitasse na urbe ou próximo dela[7], aquele que não adotasse (talvez ficasse melhor fosse adotado) a religião da cidade; para cultuar o deus da cidade era preciso cultuar um deus doméstico vinculado a uma das famílias fundadoras da cidade e o culto doméstico era restrito a poucos[8]. A distinção entre patrícios, clientes e plebeus[9], portanto, é decorrente deste critério; os patrícios e os clientes cultuavam um deus doméstico (os patrícios descendentes do deus e os clientes agregados à família) e os plebeus não cultuavam nenhum deus da cidade[10]. Com o passar do tempo, o poder absoluto dos chefes de família[11] foi gradualmente perdido em decorrência de tensões sociais e políticas[12] que resultaram, primeiro, no fim do privilégio da primogenitura[13], depois, na libertação dos clientes[14] e, por fim, na participação da plebe na cidade[15].

Da história destes conflitos resultou a formulação da doutrina do governo moderado e da doutrina do governo misto, assegurando um equilibro social com o reconhecimento da participação de todas as forças sociais na cidade. Há, no entanto, um aspecto mítico no republicanismo clássico; a comunidade reconhecida como tal é a comunidade originária dos patrícios, esses sim se reconheciam como iguais ainda que não entendessem o sentido de uma comunidade além do agrupamento familiar; entre outros fatores (como a guerra), eram os laços religiosos que os tornavam fortemente unidos[16]. O advento da república democrática foi decorrente da fragilidade dos laços religiosos (sustentáculos do sistema aristocrático) e, portanto, encontrou na igualdade e na participação os fundamentos da nova comunidade e da nova república. No entanto, perceba-se que o modelo de república que ficou no imaginário dos republicanos modernos, inclusive no de Jean-Jacques Rousseau, foi Esparta, aquela cidade que, das três, conseguiu por mais tempo se manter fechada, e que, por isso, manteve um corpo reduzido e homogêneo de cidadãos, à custa de um grupo numeroso de escravos, plebeus e clientes (excluídos da cidade). A despeito de Esparta ser celebrada como modelo republicano, é em Atenas que se percebe a engenhosidade do desenho institucional[17]. É Atenas, e não Esparta, que precisa lidar com a diversidade de forças sociais.

As duas repúblicas modernas são duas cidades-Estado italianas: Florença e Veneza. Apesar da distância cronológica, há semelhanças entre a cidade antiga e a cidade italiana dos séculos XV e XVI: (a) em ambos os casos, tratam-se de cidades-Estado (embora fosse conhecido dos italianos o Estado nacional e o Império), (b) o sentido de comunidade política, em ambos os casos, era restrito e não se confundia com a população ou com qualquer pretensão de universalização da participação política (pretensão típica do século XX), (c) todas as cidades-Estado adotavam uma política de relações exteriores conflituosa com os vizinhos. Essas semelhanças fizeram com que, no renascimento italiano, a política italiana fosse inspirada na imitatio dos gregos e romanos antigos[18].

Veneza e Florença representavam dois modelos de república: a república aristocrática e a república popular, respectivamente. Curiosamente, a estabilidade política veneziana em contraste com a instabilidade florentina resultou em duas conseqüências: (a) a formulação do mito de Veneza e (b) a intensa produção doutrinária florentina sobre o bom governo. O debate republicano em Florença, portanto, girava em torno da percepção que os florentinos tinham de Veneza: como governo moderado ou como governo oligárquico; sobretudo, depois da morte de Cosmo Médice, em 1465, e do turbulento governo de Savonarola.

A controvérsia se firmava sobre o desenho da organização política da nova república a partir de instituições já estabelecidas. No século XII, no lugar do príncipe, as repúblicas italianas elegiam anualmente um cônsul[19] e, depois, um potestà; o potestà era cidadão de outra cidade para que fosse imparcial[20]; e governava com dois órgãos consultivos, um conselho maior (aristocrático) e um conselho menor (popular); ao final do mandato, o potestà submetia a avaliação do seu governo aos cidadãos para ter permissão de sair da cidade[21]. Em 1282, em Florença, o regime do potestà foi substituído pelo priorato; as funções do potestà foram atribuídas à signoria, órgão colegiado composto por nove magistrados (prioris); juntamente a signoria foram instalados outros dois órgãos consultivos, o colégio dos doze sábios[22] e o colégio dos dezesseis gonfaloneiros[23]; todos os prioris, sábios e gonfaloneiros eram eleitos para mandatos de, no máximo, quatro meses. Florença, no século XIV, já constituía, para os padrões da época, um governo popular; tratava-se de um autogoverno, que, no entanto, excluía a nobreza e os assalariados da participação política[24]; destaca-se, na organização política florentina, a engenhosidade do desenho institucional com a finalidade de evitar o governo pessoal, mantendo o poder coletivo, republicano.

<<Os cargos públicos são preenchidos em duas fases distintas: a qualificação do candidato através do voto e o sorteio dos candidatos aos cargos vagos, seguindo o critério de rodízio [...]. [Podem candidatar-se apenas aqueles estiverem inscritos em uma das diversas guildas (arti)] – tanto nas arti maggiori (advogados, banmqueiros, médicos, mercadores de tecidos, de especiarias e de couro, que formam os amgnati) quanto nas arti minori (açougueiros, pedreiros, carpinteiros, vinhateiros, alfaiates, padeiros e outros artesãos menores). Ao final do escrutínio [...], [os candidatos habilitadas precisam obter] obtêm pelo menos dois terços dos votos [...]. Sempre que um cargo se encontra vago, é feito um sorteio público, eliminando-se sucessivamente aqueles que ocuparam recentemente um posto, pois, para assegurar a rotatividade dos cargos, a reeleição só é permitida a cada dois ou três anos. A ideia é que o maior número de cidadãos qualificados (os membros das guildas que estão em dia com os impostos) pudesse participar diretamente da vida pública da cidade>>[25].

A dualidade entre o modelo de Veneza (aristocrático) e o modelo de Florença (popular) teve início, pode-se dizer, com a idealização da república florentina por Leonardo Bruni de Arezzo, no início do século XV. Declaradamente inspirado em Atenas, durante o período de Péricles, para Bruni

<<o completo desenvolvimento da cidadania requer que o poder resulte exercido por tantos homens como seja possível. Se o número de cidadãos efetivos é reduzido, então o número de grupos de elite que governam a cidade será igualmente reduzido e, em conseqüência, ao ser também reduzido o número de virtudes que se exercem no governo, cabe o traço – segundo os princípios aristotélicos e polibianos – de que essas virtudes se corrompam ao não ter a necessidade de reconhecer a existência de outras>>[26].

A idealização da Florença de Bruni passou pela defesa de que Florença recebeu o legado republicano de Roma. Para Bruni, “seguindo a concepção aristotélica, a virtude cívica exige a igualdade política, assim como a participação direta de todos os cidadãos no governo exige que todos comunguem esta mesma disposição ética”[27]. O projeto de Bruni teve sua aplicação na ampliação dos guildas e, de forma mais radical, na república democrática durante o período de Savonarola.

Opondo-se à doutrina do mito de Florença (democrático), a doutrina aristocrática em Florença defendia o mito de Veneza. O principal teórico do mito de Veneza foi Francesco Guicciardini[28] (que publicou, no início do século XVI, Del reggimento di Firenze). O mito de Veneza procurava demonstrar que o desenho institucional veneziano não era aristocrático, mas representava a imitação da república antiga, isto é, a reprodução moderna do governo moderado e do governo misto:

<<A primeira era a análise do poder dos governantes repartido entre um Dogo, um Senado e um Consiglio Maggiore, no que parecia residir aquela combinação de um, poucos e muitos de que falaram os teóricos clássicos. A outras era a limitação, estabelecida desde algum tempo, da cidadania – entendida como participação política – a um corpo certamente numeroso ainda que limitado de antigas famílias. Uma classificação deste estilo parecia obrigar a definir Veneza como uma oligarquia ou aristocracia. Ainda assim, era usual tratar a classificação numérica de um, poucos e muitos como equivalente à classificação social da monarquia, da aristocracia e da democracia. Então, Veneza era um regime misto no verdadeiro sentido do termo ou uma pura e efetiva aristocracia? Uma parte importante do mito que revestia a Sereníssima República pode ser atribuído à ambivalência de fundo deste paradigma>>[29].

Politicamente, a doutrina de Guicciardini e o mito de Veneza foram sustentados, em Florença, por um grupo conhecido como ottimati[30], em direta referência à aristocracia senatorial romana.

Curiosamente, tanto Bruni quanto Guicciardini faziam apologia ao governo moderado e ao governo misto; a própria organização política de Florença, desde o século XIII, foi formalmente adequada a esses dois preceitos republicanos. A distinção entre eles é que Bruni concentrava os poderes importantes no órgão popular e Guicciardini concentrava os poderes importantes no órgão aristocrático. Outra distinção é que Guicciardini defendia que apenas o órgão popular fosse submetido a eleições periódicas para escolha dos seus membros e que o órgão aristocrático e o órgão monárquico fossem compostos por magistrados com mandato vitalício ou hereditário. A história política de Florença até o predomínio dos Médici foi uma progressiva democratização da república.


Republicanismo do Império

A despeito do que possa parecer, a república romana que se converteu em Império com Otávio continuou republicana. A confusão é provocada pelos modernos quando confundem a monarquia com o império, embora sejam duas categorias distintas. O império se distingue da cidade-Estado e não da república; refere-se, portanto, a uma nova dimensão da comunidade política, para muito além da pequena comunidade homogênea unida por laços de parentesco e religiosidade[31].

O republicanismo no Império romano é possível com adoção de um regime dualista: (a) republicano em Roma e (b) despótico nas províncias. Isto é, o imperador era o principes senatus (o primeiro entre iguais) em Roma e era o imperador proconsular nas províncias (o comandante militar); ou seja, republicano entre os cidadãos romanos e despótico para os estrangeiros (os não romanos)[32]. A forma republicana foi mantida durante todo o Império, mas, de fato, o republicanismo desapareceu quando o imperador passou a acumular os poderes que tradicionalmente estavam separados e quando assumiu para si o caráter de divindade.

Mesmo com a queda de Roma, a ideia de império é recorrente até os dias de hoje[33]. A translatio imperii para Constantinopla (Império bizantino), nesse sentido, se repete na constituição do Sacro império de Carlos Magno, em 800; novamente no Sacro império romano-germânico de Otto I, em 962; mais uma vez com o Império de Napoleão, em 1806; com o Império britânico e com o Império norte-americano (este último por outras bases)[34].

Os impérios restaurados, no entanto, nem sempre tiveram a forma republicana. No momento crucial da passagem do Medievo para a Idade Moderna, Dante Alighieri fez, na Itália, uma apologia ao império republicano, que coincidia com o contexto imediatamente anterior ao da afirmação dos Estados nacionais (reinos nacionais) na Europa. Dante apresentou sua doutrina em obra menos difundida, denominada De Monarchia, publicada no início do século XIV[35]. O título – Sobre a monarquia – pode levar à falsa impressão de se tratar de uma obra não republicana. Trata-se, no entanto, de direta referência ao Império romano (e seus sucessores). O objetivo de Dante não foi, portanto, contrapor a monarquia à república, mas foi contrapor o governo universal ao governo da cidade (por um lado) e contrapor o governo temporal (universal) ao governo espiritual (universal). O título, portanto, bem que poderia ser “do governo universal” ou “da república universal”. Na obra, Dante explicou que a necessidade do império (governo universal) é a da própria natureza humana: “toda humanidade se ordena a um fim único. É preciso, então, que um só coordene e seja. Tal chefe deverá chamar-se Monarca ou Imperador”[36]. O governo universal, no entanto, não é governo absoluto, trata-se apenas de um governo que, acima dos governos nacionais (dos reinos, por exemplo), pode cuidar de temas de caráter universal, bem como pode dirimir as controvérsias entre os reinos[37]. É como interpreta Raymond Gettel:

<<O imperador, ao invés de ser um déspota universal, tem que ser uma espécie de árbitro nos assuntos internacionais, para decidir as contendas que possam suscitar-se entre os governos dos diversos principados e cidades, e manter a paz entre eles>>[38].

O republicanismo de Dante é um republicanismo aristotélico, transmitido por S. Tomás de Aquino. Baseia-se, sobretudo, na ideia de governo submetido às leis, isto é, governo submetido à “lei eterna”. É essa a característica que distingue o governo republicano do tirânico.


Repúblicas modernas

A terceira onda republicana atingiu diferentemente a Inglaterra, os Estados Unidos e a França. A Inglaterra no século XVII, principalmente durante a revolução puritana, e os Estados Unidos e a França, no século seguinte.

Na Inglaterra, antes da vitória do parlamento, da decapitação do rei e da instituição da Commonwealth, a doutrina republicana foi enunciada pelos partidários do rei Carlos I. Durante a guerra civil, o parlamento aprovou as Dezenove proposições do parlamento; em resposta, o rei mandou publicar um documento que declarava que “a Inglaterra era um regime misto e não uma monarquia condescendente[39]”; tratava-se de uma proclamação elaborada em junho de 1642 pelo Visconde Flakland e por Sir John Colepeper, conselheiros do rei, inspirados, principalmente, na doutrina florentina sobre o mito veneziano; o documento ficou conhecido como His Majesty´s Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament. John Pocock transcreveu parte da declaração:

<<Posto que não existam mais que três tipos de governo entre os homens, monarquia absoluta, aristocracia e democracia, e todos eles tem suas particulares vantagens e inconvenientes, a experiência e a sabedoria de vossos antepassados ao modelar esta (nossa) forma mesclando as três, proporcionou a este reino (até onde pode fazê-lo a prudência humana) as vantagens das três sem os inconvenientes de nenhuma, em tanto que o equilíbrio se mantenha entre os três estados e cada um deles discorra exatamente por seu próprio curso (produzindo verdor e fertilidade nos prados de ambas as ribeiras) o desbordamento de um ou outro ou qualquer não ocasionará dilúvios ou inundações. A enfermidade da monarquia absoluta é a tirania, a enfermidade da aristocracia é a facção e a divisão, e a enfermidade da democracia são os tumultos, a libertinagem e a violência. O bom da monarquia é que une a nação sob uma cabeça e resiste a invasão do estrangeiro e a insurreição interna; o bom da aristocracia é a conjunção em conselho das pessoas mais capazes do estado para benefício público; o bom da democracia é a liberdade e a coragem e a industria que engendra a liberdade>>.[40]

Desta maneira, como destacou Pocock, o fundamento de legitimidade da monarquia inglesa não se encontrava na origem divina ou na vontade racional, mas na prudência humana[41], isto é, na engenharia institucional para proteger a liberdade. Liberdade no sentido republicano, ressalte-se.

Assim como a doutrina real foi inspirada no mito de Veneza, depois da guerra, durante o regime de Cromwell, James Harrington apresentou, em Oceana[42], sua utopia republicana para a Inglaterra inspirada no mito de Florença. É da adaptação das milícias-cidadãs de Maquiavel que Harrington desenvolveu a ideia de uma república (democracia) dos proprietários de terra, ou melhor, percebendo que a república só seria possível com cidadãos independentes, autossuficientes, a república deveria necessariamente promover não apenas a extensão da cidadania, mas as condições para a cidadania, para assim instituir uma república dos pequenos proprietários de terra, dos gentlemen. Nesse sentido, Harrington antecipou a democracia dos pequenos proprietários de Thomas Jefferson e a democracia dos cidadãos-proprietários de John Rawls. James Harrington relacionou a ideia maquiavélica da cidadania em armas com a ideia feudal de que a nobreza armada era também uma nobreza proprietária; a partir desta ligação, desenvolveu os argumentos para concluir pela necessidade de uma democracia de proprietários de terras.

<<Harrington acreditou firmemente que só uma democracia de proprietários de terras (‘democracy of landholders’i) – isto é, uma sociedade em que um demos ou um grande número de proprietários livres, possuindo a terra em condições de relativa igualdade – contaria com os recursos humanos (Maquiavel havia falado de matéria) necessários para poder efetuar uma repartição da autoridade política segundo os postulados de diversificação e equilíbrio que permitem a uma politeia alcançar a auto-estabilidade; e uma república desse gênero, poderia resultar teoricamente imortal>>[43].

Nesse sentido, John Pocock considerou que a ampla distribuição da propriedade visava assegurar a estabilidade e garantir condições aceitáveis de vida; “a propriedade vinculava o homem a uma estrutura de poder na que podia participar e demonstrar sua virtude, e a deparava o ócio necessário para praticá-las”[44].

A república norte-americana e a república francesa, de certo modo, também refletem um imitatio. Na França, Robespierre e Saint-Just, inspirados em Jean-Jacques Rousseau, procuraram adotar uma república nos moldes da cidade antiga, com a participação direta dos cidadãos nas decisões políticas, sem conseguir perceber a distinção entre a prática política das repúblicas antigas e o mito que as encobria; por exemplo, a constituição da Convenção prescrevia a instituição da democracia direta em um Estado moderno (com imenso corpo eleitoral). Nos Estados Unidos, tal como em Florença, distinguiram-se dois grupos republicanos: os partidários de Thomas Jefferson (democrático)[45] e os partidários de John Adams (aristocrático)[46]; essa rivalidade se expressava em posições antagônicas sobre o federalismo, os jeffersonianos (“democratas-republicanos”) defendiam a descentralização dos espaços de decisão política para que o povo pudesse participar do e controlar o governo[47]; os “federalistas” (partidários de John Adams e Alexander Hamilton) defendiam um governo central forte e um procedimento de seleção das lideranças (elite) para exercer o poder nacional. Na América Latina, especialmente na América espanhola, é forjado um republicanismo de inspiração francesa, mas de um republicanismo pós-revolucionário; assim, inspirado em Montesquieu e não em Rousseau; depois, por influência do republicanismo norte-americano. No Brasil, particularmente, percebe-se a influência francesa no constitucionalismo imperial e a influência norte-americana no constitucionalismo da Primeira República.

Perceba-se como os temas republicanos são recorrentes e como, pelo imitatio, as experiências ou os mitos persistentes influenciam as aplicações posteriores.


A república como politeia, como res publica e como commonwealth

Há duzentos anos, considerava-se que a república era possível apenas em cidades-Estado. Autores modernos como Rousseau e Montesquieu reconheciam que a república era incompatível com os grandes reinos europeus do século XVIII; o sentido do republicanismo antigo está preso a esses limites; dois fatores resultaram nesse dogma, a república só é possível em comunidades homogêneas e em comunidades de iguais que se conheçam face-a-face. Nesse contexto, república e comunidade se confundem; também nesse sentido, na república, o bem comum, o interesse geral, o bem da cidade são mais importantes que o bem de um cidadão ou de um grupo de cidadãos. Seguia a concepção antiga de que a organização política (a polis) era naturalmente humana e que sem ela os seres humanos não desenvolveriam plenamente suas potencialidades; assim, a sobrevivência do todo é necessária para a sobrevivência da parte, ainda que o inverso não seja necessário.

A necessária unidade do grupo exigia também o combate às facções. O tema é recorrente, desde autores como Aristóteles, passando por Rousseau; parte da premissa prescritiva de que o governo precisa ser organizado de modo que o bem comum prevaleça sobre os interesses parciais, isto é, das facções. Perceba-se, no entanto, o contexto; trata-se de pequenas repúblicas, cuja principal qualidade é a coesão para se opor aos estrangeiros; temia-se, portanto, não apenas que a proliferação de facções produzisse uma inversão dos interesses importantes, como uma desagregação do corpo social. Em certo contexto, James Madison demonstrou o inverso: como o reconhecimento das facções, devidamente manejadas, poderia resultar no governo de unidade nacional. Assim, virtude cívica é colocar o bem da comunidade (o bem da cidade) acima do bem pessoal.


A liberdade como liberdade da cidade

O sentido da liberdade, atualmente, está impregnado com os sentidos modernos de liberdade, principalmente na acepção liberal e na acepção democrática[48]. No sentido antigo, a liberdade significa a liberdade da cidade; consiste em considerar a liberdade na medida em que se é integrante de uma cidade livre, ou seja, de uma cidade que não esteja sob o domínio estrangeiro; é apenas nesse sentido que se pode afirmar que o povo se autogoverna, em contraste com povo que é governado por outro povo. No mesmo sentido é o entendimento de Quentin Skinner:

<<Segundo consta, os autores neo-romanos estavam preocupados com a liberdade das cidades e não com a liberdade dos cidadãos individualmente. Todavia, esta controvérsia não logra arcar com a estrutura da teoria neo-romana da liberdade. [...] De acordo com sua tese – e sem maiores rodeios – somente se pode ser livre em um Estado livre>>[49].

O contexto histórico das cidades-Estado antigas pode explicar essa associação da república com a cidade livre (de dominação estrangeira). Atenas, Esparta e Roma formaram pequenas comunidades fechadas que conviviam com seus vizinhos em constante hostilidade; naquele contexto, de conflito entre duas cidades, não era possível (não era compreensível, pelos motivos religiosos já expostos) que os integrantes da cidade derrotada fossem incorporados à comunidade vitoriosa; assim, aos perdedores imputava-se a aniquilação completa da cidade (da comunidade e da urbe); para evitar a vingança, a comunidade era dispersada (perdendo, portanto, não apenas a coesão como a proteção dos deuses) ou a comunidade derrotada era escravizada.

Perceba-se, portanto, que viver em uma cidade que não é livre é viver na condição de escravo (de servo), sujeitando-se, assim, ao arbítrio dos cidadãos (da outra cidade). O perigo constante da guerra aumentava a unidade do grupo. Percebia-se que apenas uma comunidade forte e coesa poderia fazer frente ao inimigo estrangeiro e que a derrota frente ao inimigo significaria a própria escravidão. Olavo de Carvalho, em palestra sobre Maquiavel[50], destacou como em situação de guerra as relações sociais se tornam transparentes e verdadeiras, a guerra coloca em jogo bens tão preciosos que as pessoas se tornam intolerantes com o discurso ideológico e passam a observar cruamente a realidade. Nessa situação, a unidade da comunidade se torna firme, pois é o único instrumento para a vitória na guerra. A comunidade passa a se reconhecer como tal e não como um conjunto disperso de indivíduos. É considerando essa premissa que Bruni e, depois, Maquiavel[51] relacionam a cidadania com a formação de uma milícia da cidade em substituição à contratação de mercenários.

A liberdade da cidade não é a liberdade para todos os que habitam a urbe ou seus arredores. A liberdade da cidade é apenas para os que pertencem à cidade, isto é, para os cidadãos[52]. Nesse sentido, há um relevante contingente populacional que tem vínculos com a cidade, mas, porque não tem vínculos políticos (religiosos) com ela, não pode ser considerado como integrante da comunidade. É nesse sentido que Quentin Skinner explicou:

<<Dizem que se deve seguir o seguinte conselho: caso um indivíduo deseje manter sua liberdade, deverá assegurar-se de que vive num sistema político, em que não há nenhum elemento de poder discricionário e, portanto, nenhuma possibilidade de seus direitos políticos fundamentais virem a depender da boa vontade de um governante, de um grupo dominante ou de qualquer outro agente estatal. Noutras palavras, o indivíduo deverá viver num sistema, em que o único poder de criação de leis permaneça com o povo ou com seus representantes devidamente credenciados, e em que todos os indivíduos membros do corpo político – tanto os governantes quanto os cidadãos – permaneçam igualmente sujeitos a quaisquer leis que escolham para impor a si mesmos. Se – e somente se – o indivíduo viva num sistema de autogoverno deste gênero, seus governantes serão destituídos de quaisquer poderes discricionários de coerção e, consequentemente, desprovidos de toda e qualquer capacidade tirânica para reduzir o indivíduo e seus concidadãos à condição de dependentes da boa vontade deles e ao status de escravos>>[53].

Os cidadãos que participam da comunidade, portanto, constituem uma comunidade de iguais, o que reforça a unidade da república. A causa da república é a causa de todos, sem que seja a causa de nenhum, pois a virtude cívica impõe que o bem da comunidade prevaleça sobre o bem particular. Assim, as virtudes republicanas não devem ser confundidas com as virtudes modernas ou com a moralidade moderna (individualista), a virtude republicana clássica é necessariamente uma virtude organicista.


Do governo (da organização das magistraturas)

Há ainda três outros temas clássicos importantes para o republicanismo; todos se referem ao governo (ou à organização das magistraturas e dos conselhos): o governo moderado, o governo misto e o governo das leis.

O governo moderado e o governo misto têm direta relação com a doutrina republicana da separação de poderes. O governo misto significa a conjugação de três princípios de governo: o monárquico, o aristocrático e o democrático; de modo que, no desenho institucional do governo, o poder seja exercido por órgãos com um, com poucos (os melhores) e com muitos magistrados; esperam-se do governo misto dois resultados: que cada órgão tenha uma organização própria para o seu fim específico e que os órgãos regidos por princípios diferentes possam fazer um governo equilibrado. Este segundo resultado do governo misto o aproxima do sentido de governo moderado. O governo moderado significa o equilíbrio do poder, a fim de evitar que uma facção ou que um interesse parcial se sobreponha sobre o interesse da cidade; fica implícito, no governo moderado, portanto, o objetivo de controlar o domínio das facções (políticas ou sociais); o governo não equilibrado, isto é, o governo de uma facção é, para o republicanismo, um governo tirânico.

O governo das leis também objetiva impedir o governo tirânico, fixando parâmetros (limitações) para a ação do governante. Geralmente se confunde o Estado de direito (liberal) e um dos seus corolários, o princípio da legalidade, com o governo das leis, na tradição antiga; trata-se, no entanto, de duas concepções distintas, ainda que possam ser associadas. O governo das leis, em contraste com o governo dos homens, para ser bem entendido, poderia ser melhor formulado como o governo segundo o direito natural (ou segundo o direito tradicional) em contraste com o direito positivo (ou o direito estatal), sem o parâmetro no direito natural; a “lei” do governo das leis não é a lei formal, escrita, emana do poder legislativo; é, pelo contrário, o contraste à lei escrita oriunda da assembleia, é a lei acima da assembleia, que é composta por homens. Assim, uma monarquia submetida às leis naturais é um governo das leis, existindo ou não uma assembleia com poderes deliberativos; por outro lado, uma democracia em que tudo é decidido diretamente pela assembleia pode não ser considerada governo das leis, se a assembleia não pautar suas decisões nas leis naturais (ou pelo menos para não confrontá-las)[54].


Republicanismo contemporâneo

O neorepublicanismo conjuga o sentido clássico de república ao debate contemporâneo sobre a boa sociedade. A tradição republicana abrange desde a experiência ateniense, espartana e romana, a experiência florentina e veneziana do século XVI até a experiência inglesa, norte-americana e francesa dos séculos XVII e XVIII, e abrange também desde teorização de Platão e Aristóteles até a teorização de modernos como Montesquieu, Rousseau e Madison. O debate contemporâneo também não se restringe ao embate entre liberais, comunitaristas e libertaristas, pois inclui outros temas contemporâneos como a democracia de massa, a constitucionalização de direitos fundamentais, o Estado providência, o comunismo etc[55]. Os principais divulgadores do neorepublicanismo são John Pocock, Quentin Skinner e Philip Pettit.


Referências

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Notas

[1] Na explicação de Fustel de Coulanges, o núcleo da organização política na Grécia e em Roma é a religião. A família se organiza em torno do culto aos deuses familiares, as outras organizações não passam da união de famílias. O poder reside absolutamente no chefe da família, no pater familae. E quem não está vinculado a alguma família não está sob a proteção religiosa. Ver sobre a organização da cidade no Livro Terceiro e ver sobre as tensões entre a aristocracia e a anti-aristocracia no Livro Quarto. Fustel de Coulanges. A cidade antiga.

[2] Fustel de Coulanges considera a origem religiosa da organização política ocidental (Grécia e Roma). Demonstra como a crença na imortalidade da alma levou gregos e romanos a criarem religiões domésticas associadas a proteção dos antepassados (entes sagrados). A organização familiar, portanto, segundo Fustel de Coulanges, não se firmou naturalmente, mas em decorrência da organização do culto a antepassados comuns. “O que unia os membros da família antiga era algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: e esse poder se encontra na religião do lar e dos antepassados. A religião fez com que a família formasse um só corpo nesta e na outra vida. A família antiga seria pois uma associação religiosa, mais que associação natural”. Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 45.

[3] “A religião doméstica proibia que duas famílias se misturassem e se confundissem. Mas era possível que muitas famílias, sem abrir mão da sua religião particular, se unissem, pelo menos para celebrar outro culto que lhes fosse comum”. É a origem da fratria ou cúria. Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 128. “Na fratria, como na família, havia um deus, um culto, um sacerdote, uma justiça e um governo. Era pequena sociedade modelada exatamente sobre a família”. Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 130.

[4] “Diversas cúrias, ou fratrias, se agruparam, formando a tribo. Este novo agrupamento teve também a sua religião; em cada tribo houve altar e divindade protetora”. Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 130.

[5] “A tribo, como a família e a fratria, constituía-se em corpo independente, com culto especial de onde se excluía o estrangeiro. Uma vez formada, nenhuma nova família podia nela ser admitida. Duas tribos de modo algum podiam fundir-se em uma, pois a religião a isso se opunha. Mas, assim como várias fratrias estavam reunidas em uma tribo, diversas tribos puderam associar-se, sob condição de o culto de cada uma ser respeitado. No dia em que se firmou essa aliança nasceu a cidade” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, pp. 137-8.

[6] “A cidade era uma confederação” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 138.

[7] “Cidade e urbe não foram palavras sinônimas entre os antigos. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio e sobretudo o santuário desta sociedade” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 145.

[8] “Se quisermos definir o cidadão dos tempos antigos pelo seu atributo mais essencial, devemos dizer que é cidadão todo o homem que segue a religião da cidade” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 213.

[9] “O que mais manifestamente separa o plebeu do patrício é que plebeu não segue a religião da cidade. [...] O plebeu é um estrangeiro e, por isso, sua presença profana o sacrifício” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 262.

[10] “Ao contrário, o estrangeiro é aquele que não tem acesso ao culto, a quem os deuses da cidade não protegem e que nem sequer tem o direito de invocá-los” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 214.

[11] Fustel de Coulanges identifica um fator relevante para a origem das desigualdades na cidade antiga: “O filho primogênito, sucedendo sozinho ao pai, tomava em suas mãos o sacerdócio, a propriedade, a autoridade; seus irmãos eram, a seu respeito, o que já haviam sido em relação ao pai. De primogênito em primogênito, não havia mais que um chefe de família; este presidia ao sacrifício, dizia a oração, julgava e governava. [...] Depois de várias gerações formam-se naturalmente, em cada uma das grandes famílias, ramos mais novos que estão, pela religião e pelo costume, em estado de inferioridade em relação ao ramo mais velho e assim, vivendo sob sua proteção, devem obediência à sua autoridade” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 255.

[12] “Revolução semelhante, com aspectos ligeiramente diferentes, aconteceu em Atenas, em Esparta, em Roma, em todas as cidades enfim, cuja história nos é conhecida. Em toda parte a revolução foi obra da aristocracia, com o fito de suprimir a realiza política deixando subsistir a realeza religiosa” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 275.

[13] Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 282.

[14] Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 283.

[15] Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 297.

[16] “A cidade, na origem, nada mais foi do que a reunião dos chefes de família. Temos testemunhos do tempo em que só eles podiam ser cidadãos” Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 257.

[17] Sobre o modelo grego, Aristóteles descreve a politeia em A política e descreve as instituições atenienses em A constituição de Atenas. Cf. Aristóteles. A política; e Aristóteles. A constituição de Atenas.

[18] Cf. Paulo Levorin. Republica dos antigos e república dos modernos, p. 73.

[19] Depoimento do historiador germânico Oto de Freising, no século XII, sobre a organização social e política no Norte da Itália: “Tinham-se tornado, as cidades italianas, ‘tão desejosas de liberdade’ que se converteram em repúblicas independentes; cada uma delas era governada ‘pela vontade de cônsules mais que de príncipes’, a quem ‘trocavam [do cargo] quase que anualmente’, a fim de garantir que fosse controlado seu ‘apetite de poder’ e preservada a liberdade popular”. Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno, p. 25.

[20] “A primeira cidade italiana a adotar uma forma consular de governo como a descrita, tanto quanto se sabe, no ano de 1085 [...]. Na segunda metade do século ocorreu uma importante modificação: o poder dos cônsules foi suplantado por uma forma mais estável de governo eletivo à volta de um funcionário conhecido como potestà, assim chamado porque era investido com o poder supremo – ou potestas – sobre a cidade. Normalmente o potestà era cidadão de outra cidade, procedimento seguido a fim de garantir que nenhum vínculo ou lealdade local o perturbasse na administração, que deveria ser imparcial, da justiça. Era eleito pelo voto popular, e geralmente governava consultando dois conselhos principais, sendo que um deles poderia chegar a ter até seiscentos membros, enquanto o conselho menor ou secreto usualmente estaria limitado a uns quarenta cidadãos de maior destaque”. Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno, pp. 25-6.

[21] “Contudo, a principal característica a marcá-lo era que sua condição sempre foi a de um funcionário assalariado, nunca a de um governante independente. Seu tempo de mandato costumava limitar-se a seis meses, e por todo esse prazo ele se conservava responsável perante o corpo de cidadãos que o elegera. Não tinha o direito á iniciativa das decisões políticas, e ao terminar seu mandato era obrigado a submeter-se a um exame formal de suas contas e sentenças, antes de obter permissão para deixar a cidade que o empregara”. Quentin Skinner. As fundações do pensamento político moderno, p. 26.

[22] Dodici Buonomini.

[23] Literalmente aquele que porta a bandeira ou estandarte (gonfalone).

[24] Cf. Paulo Levorin. A república dos antigos e a república dos modernos, p. 70.

[25] Paulo Levorin. A república dos antigos e a república dos modernos, pp. 70-1. A história política de Florença, entre os séculos XIII e XVI, foi turbulenta. Até meados do século XIII, Florença foi sacudida pelo conflito entre guelfos e gibelinos; a vitória dos guelfos provocou nova rivalidade entre duas novas facções - brancos e negros; que resultou na vitória dos negros e no expurgo dos rivais. No século XV, a história de Florença foi marcada pelo predomínio político da família Médici, sob uma fachada republicana. A queda do regime dos Médici foi sucedida pela turbulenta e breve república popular de Savonarola e, depois, por uma república inspirada em Veneza (com o chefe da signoria vitalício, tal como o doge veneziano). Em 1512, o regime dos Médici é restaurado e, em 1527, os Médici são novamente banidos e a república renovada; três anos depois, Florença é conquistada pelo Imperador Carlos V, a república é novamente dissolvida, e é instituído o Ducado de Florença, que se mantém até 1737.

[26] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 177.

[27] Paulo Levorin. Republica dos antigos e república dos modernos, p. 80.

[28] Sobre Guicciardini, cf., também, Felipe C. Teixeira. O melhor governo possível.

[29] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 186.

[30] Os ottimati representam as famílias “estabelecidas há bastante tempo, de origem mais comerciante que nobre, que se consideravam a si mesmas como uma classe governante hereditária ou como um elemento determinante da cidade, distinguidos por sua prudência, sua experiência e por possuir umas amplitudes políticas acima da média; um grupo, em suma, assimilável àquelas elites aristotélicas às que epítetos como ‘poucos’, ou ‘aristocracia’, poderiam ser perfeitamente aplicados”. John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 187.

[31] Olavo de Carvalho destaca: “o feito máximo de Roma [foi]: unificar, sob uma mesma legislação e um mesmo governo, uma multiplicidade de povos, convivendo na harmonia de suas diferenças e todos contribuindo para a riqueza e grandeza do Império”. Olavo de Carvalho. O jardim das aflições, p. 209.

[32] “Em primeiro lugar, convém pôr de lado todas as nossas ideias sobre política moderna, e não imaginarmos os povos a entrar na participação do Estado romano um após outro, como seria em nossos dias com as províncias conquistadas e anexadas a um reino, que acolhendo esses novos membros, expande suas fronteiras. O Estado romano, civitas romana, não crescia pelas conquistas; continuava constituído só pelas famílias que figuravam na cerimônia religiosa do censo. O território romano, ager romanus, não se estendia mais que o próprio estado; continuava encerrado nos limites imutáveis que os reis lhe havia traçado e a cerimônia das (Ambarvales) santificava todos os anos. Somente duas coisas aumentavam a cada conquista: era a dominação de Roma, o imperium romanun, e o território pertencente ao estado romano, o ager publicus”. Fustel de Coulanges. A cidade antiga, p. 398.

[33] “A história política do Ocidente pode ser, sem erro, facilmente resumida como a história das lutas pelo direito de sucessão do Império Romano”. Olavo de Carvalho. O jardim das aflições, p. 209.

[34] Cf. Olavo de Carvalho. O jardim das aflições, passin.

[35] Dante era uma figura respeitada em Florença e, em 1300, foi escolhido como um dos prioris. Não se sabe se foi durante seu mandato ou logo depois, o certo é que os negros tentaram um golpe de Estado que terminou frustrado. A signoria, com influente participação de Dante, decidiu exilar os principais líderes de ambas as facções para sedimentar a paz. Menos de um ano depois de exilado, Corso Donati (chefe dos negros), com o apoio do Papa (Bonifácio VIII), invadiu Florença e tomou o governo. Houve intensa perseguição aos opositores do regime. Dante e outros foram julgados e condenados. Dante foi obrigado a se exilar e teve seus bens confiscados. Nunca mais voltou a Florença e foi no exílio que escreveu De Monarchia.

[36] Dante Alighieri. Da monarquia.

[37] Perceba-se como o pensamento político de Dante ainda está impregnado com o paradigma medieval.

[38] Raymond Gettel. Historia de las ideas políticas, p. 206.

[39] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 439.

[40] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 440.

[41] Cf. John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 441. É o que ressalta, também, Paulo Levorin: “apesar da reabilitação dos clássicos da política na Inglaterra desde o século XVI, para conferir autoridade ao seu documento, Carlos I recorre não à Antigüidade, mas à própria tradição. Esta ‘antiga, justa, ótima, bem balanceada e jamais suficientemente louvada Constituição deste reino’, informa Carlos I aos seus súditos, foi fruto ‘da experiência e da sabedoria dos nossos ancestrais’.” Paulo Levorin. A república dos antigos e a república dos modernos, p. 107.

[42] “Harrington escreve sua obra para Cromwell, quando ele havia dissolvido o Parlamento e governava com o apoio exclusivo do exército. O autor conclama o general a seguir o exemplo do mítico legislador de Oceana [e de Licurgo]. [...] Tomados por estas palavras, chegou a duas conclusões, que a república deve ser obra de um único legislador e que nela o governo deve ser de todos e, além do mais, unânime”. Paulo Levorin. A república dos antigos e a república dos modernos, p. 128.

[43] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 469.

[44] John G A Pocock. El momento maquiavélico, p. 473.

[45] “Nesta opinião sobre a importância do termo ‘república’, ao invés de dizer, como se disse, ‘que pode significar tudo ou nada’, podemos dizer, no verdadeiro sentido, que os governos são mais ou menos republicanos quando têm mais ou menos dos elementos de eleição popular e controle em sua composição; e acreditando, como realmente acredito, que a massa dos cidadãos é o depositário mais seguro de seus próprios direitos, e especialmente que os males que fluem dos logros do povo são menos prejudiciais que os que derivam do egoísmo de seus agentes, sou partidário da composição de governo que tenha em si o máximo desse ingrediente”. Thomas Jefferson. Escritos políticos, pp. 48-9.

[46] Carta de Thomas Jefferson a John Adams, em 1813: “Concordo convosco em que há uma aristocracia natural entre os homens. Os fundamentos destas são virtude e talento. [...] Há, também, uma aristocracia artificial, fundada na riqueza e no nascimento, sem virtude ou talento; essa pertenceria à primeira classe. Considero a aristocracia natural como o mais precioso dom da natureza para a instrução, a confiança e o governo da sociedade. [...] A aristocracia artificial é ingrediente malévolo no governo, e devia-se fazer provisão para impedir-lhe a ascendência”. Thomas Jefferson. Escritos políticos, p. 86.

[47] “O ponto, porém, que mais aprecio é o da divisão de condados em distritos. Estes serão puras repúblicas elementares, a soma de todas as quais, consideradas em conjunto, compõe o Estado, e tornará o todo uma verdadeira democracia quanto aos negócios dos distritos que são os de maior interesse cotidiano. As questões das grandes seções: de condados, de estados e da União, não admitindo transações pessoais pelo povo, serão delegadas a agentes eleitos por ele mesmo, e a representação será assim substituída onde a ação pessoal se torne impraticável. Contudo, mesmo sobre esses órgãos representativos, caso se tornem corruptos e pervertidos, a divisão em distritos, constituindo o povo em seus distritos um poder regularmente organizado, possibilita-o por essa organização esmagar, de modo regular e pacífico, a usurpação de seus agentes infiéis, poupando-se-lhe a horrível necessidade de fazê-lo pela insurreição. Desse modo, seremos tão republicanos quanto uma grande sociedade possa ser e asseguraremos a continuação de pureza em nosso governo pelo controle salutar, pacífico e regular do povo. Não se encontrou ainda nenhum outro depositário de poder que não acabe em converter para ser próprio proveito os ganhos daqueles de cujos cargos foram incumbidos [...]”.Thomas Jefferson. Escritos políticos, p. 92.

[48] Deve-se ter cuidado para não ser induzido ao equívoco por Benjamin Constant; o que Constant denomina de liberdade dos antigos é, na verdade, a liberdade moderna democrática.

[49] Quentin Skinner. Estados livres e liberdade individual, p. 213.

[50] Cf. Olavo de Carvalho. Maquiavel (DVD).

[51] Sobre Maquiavel, cf., também, Newton Bignoto. Maquiavel republicano (e Newton Bignoto. As fronteiras da ética).

[52] No sentido que emprega Fustel Coulanges, para aqueles que são vinculados à religião da cidade.

[53] Quentin Skinner. Estados livres e liberdade individual, p. 218-9.

[54] É curioso notar como a evolução do sistema político ateniense se dá sem relevante alteração formal das instituições; alguns órgãos são criados, algumas funções são redistribuídas, mas formalmente as instituições antigas se preservam, pois são naturais.

[55] Perceba-se um dado curioso, os novos republicanos precisam demonstrar a peculiaridade da liberdade republicana frente à liberdade liberal; embora a liberdade republicana seja cronologicamente anterior à liberdade liberal. No entanto, a hegemonia paradigmática foi eficaz em afastar os elementos do paradigma velho; assim, diversos elementos republicanos foram adequados ou substituídos por elementos modernos, particularmente liberais e democráticos.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATOS, Nelson Juliano Cardoso. Do republicanismo clássico ao neorepublicanismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3315, 29 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22292. Acesso em: 1 maio 2024.