A expressão “república” pode ser utilizada no sentido fraco e no sentido forte. No sentido fraco, república é, simplesmente, o governo não hereditário; assim, república no sentido fraco se opõe à monarquia, também entendida no sentido fraco; seguindo esse entendimento, a ideia de república se confunde com a ideia de democracia representativa, isto é, confunde-se com uma organização política em que os governantes são eleitos para mandatos determinados, sujeitos, portanto, a periódicas eleições. Em sentido forte, república se opõe às formas tirânicas, despóticas, autocráticas e absolutistas de governo. Nesse sentido, a princípio, a monarquia em sentido fraco não se opõe à república em sentido forte. O republicanismo é uma teoria sobre o sentido forte da república.
Modelos históricos do republicanismo
Preferiu-se, também, fazer a distinção entre o republicanismo clássico e o republicanismo contemporâneo (neorepublicanismo). Considera-se republicanismo clássico, apenas para fins didáticos, toda a tradição republicana desde a Antiguidade grega até as revoluções liberais na Europa e nos Estados Unidos dos séculos XVII e XVIII. Nesse sentido, a república se manifestou originalmente na Grécia (como politeia) e em Roma (como res publica, inclusive durante o Império); a segunda onda republicana foi promovida pelo humanismo italiano (especialmente em Veneza e em Florença); a terceira onda republicana se manifestou na commonwealth inglesa (no século XVII), nos Estados Unidos e na França (no final do século XVIII). O republicanismo contemporâneo (ou neorepublicanismo) ressurgiu no contexto do debate sobre a boa sociedade (sobre a organização justa da sociedade) entre liberais e comunitaristas. O neorepublicanismo, portanto, é herdeiro de uma larga tradição, e não a renega; assim, o republicanismo é uma teoria pragmática por excelência, adaptando-se a cada situação para alcançar seus fins; o passado fundamenta e explica o presente e o presente é voltado para o futuro.
Uma teoria republicana contemporânea, portanto, precisa considerar três aspectos recepcionados da teoria tradicional: (a) conjugar os modelos de república no âmbito comunitário, nacional e universal, (b) mediar a rivalidade entre os modelos democrático e aristocrático de república e (c) compreender a associação entre as ideias de governo das leis, governo moderado e governo misto.
Republicanismo da cidade-Estado
Durante muito tempo, defendeu-se que a república só era possível em pequenas comunidades; esse era o entendimento dominante desde Aristóteles e Platão até Montesquieu e Rousseau; logo, a república cabia apenas no tamanho da cidade-Estado. Mesmo em Roma, durante o Império, vigoravam dois princípios, o republicano, válido para os romanos (a pequena comunidade dos romanos), e o princípio despótico, válido para os outros povos que integravam o Império. Há cinco casos bastante conhecidos de experiência republicana em cidades-Estado: Atenas, Esparta, Roma, Veneza e Florença. Os três primeiros exemplos são cidades antigas e os dois últimos são cidades modernas (do século XV).
As três repúblicas antigas nasceram como comunidades pequenas rigidamente coesas por laços sangüíneos e religiosos. Fustel de Coulanges[1] descreveu como essas comunidades antigas se formaram a partir do culto familiar aos deuses domésticos (relacionados aos antepassados[2]) e da associação entre famílias (para cultuar outros deuses); assim, as famílias se organizaram em fratrias[3], que se organizaram em tribos[4], que se organizaram na cidade[5]; a cidade, no entanto, não era a aniquilação das organizações anteriores, mas uma espécie de confederação de famílias[6]. A cidade antiga (a comunidade) resultava em uma relação tirânica entre o chefe da família (o pater) e os seus dependentes e, ao mesmo tempo, em uma relação igualitária (republicana) dos chefes de família (patrícios, cidadãos) entre si.
A cidade antiga, no entanto, não deve ser confundida com a cidade moderna; aquela se constituía apenas da comunidade de famílias patrícias que se reuniram originalmente para o culto do deus da cidade; não fazia parte da cidade, ainda que habitasse na urbe ou próximo dela[7], aquele que não adotasse (talvez ficasse melhor fosse adotado) a religião da cidade; para cultuar o deus da cidade era preciso cultuar um deus doméstico vinculado a uma das famílias fundadoras da cidade e o culto doméstico era restrito a poucos[8]. A distinção entre patrícios, clientes e plebeus[9], portanto, é decorrente deste critério; os patrícios e os clientes cultuavam um deus doméstico (os patrícios descendentes do deus e os clientes agregados à família) e os plebeus não cultuavam nenhum deus da cidade[10]. Com o passar do tempo, o poder absoluto dos chefes de família[11] foi gradualmente perdido em decorrência de tensões sociais e políticas[12] que resultaram, primeiro, no fim do privilégio da primogenitura[13], depois, na libertação dos clientes[14] e, por fim, na participação da plebe na cidade[15].
Da história destes conflitos resultou a formulação da doutrina do governo moderado e da doutrina do governo misto, assegurando um equilibro social com o reconhecimento da participação de todas as forças sociais na cidade. Há, no entanto, um aspecto mítico no republicanismo clássico; a comunidade reconhecida como tal é a comunidade originária dos patrícios, esses sim se reconheciam como iguais ainda que não entendessem o sentido de uma comunidade além do agrupamento familiar; entre outros fatores (como a guerra), eram os laços religiosos que os tornavam fortemente unidos[16]. O advento da república democrática foi decorrente da fragilidade dos laços religiosos (sustentáculos do sistema aristocrático) e, portanto, encontrou na igualdade e na participação os fundamentos da nova comunidade e da nova república. No entanto, perceba-se que o modelo de república que ficou no imaginário dos republicanos modernos, inclusive no de Jean-Jacques Rousseau, foi Esparta, aquela cidade que, das três, conseguiu por mais tempo se manter fechada, e que, por isso, manteve um corpo reduzido e homogêneo de cidadãos, à custa de um grupo numeroso de escravos, plebeus e clientes (excluídos da cidade). A despeito de Esparta ser celebrada como modelo republicano, é em Atenas que se percebe a engenhosidade do desenho institucional[17]. É Atenas, e não Esparta, que precisa lidar com a diversidade de forças sociais.
As duas repúblicas modernas são duas cidades-Estado italianas: Florença e Veneza. Apesar da distância cronológica, há semelhanças entre a cidade antiga e a cidade italiana dos séculos XV e XVI: (a) em ambos os casos, tratam-se de cidades-Estado (embora fosse conhecido dos italianos o Estado nacional e o Império), (b) o sentido de comunidade política, em ambos os casos, era restrito e não se confundia com a população ou com qualquer pretensão de universalização da participação política (pretensão típica do século XX), (c) todas as cidades-Estado adotavam uma política de relações exteriores conflituosa com os vizinhos. Essas semelhanças fizeram com que, no renascimento italiano, a política italiana fosse inspirada na imitatio dos gregos e romanos antigos[18].
Veneza e Florença representavam dois modelos de república: a república aristocrática e a república popular, respectivamente. Curiosamente, a estabilidade política veneziana em contraste com a instabilidade florentina resultou em duas conseqüências: (a) a formulação do mito de Veneza e (b) a intensa produção doutrinária florentina sobre o bom governo. O debate republicano em Florença, portanto, girava em torno da percepção que os florentinos tinham de Veneza: como governo moderado ou como governo oligárquico; sobretudo, depois da morte de Cosmo Médice, em 1465, e do turbulento governo de Savonarola.
A controvérsia se firmava sobre o desenho da organização política da nova república a partir de instituições já estabelecidas. No século XII, no lugar do príncipe, as repúblicas italianas elegiam anualmente um cônsul[19] e, depois, um potestà; o potestà era cidadão de outra cidade para que fosse imparcial[20]; e governava com dois órgãos consultivos, um conselho maior (aristocrático) e um conselho menor (popular); ao final do mandato, o potestà submetia a avaliação do seu governo aos cidadãos para ter permissão de sair da cidade[21]. Em 1282, em Florença, o regime do potestà foi substituído pelo priorato; as funções do potestà foram atribuídas à signoria, órgão colegiado composto por nove magistrados (prioris); juntamente a signoria foram instalados outros dois órgãos consultivos, o colégio dos doze sábios[22] e o colégio dos dezesseis gonfaloneiros[23]; todos os prioris, sábios e gonfaloneiros eram eleitos para mandatos de, no máximo, quatro meses. Florença, no século XIV, já constituía, para os padrões da época, um governo popular; tratava-se de um autogoverno, que, no entanto, excluía a nobreza e os assalariados da participação política[24]; destaca-se, na organização política florentina, a engenhosidade do desenho institucional com a finalidade de evitar o governo pessoal, mantendo o poder coletivo, republicano.
<<Os cargos públicos são preenchidos em duas fases distintas: a qualificação do candidato através do voto e o sorteio dos candidatos aos cargos vagos, seguindo o critério de rodízio [...]. [Podem candidatar-se apenas aqueles estiverem inscritos em uma das diversas guildas (arti)] – tanto nas arti maggiori (advogados, banmqueiros, médicos, mercadores de tecidos, de especiarias e de couro, que formam os amgnati) quanto nas arti minori (açougueiros, pedreiros, carpinteiros, vinhateiros, alfaiates, padeiros e outros artesãos menores). Ao final do escrutínio [...], [os candidatos habilitadas precisam obter] obtêm pelo menos dois terços dos votos [...]. Sempre que um cargo se encontra vago, é feito um sorteio público, eliminando-se sucessivamente aqueles que ocuparam recentemente um posto, pois, para assegurar a rotatividade dos cargos, a reeleição só é permitida a cada dois ou três anos. A ideia é que o maior número de cidadãos qualificados (os membros das guildas que estão em dia com os impostos) pudesse participar diretamente da vida pública da cidade>>[25].
A dualidade entre o modelo de Veneza (aristocrático) e o modelo de Florença (popular) teve início, pode-se dizer, com a idealização da república florentina por Leonardo Bruni de Arezzo, no início do século XV. Declaradamente inspirado em Atenas, durante o período de Péricles, para Bruni
<<o completo desenvolvimento da cidadania requer que o poder resulte exercido por tantos homens como seja possível. Se o número de cidadãos efetivos é reduzido, então o número de grupos de elite que governam a cidade será igualmente reduzido e, em conseqüência, ao ser também reduzido o número de virtudes que se exercem no governo, cabe o traço – segundo os princípios aristotélicos e polibianos – de que essas virtudes se corrompam ao não ter a necessidade de reconhecer a existência de outras>>[26].
A idealização da Florença de Bruni passou pela defesa de que Florença recebeu o legado republicano de Roma. Para Bruni, “seguindo a concepção aristotélica, a virtude cívica exige a igualdade política, assim como a participação direta de todos os cidadãos no governo exige que todos comunguem esta mesma disposição ética”[27]. O projeto de Bruni teve sua aplicação na ampliação dos guildas e, de forma mais radical, na república democrática durante o período de Savonarola.
Opondo-se à doutrina do mito de Florença (democrático), a doutrina aristocrática em Florença defendia o mito de Veneza. O principal teórico do mito de Veneza foi Francesco Guicciardini[28] (que publicou, no início do século XVI, Del reggimento di Firenze). O mito de Veneza procurava demonstrar que o desenho institucional veneziano não era aristocrático, mas representava a imitação da república antiga, isto é, a reprodução moderna do governo moderado e do governo misto:
<<A primeira era a análise do poder dos governantes repartido entre um Dogo, um Senado e um Consiglio Maggiore, no que parecia residir aquela combinação de um, poucos e muitos de que falaram os teóricos clássicos. A outras era a limitação, estabelecida desde algum tempo, da cidadania – entendida como participação política – a um corpo certamente numeroso ainda que limitado de antigas famílias. Uma classificação deste estilo parecia obrigar a definir Veneza como uma oligarquia ou aristocracia. Ainda assim, era usual tratar a classificação numérica de um, poucos e muitos como equivalente à classificação social da monarquia, da aristocracia e da democracia. Então, Veneza era um regime misto no verdadeiro sentido do termo ou uma pura e efetiva aristocracia? Uma parte importante do mito que revestia a Sereníssima República pode ser atribuído à ambivalência de fundo deste paradigma>>[29].
Politicamente, a doutrina de Guicciardini e o mito de Veneza foram sustentados, em Florença, por um grupo conhecido como ottimati[30], em direta referência à aristocracia senatorial romana.
Curiosamente, tanto Bruni quanto Guicciardini faziam apologia ao governo moderado e ao governo misto; a própria organização política de Florença, desde o século XIII, foi formalmente adequada a esses dois preceitos republicanos. A distinção entre eles é que Bruni concentrava os poderes importantes no órgão popular e Guicciardini concentrava os poderes importantes no órgão aristocrático. Outra distinção é que Guicciardini defendia que apenas o órgão popular fosse submetido a eleições periódicas para escolha dos seus membros e que o órgão aristocrático e o órgão monárquico fossem compostos por magistrados com mandato vitalício ou hereditário. A história política de Florença até o predomínio dos Médici foi uma progressiva democratização da república.
Republicanismo do Império
A despeito do que possa parecer, a república romana que se converteu em Império com Otávio continuou republicana. A confusão é provocada pelos modernos quando confundem a monarquia com o império, embora sejam duas categorias distintas. O império se distingue da cidade-Estado e não da república; refere-se, portanto, a uma nova dimensão da comunidade política, para muito além da pequena comunidade homogênea unida por laços de parentesco e religiosidade[31].
O republicanismo no Império romano é possível com adoção de um regime dualista: (a) republicano em Roma e (b) despótico nas províncias. Isto é, o imperador era o principes senatus (o primeiro entre iguais) em Roma e era o imperador proconsular nas províncias (o comandante militar); ou seja, republicano entre os cidadãos romanos e despótico para os estrangeiros (os não romanos)[32]. A forma republicana foi mantida durante todo o Império, mas, de fato, o republicanismo desapareceu quando o imperador passou a acumular os poderes que tradicionalmente estavam separados e quando assumiu para si o caráter de divindade.
Mesmo com a queda de Roma, a ideia de império é recorrente até os dias de hoje[33]. A translatio imperii para Constantinopla (Império bizantino), nesse sentido, se repete na constituição do Sacro império de Carlos Magno, em 800; novamente no Sacro império romano-germânico de Otto I, em 962; mais uma vez com o Império de Napoleão, em 1806; com o Império britânico e com o Império norte-americano (este último por outras bases)[34].
Os impérios restaurados, no entanto, nem sempre tiveram a forma republicana. No momento crucial da passagem do Medievo para a Idade Moderna, Dante Alighieri fez, na Itália, uma apologia ao império republicano, que coincidia com o contexto imediatamente anterior ao da afirmação dos Estados nacionais (reinos nacionais) na Europa. Dante apresentou sua doutrina em obra menos difundida, denominada De Monarchia, publicada no início do século XIV[35]. O título – Sobre a monarquia – pode levar à falsa impressão de se tratar de uma obra não republicana. Trata-se, no entanto, de direta referência ao Império romano (e seus sucessores). O objetivo de Dante não foi, portanto, contrapor a monarquia à república, mas foi contrapor o governo universal ao governo da cidade (por um lado) e contrapor o governo temporal (universal) ao governo espiritual (universal). O título, portanto, bem que poderia ser “do governo universal” ou “da república universal”. Na obra, Dante explicou que a necessidade do império (governo universal) é a da própria natureza humana: “toda humanidade se ordena a um fim único. É preciso, então, que um só coordene e seja. Tal chefe deverá chamar-se Monarca ou Imperador”[36]. O governo universal, no entanto, não é governo absoluto, trata-se apenas de um governo que, acima dos governos nacionais (dos reinos, por exemplo), pode cuidar de temas de caráter universal, bem como pode dirimir as controvérsias entre os reinos[37]. É como interpreta Raymond Gettel:
<<O imperador, ao invés de ser um déspota universal, tem que ser uma espécie de árbitro nos assuntos internacionais, para decidir as contendas que possam suscitar-se entre os governos dos diversos principados e cidades, e manter a paz entre eles>>[38].
O republicanismo de Dante é um republicanismo aristotélico, transmitido por S. Tomás de Aquino. Baseia-se, sobretudo, na ideia de governo submetido às leis, isto é, governo submetido à “lei eterna”. É essa a característica que distingue o governo republicano do tirânico.
Repúblicas modernas
A terceira onda republicana atingiu diferentemente a Inglaterra, os Estados Unidos e a França. A Inglaterra no século XVII, principalmente durante a revolução puritana, e os Estados Unidos e a França, no século seguinte.
Na Inglaterra, antes da vitória do parlamento, da decapitação do rei e da instituição da Commonwealth, a doutrina republicana foi enunciada pelos partidários do rei Carlos I. Durante a guerra civil, o parlamento aprovou as Dezenove proposições do parlamento; em resposta, o rei mandou publicar um documento que declarava que “a Inglaterra era um regime misto e não uma monarquia condescendente[39]”; tratava-se de uma proclamação elaborada em junho de 1642 pelo Visconde Flakland e por Sir John Colepeper, conselheiros do rei, inspirados, principalmente, na doutrina florentina sobre o mito veneziano; o documento ficou conhecido como His Majesty´s Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament. John Pocock transcreveu parte da declaração:
<<Posto que não existam mais que três tipos de governo entre os homens, monarquia absoluta, aristocracia e democracia, e todos eles tem suas particulares vantagens e inconvenientes, a experiência e a sabedoria de vossos antepassados ao modelar esta (nossa) forma mesclando as três, proporcionou a este reino (até onde pode fazê-lo a prudência humana) as vantagens das três sem os inconvenientes de nenhuma, em tanto que o equilíbrio se mantenha entre os três estados e cada um deles discorra exatamente por seu próprio curso (produzindo verdor e fertilidade nos prados de ambas as ribeiras) o desbordamento de um ou outro ou qualquer não ocasionará dilúvios ou inundações. A enfermidade da monarquia absoluta é a tirania, a enfermidade da aristocracia é a facção e a divisão, e a enfermidade da democracia são os tumultos, a libertinagem e a violência. O bom da monarquia é que une a nação sob uma cabeça e resiste a invasão do estrangeiro e a insurreição interna; o bom da aristocracia é a conjunção em conselho das pessoas mais capazes do estado para benefício público; o bom da democracia é a liberdade e a coragem e a industria que engendra a liberdade>>.[40]
Desta maneira, como destacou Pocock, o fundamento de legitimidade da monarquia inglesa não se encontrava na origem divina ou na vontade racional, mas na prudência humana[41], isto é, na engenharia institucional para proteger a liberdade. Liberdade no sentido republicano, ressalte-se.
Assim como a doutrina real foi inspirada no mito de Veneza, depois da guerra, durante o regime de Cromwell, James Harrington apresentou, em Oceana[42], sua utopia republicana para a Inglaterra inspirada no mito de Florença. É da adaptação das milícias-cidadãs de Maquiavel que Harrington desenvolveu a ideia de uma república (democracia) dos proprietários de terra, ou melhor, percebendo que a república só seria possível com cidadãos independentes, autossuficientes, a república deveria necessariamente promover não apenas a extensão da cidadania, mas as condições para a cidadania, para assim instituir uma república dos pequenos proprietários de terra, dos gentlemen. Nesse sentido, Harrington antecipou a democracia dos pequenos proprietários de Thomas Jefferson e a democracia dos cidadãos-proprietários de John Rawls. James Harrington relacionou a ideia maquiavélica da cidadania em armas com a ideia feudal de que a nobreza armada era também uma nobreza proprietária; a partir desta ligação, desenvolveu os argumentos para concluir pela necessidade de uma democracia de proprietários de terras.
<<Harrington acreditou firmemente que só uma democracia de proprietários de terras (‘democracy of landholders’i) – isto é, uma sociedade em que um demos ou um grande número de proprietários livres, possuindo a terra em condições de relativa igualdade – contaria com os recursos humanos (Maquiavel havia falado de matéria) necessários para poder efetuar uma repartição da autoridade política segundo os postulados de diversificação e equilíbrio que permitem a uma politeia alcançar a auto-estabilidade; e uma república desse gênero, poderia resultar teoricamente imortal>>[43].
Nesse sentido, John Pocock considerou que a ampla distribuição da propriedade visava assegurar a estabilidade e garantir condições aceitáveis de vida; “a propriedade vinculava o homem a uma estrutura de poder na que podia participar e demonstrar sua virtude, e a deparava o ócio necessário para praticá-las”[44].
A república norte-americana e a república francesa, de certo modo, também refletem um imitatio. Na França, Robespierre e Saint-Just, inspirados em Jean-Jacques Rousseau, procuraram adotar uma república nos moldes da cidade antiga, com a participação direta dos cidadãos nas decisões políticas, sem conseguir perceber a distinção entre a prática política das repúblicas antigas e o mito que as encobria; por exemplo, a constituição da Convenção prescrevia a instituição da democracia direta em um Estado moderno (com imenso corpo eleitoral). Nos Estados Unidos, tal como em Florença, distinguiram-se dois grupos republicanos: os partidários de Thomas Jefferson (democrático)[45] e os partidários de John Adams (aristocrático)[46]; essa rivalidade se expressava em posições antagônicas sobre o federalismo, os jeffersonianos (“democratas-republicanos”) defendiam a descentralização dos espaços de decisão política para que o povo pudesse participar do e controlar o governo[47]; os “federalistas” (partidários de John Adams e Alexander Hamilton) defendiam um governo central forte e um procedimento de seleção das lideranças (elite) para exercer o poder nacional. Na América Latina, especialmente na América espanhola, é forjado um republicanismo de inspiração francesa, mas de um republicanismo pós-revolucionário; assim, inspirado em Montesquieu e não em Rousseau; depois, por influência do republicanismo norte-americano. No Brasil, particularmente, percebe-se a influência francesa no constitucionalismo imperial e a influência norte-americana no constitucionalismo da Primeira República.
Perceba-se como os temas republicanos são recorrentes e como, pelo imitatio, as experiências ou os mitos persistentes influenciam as aplicações posteriores.