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O novo sistema brasileiro de defesa da concorrência e a proteção ao meio ambiente pela via do jus-humanismo normativo

O novo sistema brasileiro de defesa da concorrência e a proteção ao meio ambiente pela via do jus-humanismo normativo

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A dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros são conseqüências indesejadas do próprio abuso do poder econômico, alcançado, por vezes, a partir de uma conduta de desrespeito ao meio ambiente.

Resumo: O papel normativo e regulador do Estado na atividade econômica, estabelecido expressamente pela Constituição Federal do Brasil de 1988, impõe a atuação contundente no sentido de reprimir o abuso do poder econômico em todas as suas diversas formas, sem se olvidar que a repressão e a prevenção às infrações contra a ordem econômica devem ser orientadas por todos os princípios que estruturam a própria ordem econômica, e não apenas pelos expressamente mencionados na Lei Federal nº 11.529, de 30 de novembro de 2011, que estabelece o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Desta feita, exige-se a defesa do meio ambiente através da própria repressão e prevenção às infrações contra a ordem econômica, o que se permite compatibilizar através da aplicação das lições do jus-humanismo normativo na defesa do homem e de todos os homens.

Palavras-chave: DEFESA DA CONCORRÊNCIA; MEIO AMBIENTE; JUS-HUMANISMO NORMATIVO.


INTRODUÇÃO

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (UNCSD), também conhecida como Rio+20, ocorreu no Brasil de 20 a 22 de junho de 2012, conforme a Resolução 64/236 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta conferência marcou o 20º aniversário da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UCED), realizada no Rio de Janeiro em 1992, bem assim os 40 anos da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, que deu início à série de declarações internacionais sobre o tema.

A ONU disponibilizou em 10 de janeiro de 2012 o documento de referência para a Rio+20, denominado “O Futuro que Queremos”[1], no qual expressamente ressalta a determinação em libertar toda a humanidade da fome por meio da erradicação da pobreza, na busca de uma sociedade justa, igualitária e inclusiva, fazendo referência, também, à necessidade de se obter uma estabilidade econômica e crescimento para todos.

Em adição, o documento em epígrafe da ONU faz expressa menção de que as ações dos Estados-membros devem preencher os espaços necessários para uma maior integração entre os três pilares de desenvolvimento sustentável – o econômico, o social e o ambiental.

No ambiente nacional, em 30 de novembro de 2011, foi publicada a Lei Federal nº 12.529, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, dispondo sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, revogando, quase em sua totalidade, a Lei Federal nº 8.884/1994.

As disposições legais da Lei 12.529/2011 deverão conformar o ambiente econômico nacional a partir de sua entrada em vigor, prevista para 180 dias após a data da publicação, de forma que neste cenário de crescente preocupação com a escassez dos recursos naturais e aumento exponencial da poluição no planeta, o que trouxe todas as atenções em âmbito global para a Conferência Rio+20, o legislador pátrio perdeu uma grande oportunidade para inserir na nova lei em comento alguns dispositivos que pudessem conferir uma indispensável visão integrada e interdependente dos três pilares do desenvolvimento sustentável, conjugando o aspecto econômico com o social e o ambiental.

No artigo 1º da lei em comento, dentre diversos princípios, sequer o princípio da defesa do meio ambiente foi veiculado como vetor de orientação quando da apreciação dos casos de supostas infrações à ordem econômica, o que seria oportuno para reforçar esta compreensão integrada e interdependente dos aspectos econômico, social e ambiental.

De qualquer forma, tratando-se de direito humano de terceira dimensão, com vistas à proteção de toda a coletividade da geração presente e das futuras, na amplitude imprescindível para se evitar conflitos de gerações pelo uso dos recursos naturais limitados, com ampla proteção jurídica na perspectiva internacional e, bem assim, Constitucional brasileira, a defesa do meio ambiente se faz indispensável também pela via da repressão e prevenção às infrações contra a ordem econômica, compatibilizando o direito à livre iniciativa com a defesa do meio ambiente pela aplicação das lições estruturantes do jus-humanismo normativo.


1.    O PAPEL NORMATIVO E REGULADOR DO ESTADO NA ATIVIDADE ECONÔMICA NA PERSPECTIVA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL DE 1988

Na perspectiva do liberalismo clássico, o fato econômico não ganhava relevância na estruturação normativa, vez que a desejada liberdade absoluta dos agentes econômicos impingiaa supressão de qualquer norma que pudesse se apresentar como óbice à livre exploração dos recursos naturais e humanos.

A partir da carta constitucional brasileira de 1934, de forma inovadora e inspirada principalmente nascélebres Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, veiculou-se na ordem constitucional pátria um título autônomo, denominado “Da Ordem Econômica e Social”, fruto inquestionável da crescente importância dos direitos sociais na proteção dos interesses da coletividade. Começava-se a estruturar a ordem econômica assentada em seus elementos fundamentais, notadamente os ideários da existência digna e da justiça social.

No aspecto histórico-social, de âmbito global, pode-se afirmar que o início deu-se com a Constituição Americana de 1776e com a Revolução Francesa em 1789. Sobre a Declaração de Independência e Constituição Americana de 1776, asseverou Comparato(2010) que, em verdade, este ato histórico representou o elemento inaugural da democracia moderna, com a limitação dos poderes governamentais e busca pelo respeito aos direitos humanos, sob um regime ordenado constitucional. É evidente que a Constituição Federal brasileira de 1988 é fruto desta evolução, iniciada, quanto ao aspecto constitucional formal, pela carta constitucional brasileira de 1934.

A ordem econômica passaria a estar assentada no poder econômico privado e seus limites de atuação impostos pela própria ordem constitucional, vez que o Estado intervencionista na atividade econômica perdeu força no decorrer do século XX, o que pode ser verificado pela própria redação do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, que indica, exclusivamente, os imperativos da segurança nacional e o relevante interesse coletivo como hipóteses autorizadoras da exploração direta de atividade econômica pelo Estado.

Não se poderia olvidar, entretanto, que é fato indubitável a limitação ao exercício pleno e absoluto do direito de propriedadedesde a carta constitucional brasileira de 1934, quando em seu artigo 113, no item 17, já se assentava:

“Art. 113. ...

17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.”[2]

A derivação moderna desta limitação ao direito de propriedade é a chamada função social da propriedade, veiculada – ainda que de formas mais sucintas e com outras nomenclaturas - em todas as Constituições brasileiras desde a de 1934, à exceção, por razões óbvias, da de 1937.

Como é cediço, o Código Civil Brasileiro de 2002 prestigiou sensivelmente esta perspectiva social da propriedade, trazendo expressamente em seu artigo 1.228, §1º, a relevância de sua função social, na esteira do inciso XXIII da Constituição Federal de 1988.

Portanto, em que pese o modelo constitucional brasileiro, que direcionaser excepcional a participação do Estado na exploração direta da atividade econômicadatar de 1988, é do início do século passado a pretensão de se incutir no ordenamento jurídico a reflexão de que o direito absoluto de propriedade deve ser conformado pelos objetivos sociais derivados de uma visão humanista na defesa da coletividade.Afastou-se de umindividualismo hedonista marcante na visão liberal clássica, conforme asseverado por Bonavides (2009, p. 62) há décadas, quando ministrava:

“O liberalismo de nossos dias, enquanto liberalismo realmente democrático, já não poderá ser, como vimos, o tradicional liberalismo da Revolução Francesa, mas este acrescido de todos os elementos de reforma e humanismo com que se enriquecem as conquistas doutrinárias da liberdade.

Recompô-lo em nossos dias, temperá-lo com os ingredientes da socialização moderada, é fazê-lo não apenas jurídico, na forma, mas econômico e social, para que seja efetivamente um liberalismo que contenha a identidade do Direito com a Justiça.”

Nesta esteira, abria-se a ampla possibilidade de fortalecimento dos instrumentos jurídicos hábeis a regular e fiscalizar o desenvolvimento da atividade econômica, para a concretização das diretrizes constitucionais que apontavam para a valorização de bens jurídicos mais relevantes a partir de uma ponderação que já não poderia ser realizada alheia aos princípios da justiça social e da existência digna do homem, ainda que este papel do Estado (normativo e regulador), exigisse a relativização do direito de propriedade pela prevalência de sua função social.

Fortalecia-se, pois, a diretriz imposta constitucionalmente ao Estado quanto a sua responsabilidade de prevenir e repreender as infrações contra a ordem econômica, como agente normativo e regulador da atividade econômica, nos termos do artigo 174 da Constituição Federal de 1988. A preponderância deste papel do Estado passaria a exigir uma proteção integral do homem face aos abusos do poder econômico, colocando o ser humano no centro difuso do sistema normativo.


2.    O NOVO SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA E OS PRINCÍPIOS QUE ESTRUTURAM A ORDEM ECONÔMICA

A Lei Federal nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, revogou quase a totalidade dos dispositivos da lei anterior que regia a matéria (Lei Federal nº 8.884/1994), de sorte que se estabeleceu a estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência– SBDC,pela atuação coordenada do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE e da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. Vale dizer que a lei em análise entra em vigor em 28 de maio de 2012, praticamente um mês antes da Conferência Rio+20.

A conjugação dos aspectos atinentes à repressão e prevenção ao abuso do poder econômico com os relativos à defesa do meio ambiente não poderia ser questão mais pertinente neste cenário de inovação legislativa e realização de tão importante Conferência da ONU no Brasil.O artigo 1º da Lei 12.529/2011 estabelece:

“Art. 1º. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.”[3]

É inevitável o cotejo desta previsão legislativa com o célebre artigo 170 da Constituição Federal de 1988, que estabelece como princípios da ordem econômica: (i) soberania nacional; (ii) propriedade privada; (iii) função social da propriedade; (iv) livre concorrência; (v) defesa do consumidor; (vi)defesa do meio ambiente; (vii) redução das desigualdades regionais e sociais; (viii) busca do pleno emprego; e (ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. Neste ponto, cumpre realizar o destaque, desde já, de que o princípio da defesa do meio ambiente na estruturação da ordem econômica faz expressa referência, pela redação conferida pela Emenda Constitucional nº 42/2003, “ao tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.” (inciso VI do art. 170 da Constituição Federal de 1988)[4].

Verifica-se que no texto da Lei 12.529/2011 não há referência à defesa do meio ambiente, à redução das desigualdades sociais, à busca do pleno emprego e ao tratamento favorecido das empresas de pequeno porte. Portanto, desde já se ofertauma análise crítica da nova lei do SBDC neste tocante, ao não restarem dúvidas de que o legislador pátrio perdeu uma grande oportunidade para inserir no texto da lei em epígrafe a referência expressa a todos os princípios da Ordem Econômica elencados nos incisos do artigo 170 da Constituição Federal de 1988, tudo para fortalecer o entendimento de que a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica orientam-se, também, pela proteção ao meio ambiente, busca do pleno emprego, redução das desigualdades e tratamento favorecido à pequena empresa.

A interpretação dos atos dos agentes econômicos sob a ótica das infrações à ordem econômica previstas no artigo 36 da Lei 12.529/2011 deverá ser realizada a partir da concretização de todos os princípios da ordem econômica, ainda que não listados no artigo 1º desta lei em comento.O parágrafo 4º, do artigo 173, da Constituição Federal de 1988 direciona expressamente que a “lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” A redação conferida a este parágrafo do artigo 173, inserido na topografia do Título VII (Da Ordem Econômica e Financeira), no Capítulo I (Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica), demonstra claramente a intenção do legislador de se vincular a repressão ao abuso do poder econômico como papel do Estado na perspectiva da redação do caput do mesmo dispositivo, que limita a intervenção do Estado na exploração direta da atividade econômica, mas imediatamente antes da redação do caput do artigo 174, que prevê o Estado como agente normativo e regulador da própria atividade econômica. Este último citado papel – regulador – exige a atuação direta do Estado na efetivação de todos os princípios da ordem econômica.

Em verdade, a dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros são consequências nefastas e indesejadas do próprio abuso do poder econômico que, por vezes, são alcançadas justamente a partir de (i) conduta de desrespeito direto e frontal ao meio ambiente, (ii) atos que acarretam o desemprego, e(iii) concorrência predatória contra as pequenas empresas.Tudo isso, em conjunto, agrava as desigualdades regionais e sociais. O inverso, outrossim, também é verdadeiro, de sorte que a repressão e prevenção às infrações contra a ordem econômica podem proteger o meio ambiente, os empregos e as pequenas empresas, militando pela redução das desigualdades.

Ao se referir à ordem jurídico-político-econômica, Souza (2005, p. 185) fez questão de indicar a importância finalística da qualidade de vida das pessoas na apreciação da estrutura normativa da ordem econômica:

“Enquanto conjunto de instrumentos legais infraconstitucionais, a ordem jurídico-político-econômica exprime a política econômica posta em prática.Essas medidas legais, portanto, abrangem toda a vida econômico-jurídica do país. Vão desde a atividade produtiva, envolvendo cada fator da produção ou cada produto, passando pelo sistema de circulação e de repartição da riqueza, para chegar ao consumo. Não se cometem os erros geralmente praticados pela visão parcial do problema econômico. Ao contrário, tomando por exemplo princípios da “justiça social”, enunciados na ideologia, e que a política econômica deverá cumprir, garante-se a posição do indivíduo como consumidor, como usuário da qualidade de vida, que é justificativa aceitável para todo o esforço desenvolvido na sociedade.”

A visão unitária e estruturante da ordem econômica impõe a consideração de todos os princípios da própria ordem na prevenção e repressão às infrações previstas em lei, do que se poderia mesmo concluir que a falta da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades sociais, da busca do pleno emprego e do tratamento favorecido das empresas de pequeno porte no bojo do processo de apreciação das eventuais infrações à ordem econômica, em verdade, acaba por desnaturar o próprio papel, constitucionalmente imposto, do SBDC e, por conseguinte, do CADE.

O princípio de hermenêutica constitucional da unidade da carta política impõe que na ponderação de valores e bens jurídicos tutelados, todas as diretrizes constitucionais sejam consideradas, em processo de adensamento de princípios, sem se prestigiar um único aspecto em detrimento dos demais. Não se poderia olvidar, precisamente aqui, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociaisdo trabalho e da livre iniciativa como fundamentos do Estado Democrático de Direito, estabelecidos, de forma precípua e não exclusiva, no artigo 1º, da Constituição Federal de 1988.

Igualmente, torna-se determinante nesta apreciação relembrar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previstos no artigo 3º, da Constituição Federal de 1988, sopesando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a garantia do desenvolvimento nacional, sem se esquecer da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais, a fim de promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Logo, o exercício do dever constitucional de regular e fiscalizar a atividade econômica, reprimindo o abuso do poder econômico que objetive dominar mercado, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente os lucros, carece do amplo prestígio de todos os princípios da própria ordem econômica, inscritos ou não no artigo 1º da Lei 12.529/2011.

Não se afigura ato de grande complexidade imaginar a prática de diversas infrações à ordem econômica, dentre aquelas previstas expressamente no artigo 36 da citada lei, que se apresentem facilitadas ou mesmo exclusivamente possíveis através da exploração descontrolada do meio ambiente ou atitudes desarrazoadas face aos recursos naturais disponíveis para a exploração econômica.

Destaque-se, em especial, a conduta de “impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição.” (inciso V do §3º do art. 36 da Lei 12.529/2011).[5]

Não por outro motivo queSilva (2003, p. 55) indica ponto relevante, ao afirmar:

“Vale lembrar que os Estados sócios-liberais, como o nosso, conquanto reconheçam e assegurem a propriedade privada e a livre empresa, condicionam o uso dessa mesma propriedade e o exercício das atividades econômicas voltadas ao bem-estar social. Portanto, há limites para o uso e gozo dos bens e riquezas particulares e, quando o interesse público o exige, intervém na propriedade privada e na ordem econômica, através de atos de império tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta anti-social da iniciativa privada.”

Conclui-se, por inolvidável, que outra conclusão não se pode extrair senão aquela que venha a militar pelo papel do Estado para combater o exercício abusivo – ex vi contra os interesses da coletividade - de direitos individuais, bem assim o abuso do poder econômico e a falta de solidariedade social, a desigualdade de oportunidades e a debilidade de setores econômicos específicos. (POOP; ABDALLA, 1997).

Tratando precisa e diretamente do conflito dialético entre o capital e o trabalho na vida econômica, o que se apresenta como perspectiva relevante para o tema ora versado, Nazar (2007) aduz com maestria:

“Equivocam-se redondamente aqueles que imaginam, por exemplo, que a adoção do selo social, conforme preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), representa um retrocesso nas relações entre o capital e o trabalho. Não é verdadeira a relação entre a proteção dos direitos sociais e o aumento de custo dos bens produzidos pela indústria ou pelos serviços. Pelo contrário, o crescimento social do trabalhador impõe a existência de um consumidor que participará da apuração do produto final trazido ao mercado, dentro de um sistema sadio de competição. De nada adiantará a opressão do capital sobre o trabalho, com intuito exploratório de criação de um mercado e trabalho baratíssimo, que levará as indústrias a competir na feroz guerra de concorrência qualitativa, quantitativa e mercadológica existente no mercado. Quem produz, produz para oferecer a outrem, e não para estocar o produto de sua produção.”

Oaparente conflito insuperável acima veiculado, entre o capital e o trabalho, é muito semelhante àquele entre o exercício do direito de propriedade e a proteção integral ao meio ambiente, para cuja análise em muito auxiliar o entendimento de Grau (2008, p. 54) quando expõe a importância relativizada da propriedade privada na estruturação da ordem capitalista, ao afirmar que os trabalhadores somente podem obter o seu sustento mediante o intercâmbio existente entre “o preço de sua força de trabalho e o conjunto dos bens socialmente produzidos – isto é, trocando o preço de sua força de trabalho pela parcela correspondente, em seu valor, de tais bens”.E, em complemento, aduz Grau (2008, p. 55):

“A propriedade privada dos bens de produção é, destarte, conseqüência disso. Não fosse assim – e a essência do capitalismo estivesse, toda ela, contida na consagração da propriedade privada dos bens de produção – bastaria a sua extinção para que se instalasse o socialismo. Não é o que ocorre, todavia. Não é estranho ao chamado mundo socialista, bem o sabemos, que o trabalhador permaneça, nele, sendo explorado pelo Estado – ou seja, pela burocracia socialista.”

Logo, considerando não ser a propriedade privada o único elemento essencial da ordem capitalista, mas sim um dos elementos, com especial destaque para as relações de troca entre os agentes econômicos e sociais envolvidos na vida econômica, e sendo a coletividade a titular dos bens jurídicos protegidos pela lei que estrutura o SBDC (parágrafo único do artigo 1º da Lei 12.529/2011)[6], a conclusão que emerge naturalmente é de que a defesa do meio ambiente deve conformar a interpretação dos atos dos agentes econômicos quando apreciados pelas entidades que compõem o SBDC no exercício de suas funções judicantes, não apenas por força do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, mas, em especial, por ser a defesa do meio ambiente princípio da ordem econômica.

Como na relação de troca entre o capital e o trabalho a propriedade privada é relativizada, inclusive perdendo relativa importância como um dos elementos estruturantes do sistema capitalista, também assim deve ser na relação de troca entre o capital e os recursos naturais. O já mencionado §1º do artigo 1.228 do Código Civil expressamente faz a conjugação, harmônica, entre o direito de propriedade e a preservação da flora, fauna, belezas naturais e equilíbrio ecológico[7].

Da mesma forma que não favorece ao capital um trabalhador que não consiga se inserir no mercado consumidor de forma adequada – que possa consumir, evidentemente, pelas mesmas razões, ao capital não é vantajoso um meio ambiente degradado e com escassez absoluta de recursos naturais. Trata-se de questão de sobrevivência do próprio sistema capitalista, sem se descurar de ser questão de sobrevivência da presente geração e das futuras.


3.    A DEFESA DO MEIO AMBIENTE ATRAVÉS DA PREVENÇÃO E REPRESSÃO ÀS INFRAÇÕES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA

Reunida há 40 anos em Estocolmo, Suécia, entre os dias 5 e 16 de junho de 1972, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente proclamou, inicialmente, que (MAZZUOLI, 2010, p. 1125):

“O homem é ao mesmo tempo criatura e criador do meio ambiente, que lhe dá sustento físico e lhe oferece a oportunidade de desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. A longa e difícil evolução da raça humana no planeta levou-a a um estágio em que, com o rápido progresso da Ciência e da Tecnologia, conquistou o poder de transformar de inúmeras maneiras e em escala sem precedentes o meio ambiente. Natural ou criado pelo homem, é o meio ambiente essencial para o bem-estar e para o gozo dos direitos humanos fundamentais, até mesmo o direito à própria vida.”

Na Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, que derivou da reunião referida, estabeleceram-se princípios basilares, com destaque, para os fins deste artigo, aos seguintes (MAZZUOLI, 2010, p. 1127):

“Princípio 1 – O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras.

Princípio 13–A fim de lograr um ordenamento mais racional dos recursos e, assim, melhorar as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque integrado e coordenado da planificação de seu desenvolvimento, de modo a que fique assegurada a compatibilidade do desenvolvimento, com a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente humano, em benefício de sua população.”

Verifica-se que a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento econômico são objetivos que devem ser compatibilizados a partir da adoção pelos Estados do chamado enfoque integrado e coordenado da planificação de seu desenvolvimento, nos termos doPrincípio 13 acima transcrito. É evidente que o enfoque integrado exigiria a coordenação da base legislativa acerca da prevenção e repressão aos abusos do poder econômico com os interesses prementes de defesa do meio ambiente.

Na busca pela obtenção de avanços a partir dos elementos iniciais estabelecidos pela Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, realizou-se entre 3 e 14 de junho de 1992, no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, com o objetivo precípuo de (MAZZUOLI, 2010, p. 1127):

“[...] estabelecer uma nova e justa parceria global mediante a criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chaves da sociedade e os indivíduos, trabalhando com vistas à conclusão de acordos internacionais que respeitem os interesses de todos e protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo a natureza integral e interdependente da Terra, nosso lar.”

A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento estabeleceu, em seus Princípios 1 e 4, o seguinte (MAZZUOLI, 2010, p. 1129):

“Princípio 1: Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.

Princípio 4: Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste.”

Os referidos princípios, dentre os demais, já seriam suficientes para demonstrar a relação intrincada e indissociável entre o desenvolvimento e a defesa do meio ambiente, guindando o ser humano ao centro das preocupações em matéria de desenvolvimento sustentável. A Constituição Federal de 1988 estruturou o Capítulo VI (Do Meio Ambiente) do Título VIII (Da Ordem Social) a partir do artigo 225, que aduz:

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

...

IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;”[8]

De igual modo, a Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional Brasileira do Meio Ambiente, elevou a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico como objetivo, respeitados os seguintes princípios:

“Art 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:

I - ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo;

II - racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar;

III - planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais;

IV - proteção dos ecossistemas, com a preservação de áreas representativas;

V - controle e zoneamento das atividades potencial ou efetivamente poluidoras;

VI - incentivos ao estudo e à pesquisa de tecnologias orientadas para o uso racional e a proteção dos recursos ambientais;

VII - acompanhamento do estado da qualidade ambiental;

VIII - recuperação de áreas degradadas;

IX - proteção de áreas ameaçadas de degradação;

X - educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente.”

É evidente que há grande dificuldade para a compatibilização entre o desenvolvimento, a partir da exploração eficiente e controlada das atividades econômicas, e a defesa do meio ambiente na perspectiva do princípio da precaução, que se opera quando não há provas científicas dos efetivos danos causados pela atividade, mas há potencialmente altos riscos para tanto. Esta dificuldade inerente aos aparentes conflitos entre o capital e o meio ambiente é, inclusive, muito bem ressaltada por Yoshida (2009, p. 1180), que aduz:

“Destas breves considerações pode-se inferir que continua sendo um grande desafio, na ordem econômica capitalista, a implementação do princípio do desenvolvimento sustentável, o grande mote do ambientalismo, tendo em vista a difícil conciliação entre desenvolvimento econômico-social e proteção do meio ambiente.

...

Por isso mesmo, hoje tem-se a correta percepção de que as questões ambientais estão intricadas com as questões econômicas e sociais, e que a efetividade da proteção ambiental depende do tratamento globalizado e conjunto de todas elas.”

Torna-se evidente que a apreciação das condutas eventualmente infratoras da ordem econômica, no ambiente nacional, deve ser realizada à luz da proteção do meio ambiente, inclusive na gradação das penas nos termos do artigo 45 da Lei 12.529/2011, o qual, infelizmente, também não trouxe qualquer previsão sobre o meio ambiente como elemento a ser considerado, vez que a defesa do meio ambiente é princípio da ordem econômica. Bem poderia, por exemplo, constar o meio ambiente no inciso V do artigo 45 em comento.[9]

A relação também estrita entre a exploração dos recursos naturais e as atividades econômicas é verificada, da mesma forma, no artigo 15 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998[10], que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, quando estabelece como circunstância agravante da pena ter o agente cometido a infração para obter vantagem pecuniária.

Desta feita, por um lado, a prevenção e repressão às infrações da ordem econômica podem ser instrumentos para a defesa do meio ambiente, por outro, a proteção dos recursos naturais pode derivar na maximização da lucratividade desde que implementada a correta estratégia, inclusive de políticas públicas através de tributação ambiental. Nas palavras de Yoshida (2009, p. 1183):

“As atividades econômicas e sociais não apenas causam poluição e degradação ambientais, mas também são por elas afetadas e prejudicadas. É o que esta autora denomina de “efeito bumerangue”.

...

Se a poluição afeta e prejudica as atividades econômico-sociais, e, portanto, a lucratividade, base da economia de mercado no mundo capitalista, constitui estratégia fundamental para motivar a adesão dos empreendedores aos programas de proteção ambiental, mostrar-lhes as vantagens econômicas do controle da poluição e como é possível tornar rentável, economicamente, a preservação ambiental.”

É assente de dúvida, portanto, que a efetividade da proteção ambiental em concomitância ao desenvolvimento é o desafio primeiro dos agentes públicos e de toda a coletividade na preservação da própria vida das gerações futuras, o que também é destacado por Resek (2011, p. 41), quando ministra que:

“[...] o desafio dessa geração é o desenvolvimento sustentável, aquele se que opera mediante correta utilização dos recursos naturais e respeito pelo meio ambiente. Os textos da grande conferência do Rio de Janeiro destacaram os deveres de preservação, de precaução e de cooperação internacional, e enfatizaram os direitos das gerações futuras, que não deveriam ser sacrificados em favor de uma política de desenvolvimento a qualquer preço neste momento da história.”

O próprio Supremo Tribunal Federal, na apreciação de pedido cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.540/DF, asseverou que:

“A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE:EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.

- Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe,ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, embenefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelodesrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral.”[11]

Permite-se concluir ser possível proceder à defesa do meio ambiente através da prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, evitando-se assim que a dominação de mercado, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros sejam externalidades negativas da inapropriada exploração dos recursos naturais, bem assim, em caminho inverso, que a repressão e prevenção quanto ao abuso do poder econômico venham a impedir os reflexos nefastos no meio ambiente, pela via reflexa.

Resta, outrossim, verificar-se qual seria a sustentação jus-filosófica que possa garantir o entendimento até aqui arguido de sorte a não depender que a efetivação dos direitos humanos de terceira dimensão, tal qual o direito ao meio ambiente saudável, não dependa necessária e intrinsecamente da estrutura normativa constitucional ou infraconstitucional,tudo a permitir que a concretização deste direito se realize a partir da geração presente em harmonia e com o ideário de fraternidade com relação ao destino das gerações futuras.


4.    A COMPATIBILIZAÇÃO DAPROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE COM A LIVRE INICIATIVA PELA VIA DO JUS-HUMANISMO NORMATIVO

É inquestionável que a Constituição Federal de 1988 veicula o modelo capitalista, ao prestigiar o direito de propriedade privada, a liberdade de iniciativa e o direito de herança, com destaque à liberdade de iniciativa como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e, concomitantemente, como fundamento da ordem econômica. Por tal razão, assevera o homenageado professor Sayeg (2011, p. 104) que a nossa economia, sendo resultado das trocas derivadas da possibilidade de disposição patrimonial, é assentada na livre iniciativa e na propriedade privada, e“a Constituição Federal do Brasil contempla e assegura a esfera de direitos individuais das pessoas consistentes nas liberdades exteriores, enquanto direito humanos de primeira dimensão.”

No entanto, ainda que a ordem constitucional brasileira prestigie os direitos humanos de primeira dimensão, conforme já aduzido alhures, também prestigia os direitos humanos de segunda e de terceira dimensão, inclusive insculpindo no bojo dos princípios estruturantes da ordem econômica alguns deles. Assim, não restam dúvidas na abalizada posição de Sayeg (2011, p. 120) de que:

“[...] esse balizamento serve para determinar o perfil do capitalismo constitucional brasileiro e resolver a questão primordial da política de Estado quanto à gestão econômica de nosso país diante da atual pressão neoliberal, por meio da solução de que a relação da disponibilidade dos recursos econômicos diante das necessidades brasileiras não se resume à economia individualista de mercado, monetarista e utilitarista, de geração da riqueza ou formação da poupança individual, a qual desconsidera os direitos humanos de segunda e terceira dimensão.”

Assumindo a imposição constitucional de efetivação de todos os direitos de primeira, segunda e terceira dimensões (e as seguintes, já comentadas pela doutrina moderna), num processo de mútua correlação e adensamento recíproco, faz-se indispensável à inclusão da perspectiva do humanismo integral de Maritan (1945, p. 91), que ressalta a necessidade de se transformar o homem em um novo homem, distante do homem burguês, sem se esquecer de que o homem já é – ou, ao menos, tem potencialidades intrínsecas para tanto - na Terrao que decorre da vontade de Deus, com sentimento de fraternidade com os demais da espécie, o que inclui, claro, o sentimento fraternal com relação às gerações futuras, ressaltando que compreenderá também que “é vão afirmar a dignidade e vocação da pessoa humana se não trabalha em transformar condições que a oprimem, e sem fazer de modo que ela possa dignamente comer seu pão.”

O reconhecimento da propriedade privada e da liberdade, como corolários da livre iniciativa, exige em contraposição uma análise reflexiva que venha a relativizar estes direitos humanos de primeira dimensão, na busca pela satisfação da dignidade da pessoa humana, o que envolve, claro, as condições naturais do planeta. Aliás, não se poderia olvidar que as diversidades no ambiente físico das pessoas, tal qual assevera Sen (2011), são determinantes para o desenvolvimento individual da pessoa humana, vez que as oportunidades reais são sensivelmente alteradas – a impedir o pleno desenvolvimento das capacidades humanas – quando se encontra o homem em ambiente natural desvantajoso.

Logo, a escassez de recursos naturais e a exploração inadequada dos recursos renováveis disponíveis são atos que militam contra o próprio desenvolvimento humano em sua integridade, a partir da alteração das oportunidades reais disponíveis a cada homem inserido em seu ambiente natural. Acrescente-se a essa alteração inadvertida dos meios naturais e, pois, nefasta ao desenvolvimento humano, a velocidade e a (in)certeza da efetivação dos direitos humanos neste ambiente capitalista que promete o crescimento das riquezas para posterior divisão, o que é bem alertado pelos professores Sayeg e Balera (2011, p. 167), ao aduzirem que:

“[...] não é certa, muito menos imediata, a efetiva consecução da segunda e terceira dimensões dos direitos humanos; nem tampouco a velocidade dos resultados positivos capitalistas liberais quanto ao aumento da prosperidade coletiva, tendo em vista o combate à pobreza, especialmente nos países chamados periféricos, onde são enormes os déficits socioambientais e as taxas de fraudes e desvio de dinheiro público.”

Neste cenário de incertezas e evidente dificuldade de transposição das desigualdades regionais e sociais brasileiras, torna-se premente a concretização dos direitos humanos, em todas as suas dimensões, também através do relevante instrumento de prevenção e repressão aos abusos do poder econômico, com vistas, em especial, para a proteção do meio ambiente, garantindo às gerações futuras as mesmas oportunidades reais concedidas à geração presente, alinhando-se, para tanto, ao entendimento de Sayeg e Balera (2011, p. 214), de que:

“Estamos convencidos, outrossim, de que a melhor resposta ao capitalismo liberal se dá por meio da concretização do capitalismo com direitos humanos, jamais pela negação do capitalismo ou, menos ainda, ceifando as liberdades negativas – parte da essência humana e asseguradas pelo direito subjetivo natural de propriedade que compreende, afinal, os direitos humanos exteriores de primeira dimensão.”

Afigura-se de ímpar relevância, neste ponto, as reflexões de Dworkin(2007, p. 492) que encerram seu livro “O império do direito”, ao questionar o que é o direito, aduziu com maestria:

“O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter.”

Depreende-se que queremos ser pessoas preocupadas com o bem-estar das gerações futuras, evitando-se a todo custo um conflito de gerações pelo uso dos recursos naturais disponíveis, hoje e no futuro. Para tanto, todas as ferramentas disponíveis na estrutura do ordenamento jurídico devem ser utilizadas, a relativizar o exercício dos direitos de primeira dimensão quando acarretem prejuízos induvidosos aos de segunda ou terceira dimensão, sendo certo que a perspectiva jus-humanista normativa concede a sustentação filosófica, conforme acima aduzido, que permite a compatibilização destes direitos humanos sem se esquecer da plena manutenção do sistema capitalista vigente.


5.    CONCLUSÃO

A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (UNCSD), também conhecida como Rio+20, que ocorreu de 20 a 22 de junho de 2012, colocou todo o foco da comunidade internacional sobre o tema do meio ambiente no Rio de Janeiro, reiterando-se a importância de atuação contundente de todos os Estados-membros no trato da questão de escassez de recursos naturais e aumento exponencial da poluição no planeta.

Considerando que, em 30 de novembro de 2011, foi publicada a Lei Federal nº 12.529, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, dispondo sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, entende-se que o legislador brasileiro perdeu uma grande oportunidade para inserir na nova lei em comento os dispositivos que pudessem conferir uma indispensável visão integrada dos três pilares do desenvolvimento sustentável, unindo o aspecto econômico ao social e ao ambiental.

É inegável a importância do fortalecimento de todos os instrumentos jurídicos hábeis a regular e fiscalizar o desenvolvimento da atividade econômica para a concretização das diretrizes constitucionais que apontavam para a valorização de bens jurídicos relevantes, tal qual o meio ambiente, o que exige a relativização do direito de propriedade pela prevalência de sua função social, na busca pelo bem estar de todos e da justiça social.

Ainda que no texto da Lei 12.529/2011 não se tenha feito referência à defesa do meio ambiente, a interpretação dos atos dos agentes econômicos sob a ótica das infrações à ordem econômica deverá ser realizada a partir da concretização de todos os princípios da própria ordem econômica, a permitir concretização dos direitos humanos de segunda e terceira dimensão, através de um processo de adensamento de todas as dimensões.

A dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros são conseqüências indesejadas do próprio abuso do poder econômico, alcançado, por vezes, a partir de uma conduta de desrespeito ao meio ambiente. Da mesma forma, por via reflexa, a repressão e prevenção às infrações contra a ordem econômica podem proteger o meio ambiente.

Os princípios estabelecidos na Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente,de 1972, bem assim os reafirmados e incluídos na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992, apontam para a preocupação central: a melhoria da condição humana. Impõe-se, desta feita, a conjugação das providências necessárias para a concretização dos direitos humanos, em todas as suas dimensões, através de uma perspectiva de total interdependência e conexão entre desenvolvimento e meio ambiente, o que exige a regulação e fiscalização constante e eficiente dos agentes na exploração das atividades econômicas.

Em que pese à dificuldade de se compatibilizar o desenvolvimento que permita a redução da pobreza no planeta com a proteção ao meio ambiente em benefício das gerações futuras, entende-se ser possível – e imprescindível –a consecuçãodesta tarefa pela aplicação da filosofia do jus-humanismo normativo, de sorte que, conforme Sayeg e Balera (2011, p. 215):

“[...] o homem, a humanidade e o planeta devem ser fraternalmente tutelados, daí a concretização, no capitalismo, dos direitos humanos em todas as suas dimensões pelo dever natural de fraternidade, surge como direito subjetivo natural, em especial dos excluídos e exigível não só do Estado, mas também, horizontalmente, da sociedade civil e de todos os homens, nisso abrangendo também as relações individuais privadas.”

É o que se exige, imediatamente, para o bem do homem e de todos os homens, e para o próprio exercício do direito à vida em relação às futuras gerações.


6.    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto.São Paulo: Malheiros, 2008.

MARITAIN, Jacques. Humanismo integral.São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Coletânea de Direito Internacional.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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POOP, Carlyle, e Edson Vieira ABDALA.Comentários à nova lei antitruste.Curitiba: Juruá, 1997.

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SAYEG, Ricardo Hasson. Perfil constitucional do capitalismo humanista brasileiro. In: FILHO, Ives Gandra da Silva Martins; MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. (Coord.).A Intervenção do Estado no domínio econômico: condições e limites. Homenagem ao Prof. Ney Prado.São Paulo: LTr, 2011.

SAYEG, Ricardo Hasson; BALERA, Wagner. O capitalismo humanista: Filosofia humanista de direito econômico. São Paulo: KBR, 2011.

SEN, Amartya. A ideia de justiça.São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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SOUZA, Washington Peluso Albino de.Primeiras linhas de direito econômico. São Paulo: LTr, 2005.

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Notas

[1]Disponível em: <www.onu.org.br/rio20/>. Acesso em: 20.07.2012

[2]Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>. Acesso em: 20.03.2012

[3] Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/.../Lei/L12529.htm>. Acesso em: 19.03.2012

[4]Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 19.03.2012

[5]Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/.../Lei/L12529.htm - Acesso em: 19.03.2012

[6]Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/.../Lei/L12529.htm>.  Acesso em: 19.03.2012

[7] “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 19.03.2012

[8]Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.  Acesso em: 19.03.2012

[9] “Art. 45. Na aplicação das penas estabelecidas nesta Lei, levar-se-á em consideração: I – a gravidade da infração; II – a boa-fé do infrator; III – a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; IV – a consumação ou não da infração; V – o grau de lesão, ou perigo da lesão, à livre concorrência, à economia nacional, aos consumidores, ou a terceiros; VI – os efeitos econômicos negativos produzidos no mercado; VII – a situação econômica do infrator; e VIII – a reincidência.” Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/.../Lei/L12529.htm>. Acesso em: 19.03.2012

[10]Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em: 19.03.2012

[11]Disponível em: <www.redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=387260>. Acesso em: 26.03.2012


ABSTRACT: The normative and regulatory function of the State in economic activity, expressly established by the Federal Constitution of Brazil in 1988, requires forceful action to repress the abuse of economic power in all its various forms, without omits that the repression and prevention of infringement against the economic order must be guided by all the principles that structure the economic order by itself, not only by expressly mentioned in the Federal Law nº 11.529, of 30th November 2011, that establishes the Brazilian Competition Policy System. Therefore, the protection of the environment is required through the repression and prevention of offenses against the economic order by themselves, which allows compatible by applying the lessons of jus-humanism normative in the defense of man and all men.

KEY-WORDS: COMPETITION PROTECTION; ENVIRONMENTAL; JUS-HUMANISM NORMATIVE.  


Autores

  • Juliana Ferreira Antunes Duarte

    Doutoranda em Direito pela PUC-SP. Graduada em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP (2004). Mestre em Direito: Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Integrante do Grupo de Pesquisa da PUC-SP: Capitalismo Humanista. Professora e advogada, com ênfase em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho, Consumidor, Econômico e Processo Civil.

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  • Thiago de Carvalho e Silva

    Thiago de Carvalho e Silva

    Advogado e administrador de empresas. Mestrando no Programa de Estudos Pós-Graduados da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Direito Econômico. Especialista em Planejamento Societário e Tributação pela Fundação Getúlio Vargas – FGVLaw. Integrante do Grupo de Estudo “Capitalismo Humanista” da PUC-SP, registrado perante o CNPq. Coordenador de Administração e Finanças da Associação de Pós-Graduandos em Direito da PUC-SP (APGDireito/PUC-SP). Representante discente dos Pós-Graduandos no Conselho da Faculdade de Direito da PUC-SP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE, Juliana Ferreira Antunes; SILVA, Thiago de Carvalho e. O novo sistema brasileiro de defesa da concorrência e a proteção ao meio ambiente pela via do jus-humanismo normativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3368, 20 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22650. Acesso em: 8 maio 2024.