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Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls

Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls

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É a necessidade da justiça, a preocupação com a substancialidade das decisões, que diferencia John Rawls dos primeiros pensadores do liberalismo clássico – Thomas Hobbes e John Locke – cujo cerne das obras está na preocupação da existência de um governo legítimo.

1 Introdução

O “liberalismo” é tratado comumente como um tema genérico com diversas definições. A expressão “liberal” é, na Europa, atribuída aos pensadores ou políticos que defendem idéias de livre mercado e criticam a intervenção estatal e o planejamento. Já nos Estados Unidos, aplica-se a políticos ou a pensadores que apóiam a intervenção reguladora do Estado e a adoção de políticas de bem-estar social, geralmente ligados ao Partido Democrata. (Moraes, 2001).

No Brasil, a expressão “liberal” é normalmente relacionada ao significado atribuído na Europa, já que, conforme refere Araújo (2002), nesses lugares o termo “liberalismo” estava mais relacionado à defesa da propriedade (juntamente com os direitos individuais) do que nos Estados Unidos, onde se centrava na defesa dos direitos individuais. Essa explicação pode dar algum sentido as diferenciações de conceitos atribuídos ao termo “liberalismo” em sua diversidade. (Moraes, 2001). 

Portanto, nessa generalidade reside a dificuldade de debater o que é “liberalismo” e quem são considerados os pensadores liberais. Nesse trabalho, tal termo estará mais relacionado à defesa dos direitos individuais, por meio da atribuição da “liberdade” aos indivíduos como princípio. Essa ênfase é atribuída em virtude do objetivo do estudo, qual seja, refletir e compreender acerca dos aspectos que diferenciam os “liberais políticos clássicos” dos chamados “novos liberais”.

A fim de operacionalizar o trabalho, essa questão geral será analisada a partir das obras de três autores: Thomas Hobbes, John Locke e John Rawls. Além disso, o foco de análise será a diferenciação realizada por Araújo (2002), o qual definiu que algumas diferenciações podem ser feitas a obras desses pensadores, já que eles atribuem ênfases diversas a soluções de problemas centrais da teoria política.

Conforme Araújo (2002) – e seguindo uma linha de contexto histórico – o liberalismo clássico (nesse trabalho, Thomas Hobbes e John Locke) enfatiza as questões de legitimidade, de limites do poder político, de limitações da ação do Estado, do conceito de soberania. Em outros termos, a preocupação do liberalismo clássico é prescrever uma teoria do governo legítimo.

Já para John Rawls a ênfase se dá nas questões de justiça. Essa leitura indica que um governo pode ser legítimo, e ao mesmo tempo, ser injusto. Araújo (2002) define que essa ênfase nas questões de justiça, e não nas de legitimidade, “corresponde a um turning point no pensamento político de matriz liberal.” (p. 73) e implica no fato de que, contemporaneamente, os “Estados democráticos podem agora ser considerados mais ou menos justos, pouco ou excessivamente igualitários, dependendo do modo como as questões morais de fundo são articuladas e justificadas.” (p. 85).

Assim, a questão central desse estudo é a diferenciação de ênfases identificadas nos pensadores. Para tanto, o trabalho será realizado com base na leitura de algumas obras consideradas centrais no pensamento de Thomas Hobbes, John Locke e John Rawls.


2 Teoria liberal clássica: Thomas Hobbes e John Locke

A obra de Hobbes é construída a partir de como ele pensa os indivíduos. O autor visualiza que os homens aos olhos dos outros são opacos e imprevisíveis. A incerteza do agir resta na insegurança do saber, do prever e do identificar o que o outro deseja, o que pensa, o que quer, em suma, quais serão suas vontades e suas ações, e os mais possíveis do que prováveis efeitos[1]. Embora possa haver diferenças físicas entre os homens, afirma o pensador, a natureza os fez tão iguais que podem aspirar os mesmos desejos e reclamar por eles, e a conseqüência desta ação é tão imprevisível que só pode gerar o sentimento de medo[2].

Observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere a faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (HOBBES, 1651/2002, p. 96)

O medo, a desconfiança, a agressividade, esses sentimentos de insegurança, dentre outros, colocam o homem em “estado de colapso”, frente a uma possibilidade quase certa, frente ao pior de todos os males: a morte. Não existindo a faculdade da previsão entre os homens e, portanto, não havendo a possibilidade de desvendar o futuro, e muito menos de uma proteção inequívoca e sem incertezas, o mais razoável é atacar ou, em última hipótese, defender-se. Qualquer ato, mesmo o mais gratuito, é entendido como uma defesa prévia, uma defesa legítima e preventiva. “Contra essa desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação” (HOBBES, 1651/2002, p. 97).

O medo – o medo da morte – constitui-se no maior dos males, restando generalizado em qualquer época e em qualquer lugar em que se vive no estado de natureza, sendo cada um juiz exclusivo da conduta necessária à sua preservação. Este estado significa, em outros termos, estar em uma condição de guerra, e por si só, já que cada um se imagina (com ou sem razão) poderoso, perseguido, traído – o que desenrola no sentir medo da morte – pela imprevisibilidade das vontades e das ações dos outros. A vida de cada um é, como não poderia deixar de ser, solitária, miserável, cruel, animalesca e breve.

A imprevisibilidade das vontades dos outros e das ações, de suas conseqüências e efeitos, geraria esse sentimento, o qual Hobbes utilizaria como base para a construção do Estado. A arte de gerenciar (e não inibir) o sentir medo da morte, traduzida em uma ação política, não se baseia em um modelo, ou uma opinião sobre a natureza, ou sobre o bem que é incerto. Tal arte se baseia na necessidade primeira dos homens: a auto-preservação.

A esta arte política, o homem chegou através da razão, que se traduz na faculdade de inventar meios ou de produzir efeitos. Em melhores termos, “é a faculdade de raciocinar, entendido o raciocínio como um cálculo (...) mediante o qual, dadas certas premissas, extraem-se necessariamente certas conclusões.” (BOBBIO, 1989/1991, p. 38). E através da razão, os homens inteligentes, reunidos, contrataram mutuamente, criando uma instituição que asseguraria ao homem a sua preservação. Este contrato, descrito por Hobbes, marcou a passagem do estado natural – o qual é imutável se considerar apenas o devir histórico, natural e social – para o estado social.

A ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva, de um cálculo que engrenda um artefato. Considerando que o estado de natureza é insuportável, que o desejo de poder e o desejo de viver, e de viver em paz, contradizem-se, então a capacidade deliberativa própria do homem lhe ordena construir uma instância superior, cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural, substituir a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos. (PISIER, 2004, p. 54).

Observa-se, dessa forma, que para Hobbes, a ordem política nasce não só da impotência humana, da intenção de aliviar fraquezas, mas também da faculdade de racionalizar que leva ao homem construir uma máquina capaz de corrigir a natureza, recriá-la, aperfeiçoá-la. A instituição política traduz-se no artifício humano que permite aos homens tornar efetiva e eficaz essa idéia de poder supremo, ao qual são naturalmente levados a conceber. O contrato social que marca a passagem de um estado a outro, estabelece, ao mesmo tempo, regras de convívio social e de subordinação política, podendo ser designado como um “pacto de submissão”. O contrato marca a transferência mútua de direitos, por meio de um pacto, de uma promessa de cumpri-lo.

Resume-se numa verdadeira e unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro o meu direito de governar a mim mesmo este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.’ Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. (HOBBES, 1651/2002, p. 130 e 131).

Nessa passagem, pode-se visualizar duas categorias fundadoras do liberalismo: a individualização e a representação. A base da formação do estado social está no contrato, no consentimento de cada um, assim, pode-se afirmar que “quer se trate de democracia, aristocracia ou monarquia, a legitimidade desses regimes, que é uma e a mesma coisa que seu modo de geração e instituição, é essencialmente democrática”. (MANENT, 1987/1990, p. 53)

Mas a este Estado absoluto, cuja origem (legitimidade, geração, instituição) pode ser entendida sob a ótica democrática (o consentimento de cada um), todos os súditos têm o dever da obediência. E a razão de ser, conforme afirma Manent (1987/1990), “do surgimento do estado de natureza como noção chave da reflexão política prendeu-se à necessidade de fazer surgir uma obediência incontestável, uma obrigação incontestável de obedecer” (p. 63). Aduz o autor que os homens hobbesianos vivem unidos através do seu desejo pelo poder, este é o elo de ligação no estado natural, além do desejo pelos direitos a eles conferidos naturalmente. E se os homens desejam o poder, para eles cumprirem o dever de obediência, o poder do soberano deve ser uma união de todas as forças, um poder inigualável a qualquer homem.

Dessa forma, a artificialidade do Estado garante a preservação dos homens, através do uso do poder e da força (da espada), promulga as leis necessárias à paz civil e garante a sua observância. O soberano é a própria fonte legisladora e a obediência a ele deve ser total. Os súditos, por sua vez, renunciam o direito ilimitado (jus in omnia) e o transmitem ao Leviatã. O soberano adquire o direito ilimitado, irrevogável e absoluto, tendo em vista o direito transferido a ele por cada indivíduo.

Esse pacto de união é concebido de modo a caracterizar a soberania que dele deriva mediante três atributos fundamentais: a irrevogabilidade, o caráter absoluto, a indivisibilidade. (...) pacto de união é:

a) um pacto de submissão estipulado entre os indivíduos, e não entre o povo e o soberano;

b) consiste em atribuir a um terceiro, situado acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza;

c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três definições acima o sublinham, é uma única pessoa.

Da primeira destas características decorre a irrevogabilidade; da segunda, o caráter absoluto; da terceira, a indivisibilidade. (BOBBIO, 1989/1991, p. 43)

O poder do soberano, assim, não poder ser dividido, a não ser a preço da destruição. Outrossim, no estado social, os indivíduos são autores de seus próprios atos, mas não de suas vontades. As suas ações são identitárias às do Leviatã, mas não as suas vontades. A vontade pertence a este – o Deus mortal – o qual representa os súditos. A elaboração de leis, que tem por base a declaração de uma vontade, só se torna e é lei quando realizada pelo soberano.

Ao soberano, portanto, é atribuído um poder ilimitado por possuir direitos ilimitados. Este poder traduz-se como absoluto, o que não o faz contraditório à liberdade dos homens.

Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição entendendo por oposição os impedimentos externos ao movimento. (...) Liberdade que consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer. (...) Tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual chamamos de Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam uma das pontas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano e a outra ponta a seus próprios ouvidos. (...) Posto que nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens – o que é uma coisa impossível – segue-se necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir como o mais favorável a seu interesse. (HOBBES, 1651/2002, p. 158 a 160).

A obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protege-los. O direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. (HOBBES, 1651/2002, p. 166).

Dessa forma, observa-se: no silêncio da lei, o súdito pode realizar o que melhor lhe convir; e, na falta de lhe ser assegurado a sua necessidade primeira – a segurança – este pode se defender. Portanto, “a busca de segurança que fundamentava a ‘ilimitação’ do poder do Leviatã podia fundamentar, posteriormente, sua ‘limitação’.” (MANENT, 1987/1990, p. 64). A partir dessa leitura, Manent (1987/1990) identifica outra categoria fundadora do liberalismo no pensamento de Hobbes: o direito natural do indivíduo. Assim,

Hobbes pode ser considerado o fundador do liberalismo, porque elaborou a interpretação liberal da lei como puro artifício humano, rigorosamente externo a cada um, ela não transforma e não conforma os átomos individuais cuja coexistência pacífica se restringe a garantir. (MANENT, 1987/1990, p. 54)

E com base na seguinte afirmação: todos os indivíduos têm direito à vida, Hobbes dá o mote para a interpretação liberal da lei, qual seja, ninguém é obrigado a fazer o que não está prescrito em lei. Em outros termos, cria o conceito de liberdade negativa, permitindo aos cidadãos serem livres para decidir o que melhor lhes convém, desde que, certamente, isso não for proibido pelas leis civis.

Já para John Locke, no seu estado de natureza[3], os homens são livres e iguais, apropriando-se de alimentos para garantir a sua preservação, sem o apoio de um poder civil, sem qualquer outro guia que não as leis naturais. Estas leis concebem aos indivíduos direitos, quais sejam, à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Para compreendermos corretamente o poder político e ligá-lo à sua origem, devemos levar em conta o estado natural em que os homens se encontram, sendo este um estado de total liberdade para ordenar-lhe o agir e regular-lhes as posses e as pessoas de acordo com sua conveniência, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. (...) O estado natural tem um lei de natureza para governa-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. (LOCKE, 1689/2002, p. 23 e 24).

Com o intuito de assegurar a sua sobrevivência, ou seja, a sua vida, o homem precisa realizar atos no estado natural, quer para se alimentar, quer por este estágio possuir períodos de escassez ou pela falta de parâmetros razoáveis, os indivíduos usufruírem além do que a local em que residem possa oferecer, suportar ou disponibilizar. Estes atos realizados implicam na realização de um esforço – um trabalho – para tomarem para si estes alimentos, bens, objetos naturalmente indispensáveis.

O homem lockeano é naturalmente proprietário de seu trabalho, um direito intrínseco a ele. Os objetos, incluindo o seu corpo, tornam-se legitimamente propriedades do homem com o seu trabalho, com seu esforço. “A propriedade ingressa no mundo através do trabalho, e cada indivíduo tem em si mesmo a grande fonte da propriedade, pois é trabalhador e proprietário de si mesmo, logo, de seu trabalho” (MANENT, 1987/1990, p. 68).

A partir dessa máxima, em que o homem possui direitos naturais, Locke estabelece duas proposições: o direito à propriedade é essencialmente anterior à instituição da sociedade, não depende do consentimento de outrem ou da lei política; e a relação entre o homem e a natureza se define como trabalho. Dessa forma, o homem não se caracteriza por ser um animal político, mas sim, é um animal proprietário e trabalhador, proprietário por ser trabalhador e trabalhador para ser proprietário.

O que Locke nos fez ver foi o desenvolvimento da sociedade econômica na sua complexidade a partir deste começo tão insignificante: o indivíduo esfaimado. Toda a vida econômica, incluindo o intercâmbio, a produtividade do trabalho e o direito de propriedade assume, de certo modo, a ‘naturalidade’ e o caráter incontestável do direito do indivíduo faminto de se alimentar. Nesse indivíduo faminto reside a base substancial, natural e primordial da vida humana. Podemos ver por que o projeto liberal uma vez completamente elaborado, fez do direito de propriedade e tendeu a fazer da economia em que geral, a base da vida social e política: se as regras que organizam a vida social têm que nascer rigorosamente do direito do indivíduo solitário, elas só podem encontrar seu fundamento na relação desse indivíduo com a natureza. Simultaneamente, a relação de trabalho entre o indivíduo e a natureza faz surgir um mundo essencialmente distinto do dos direitos do indivíduo: o mundo do valor, da produtividade, do trabalho, da utilidade. Olhado por esse segundo ponto de vista, o direito de propriedade já não é considerado como o direito natural fundamental do homem, mas é o meio de preservar os valores resultantes da produtividade do trabalho, o meio da produção e troca dos valores. (MANENT, 1987/1990, p. 72).

Através da convenção realizada pelos homens, instituindo a moeda como valor que representa o trabalho, Locke desvincula a ligação trabalho-propriedade, redimensionando essa relação: o trabalho constituiu-se em um valor, o qual não necessita de uma propriedade física, de um objeto material em troca, podendo ser este valor atribuído através de outro bem, qual seja, a moeda. Como conseqüência, tem-se que “o direito do proprietário desvinculou-se legitimamente do direito do trabalhador”. (MANENT, 1987/1990, p. 70).

Para Locke, a essência da moeda é ser um bem não perecível, que, portanto, pode ser conservado indefinidamente. O grão excessivo fenece inaproveitado. A moeda, todavia, pode ser acumulada na medida do poder e da capacidade de obtê-la, sem que haja risco maior de deterioração e de que, em conseqüência, os outros reclamem a sua parte. Em termos mais simples, se acumulo mais grãos do que posso consumir, defraudo todos os outros da parte que deixo estragar. Porém, se acumulo moeda, não estou retirando nada de ninguém. (BOBBIO, 1963/1997, p. 199).

Em suma, o pensamento lockeano idealiza, em primeiro lugar, que trabalhar significa produzir valor, e, em segundo, que ser proprietário traduz-se na preservação deste valor, impedindo-o de perecer ou de ser desperdiçado, através da moeda.

O problema, para Locke (1689/2002), encontra-se no próprio devir do estado de natureza. Ao mesmo tempo em que esse estágio pré-social e pré-político é permeado por uma relativa paz, concórdia e harmonia, é necessário que todas as leis naturais sejam cumpridas, a fim de assegurar esse conteúdo positivo. Em outros termos, os direitos naturais atribuídos aos homens – a liberdade, a igualdade, a vida, a segurança e a propriedade – devem ser preservados. É necessário que os esforços realizados, os quais se traduzem em trabalho-valor-propriedade, devam ser certamente respeitados, mesmo de atos de outrem que, sabia e inesperadamente, possam o usurpar.

Como a liberdade, que consiste em poder fazer tudo o que não é proibido pelas leis naturais, não possui nenhum mecanismo de obrigatória subordinação no estado de natureza, restando a igualdade como meio que permite a todos poderem se defender, poderem atribuir o conceito de justiça para justificar a sua ação, reprimindo e destruindo, mediante violência, a violência sofrida primeiramente. Ofendido, o agredido tem, na igualdade, o suporte necessário para violentar, tendo em vista que no estado de natureza, os homens não possuem um ente que obriga a todos respeitarem as leis naturais.

Além disso, refere Manent (1987/1990) que, nesse estado, o direito de propriedade é limitado, já que todos possuem direitos iguais ao encontrado por qualquer homem na natureza. O fato de ser limitado leva à definição de que se alguém se apropria mais do que pode consumir, além de um parâmetro razoável, está realizando uma conduta irracional, violando o direito de outrem, que está baseado na liberdade de agir e na igualdade de dispor, permitindo, inobstante, uma conduta contrária. O estado vivido pode tornar-se não só um estado de penúria, mas também um estado em que todos poderão aplicar suas próprias sanções, restando intitulados como juízes das violações sofridas pelos seus direitos naturais e como agentes das sanções estatuídas unilateralmente, as quais não serão necessariamente suficientes, justas ou imparciais.

A busca mais essencial de todo o ser humano é a sua sobrevivência, a sua vida, a certeza de não morrer na penúria, pelo maior dos perigos: a fome e a possibilidade de julgar e sancionar outrem, individualmente, pode acarretar em uma guerra, em disputas generalizadas. A falta de um juiz, conforme Bobbio (1963/1997), levaria a um estado insuportável: a guerra generalizada.

O duplo conceito de natureza (idéia reguladora e realidade efetiva da condição humana) tem um caráter positivo – leis naturais invioláveis – e negativo – a possibilidade de os homens descumprirem essas normativas. Em outros termos, encontra-se em Locke a dicotomia tradicional entre a natureza real e a ideal. Assim, refere Locke (1689/2002),

o homem nasce com direito a perfeita liberdade e gozo ilimitado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, tanto quanto qualquer outro homem ou grupo de homens, e tem, nessa natureza, o direito não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e as posses – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e punir as infrações dessa lei pelos outros, conforme julgar da gravidade da ofensa, até mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror da culpa o exija, se assim lhe parecer. Contudo, uma vez que uma sociedade política não pode existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, punir as ofensas cometidas contra qualquer dos seus membro, só podemos afirmar que há sociedade política quando cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural transferindo-o à comunidade, em todos os casos passives de recurso à proteção da lei por ela estabelecida. (p. 69).

Dessa forma, ao Estado – esse ente artificial criado a partir de um pacto social, seguindo a lógica hobbesiana na sua constituição – caberia o dever de restaurar o estado natural anterior à deflagração de uma guerra. Esta natureza dúplice apresentada por Locke justifica o motivo pelo qual o seu Estado possui poderes limitados, “é pura e simplesmente uma instituição com o objetivo de tornar possível a convivência natural entre os homens” (BOBBIO, 1963/1997, p. 182). Assim, percebe-se que “não basta a defesa de uma esfera privada sem o contraponto da limitação do Estado.” (PEREZ, 1997).

O Estado lockeano, portanto, possui limites, estes impostos pelos direitos naturais dos indivíduos: a propriedade, a liberdade, a igualdade, a segurança e a vida. Ao Estado cabem poderes limitados e funções específicas: garantir a conservação dos direitos naturais fundamentais.

O núcleo do pensamento político de Locke está resumido nesta afirmativa: a força do governo consiste exclusivamente em fazer respeitar ‘as leis positivas da sociedade, determinadas de conformidade com as leis da natureza.’ O princípio e o fim do bom governo residem, portanto, no respeito às leis naturais. Em conseqüência, o fim último da filosofia política é descobrir a essência das leis naturais e, então, estabelecer, com base nessas leis, as condições e os limites do poder político. (BOBBIO, 1963/1997, p. 152).

A motivação de uma instituição política reside, dessa forma, na preservação dos direitos naturais e individuais postos em perigo pelas perturbações inevitáveis do estado de natureza. Por tal motivo, limita-se o poder, sujeitando-o às leis que prescreve.


3 Novo liberalismo: John Rawls

Ao refletir sobre a vida em sociedade, John Rawls identifica que ela é marcada por identidade de interesses. Para ele, “uma sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 1971/2002, p. 4). Entretanto, nessa sociedade podem existir conflitos de interesses, pois “para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor”. (RAWLS, 1971/2002, p. 5).

A partir da relação entre os conflitos de bem e as identidades de interesse, o pensador elabora sua teoria centrado na construção de princípios que visam dividir vantagens e selar acordos sobre as partes distributivas de forma justa. É possível identificar, desde o princípio de sua obra, que o pensador preocupa-se essencialmente com a prevalência de uma situação socialmente justa, já que

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não se permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis. (RAWLS, 1971/2002, p. 03).

A partir da concepção de justiça como indispensável para a vida em sociedade, Rawls institui os princípios da justiça social que tornam possível a ordenação social. Esses princípios “fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social” (RAWLS, 1971/2002, p. 5).

Para a elaboração desses princípios, Rawls parte de uma posição hipotética original, e não de uma situação histórica ou cultural primitiva, onde os cidadãos são considerados livres e iguais. Para o autor, “entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes”. (RAWLS, 1971/2002, p. 13).

Nessa posição original, há um procedimento de representação, em que decisões são realizadas através de um acordo que permita oferecer condições justas para todos. Rawls propõe um mecanismo que visa evitar influências na posição original, para que não ocorra distorção nos resultados distributivos.

A idéia da posição original é estabelecer um processo eqüitativo, de modo que quaisquer princípios aceitos sejam justos. O objetivo é usar a noção de justiça procedimental pura como fundamento da teoria. De algum modo, devemos anular os efeitos das contingências especificas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assume que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais. (RAWLS, 1971/2000, p. 146-7).

O “véu da ignorância” constitui-se, portanto, em um estratagema que permite a escolha de instituições justas, “uma vez que ignoraria interesses pessoais ou egoísticos, promovendo assim uma sociedade guiada por uma concepção de justiça apta a ser aceita por todos os membros da mesma” (LOIS, 2001, p. 171). O véu de ignorância é, na concepção rawlsiana, “uma condição essencial de satisfação dessa exigência”. (RAWLS, 1971/2002, p. 149).

Rawls descreve princípios que possam ser usados para definir uma sociedade justa, a partir dessa situação hipotética, quais sejam a liberdade e a eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). Esses dois princípios de justiça, sobre os quais ele acredita que “haveria um consenso na posição original” (RAWLS, 1971/2002, p. 64), defendeu – com leves variações de formulação – até seu último livro “Justiça como Eqüidade: uma reformulação”, publicado em 2001.

Seguindo a versão original, o primeiro princípio consiste em “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos”. (RAWLS, 1971/2002, p. 275). Esse princípio – da liberdade – devido à ordem lexical de sua disposição (regra de prioridade), só pode ser restringido pela própria liberdade. Essa restrição, para o autor, só pode ocorrer em dois casos: “a) uma redução da liberdade deve reforçar o sistema total de liberdades partilhadas por todos, e b) uma liberdade menor deve ser considerada aceitável para aqueles cidadãos com a liberdade menor” (RAWLS, 1971/2002, p. 275).

 O segundo princípio dispõe que as desigualdades econômicas e sociais devem ser estruturadas de tal modo que (i) primeiro, estejam vinculadas a cargos e funções abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, (ii) segundo, redundem no maior benefício aos mais desfavorecidos. Assim, conforme refere Kervegan (1989), no entendimento rawlsiano “não é justo favorecer a redução das desigualdades em detrimento da igualdade de oportunidades, o que seria o caso, por exemplo, se determinadas posições estivessem reservadas ou fossem atribuídas como prioridade a grupos ou indivíduos considerados favorecidos” (p. 36).

A escolha desses princípios (bem como o estabelecimento da prioridade das liberdades básicas) se dá através do método do “equilíbrio reflexivo”, o qual é uma modalidade mais complexa que a mera intuição. Segundo Vita (1993), tal equilíbrio deve ser entendido como “a melhor aproximação possível da verdade na teoria ética, dada as convicções morais refletidas que afirmamos e as concepções de justiça (e argumentos filosóficos para justificá-las) de que dispomos no momento”. O equilíbrio reflexivo, portanto, seria um ponto harmonioso, um produto de um acordo de seres razoáveis.

A escolha desses princípios permite a construção, para Rawls, de uma sociedade bem organizada, já que ela teria como pressuposto básico uma concepção pública de justiça. Portanto, uma sociedade bem ordenada é “aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça”.(RAWLS, 1971/2002, p. 504). Trata-se, dessa forma, “de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmo princípios da justiça, e cujas instituições sociais básicas satisfazem esses princípios, sendo esse fato publicamente reconhecido”. (RAWLS, 1971/2002, p. 504).

Na obra “O Liberalismo Político”, Rawls apresenta algumas modificações em relação a seu primeiro livro publicado “Uma Teoria da Justiça”. Como ele bem apresenta na “Introdução”, escrita em 1992, com estas reformulações ele objetivou eliminar algumas incoerências, as quais dizem respeito à “idéia pouco realista de ‘sociedade bem-ordenada’, tal como aparece em Teoria”. (RAWLS, 1993/2000, p. 24). Essa mudança se refere à adoção da “doutrina filosófica abrangente”:

O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional. O liberalismo político pressupõe também que uma doutrina abrangente e razoável não rejeita os princípios fundamentais de um regime democrático. É claro que uma sociedade também pode conter doutrinas abrangentes pouco razoáveis, irracionais, ou até mesmo absurdas. Nesses casos, o problema é administra-las de forma a não permitir que solapem a unidade e a justiça da sociedade. (RAWLS, 1993/2000, p. 24)

Com essa mudança, Rawls (1993/2000) define que seu projeto político consiste em compreender “como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis” (p. 25). Essa situação demonstra a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis, o qual, para o autor, é “característica da cultura de um regime democrático livre” (RAWLS, 1993/2000, p. 25).

Essas diversas doutrinas abrangentes englobam os aspectos da vida humana e constituem a vida diária (background culture). Para Rawls (1993/2000), o liberalismo político não pode limitar quais as doutrinas podem ser consideradas razoáveis, já que “as pessoas razoáveis vêem que os limites do juízo colocam restrições àquilo que pode ser razoavelmente justificado perante os outros e, por isso, endossam alguma forma de liberdade e consciência e autonomia de pensamento.” (p. 105). Assim, não seria razoável utilizar do poder político “para reprimir visões abrangentes que não deixam de ser razoáveis.” (RAWLS, 1993/2000, p. 105)

Lois (2001) refere que as doutrinas abrangentes para o liberalismo rawlsiano, portanto, “seriam o resultado inevitável do funcionamento de instituições livres e do uso pleno da razão” (p. 230). Por isso, “as doutrinas abrangentes ou compreensivas são aquelas de caráter moral, filosófico e religioso que compõem a totalidade da cultura social, distinta da cultura política que subscreve uma determinada crença” (LOIS, 2001, p. 231)

Rawls (1993/2000) considera que essas doutrinas abrangentes dificilmente são compatíveis entre si. Em outros termos, elas geralmente buscam uma sobreposição de uma pela outra, afetando de sobremaneira a estabilidade. Por esse motivo, o autor considera ser impossível às doutrinas abrangentes configurarem como base das instituições sociais, já que para um regime democrático a base da unidade deve sair de outros elementos.

Assim, “as características necessárias para compor tal pauta de estabilidade seriam, segundo o autor, os traços políticos comuns presentes numa sociedade democrática que, por estarem associados a uma tradição democrática, devem ser reconhecidos por todos os seus membros como fundamentais e fundantes” (LOIS, 2001, p. 234). Essa concepção política de Rawls conteria três elementos centrais: o sujeito, que consistiria na estrutura básica da sociedade; a formulação, que se faz através de um ponto de vista livre (freestanding view); e as idéias fundamentais, que estão implícitas na cultura política de uma sociedade democrática.

O pluralismo de doutrinas abrangentes, para o filósofo, condiciona os princípios que devem regular o funcionamento das instituições fundamentais da sociedade, mas, como já se explicitou, Rawls considera ser impossível às doutrinas abrangentes configurarem como base das instituições sociais. Esse condicionamento pelo pluralismo é possível a partir de três condições: a legitimidade do domínio político, a justificação das políticas estatais e a razoabilidade dos cidadãos.

A noção rawlsiana de legitimidade é baseada na visão liberal clássica, pela qual a fonte última da autoridade política reside no consenso público e não coercitivo dos cidadãos sobre os princípios que norteiam uma sociedade democrática, especialmente no que tange à garantia de direitos individuais básicos. A partir da segunda idéia – justificação das políticas estatais – pode-se identificar que Estado deve abster-se de apelar suas decisões com base numa determinada doutrina compreensiva; “qualquer decisão deve ser tomada levando em consideração os pontos fixos que constituem os julgamentos de justiça, formulados na base do consenso normativo que qualquer comunidade política democrática possui” (LOIS, 2001, p. 313).

A terceira idéia – razoabilidade aos cidadãos - importa dois fatores: (i) que eles aceitem a idéia de que a sociedade é um sistema justo de cooperação para benefício mútuo, e (ii) que aceitem os “limites do juízo” (burdens of judgement) para o uso da razão pública na condução do poder político. As pessoas razoáveis devem estar dispostas a buscar critérios para estabelecer princípios de cooperação que todos os membros possam aceitar, através da independência de qualquer concepção particular do mundo.

Os conceitos liberais de legitimidade política, neutralidade de justificação e a concepção de pessoa razoável constituem o cerne do liberalismo político. Através desses elementos, Rawls (1992) considera sua teoria política, e não metafísica[4]. A fim de que uma sociedade democrática e justa adquira estabilidade, não basta que suas instituições funcionem de acordo com princípios justos; é necessário que a cidadania mantenha um compromisso com o bem público. Para que isso ocorra, é necessária uma redução dos conflitos, com vistas a se alcançar um consenso moral que não esteja baseado no equilíbrio precário da barganha política. Tal consenso proporciona os fundamentos políticos mínimos e essenciais para que as pessoas com diferentes concepções de bem possam compartilhar uma mesma associação política.

Rawls (1993/2000) identifica o tratamento da estabilidade em duas fases: a primeira consiste nas motivações que impulsionam os cidadãos a prestar apoio às instituições (psicologia moral da razoabilidade); a segunda investiga as oportunidades que a concepção política de justiça se converta num consenso sobreposto (overlapping consensus) de doutrinas razoáveis. Esta etapa expõe a maneira com que as pessoas razoáveis poderiam subscrever a concepção de justiça a partir de razões intrínsecas das doutrinas que sustentam. A busca dessa justificação interna é fundamental para que as pessoas possam se comprometer seriamente com as instituições.

 A estabilidade e unidade sociais, portanto, são alcançadas a partir de uma assimetria entre a esfera pública (constituída pelos “elementos constitucionais essenciais” e “questões de justiça básica”) e a privada (compostas pelas diversas doutrinas razoáveis). Na primeira, predomina um consenso generalizado dos cidadãos. Isso porque o âmbito público é marcado pelo exercício da política de um ponto de vista da razão normativa imparcial e universal.

Por outro lado, a esfera privada é marcada por uma pluralidade de concepções razoáveis de bem, ainda que muitas delas sejam incompatíveis entre si. As concepções são razoáveis justamente porque são suportadas pelo consenso sobreposto, ou seja, não estão em discordância dos enunciados básicos de justiça. Lois (2001) observa que, para Rawls, o desacordo razoável acerca do bem é uma condição da vida humana, que resulta do livre exercício da razão humana em condição de liberdade. Nessa esfera, o desacordo não é apenas uma possibilidade, mas um fato que está implícito na cultura política pública das sociedades modernas.

Dessa forma, o ideal de sociedade bem-ordenada é completado pelo consenso sobreposto, que torna compatível a idéia de justiça à idéia de bem. As diversas doutrinas razoáveis, embora profundamente divergentes, podem conviver pacificamente porque aceitam os mesmos princípios fundamentais.


4 Conclusões

A partir da análise das obras de Thomas Hobbes e John Locke, é possível observar que eles constroem a processualística do Estado de forma semelhante. Contudo, o seu entendimento sobre a origem é diferenciado. Para Hobbes, os sentimentos de insegurança, de desconfiança, de incerteza, de agressividade, de angústia, de ameaça, de medo; em especial este, são significativos para os homens deliberarem e agirem. Essas deliberações e ações colocam o homem contra o outro homem, com o intuito de ele assegurar a sua sobrevivência, a sua vida. O sentir medo e o precisar sobreviver permitem a Hobbes construção um ente artificial, um Estado soberano, absoluto, indivisível.

Locke, por sua vez, visualiza o Estado como ente necessário para proteger os homens. No seu estado de natureza, os homens possuem direitos naturais e invioláveis à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. As razões para a existência do Estado estão na possibilidade desses direitos serem violados, quer pela fome, quer pela ação pejorativa de outro homem. O Estado, então, surge com a finalidade de salvaguardar esses direitos e de ser um juiz imparcial que inibe e combate as ações más dos homens.

É possível identificar, no pensamento dos dois autores liberais clássicos, a preocupação com legitimar a existência do Estado e prescrever limites para a sua atuação, através da imposição de direitos naturais aos indivíduos. Assim, como bem afirma Araújo (2002), a preocupação desses pensadores é prescrever uma teoria do governo legítimo.

John Rawls, por sua vez, preocupa-se com as questões de justiça. Ao desenvolver o seu estudo, ele parte da existência de uma posição hipotética original, em que são realizadas decisões através de um acordo que permita oferecer condições justas para todos. Por isso, nessa situação original, é preciso que as pessoas não saibam quais as condições elas estarão após essa situação, para escolher de forma justa os princípios básicos para a sociedade.

Assim, Rawls descreve princípios, os quais ele acredita que todos iriam escolher, dadas as condições que estariam (véu da ignorância). Os princípios, para o autor, que podem ser usados para definir uma sociedade justa são o da liberdade e o da eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). É preciso notar que Rawls está sempre preocupado em conferir justiça para a vida em sociedade.

Após a sua obra “O Liberalismo Político”, o autor se preocupa em desenvolver uma sociedade estável e justa, tendo em vista a divisão existente entre doutrinas abrangentes, as quais são muitas vezes incompatíveis. Partindo de alguns critérios e fases, conclui que o ideal de uma sociedade bem-ordenada é tornar compatível a idéia de justiça à idéia de bem, e embora divergentes as doutrinas abrangentes, elas podem conviver pacificamente porque aceitam os mesmos princípios.

Rawls, portanto, desde o princípio de sua obra preocupa-se essencialmente com a prevalência de uma situação socialmente justa, já que a justiça é indispensável para a vida em sociedade. A legitimidade deve ser relacionada à justiça, já que para ele uma sociedade pode ser legítima e injusta (Araújo, 2002). Portanto, é a necessidade da justiça, é a preocupação com a substancialidade das decisões, que diferencia John Rawls dos primeiros pensadores do liberalismo clássico – Thomas Hobbes e John Locke – cujo cerne de suas obras está na preocupação da existência de um governo legítimo.


5 Bibliografia

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Notas

[1] A natureza humana hobbesiana estaria submetida ao “estrito encadeamento de causas e efeitos, tendo como propriedades – igualmente naturais – desejar e agir, ou seja, deliberar e mover-se de acordo com esse dado primeiro que é o desejo” (BOBBIO, 1989/1991, p. 53).

[2] A título de ilustração, anterior a Hobbes, Maquiavel ensinou como “fazer o mal”: como tomar e preservar o poder, pela astúcia ou pela força, como levar a bom termo uma conspiração. Assim, “falar no ‘realismo’ de Maquiavel equivale, portanto, a ter aceito o ponto de vista de Maquiavel: o ‘mal’ é politicamente mais significativo, mais substancial, mais ‘real’ do que o ‘bem’.” (MANENT, 1987/1990, p. 27) Em outros termos, “a ordem política é a alquimia do mal, a supressão, jamais completa, do medo pelo medo.” (MANENT, 1987/1990, p. 36) Dessa forma, o que Maquiavel descreve como um episódio dramático e instrutivo, no encadeamento de paixões e ações, Hobbes observa a própria lógica da ordem humana.

[3] Nos Ensaios sobre o Magistrado Civil, Locke, em sua juventude, possui uma concepção de estado natural hobbeasiana. “A inferência de Hobbes não poderia ser mais clara. Ele aceita sem quaisquer condições o ponto fundamental da teoria hobbesiana sobre o poder civil, que consiste em admitir que a renúncia à liberdade natural deve ser completa, atribuindo ao soberano todos os direitos que o indivíduo gozava no estado da natureza.” (BOBBIO, 1963/1997. p. 96) Conforme Bobbio (1963/1997), “quando a acusação de seguir a teoria de Hobbes ameaça tornar-se perigosa, Locke dirá que nunca leu as obras do seu grande predecessor. Podia dizer isso, porque esses manuscritos [Ensaios sobre o Magistrado Civil] da juventude permaneciam guardados na gaveta. Hoje, porém, não podemos mais acreditar nessa versão. Em substância, Locke aceita o dilema colocado por Hobbes: anarquia ou Estado absoluto.” (p. 97)

[4] Rawls (1992) considera que existe um quadro de idéias e princípios implicitamente compartilhados, que compõe a base de sua justiça como eqüidade. São três as idéias descritas pelo autor: a sociedade é historicamente um sistema justo de cooperação social, que é guiada por normas e procedimentos publicamente reconhecidos, sendo que os cidadãos são pessoas livres e iguais e a sociedade é regulada por uma concepção pública de justiça; as condições justas de cooperação são aceitas desde que os outros façam; necessita de uma vantagem racional de cada participante. “Essa idéia de bem especifica aquilo que os envolvidos na cooperação – sejam indivíduos, famílias ou associações, ou mesmo Estado-nação estão tentando obter, quando o esquema é considerado de seu ponto de vista”. (RAWLS, 1992, p. 36).


Autores

  • Vanessa Wendt Kroth

    Vanessa Wendt Kroth

    Graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Analista-Tributária da Receita Federal.

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  • Daniel Lena Marchiori Neto

    Daniel Lena Marchiori Neto

    Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estádio de doutoramento junto ao Colorado College, EUA. Professor de Teoria Geral do Estado e Introdução ao Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KROTH, Vanessa Wendt; MARCHIORI NETO, Daniel Lena. Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3573, 13 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24183. Acesso em: 7 maio 2024.