1 Introdução
O “liberalismo” é tratado comumente como um tema genérico com diversas definições. A expressão “liberal” é, na Europa, atribuída aos pensadores ou políticos que defendem idéias de livre mercado e criticam a intervenção estatal e o planejamento. Já nos Estados Unidos, aplica-se a políticos ou a pensadores que apóiam a intervenção reguladora do Estado e a adoção de políticas de bem-estar social, geralmente ligados ao Partido Democrata. (Moraes, 2001).
No Brasil, a expressão “liberal” é normalmente relacionada ao significado atribuído na Europa, já que, conforme refere Araújo (2002), nesses lugares o termo “liberalismo” estava mais relacionado à defesa da propriedade (juntamente com os direitos individuais) do que nos Estados Unidos, onde se centrava na defesa dos direitos individuais. Essa explicação pode dar algum sentido as diferenciações de conceitos atribuídos ao termo “liberalismo” em sua diversidade. (Moraes, 2001).
Portanto, nessa generalidade reside a dificuldade de debater o que é “liberalismo” e quem são considerados os pensadores liberais. Nesse trabalho, tal termo estará mais relacionado à defesa dos direitos individuais, por meio da atribuição da “liberdade” aos indivíduos como princípio. Essa ênfase é atribuída em virtude do objetivo do estudo, qual seja, refletir e compreender acerca dos aspectos que diferenciam os “liberais políticos clássicos” dos chamados “novos liberais”.
A fim de operacionalizar o trabalho, essa questão geral será analisada a partir das obras de três autores: Thomas Hobbes, John Locke e John Rawls. Além disso, o foco de análise será a diferenciação realizada por Araújo (2002), o qual definiu que algumas diferenciações podem ser feitas a obras desses pensadores, já que eles atribuem ênfases diversas a soluções de problemas centrais da teoria política.
Conforme Araújo (2002) – e seguindo uma linha de contexto histórico – o liberalismo clássico (nesse trabalho, Thomas Hobbes e John Locke) enfatiza as questões de legitimidade, de limites do poder político, de limitações da ação do Estado, do conceito de soberania. Em outros termos, a preocupação do liberalismo clássico é prescrever uma teoria do governo legítimo.
Já para John Rawls a ênfase se dá nas questões de justiça. Essa leitura indica que um governo pode ser legítimo, e ao mesmo tempo, ser injusto. Araújo (2002) define que essa ênfase nas questões de justiça, e não nas de legitimidade, “corresponde a um turning point no pensamento político de matriz liberal.” (p. 73) e implica no fato de que, contemporaneamente, os “Estados democráticos podem agora ser considerados mais ou menos justos, pouco ou excessivamente igualitários, dependendo do modo como as questões morais de fundo são articuladas e justificadas.” (p. 85).
Assim, a questão central desse estudo é a diferenciação de ênfases identificadas nos pensadores. Para tanto, o trabalho será realizado com base na leitura de algumas obras consideradas centrais no pensamento de Thomas Hobbes, John Locke e John Rawls.
2 Teoria liberal clássica: Thomas Hobbes e John Locke
A obra de Hobbes é construída a partir de como ele pensa os indivíduos. O autor visualiza que os homens aos olhos dos outros são opacos e imprevisíveis. A incerteza do agir resta na insegurança do saber, do prever e do identificar o que o outro deseja, o que pensa, o que quer, em suma, quais serão suas vontades e suas ações, e os mais possíveis do que prováveis efeitos[1]. Embora possa haver diferenças físicas entre os homens, afirma o pensador, a natureza os fez tão iguais que podem aspirar os mesmos desejos e reclamar por eles, e a conseqüência desta ação é tão imprevisível que só pode gerar o sentimento de medo[2].
Observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere a faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (HOBBES, 1651/2002, p. 96)
O medo, a desconfiança, a agressividade, esses sentimentos de insegurança, dentre outros, colocam o homem em “estado de colapso”, frente a uma possibilidade quase certa, frente ao pior de todos os males: a morte. Não existindo a faculdade da previsão entre os homens e, portanto, não havendo a possibilidade de desvendar o futuro, e muito menos de uma proteção inequívoca e sem incertezas, o mais razoável é atacar ou, em última hipótese, defender-se. Qualquer ato, mesmo o mais gratuito, é entendido como uma defesa prévia, uma defesa legítima e preventiva. “Contra essa desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação” (HOBBES, 1651/2002, p. 97).
O medo – o medo da morte – constitui-se no maior dos males, restando generalizado em qualquer época e em qualquer lugar em que se vive no estado de natureza, sendo cada um juiz exclusivo da conduta necessária à sua preservação. Este estado significa, em outros termos, estar em uma condição de guerra, e por si só, já que cada um se imagina (com ou sem razão) poderoso, perseguido, traído – o que desenrola no sentir medo da morte – pela imprevisibilidade das vontades e das ações dos outros. A vida de cada um é, como não poderia deixar de ser, solitária, miserável, cruel, animalesca e breve.
A imprevisibilidade das vontades dos outros e das ações, de suas conseqüências e efeitos, geraria esse sentimento, o qual Hobbes utilizaria como base para a construção do Estado. A arte de gerenciar (e não inibir) o sentir medo da morte, traduzida em uma ação política, não se baseia em um modelo, ou uma opinião sobre a natureza, ou sobre o bem que é incerto. Tal arte se baseia na necessidade primeira dos homens: a auto-preservação.
A esta arte política, o homem chegou através da razão, que se traduz na faculdade de inventar meios ou de produzir efeitos. Em melhores termos, “é a faculdade de raciocinar, entendido o raciocínio como um cálculo (...) mediante o qual, dadas certas premissas, extraem-se necessariamente certas conclusões.” (BOBBIO, 1989/1991, p. 38). E através da razão, os homens inteligentes, reunidos, contrataram mutuamente, criando uma instituição que asseguraria ao homem a sua preservação. Este contrato, descrito por Hobbes, marcou a passagem do estado natural – o qual é imutável se considerar apenas o devir histórico, natural e social – para o estado social.
A ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva, de um cálculo que engrenda um artefato. Considerando que o estado de natureza é insuportável, que o desejo de poder e o desejo de viver, e de viver em paz, contradizem-se, então a capacidade deliberativa própria do homem lhe ordena construir uma instância superior, cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural, substituir a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos. (PISIER, 2004, p. 54).
Observa-se, dessa forma, que para Hobbes, a ordem política nasce não só da impotência humana, da intenção de aliviar fraquezas, mas também da faculdade de racionalizar que leva ao homem construir uma máquina capaz de corrigir a natureza, recriá-la, aperfeiçoá-la. A instituição política traduz-se no artifício humano que permite aos homens tornar efetiva e eficaz essa idéia de poder supremo, ao qual são naturalmente levados a conceber. O contrato social que marca a passagem de um estado a outro, estabelece, ao mesmo tempo, regras de convívio social e de subordinação política, podendo ser designado como um “pacto de submissão”. O contrato marca a transferência mútua de direitos, por meio de um pacto, de uma promessa de cumpri-lo.
Resume-se numa verdadeira e unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: ‘Cedo e transfiro o meu direito de governar a mim mesmo este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfiras a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.’ Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. (HOBBES, 1651/2002, p. 130 e 131).
Nessa passagem, pode-se visualizar duas categorias fundadoras do liberalismo: a individualização e a representação. A base da formação do estado social está no contrato, no consentimento de cada um, assim, pode-se afirmar que “quer se trate de democracia, aristocracia ou monarquia, a legitimidade desses regimes, que é uma e a mesma coisa que seu modo de geração e instituição, é essencialmente democrática”. (MANENT, 1987/1990, p. 53)
Mas a este Estado absoluto, cuja origem (legitimidade, geração, instituição) pode ser entendida sob a ótica democrática (o consentimento de cada um), todos os súditos têm o dever da obediência. E a razão de ser, conforme afirma Manent (1987/1990), “do surgimento do estado de natureza como noção chave da reflexão política prendeu-se à necessidade de fazer surgir uma obediência incontestável, uma obrigação incontestável de obedecer” (p. 63). Aduz o autor que os homens hobbesianos vivem unidos através do seu desejo pelo poder, este é o elo de ligação no estado natural, além do desejo pelos direitos a eles conferidos naturalmente. E se os homens desejam o poder, para eles cumprirem o dever de obediência, o poder do soberano deve ser uma união de todas as forças, um poder inigualável a qualquer homem.
Dessa forma, a artificialidade do Estado garante a preservação dos homens, através do uso do poder e da força (da espada), promulga as leis necessárias à paz civil e garante a sua observância. O soberano é a própria fonte legisladora e a obediência a ele deve ser total. Os súditos, por sua vez, renunciam o direito ilimitado (jus in omnia) e o transmitem ao Leviatã. O soberano adquire o direito ilimitado, irrevogável e absoluto, tendo em vista o direito transferido a ele por cada indivíduo.
Esse pacto de união é concebido de modo a caracterizar a soberania que dele deriva mediante três atributos fundamentais: a irrevogabilidade, o caráter absoluto, a indivisibilidade. (...) pacto de união é:
a) um pacto de submissão estipulado entre os indivíduos, e não entre o povo e o soberano;
b) consiste em atribuir a um terceiro, situado acima das partes, o poder que cada um tem em estado de natureza;
c) o terceiro ao qual esse poder é atribuído, como todas as três definições acima o sublinham, é uma única pessoa.
Da primeira destas características decorre a irrevogabilidade; da segunda, o caráter absoluto; da terceira, a indivisibilidade. (BOBBIO, 1989/1991, p. 43)
O poder do soberano, assim, não poder ser dividido, a não ser a preço da destruição. Outrossim, no estado social, os indivíduos são autores de seus próprios atos, mas não de suas vontades. As suas ações são identitárias às do Leviatã, mas não as suas vontades. A vontade pertence a este – o Deus mortal – o qual representa os súditos. A elaboração de leis, que tem por base a declaração de uma vontade, só se torna e é lei quando realizada pelo soberano.
Ao soberano, portanto, é atribuído um poder ilimitado por possuir direitos ilimitados. Este poder traduz-se como absoluto, o que não o faz contraditório à liberdade dos homens.
Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição entendendo por oposição os impedimentos externos ao movimento. (...) Liberdade que consiste no fato de ele não deparar com entraves ao fazer aquilo que tem vontade, desejo ou inclinação de fazer. (...) Tendo em vista conseguir a paz e através disso sua própria conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual chamamos de Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam uma das pontas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano e a outra ponta a seus próprios ouvidos. (...) Posto que nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens – o que é uma coisa impossível – segue-se necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis os homens têm liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir como o mais favorável a seu interesse. (HOBBES, 1651/2002, p. 158 a 160).
A obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protege-los. O direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum. (HOBBES, 1651/2002, p. 166).
Dessa forma, observa-se: no silêncio da lei, o súdito pode realizar o que melhor lhe convir; e, na falta de lhe ser assegurado a sua necessidade primeira – a segurança – este pode se defender. Portanto, “a busca de segurança que fundamentava a ‘ilimitação’ do poder do Leviatã podia fundamentar, posteriormente, sua ‘limitação’.” (MANENT, 1987/1990, p. 64). A partir dessa leitura, Manent (1987/1990) identifica outra categoria fundadora do liberalismo no pensamento de Hobbes: o direito natural do indivíduo. Assim,
Hobbes pode ser considerado o fundador do liberalismo, porque elaborou a interpretação liberal da lei como puro artifício humano, rigorosamente externo a cada um, ela não transforma e não conforma os átomos individuais cuja coexistência pacífica se restringe a garantir. (MANENT, 1987/1990, p. 54)
E com base na seguinte afirmação: todos os indivíduos têm direito à vida, Hobbes dá o mote para a interpretação liberal da lei, qual seja, ninguém é obrigado a fazer o que não está prescrito em lei. Em outros termos, cria o conceito de liberdade negativa, permitindo aos cidadãos serem livres para decidir o que melhor lhes convém, desde que, certamente, isso não for proibido pelas leis civis.
Já para John Locke, no seu estado de natureza[3], os homens são livres e iguais, apropriando-se de alimentos para garantir a sua preservação, sem o apoio de um poder civil, sem qualquer outro guia que não as leis naturais. Estas leis concebem aos indivíduos direitos, quais sejam, à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Para compreendermos corretamente o poder político e ligá-lo à sua origem, devemos levar em conta o estado natural em que os homens se encontram, sendo este um estado de total liberdade para ordenar-lhe o agir e regular-lhes as posses e as pessoas de acordo com sua conveniência, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. (...) O estado natural tem um lei de natureza para governa-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que a consultem, por serem iguais e independentes que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. (LOCKE, 1689/2002, p. 23 e 24).
Com o intuito de assegurar a sua sobrevivência, ou seja, a sua vida, o homem precisa realizar atos no estado natural, quer para se alimentar, quer por este estágio possuir períodos de escassez ou pela falta de parâmetros razoáveis, os indivíduos usufruírem além do que a local em que residem possa oferecer, suportar ou disponibilizar. Estes atos realizados implicam na realização de um esforço – um trabalho – para tomarem para si estes alimentos, bens, objetos naturalmente indispensáveis.
O homem lockeano é naturalmente proprietário de seu trabalho, um direito intrínseco a ele. Os objetos, incluindo o seu corpo, tornam-se legitimamente propriedades do homem com o seu trabalho, com seu esforço. “A propriedade ingressa no mundo através do trabalho, e cada indivíduo tem em si mesmo a grande fonte da propriedade, pois é trabalhador e proprietário de si mesmo, logo, de seu trabalho” (MANENT, 1987/1990, p. 68).
A partir dessa máxima, em que o homem possui direitos naturais, Locke estabelece duas proposições: o direito à propriedade é essencialmente anterior à instituição da sociedade, não depende do consentimento de outrem ou da lei política; e a relação entre o homem e a natureza se define como trabalho. Dessa forma, o homem não se caracteriza por ser um animal político, mas sim, é um animal proprietário e trabalhador, proprietário por ser trabalhador e trabalhador para ser proprietário.
O que Locke nos fez ver foi o desenvolvimento da sociedade econômica na sua complexidade a partir deste começo tão insignificante: o indivíduo esfaimado. Toda a vida econômica, incluindo o intercâmbio, a produtividade do trabalho e o direito de propriedade assume, de certo modo, a ‘naturalidade’ e o caráter incontestável do direito do indivíduo faminto de se alimentar. Nesse indivíduo faminto reside a base substancial, natural e primordial da vida humana. Podemos ver por que o projeto liberal uma vez completamente elaborado, fez do direito de propriedade e tendeu a fazer da economia em que geral, a base da vida social e política: se as regras que organizam a vida social têm que nascer rigorosamente do direito do indivíduo solitário, elas só podem encontrar seu fundamento na relação desse indivíduo com a natureza. Simultaneamente, a relação de trabalho entre o indivíduo e a natureza faz surgir um mundo essencialmente distinto do dos direitos do indivíduo: o mundo do valor, da produtividade, do trabalho, da utilidade. Olhado por esse segundo ponto de vista, o direito de propriedade já não é considerado como o direito natural fundamental do homem, mas é o meio de preservar os valores resultantes da produtividade do trabalho, o meio da produção e troca dos valores. (MANENT, 1987/1990, p. 72).
Através da convenção realizada pelos homens, instituindo a moeda como valor que representa o trabalho, Locke desvincula a ligação trabalho-propriedade, redimensionando essa relação: o trabalho constituiu-se em um valor, o qual não necessita de uma propriedade física, de um objeto material em troca, podendo ser este valor atribuído através de outro bem, qual seja, a moeda. Como conseqüência, tem-se que “o direito do proprietário desvinculou-se legitimamente do direito do trabalhador”. (MANENT, 1987/1990, p. 70).
Para Locke, a essência da moeda é ser um bem não perecível, que, portanto, pode ser conservado indefinidamente. O grão excessivo fenece inaproveitado. A moeda, todavia, pode ser acumulada na medida do poder e da capacidade de obtê-la, sem que haja risco maior de deterioração e de que, em conseqüência, os outros reclamem a sua parte. Em termos mais simples, se acumulo mais grãos do que posso consumir, defraudo todos os outros da parte que deixo estragar. Porém, se acumulo moeda, não estou retirando nada de ninguém. (BOBBIO, 1963/1997, p. 199).
Em suma, o pensamento lockeano idealiza, em primeiro lugar, que trabalhar significa produzir valor, e, em segundo, que ser proprietário traduz-se na preservação deste valor, impedindo-o de perecer ou de ser desperdiçado, através da moeda.
O problema, para Locke (1689/2002), encontra-se no próprio devir do estado de natureza. Ao mesmo tempo em que esse estágio pré-social e pré-político é permeado por uma relativa paz, concórdia e harmonia, é necessário que todas as leis naturais sejam cumpridas, a fim de assegurar esse conteúdo positivo. Em outros termos, os direitos naturais atribuídos aos homens – a liberdade, a igualdade, a vida, a segurança e a propriedade – devem ser preservados. É necessário que os esforços realizados, os quais se traduzem em trabalho-valor-propriedade, devam ser certamente respeitados, mesmo de atos de outrem que, sabia e inesperadamente, possam o usurpar.
Como a liberdade, que consiste em poder fazer tudo o que não é proibido pelas leis naturais, não possui nenhum mecanismo de obrigatória subordinação no estado de natureza, restando a igualdade como meio que permite a todos poderem se defender, poderem atribuir o conceito de justiça para justificar a sua ação, reprimindo e destruindo, mediante violência, a violência sofrida primeiramente. Ofendido, o agredido tem, na igualdade, o suporte necessário para violentar, tendo em vista que no estado de natureza, os homens não possuem um ente que obriga a todos respeitarem as leis naturais.
Além disso, refere Manent (1987/1990) que, nesse estado, o direito de propriedade é limitado, já que todos possuem direitos iguais ao encontrado por qualquer homem na natureza. O fato de ser limitado leva à definição de que se alguém se apropria mais do que pode consumir, além de um parâmetro razoável, está realizando uma conduta irracional, violando o direito de outrem, que está baseado na liberdade de agir e na igualdade de dispor, permitindo, inobstante, uma conduta contrária. O estado vivido pode tornar-se não só um estado de penúria, mas também um estado em que todos poderão aplicar suas próprias sanções, restando intitulados como juízes das violações sofridas pelos seus direitos naturais e como agentes das sanções estatuídas unilateralmente, as quais não serão necessariamente suficientes, justas ou imparciais.
A busca mais essencial de todo o ser humano é a sua sobrevivência, a sua vida, a certeza de não morrer na penúria, pelo maior dos perigos: a fome e a possibilidade de julgar e sancionar outrem, individualmente, pode acarretar em uma guerra, em disputas generalizadas. A falta de um juiz, conforme Bobbio (1963/1997), levaria a um estado insuportável: a guerra generalizada.
O duplo conceito de natureza (idéia reguladora e realidade efetiva da condição humana) tem um caráter positivo – leis naturais invioláveis – e negativo – a possibilidade de os homens descumprirem essas normativas. Em outros termos, encontra-se em Locke a dicotomia tradicional entre a natureza real e a ideal. Assim, refere Locke (1689/2002),
o homem nasce com direito a perfeita liberdade e gozo ilimitado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, tanto quanto qualquer outro homem ou grupo de homens, e tem, nessa natureza, o direito não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e as posses – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e punir as infrações dessa lei pelos outros, conforme julgar da gravidade da ofensa, até mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror da culpa o exija, se assim lhe parecer. Contudo, uma vez que uma sociedade política não pode existir nem manter-se sem ter em si o poder de preservar a propriedade e, para isso, punir as ofensas cometidas contra qualquer dos seus membro, só podemos afirmar que há sociedade política quando cada um dos membros abrir mão do próprio direito natural transferindo-o à comunidade, em todos os casos passives de recurso à proteção da lei por ela estabelecida. (p. 69).
Dessa forma, ao Estado – esse ente artificial criado a partir de um pacto social, seguindo a lógica hobbesiana na sua constituição – caberia o dever de restaurar o estado natural anterior à deflagração de uma guerra. Esta natureza dúplice apresentada por Locke justifica o motivo pelo qual o seu Estado possui poderes limitados, “é pura e simplesmente uma instituição com o objetivo de tornar possível a convivência natural entre os homens” (BOBBIO, 1963/1997, p. 182). Assim, percebe-se que “não basta a defesa de uma esfera privada sem o contraponto da limitação do Estado.” (PEREZ, 1997).
O Estado lockeano, portanto, possui limites, estes impostos pelos direitos naturais dos indivíduos: a propriedade, a liberdade, a igualdade, a segurança e a vida. Ao Estado cabem poderes limitados e funções específicas: garantir a conservação dos direitos naturais fundamentais.
O núcleo do pensamento político de Locke está resumido nesta afirmativa: a força do governo consiste exclusivamente em fazer respeitar ‘as leis positivas da sociedade, determinadas de conformidade com as leis da natureza.’ O princípio e o fim do bom governo residem, portanto, no respeito às leis naturais. Em conseqüência, o fim último da filosofia política é descobrir a essência das leis naturais e, então, estabelecer, com base nessas leis, as condições e os limites do poder político. (BOBBIO, 1963/1997, p. 152).
A motivação de uma instituição política reside, dessa forma, na preservação dos direitos naturais e individuais postos em perigo pelas perturbações inevitáveis do estado de natureza. Por tal motivo, limita-se o poder, sujeitando-o às leis que prescreve.