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Precatórios: a inconstitucionalidade da EC nº 62/2009, a esterilização do acesso à justiça e a ineficácia das execuções contra a Fazenda Pública

Precatórios: a inconstitucionalidade da EC nº 62/2009, a esterilização do acesso à justiça e a ineficácia das execuções contra a Fazenda Pública

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Quando se retira a efetividade da decisão judicial, limitando-se o Poder Judiciário a fazer simples requisição para o pagamento, sem que possa por fim ao processo, satisfazendo o crédito, está-se diante de grave afronta ao principio da separação dos poderes.

Resumo: O objetivo do presente estudo é abordar a problemática do instituto do precatório como meio de pagamento das dívidas da Fazenda Pública decorrentes de sentenças transitadas em julgado em razão das alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009. Nesta perspectiva, traz uma análise do regime de pagamento dos precatórios dentro da Constituição Federal de 1988, pontuando os principais aspectos inerentes à sua constitucionalização. Parte-se então para o estudo das Emendas Constitucionais que alteraram o regime de pagamento dos precatórios, até se chegar ao regime atual, instituído pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009, que criou o chamado Regime Especial de Pagamento dos Precatórios, onde objetiva-se verificar a sua (in)constitucionalidade frente aos princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito. Por final, é avaliado o conteúdo da Emenda em relação à garantia constitucional do acesso à justiça.

Palavras-chave: Precatórios. Emenda Constitucional nº 62/2009. Inconstitucionalidade.


INTRODUÇÃO

O instituto do precatório sempre gerou polêmicas e intermináveis discussões acerca de sua aplicação. Ao longo do tempo, foi sendo necessário criarem-se regimes que adequassem, ao tempo em que instituídos, a forma de pagamento dos precatórios. Contudo, esses regimes não obtiveram a eficácia esperada, o que culminou no agravamento da situação da dívida pública.

Isto porque o poder constituinte acabou criando permissivos constitucionais para que a Fazenda Pública viesse a se tornar inadimplente por longo período de tempo.

Inicialmente, o art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) previa 8 (oito) anos para o pagamento, depois, a Emenda Constitucional nº 30, de 2000, ampliou esse prazo para 10 (dez) anos, e agora, a Emenda Constitucional nº 62, de 2009, ampliou-o para 15 (quinze) anos.

Em razão dessa celeuma, a Emenda Constitucional nº 62, de 2009, que instituiu a terceira moratória para o pagamento dos precatórios, veio a ser chamada por muitos de “Emenda do Calote”, e contra ela foram ajuizadas 4 (quatro) Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), que tramitam no Supremo Tribunal Federal[1].

Estas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas contra a Emenda Constitucional nº 62, de 2009, têm como foco principal resguardar os princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito, que, conforme se verá no presente estudo, são meneados por ela.

Nesta perspectiva, procurar-se-á abordar o tema dos precatórios numa visão do atual Estado Democrático de Direito, através da analise das implicações que tal instituto tem no sistema jurídico e social atual.

Desta forma, será analisada sistemática do instituto do precatório como meio de pagamento da dívida pública, pontuando-se as Emendas à Constituição Federal de 1988 que trataram do instituto e suas disposições.

Por final, serão analisadas as disposições da Emenda Constitucional nº 62, de 2009, frente aos Princípios do Estado Democrático de Direito e frente à garantia constitucional do acesso à justiça.


1 EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

Função precípua do Estado lato sensu é a de garantir a proteção jurisdicional aos direitos assegurados a todos que nele se encontrem. O atual sistema jurídico brasileiro criou uma série de mecanismos que visam garantir direitos e obrigações, dentre eles, o direito do credor de receber seu pagamento e a obrigação do devedor de pagar. Assim, entendemos por tutela jurisdicional a proteção que o Judiciário presta às partes no processo, em favor daquele a quem é reconhecido o direito quando findada a prestação da jurisdição.

Com maior precisão, conceitua o ilustre processualista Candido Rangel Dinamarco[2]:

Tutela jurisdicional é o amparo que, por obra dos juízes, o Estado ministra a quem tem razão num litígio deduzido num processo. Ela consiste na melhoria da situação de uma pessoa, pessoas ou grupos de pessoas, em relação ao bem pretendido ou à situação imaterial desejada ou indesejada. Receber tutela jurisdicional significa obter sensações felizes e favoráveis, propiciadas pelo Estado mediante o exercício da jurisdição.

Assim, toda pessoa que, detentora de um direito o tem reconhecido pelo Estado através da prestação jurisdicional, deve ter assegurada a satisfação da tutela jurisdicional conferida na sentença condenatória favorável.

Nascida então a tutela executiva para o vencedor da ação judicial, pelo reconhecimento do seu direito, e findada a fase de conhecimento do processo, inicia-se então fase processual executória, onde o objetivo é ver satisfeito o direito do credor.

Podemos definir a execução de que trata o Código de Processo Civil como uma intervenção do Estado, provocada pelo credor, para, quando atribuída uma obrigação a um responsável e este não a cumprir espontaneamente, utilizar-se de meios legais para garantir a satisfação do direito reconhecido.

1.1 Prerrogativas da Fazenda Pública em juízo

A Fazenda Pública possui tratamento diferenciado, pois age no interesse da coletividade, entretanto, estes privilégios é que tornam o processo mais demorado, burocrático e penoso. Neste sentido, afirma Maurício Santos Gusmão Júnior[3]:

A res publica a todos pertence e disso resulta a indisponibilidade dos seus interesses. A Fazenda, ao ser demandada em juízo, deverá perseguir o interesse público. Por isso, as normas processuais que a outorgam prazos dilatados e outras prerrogativas compatibilizam-se com os preceitos constitucionais. A Carta Magna, a começar pela exigência do precatório para pagamento de dívidas pecuniárias, deixou expresso a premência em tutelar o interesse público discutido no âmbito processual. O resultado da lide, a negligência daqueles que representam a Fazenda em juízo afetam a todos. É prejuízo de toda a sociedade. Não bastasse o respaldo do tratamento desigual na supremacia do interesse público sobre o particular, impende salientar que a Fazenda Pública responde a uma quantidade cada vez maior de ações, acrescentando-se a isso os entraves burocráticos que dificultam muito a atuação expedita, principalmente no que tange à prestação de informações por órgãos da estrutura administrativa, para subsidiar a defesa do Poder Público em juízo.

Em contrapartida a esta afirmativa, Ezequias da Silva Leite[4] argumenta:

Vê-se, pois, que os malsinados privilégios fazendários estão na contramão da moderna máxima da efetividade processual, porquanto o processo não pode prejudicar o cidadão que tem razão, nem este pode sempre suportar unicamente os nefastos efeitos do tempo do processo.

O processo judicial contra a Fazenda Pública já é moroso por si só, na fase de conhecimento, tramitando por longo período de tempo até que seja sentenciado em definitivo, leia-se, transitado em julgado, para então, iniciar-se a fase de busca da satisfação do crédito do credor.

A situação da dívida pública quase impagável dos precatórios, em que se encontra a Fazenda Pública atualmente, justifica-se nas prerrogativas de que esta dispõe. E não se trata de novidade.

A impossibilidade de penhorar bens públicos foi trazida para o nosso ordenamento jurídico juntamente com a primeira aparição do que viria a se tornar o precatório atual, chamando-se àquela época de precatória, no art. 41, da Parte Quinta (Processo nas causas cíveis de ordem pública ou administrativa), do Decreto nº 3.084, de 05/11/1898[5], que aprovou a Consolidação das leis referentes à Justiça Federal, nos seguintes termos:

Art. 41. Sendo a Fazenda condemnada por sentença a algum pagamento, estão livres de penhora os bens nacionaes, os quaes não podem ser alienados sinão por acto legislativo.

A sentença será executada, depois de haver passado em julgado e de ter sido intimado o procurador da Fazenda, si este não lhe offerecer embargos, expedindo o juiz precatoria ao Thesouro para effectuar-se o pagamento.

Transitada em julgado a decisão, inicia-se a fase processual de execução. Mais uma vez então é de se deparar com as prerrogativas de que frui o Estado, tendo em vista que a legislação processual prevê classe de execução específica para este, qual seja, a “Execução contra a Fazenda Pública”, prevista nos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil Brasileiro.

Sobre o tema, cabe a lição de Humberto Theodoro Júnior[6]:

Os bens públicos, isto é, os bens pertencentes à União, Estado e Município, são legalmente impenhoráveis. Daí a impossibilidade de execução contra a Fazenda nos moldes comuns, ou seja, mediante penhora e expropriação.

Prevê o Código de Processo Civil, por isso, um procedimento especial para as execuções por quantia certa contra a Fazenda Pública, o qual não tem a natureza própria de execução forçada, visto que se faz sem penhora e arrematação, vale dizer, sem expropriação ou transferência forçada de bens.

Realiza-se por meio de simples requisição de pagamento, feita entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, conforme dispõem os arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil.

Veja-se, portanto, que a execução contra o Estado é tratada de forma diferenciada no ordenamento jurídico pátrio, dispondo o diploma processual que o pagamento da quantia devida pelo ente público far-se-á através da requisição do pagamento pelo juiz ao presidente do tribunal competente e observará a ordem cronológica de apresentação dos precatórios.

Destarte, o pagamento das dívidas da Fazenda Pública, após todo o trâmite processual, se dá através do sistema de precatórios.


2 PRECATÓRIOS

Trata-se de instrumento pelo qual o Poder Judiciário requisita, à Fazenda Pública, o pagamento da quantia pela qual esta foi condenada em processo judicial.

Nas palavras de De Plácido e Silva apud Romeu Giora Junior[7]:

Precatório. De ‘precatorius’, é especialmente empregado para indicar requisição, ou propriamente, a carta expedida pelos juízes da execução de sentenças, em que a Fazenda Pública for condenada a certo pagamento, ao Presidente do Tribunal, a fim de que, por seu intermédio, se autorizem e se expeçam as necessáias ordens de pagamento às respectivas repartições pagadoras.

De acordo com Lair da Silva Loureiro Filho:

É o ato pelo qual o juiz requisita ao Presidente do Tribunal competente a ordem de pagamento à Fazenda Pública, para efetuá-lo no processo executivo, ou ainda a técnica brasileira que permite a execução contra a Fazenda Pública por visar compelir o Estado-devedor a incluir no seu orçamento a verba necessária ao pagamento dos débitos decorrentes de decisão judicial, para efetuar o pagamento com obediência à ordem de apresentação das respectivas requisições[8].

Conforme se depreende dos conceitos acima expostos, não se trata de uma ordem para que a Fazenda Pública cumpra a decisão judicial condenatória, mas tão somente de uma simples requisição ao poder público, para que este inclua o débito em suas contas e o pague quando puder, ou quando lhe convier.

A sistemática funciona da seguinte maneira:

1.sendo procedente a sentença em ação judicial proposta contra a Fazenda Pública, o credor deve promover então a execução desta;

2.havendo o título executivo líquido e certo, o juiz fará uma requisição ao Presidente do Tribunal competente para que este ordene à Fazenda Pública o pagamento da quantia devida;

3.ordenado o pagamento, fica a Fazenda Pública compelida a pagar o débito ou então incluir no seu orçamento a verba necessária para efetuar o pagamento dos requisitórios judiciais;

4.feito isso, o pagamento se dará conforme a ordem cronológica de apresentação dos requisitórios, ou conforme as especialidades previstas nas normas que disciplinam este regime de pagamento, conforme será visto no decorrer do presente trabalho.

Àquele requisitório do juiz da ação condenatória da Fazenda Pública ao Presidente do Tribunal competente, para que este determine à Administração que efetue o pagamento, é que se chama “precatório”.

Tecnicamente, o precatório é o ofício requisitório do Presidente do Tribunal à Fazenda Pública para que esta inclua no seu orçamento as verbas destinadas ao pagamento de suas dívidas decorrentes de condenações judiciais.

Diante disso, como bem observado por Adilson Abreu Dallari[9]

é forçoso entender que existem duas apresentações de precatório: a primeira, ao Tribunal, para fixar a ordem cronológica dos pagamentos; a segunda, à fonte pagadora, para inclusão na proposta orçamentária.

Quanto a esta ordem seqüencial de atos necessária ao pagamento dos precatórios, observa o atual Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Celso de Mello Filho (Constituição Federal Anotada, 1986) apud Dallari[10]:

O pagamento devido pela Fazenda Pública submete-se a uma ordem seqüencial de atos que condicionam a sua realização:

a)expedição de precatório ao presidente do Tribunal competente;

b)apresentação do precatório à entidade de direito público condenada;

c)observância estrita da ordem cronológica de apresentação do precatório.

Importante esclarecer que o precatório não incide sobre qualquer débito estatal, mas somente sobre o pagamento de créditos de terceiros decorrentes de sentença judicial.

É no texto constitucional que se encontra a disciplina especifica deste instituto, mais precisamente no artigo 100 da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 33, 78, 86, 87 e 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

2.1Evolução histórica

O instituto do precatório na Constituição Federal de 1988 veio disposto no art. 100. Contudo, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) trouxe consigo o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que, por sua vez, trouxe em seu art. 33 a primeira moratória para o pagamento das dívidas públicas, concedendo o prazo de 8 (oito) anos para a quitação, através de oito prestações anuais iguais e sucessivas,  dos precatórios vencidos até a data da promulgação da própria CF/88, com exceção daqueles de natureza alimentar.

Não obstante, ainda que haja inconstitucionalidade no art. 33 do ADCT, não há como reconhecê-la através do controle de constitucionalidade, uma vez que é parte integrante do Texto Constitucional originário.

Como bem observa José Afonso da Silva[11], “disposições transitórias só têm cabimento na transição de um regime constitucional para outro”. Esta é a finalidade do ADCT, que se trata de regramento de transição constitucional, e não de regime jurídico permanente.

Diante do que entendeu o Supremo Tribunal Federal, no RE 160486, de relatoria do Min. Celso de Mello, julgado em 11/10/1994[12], ainda que se possa vislumbrar certa incoerência do art. 33 do ADCT com o que dispõe o Texto Constitucional, não há como se declarar sua inconstitucionalidade.

Sendo assim, a primeira moratória instituída pelo Texto Constitucional não pôde sequer ser objeto de discussão, restando aos credores apenas esperar que o Estado cumprisse ao menos o prazo de 8 (oito) anos para o pagamento, o que não ocorreu.


3 REGIMES DE PRECATÓRIOS NAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

O regime de pagamento dos precatórios vem sendo disciplinado, desde a Constituição Federal de 1988, por Emendas Constitucionais.

A Emenda Constitucional nº 20, de 1998, inseriu no art. 100 da CF/88 o § 3º, que estabeleceu a ressalva da aplicação do regime de expedição de precatórios às obrigações definidas em lei como sendo de “pequeno valor”. Contudo, há época, não havia ainda lei definindo quais seriam as obrigações consideradas de pequeno valor. A primeira definição neste sentido surgiu com a vigência da Lei nº 10.259/2001 (Lei dos Juizados Especiais da Justiça Federal), que estabeleceu que créditos de pequeno valor para a União, seriam aqueles iguais ou inferiores a 60 salários mínimos.

Posteriormente, a Emenda Constitucional nº 37, de 2002, definiu que seria dispensada a expedição de precatório para os débitos municipais que atingissem no máximo 30 salários mínimos e estaduais que atingissem no máximo 40 salários mínimos.

Diante da ineficácia da previsão constitucional para o pagamento dos precatórios no prazo máximo de 8 (oito) anos, no ano de 2000, foi editada a Emenda Constitucional nº 30 (EC nº 30/2000), que alterou a redação do art. 100 da CF/88 e acrescentou o art. 78 ao ADCT.

Ocorre que o art. 78, do ADCT, inserido pela EC 30/2000, instituiu a segunda moratória constitucional para o pagamento dos débitos da Fazenda Pública, esta de 10 (dez) anos. O parcelamento previsto no referido dispositivo, em verdade, criou uma nova moratória, quando ampliou para 10 (dez) anos o tempo para que fossem quitados os precatórios pendentes.

Foram excepcionados deste parcelamento os créditos de pequeno valor, os alimentares (isto porque, entende-se, deveriam ser pagos à vista); os do art. 33 do ADCT, que já deveriam ter sido pagos, haja vista o prazo de 8 (oito) anos já ter se esgotado; os que tinham seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo; e os precatórios pendentes na data de promulgação da Emenda à Constituição.

A EC 30/2000 manteve a preferência dos precatórios de natureza alimentícia, sendo admirável a intenção do legislador quando da sua edição, por esse motivo. Contudo, o poder reformador acabou por subverter a ordem de preferência no pagamento, uma vez que, ao criar as possibilidades dos §§ 2º e 4º do art. 78, do ADCT, fez com que o Poder Público optasse por pagar os demais créditos em preterição aos alimentícios, uma vez que para o adimplemento destes nenhuma espécie de “sanção” haveria. Assim, os créditos ditos preferenciais foram deixados de lado, tornando-se inadequado o regramento trazido pela Emenda em comento.

Por este motivo e por entender inconstitucional a Emenda Constitucional nº 30, de 2000, por afronta ao direito fundamental previsto no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, que a Ordem dos Advogados do Brasil interpôs uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) em face desta emenda, que ainda tramita no Supremo Tribunal Federal, na qual foi proferida, em sede de medida cautelar, decisão favorável à sua inconstitucionalidade, suspendendo a eficácia do art. 2º da EC 30/2000.

Portanto, ainda pendente de julgamento a ADI nº 2.356, resta suspenso o art. 78 da Emenda Constitucional nº 30 de 2000.

Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 37, de 2002, trouxe ao ordenamento jurídico mais uma inovação com relação aos precatórios, qual seja, a vedação da expedição de precatório complementar ou suplementar e do fracionamento do valor da execução. Assim, tornou inviável a quebra do valor para que fosse pago parte através de requisição de pequeno valor (RPV) e parte através de precatórios.

Por requisição complementar, entende-se aquela utilizada para requisitar a diferença de juros, atualização monetária e os critérios contidos na sentença. De outra parte, requisição suplementar é a expedida para o pagamento do valor embargado ou impugnado, após o trânsito em julgado.

Esta Emenda à Constituição acrescentou ainda ao ADCT os artigos 86 e 87, sendo que o primeiro determinou que os débitos cujos precatórias já haviam sido emitidos e estavam pendentes, bem como os de pequeno valor fossem pagos nos termos do caput do art. 100 da CF/88, conforme ordem cronológica de apresentação, excluindo destes a possibilidade de parcelamento, e ainda, dando-lhes a prevalência sobre os de maior valor.

3.1 A Emenda Constitucional nº 62, de 2009

Passados mais de 20 anos desde a promulgação da Constituição da República, em 1988, o problema referente ao pagamento dos precatórios permaneceu, e, ao contrário do que se esperava, a Dívida Pública só veio a aumentar no decorrer do tempo. As Emendas Constitucionais erigidas na tentativa de solução do problema do inadimplemento dos precatórios não desempenharam o resultado esperado, pelo contrário, somente trouxeram um emaranhado de dúvidas e discussões acerca do tema, mas nenhuma eficácia concreta no pagamento.

Então, em mais uma tentativa de resolver-se a problemática do pagamento dos precatórios, foi editada a Emenda Constitucional nº 62 de 2009, alterando o art. 100 da Constituição Federal e acrescentando o art. 97 ao ADCT, instituindo regime especial de pagamento de precatórios pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

As mudanças trazidas pela Emenda em comento foram tachadas, por muitos, como inconstitucionais, uma vez que ficou instituída a terceira moratória para o pagamento dos precatórios, mais uma mora institucionalizada, motivo pelo qual veio a ser chamada desde sua origem de “Emenda do Calote”.


4 ASPECTOS DE (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EC 62/2009

A Emenda Constitucional nº 62, de 2009, como já dito, trouxe ao regime dos precatórios a terceira moratória instituída pelo constituinte, tratando-se de mora institucionalizada. Este foi o ponto crucial de toda a indignação em razão da sua edição, mas não foi o único.

Em seu discurso perante o Superior Tribunal de Justiça, na comemoração dos 20 anos do “Tribunal da Cidadania”, o então presidente da OAB, Cezar Britto, demonstrando evidente revolta com a aprovação do PEC nº 12 – projeto de instituição da Emenda em comento –, chamando-a de PEC do Calote, denunciou a sua aprovação, referindo que “a simples inclusão, no corpo da Constituição-Cidadã, de uma regra que estimula o calote já justificaria a sua não aprovação.”[13]

Tão logo foi aprovada a Emenda Constitucional nº 62/2009, o jornal O Estado de São Paulo publicou editorial, no dia 7 de dezembro de 2009, intitulado “A vergonhosa PEC do Calote”, onde, entre outras considerações, publicou artigo do ilustre jurista e professor Ives Gandra da Silva Martins[14], no qual atacou a aprovação do PEC nº 12, afirmando que:

O projeto de emenda constitucional aprovado no Senado tem, pelo menos, cinco inconstitucionalidades. Viola: o princípio da igualdade, pois tais fatores não são estendidos aos contribuintes credores; o princípio da dignidade humana, pelo tratamento humilhante que dá aos credores, confiscando-lhes o patrimônio; o direito à propriedade, com um acintoso “devo, mas não pago”; a coisa julgada, pelo desrespeito às decisões judiciais definitivas; o princípio da razoável duração do processo, já que, se os precatórios não são cumpridos, a prestação jurisdicional não é entregue.

Visto isto, é necessário então analisar sistematicamente o conteúdo da EC nº 62/2009, a ponto de saber-se que tipos de afronta à Constituição subsistem no seu texto.

4.1 (In)constitucionalidade Formal

A primeira inconstitucionalidade a ser apontada na Emenda Constitucional nº 62/2009 diz respeito ao aspecto formal, ou seja, às formalidades exigidas para sua criação. Esta inconstitucionalidade se revela sob dois prismas, o primeiro quanto ao descumprimento das formalidades normativas para reforma constitucional, uma vez que não foi respeitado o interstício mínimo entre os dois turnos de votação; e o segundo quanto às limitações materiais impostas às Emendas Constitucionais. Vejamos cada um deles.

4.1.1 Desrespeito ao interstício mínimo entre os dois turnos de votação

Inicialmente, cumpre referir que as duas votações que ensejaram a aprovação da Emenda Constitucional nº 62/2009 foram realizadas no Senado Federal no mesmo dia, em 02 de dezembro de 2009. Assim, vejamos que não houve respeito ao que estabelece o art. 362 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), que prevê um interstício mínimo de cinco dias úteis entre os dois turnos de votação quando se tratar de Emenda à Constituição.

Importante salientar que o art. 362 do RISF (Resolução nº 93 de 1970), está disposto em título que trata especificamente das proposições sujeitas a disposições especiais, referindo que o interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis.

Desta forma, verifica-se que houve claro desrespeito ao devido processo legislativo, bem como ao que preceitua o art. 60, § 2º, da Constituição Federal de 1988, que prevê a discussão e votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos. Ainda que não haja previsão expressa na Constituição acerca da necessidade do interstício previsto no RISF, a maior parte da doutrina entende que este deve ser respeitado, tendo em vista que está intimamente ligado ao preceito constitucional do art. 62, § 2º, cuja interpretação deve ser feita de forma não literal, mas de acordo com a sua representatividade como norma reguladora do processo legislativo.

O § 2º do art. 62 da Constituição estabelece a necessidade de dois turnos de votação, justamente para que se possam ser realizadas as ponderações adequadas aos dispositivos da reforma pretendida, através de debates e reflexões acerca da deliberação.

4.1.2 As limitações materiais do poder reformador

O art. 60 da CF/88, em seu § 4º, limita expressamente as matérias que podem ser objeto de deliberação mediante emenda à Constituição. Tratam-se, pois, de cláusulas pétreas.

Não obstante, a EC 62/2009 impôs sérias limitações a direitos e garantias individuais, bem como ao princípio da separação dos Poderes, suplantando a competência do poder constituinte derivado e desobedecendo as limitações materiais expressamente previstas no § 4º, incisos III e IV, do art. 60 da CF/88.

Assim, a EC 62/2009 incorre em vício de inconstitucionalidade formal também por violação às limitações materiais do poder reformador, que não detém competência para abolir direitos e garantias fundamentais, bem como não pode dispor sobre matéria abrigada por cláusula pétrea.

Neste sentido, cabe a importante lição de José Afonso da Silva[15] quando se referiu à impossibilidade de emenda constitucional ofender direito adquirido:

A reforma ou emenda constitucional não pode ofender direito adquirido, pois está sujeita a limitações, especialmente limitações materiais expressas, entre as quais está precisamente a de que não pode pretender abolir os direitos e garantias individuais, e dentre estes está o direito adquirido.

De outra parte, é importante referir que as deliberações parlamentares, ainda que passadas pelo controle preventivo de constitucionalidade, por si só, não se perfazem plenamente constitucionais, tornando-se imutáveis, pelo contrário, estão sujeitas ao controle repressivo de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. Neste sentido, é o entendimento exposto no julgamento da Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 26.441-DF, pelo Relator Ministro Celso de Mello, da Suprema Corte nacional.

De igual sorte, este foi entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.356, de relatoria do Ministro Néri da Silveira, cujo redator foi o Ministro Ayres Britto, na oportunidade em que restou apreciada a (in)constitucionalidade do art. 78 do ADCT, introduzido pela EC nº 30, de 2000.

No mesmo sentido, leciona o Eminente Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes[16]:

Em qualquer hipótese, os limites do poder de revisão não se restringem, necessariamente, aos casos expressamente elencados nas garantias de eternidade. Tal como observado por Bryde, a decisão sobre a imutabilidade de determinado princípio não significa que outros postulados fundamentais estejam submetidos ao poder de revisão.[17]

O efetivo significado dessas cláusulas de imutabilidade na práxis constitucional não está imune a controvérsias. Se se entender que elas contêm uma "proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais" (Verfassungsprinzipiendurchbrechungsverbot), tem-se de admitir que o seu significado é bem mais amplo do que uma proibição de revolução ou de destruição da própria Constituição (Revolutions Verfassungsbeseitigungsverbot). É que, nesse caso, a proibição atinge emendas constitucionais que, sem suprimir princípios fundamentais, acabam por lesá-los topicamente, deflagrando um processo de erosão da própria Constituição.[18]

Passemos então à análise da inconstitucionalidade material da Emenda Constitucional nº 62/2009.

4.2 (In)constitucionalidade Material

4.2.1 O Regime Prioritário Especial dos Precatórios Alimentícios

A EC 62/2009 instituiu o pagamento preferencial dos precatórios daqueles que contavam com 60 (sessenta) anos ou mais de idade e daqueles que são portadores de doença grave, visando assim sagrar princípio humanitário em virtude do efeito do tempo em relação a estes, bem como da redução da capacidade laborativa de ambos. Atitude louvável do legislador, pois tal benefício não existia anteriormente.

Tal preceito foi introduzido no Texto Constitucional pela alteração do § 2º do art. 100 da CF/88. Contudo, este mesmo dispositivo trouxe consigo regramento cuja constitucionalidade é de se questionar. O § 2º, do art. 100, da CF/88, criou a preferência – humanitária – do pagamento dos precatórios, entretanto, limitou-a àqueles “cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório”. Exatamente esta última expressão (“na data de expedição do precatório”) é que representa o primeiro questionamento acerca da (in)constitucionalidade do dispositivo.

Assim dispondo, a norma criada acabou por excluir da preferência os credores que na data da expedição do precatório não tinham alcançado ainda 60 anos, mas que posteriormente vieram a completar tal idade. Nesta lógica, uma pessoa de 60 anos de idade que teve seu precatório expedido recentemente, receberá o seu crédito muito antes de outra que, mesmo com idade mais avançada, espera há mais de 20 (vinte) anos para receber o que lhe é devido.

Por estes motivos, entendemos que a expressão “na data de expedição do precatório” é inconstitucional, pois viola os princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade.[19]

Há ainda que se observar que a preferência do § 2º, do art. 100, é dada somente para os credores de precatórios alimentícios, ficando excluídos, assim, aqueles credores nas mesmas condições de idade ou doença grave, cujos precatórios não são de origem alimentícia, não tendo estes qualquer prioridade no recebimento dos seus créditos.

Outro ponto a ser observado na redação do dispositivo em comento é a expressão “até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei”. Esta limitação do pagamento dos precatórios de natureza alimentar até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei – considerando-se para tanto, nos termos do § 3º, do art. 100, da CF/88, introduzido pela Emenda em comento, o valor das Obrigações de Pequeno Valor (OPV) fixado na lei do ente federado respectivo –, contraria à própria natureza do crédito alimentar, que devido à sua importância, deveria ser pago de forma integral.

Passou então a ser admitido pela parte final do § 2º do art. 100 da CF/88, introduzido pela EC 62/2009, o fracionamento do crédito para este fim, devendo o restante ser pago por meio da ordem cronológica de apresentação. Em razão disso, estaria o dispositivo retirando a eficácia e a autoridade da decisão judicial condenatória transitada em julgado[20].

Podemos entender ainda que este fracionamento do crédito implique em ofensa ao direito adquirido, à coisa julgada e à separação dos poderes, uma vez que o direito à prioridade no recebimento do crédito, por sua natureza alimentícia, é limitado, de forma que parte do crédito sairá do regime prioritário especial (prefiro chamá-lo assim, em razão de o regime preferencial puramente alimentício ser diferenciado) para a forma do regime preferencial simples (aqui me refiro ao regime preferencial dos precatórios de natureza alimentícia).

Há de ser observado que o regime instituído pelo § 2º, do art. 100, da CF/88, introduzido pela EC 62/2009, importou em um agravamento da situação dos credores de precatórios que foram emitidos antes da edição da Emenda, e que deveriam ser pagos em parcela única e de forma integral.

Com o advento desta regra, passaram a coexistir três regimes de ordem cronológica de apresentação dos precatórios para pagamento, quais sejam, o regime comum (dos precatórios não alimentícios) do caput do art. 100 da Constituição Federal de 1988, o regime preferencial dos precatórios de natureza alimentícia, do § 1º do mesmo artigo, e o regime prioritário especial, do § 2º do dispositivo citado.

Trata-se, pois, de tratamento antiisonômico instituído sob o manto da Constituição e nela inserido, em vias de afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, razoabilidade e proporcionalidade - vetores do sistema Constitucional - e à própria natureza alimentar do crédito.

4.2.2 Obrigações de Pequeno Valor

Por sua vez, o § 3º, do art. 100, na redação da Emenda, estipula que as Obrigações de Pequeno Valor (OPV) estão excluídas do regime da ordem cronológica de pagamento, mantendo a regra trazida pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998.

Trata-se, nessa hipótese, de execução direta, garantindo-se, desta forma, a eficácia das sentenças judiciais transitadas em julgado, em consonância com os princípios constitucionais vigentes.

O § 4º conferiu aos entes da Federação autonomia para editar leis próprias, fixando os critérios quantitativos para as Obrigações de Pequeno Valor, devendo ser respeito apenas o limite do valor do maior benefício do regime geral de previdência social.

Entretanto, esta lei deveria ser editada nos 180 (cento e oitenta) dias subsequentes à data de publicação da Emenda, conforme previsão do § 12, do art. 97, do ADCT. Logo, para os entes federativos que não editaram suas leis próprias no prazo estipulado, aplicam-se os valores previstos nos incisos I e II deste dispositivo, que estipulam como obrigações de pequeno valor para os Estados, 40 salários mínimos, e para os Municípios, 30 salários mínimos. Na esfera Federal, a definição de pequeno valor encontra-se na Lei 10.259/01.

A Constituição prevê ainda a possibilidade de o credor renunciar parte do seu crédito, que exceda o limite da OPV respectiva, para evitar o pagamento através do regime de precatórios e recebê-lo através do pagamento por Requisição de Pequeno Valor (RPV), nos termos dos artigos 86 e 87, parágrafo único, do ADCT.

É vedada, entretanto, a expedição de precatórios complementares ou suplementares de valor pago, bem como o fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução para fins de pagamento na forma de RPVs[21].

A EC 62/2009 foi mais longe, estabelecendo no § 11, do art. 97, do ADCT, que, quando houver litisconsórcio de credores, não lhes será aplicado o regime de pagamento das RPVs.

4.2.3 Compensação compulsória

O § 9º, introduzido no art. 100 da Constituição Federal, criou regra de compensação dos créditos de precatórios com os débitos constituídos contra o credor pela Fazenda Pública, o que ocorre de forma compulsória, uma vez que a norma é auto-aplicável e independe de regulamentação, tratando-se de meio coercitivo para a cobrança de tributos. Essa obrigatoriedade de compensação acaba por privar o credor da disponibilidade sobre o direito reconhecido na sentença judicial.

Outro ponto que torna questionável a constitucionalidade deste dispositivo é que, quando da cessão do crédito do precatório, o cessionário não estaria resguardado de eventual débito do credor original, que inclusive pode vir a ser constituído posteriormente à cessão, podendo perder até a totalidade do seu crédito, o que violaria o princípio da segurança jurídica.

O texto do aludido artigo refere ainda que estão sujeitos à compensação os débitos inscritos ou não em dívida ativa e incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, o que viola claramente os princípios da proporcionalidade e do devido processo legal substantivo.

Não obstante a morosidade no trâmite processual das demandas contra a Fazenda Pública, o credor ainda fica sujeito a outra espécie de obstaculização à satisfação do seu direito judicialmente reconhecido, estendendo ainda mais a discussão judicial, agora quanto ao crédito/débito, o que importa em violação ao princípio da duração razoável do processo.

Não bastasse tudo isso, o dispositivo ainda cria uma diferenciação desigual e desarrazoada entre a Fazenda Pública e o credor, uma vez que esta obrigatoriedade é aplicável somente desfavor dos contribuintes, mas nunca em desfavor da Administração Pública, e aí se configura mais uma violação constitucional, desta vez ao princípio da igualdade.

4.2.4 O Índice de Atualização dos Precatórios

A EC 62/2009, nos artigos 100, § 12, da CF/88, e 97, §§ 1º, II, e 16, do ADCT, adotou como parâmetro de atualização de precatórios, o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança.

Como sabemos, o índice de atualização monetária serve para suprir a desvalorização da moeda ao longo do tempo. Desta forma, ao fixar um índice de atualização específico, a Emenda Constitucional acabou, em verdade, por fixar índice genérico de atualização, ou seja, que será sempre o mesmo, não interessando a época em que se lhe aplicará.

Esta nova forma de atualização de valores dos precatórios acaba por criar, em determinado espaço de tempo, uma desvalorização ou valorização excessiva do crédito, incorrendo assim em enriquecimento sem causa (pelo credor ou pelo devedor) ou decréscimo do valor devido em prejuízo do credor.

Neste sentido, as palavras de Henrique Nelson Calandra[22]:

Independentemente do critério fixado pela sentença condenatória transitada em julgado, a atualização do valor da condenação após a expedição do precatório e até o efetivo pagamento da dívida deverá ocorrer pelo índice oficial de remuneração da caderneta de poupança. Com isso, esvazia-se o conteúdo decisório e, por via de conseqüência, a autonomia e a autoridade da decisão judicial em manifesta quebra do Princípio da Separação dos Poderes.

Assim, não se justifica a adoção desta espécie de correção, por ser regra desarmônica com os princípios constitucionais vigentes.

4.3 O art. 97 do ADCT e o Regime Especial de Pagamento dos Precatórios

O § 15, inserido pela EC 62/2009 no art. 100 da Constituição Federal, possibilitou que Lei Complementar venha a ser editada para fins de estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação.

Não obstante, a mesma Emenda inseriu no ADCT o art. 97, que estabeleceu regime próprio de pagamento dos precatórios enquanto não for editada a referida Lei Complementar. Assim, de forma antecipada, o art. 97 do ADCT acabou por criar o chamado “Regime Especial de Pagamento dos Precatórios”, fixando regramento amplo e específico para o pagamento dos precatórios pendentes ao longo dos seus dezoito parágrafos.

Logo, podemos chegar à conclusão lógica de que esta Lei Complementar, regulatória do regime de pagamento dos precatórios, jamais será criada, seja por desnecessidade – em razão do Regime Especial do art. 97 –, seja por falta de vontade política.

Este caráter permanente do Regime Especial do art. 97 do ADCT, foi bem observado por José Afonso da Silva[23], quando concluiu que:

O que, desde logo, é possível prever é que essa lei complementar nunca vai ser criada; pois para quê, se o regime já está devida e pormenorizadamente definido nesse art. 97, de modo a garantir todos os interesses das entidades devedoras – interesses, esses, que se contrapõem aos direitos dos credores? O certo é que essa disposição transitória vai acabar se transformando em permanente.

Este regime especial de pagamento desdobrou-se na possibilidade de escolha pelos Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por outros dois regimes, quais sejam: o regime de pagamento mensal e o regime de pagamento anual, conforme disposição do § 1º, do art. 97, do ADCT.

O primeiro – regime de pagamento mensal –, previsto no inciso I do § 1º, e complementado pelo § 2º, determina o depósito mensal em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Este percentual variará entre 1,5% e 2% para os Estados e para o Distrito Federal, e entre 1% e 1,5% para os Municípios, de acordo com o previsto nos incisos I e II, e alíneas, do § 2º.

Vejamos então a antijuridicidade desta fixação de valor exato e invariável a ser pago por cada ente federativo, tendo em vista que este poderá, ao passar do tempo, aumentar consideravelmente o seu passivo, tornando-se impagável mesmo no extenso prazo de 15 (anos) que permite o § 14, o que torna impraticável esta forma de pagamento como meio de quitação da dívida pública.

Pode-se ainda cogitar no dispositivo aludido hipótese de ofensa ao pacto federativo, haja vista que trata de forma desigual os entes da federação, impondo forma mais gravosa para uns e menos gravosa para outros.

De outra parte, o segundo regime de pagamento trazido pelo art. 97 do ADCT – o regime anual de pagamento –, permite aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que dispunham do prazo de 15 (quinze) anos para pagar os precatórios devidos, através do depósito anual, na conta especial, de valor corresponde ao saldo total dos precatórios devidos, dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. Restou ainda pela disposição do § 4º, do artigo em apreço, atribuída ao Tribunal de Justiça local a administração das contas especiais de que tratam os §§ 1º e 2º.

Este parcelamento do saldo total de precatórios devidos em até 15 anos é injustificável no Estado Democrático de Direito, pois mascara certa desídia do Governo, descaracteriza a garantia do acesso à justiça e ofende a separação dos poderes, à medida que retira a eficácia da sentença judicial, quando permite ao governante que escolha como quer pagar.

A moratória criada pelo art. 97 ofende o princípio da separação dos poderes, na medida em que torna o poder executivo imune às decisões do judiciário, tirando deste a autonomia e a autoridade de suas decisões[24].

Por força do § 15 do art. 97 do ADCT, aplica-se também o regime especial aos precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78, pendentes de pagamento. Essa regra ofende diretamente os princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.

4.3.1 A opção pela disposição de 50% dos recursos dos §§ 1º e 2º e o regime do § 8º

Os § 6º do art. 97, do ADCT, instituiu que pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos recursos de que tratam os §§ 1º e 2º, serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, e o § e 8º complementou estabelecendo que a aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Executivo. Criou-se deste modo, outra possibilidade de livre escolha dos governantes pelo regime que adotarão para pagar a dívida pública. 

Dentre estas opções estão: o pagamento dos precatórios por meio de leilão; o pagamento a vista; e o pagamento por acordo direto com os credores.

4.3.2 Pagamento dos precatórios através de leilão ou acordo direto com os credores

Na forma de pagamento dos precatórios através de leilão, o credor que oferecer o maior deságio será aquele beneficiado com o pagamento, tendo preferência diante dos demais. Ato contínuo, todos os demais credores têm seu pagamento preterido.

Tal regra afronta diretamente diversos princípios constitucionais. Viola a coisa julgada, pois mesmo havendo sentença condenatória obrigando a Fazenda Pública ao pagamento, o credor tem que abrir mão de parte do que lhe é devido para que possa ver satisfeito o seu direito. Retira a efetividade da jurisdição, porquanto o valor fixado na sentença judicial transitada em julgado não será pago na sua integralidade, podendo o credor optar por pagar ou não o débito de forma integral. Viola o princípio da isonomia, pois aquele que tem maiores possibilidades financeiras é que poderá oferecer o maior deságio, e assim terá preferência no pagamento do seu crédito, ficando aquele que vive em condições mais desfavoráveis, por possuir condições financeiras mais limitadas, preterido na ordem de pagamento dos precatórios.

Vale aqui transcrever a crítica que fez José Afonso da Silva[25]:

É inacreditável que tenhamos chegado a uma tal situação, ou seja: as Fazendas Públicas Estaduais, Distritais e Municipais são condenadas a pagar seus credores, mediante decisões transitadas em julgado  – feita, pois coisa julgada, que é uma garantia constitucional (CF, art. 5º, XXXVI) -, e, em vez de liquidar o débito, como é dever de todo devedor, o que se faz? Vem uma Emenda Constitucional e submete o pagamento a longo prazo e a processo do tipo deste caracterizado, aqui, como leilão.

Não se justifica, portanto, no sistema constitucional, a adoção deste sistema de pagamento de precatórios. Pelos mesmos motivos, a regra do pagamento por acordo direto com os credores também não está em harmonia com os princípios constitucionais, haja vista que relativiza a coisa julgada, o direito adquirido e a efetividade da justiça.


5 A EC 62/2009 e o instituto do precatório frente ao Estado Democrático de Direito

A vida em sociedade traz a necessidade da existência de um Estado regulador, que resguarde garantias e estabeleça obrigações. O produto da evolução histórica do Estado, nestes termos, nos trouxe à atual situação jurídica a que chamamos de “Estado de Direito”. Neste Estado de Direito em que vigora o chamado "Império da Lei", o Governo também está adstrito ao cumprimento das leis por ele mesmo impostas.

Como meio de garantir a manutenção dessa forma de Estado, Montesquieu, em sua famosa obra “O Espírito das Leis”, sistematizou a contemplada teoria da separação dos poderes. À época, já referenciava o nobre jurista que:

Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tranqüilamente. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos príncipes ou dos nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos.[26]

[...]

Todo homem que tem poder é tentado a abusar dele, vai até onde encontra limites.[27]

Assim, com o reconhecimento de que o governo também possui obrigações e responsabilidades, cumpre ao Poder Legislativo estipular quais são os direitos e deveres do Estado, ao Poder Executivo, administrá-los e, ao Poder Judiciário, resguardar estes direitos e deveres, permitindo a todos o acesso à justiça. Garantindo-se o acesso indiscriminado à justiça, chegamos então ao Estado Democrático de Direito.

Para Inocêncio Mártires Coelho[28]

[...] entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.

Logo, o Estado Constitucional deve estar atrelado aos princípios que o regem, não podendo destes se desviar, sob pena de findar-se a Democracia e voltar-se ao Estado de Império, onde o governo tudo pode.

Neste sentido, a brilhante doutrina de Norberto Bobbio[29]:

[...] o Estado moderno, liberal e democrático, em relação ao Estado absoluto. Esse nascimento, que tem como fases culminantes as duas revoluções do século XVII e a Revolução Francesa, foi acompanhado por teorias políticas, cujo propósito fundamental foi o de encontrar um remédio contra o absolutismo do poder do príncipe. Na tradição do pensamento político inglês, que oferece a maior contribuição para a solução desse problema, dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder estatal.

Portanto, é notável que desde os primórdios do constitucionalismo é necessário impor limites também ao Estado, para que a “máquina estatal” funcione corretamente.

Leciona Lúcio Delfino[30] que:

Para além de um mero papel de ordenação, o Direito passa a assumir função de transformação da realidade social. Essa noção de Estado se acopla, pois, ao conteúdo material da Constituição, através dos valores substantivos que apontam para uma mudança do status quo da sociedade, servindo-se a lei de instrumento voltado à ação estatal na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-valorativo-principiológico.

Assim, cumprindo com sua função constitucional, o Estado tem responsabilidade diante da sociedade, sendo sujeito de direitos e obrigações. Portanto, deve o Estado cumprir com suas obrigações, dentre elas, pagar as dívidas adquiridas pela Administração Pública, não podendo valer-se de suas prerrogativas para furtar-se desse dever, sob pena de sucumbir o constitucionalismo e voltar-se ao Estado Imperial, onde não há que se falar em democracia ou igualdade, tampouco em Direito como o conhecemos.

Quando o Governo não consegue cumprir com os seus deveres, de forma que deixa de prestar as garantias fundamentais aos seus governados, como é o que acontece no Brasil hodiernamente quanto ao inadimplemento da Dívida Pública, coloca em risco toda a base do Estado lato senso.

O instituto dos precatórios é um preocupante indício de incapacidade de controle do Estado sobre seus próprios atos, no caso, os gastos públicos, uma vez que foi necessário criar-se medidas para postergar o pagamento da dívida da Administração Pública, pois esta não estaria em equilíbrio financeiro entre receitas e gastos suficiente para quitá-la.

Ademais, desde a instituição deste meio de pagamento, que deveria ser transitório, mas não o é, a dívida da Fazenda Pública só aumentou, chegando à condição preocupante dos dias atuais.

Neste sentido, importante lição de Cezar Saldanha Souza Júnior[31]:

O constituinte pensou que, colocando na Constituição uma relação de tarefas a executar e prevendo instrumentos judiciários para dar-lhes eficácia, resolveria nossos problemas. Na verdade, o direito não pode substituir a política. Se o constituinte, ele próprio, não pode resolver os nossos problemas de uma penada, menos ainda pode obrigar qualquer dos poderes constituídos, ou os três, a resolvê-los.

O instituto do precatório destoa inteiramente dos princípios basilares do Estado atual, tal como citado pelo autor e como o conhecemos, incorrendo em grave ameaça à manutenção da paz social e do Estado de Direito.

Outro fator preocupante é quanto à moralidade do Estado, na medida em que fazemos o seguinte questionamento: se o governo não paga suas dívidas, por que os cidadãos devem pagar? A função social do Estado não se compatibiliza com o seu descrédito.

Vale aqui trazer um trecho da doutrina de Norberto Bobbio, no que diz respeito ao nascimento do Estado moderno, liberal e democrático, em relação ao Estado absoluto[32]:

Esse nascimento, que tem como fases culminantes as duas revoluções do século XVII e a Revolução Francesa, foi acompanhado por teorias políticas, cujo propósito fundamental foi o de encontrar um remédio contra o absolutismo do poder do príncipe. Na tradição do pensamento político inglês, que oferece a maior contribuição para a solução desse problema, dá-se o nome específico de ‘constitucionalismo’ ao conjunto de movimentos que lutam contra o abuso do poder estatal.[33]

Daí extrai-se a grande incoerência do instituto com o ordenamento jurídico pátrio, haja vista que neste impera o constitucionalismo sob os pilares do Estado Democrático de Direito, pois não se trata de uma ordem para que a Fazenda Pública cumpra a decisão, mas tão somente de uma simples requisição ao poder público, para que este inclua o débito em suas contas e o pague quando puder, ou quando lhe convier.

5.1 A esterilização do acesso à justiça

Submeter precatórios decorrentes de processos judiciais transitados em julgado antes do advento das emendas constitucionais ao regime de parcelamento instituído pelas mesmas, representa grave violação ao direito adquirido e ao princípio da não-surpresa e, como consequência imanente, à segurança jurídica.

Ademais, violada resta, da mesma forma, a coisa julgada material oriunda do trânsito em julgado da sentença condenatória, tendo em vista que esta determinou o pagamento integral da quantia através do mecanismo do precatório judicial. Desta feita, a modificação do título executivo acarreta a quebra da força da coisa julgada formada quando do trânsito em julgado.

A sentença não deve somente dizer o direito, mas deve também impor a sua satisfação quando devida, não podendo ser relativizada a coisa julgada.

Neste sentido, ensina Luiz Guilherme Marinoni[34]:

Como garantia de acesso à ordem jurídica justa, consubstanciada em uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz. O direito à sentença deve ser visto como direito ao provimento e aos meios executivos capazes de dar efetividade ao direito substancial, o que significa o direito à efetividade em sentido estrito.

O acesso à justiça é pressuposto essencial do Estado Constitucional.

Um exemplo de falha quanto ao acesso à justiça, ocasionada pelo regime de precatórios, é a situação de uma empresa que pode falir, mesmo tendo créditos devidos pelo Estado, os quais se fossem pagos, evitariam a falência.

Interligado ao acesso à justiça, está o princípio da duração razoável do processo, que determina que o processo deva durar o tempo necessário para que se permita lhe sejam aplicadas todas as garantias de defesa, para que ao final represente a melhor forma de justiça, mas também deve estar vinculado à sua efetividade, ou seja, deve terminar antes que o direito se perca no tempo, ou seja, antes que a decisão, mesmo favorável a uma parte, não lhe represente mais eficácia. E ainda, que a decisão produza efeitos.

É o que ensina Vicente de Paula Ataíde Júnior[35]

É importante perceber que a duração razoável do processo deve abranger não só a produção de decisões, mas também o seu cumprimento. Concebendo-se, hoje, que o direito de ação não corresponde apenas à obtenção de uma sentença de mérito, mas, sobretudo, à obtenção do bem da vida que corresponda ao direito material reconhecido, o processo com duração razoável passa a ser entendido como aquele que fornece o resultado concreto em tempo razoável.

No caso dos precatórios, alguns direitos que foram sonegados há mais de duas décadas, não foram pagos até hoje. E com o advento de mais uma possibilidade de postergação do pagamento, em determinado período de tempo já não mais produzirá o resultado necessário, qual seja, a satisfação do direito – personalíssimo – da parte, que talvez não sobreviva o suficiente para receber o que o Estado um dia lhe retirou. E então estaremos também diante da ofensa ao pilar dos princípios, o da dignidade da pessoa humana.


CONCLUSÃO

O que se buscou no presente estudo, em linhas gerais, foi realizar uma análise sistêmica do instituto do precatório. E através da análise desse instituto e suas implicações, verificou-se a sua desarmonia com os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Assim, a constitucionalização do instituto do precatório abriu espaço para que o pagamento da dívida pública pelo Governo fique condicionado tão somente ao seu arbítrio, não havendo meio de constringi-lo ao adimplemento.

Diante disso, questiona-se a institucionalização deste meio de pagamento perante a eficácia da sentença judicial transitada em julgado contra o Estado, uma vez que esta ficaria limitada a declarar o direito, sem poder satisfazê-lo.

Vale registrar que o instituto do precatório só existe no ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se de criação exclusivamente nacional, que deveria ser transitória, mas de fato, nada tem de medida transitória, pois continuam a se criar precatórios, sem limites fixados, com a agravante dos juros e correções agregados aos valores devidos ao longo do tempo em que não são quitados.

A EC 62/2009 resultou em mais uma medida inexitosa do poder constituinte para tentar resolver a problemática instituída pela própria Constituição de 1988, qual seja, a do inadimplemento dos precatórios.

De fato, a sentença judicial transitada em julgado deve ser cumprida, de modo que satisfeita a obrigação a que o credor tinha direito, pois esta é a finalidade do processo, e não outra. Uma vez não satisfeita voluntariamente a obrigação, deve o Poder Judiciário impor o cumprimento desta, através das medidas cabíveis, mesmo quando a executada for a Fazenda Pública. Não pode o governante optar entre utilizar as finanças públicas como bem queira ou realizar um direito humano fundamental.

Neste sentido, a importante explanação de Pontes de Miranda[36]:

O Direito é; mas a medida do seu ser é dada pela sua realização. Tal realização, ou ocorre pela observância espontânea, ou pelos aparelhos do Estado, tendentes a isso, às vezes criados para isso, como é o da Justiça.

Quando se retira a efetividade da decisão judicial, limitando-se o Poder Judiciário a fazer simples requisição para o pagamento, sem que possa por fim ao processo, satisfazendo o crédito, está-se diante de grave afronta ao principio da separação dos poderes.

A Constituição é a lei máxima do país, não podendo de forma alguma se contradizer ou promover qualquer espécie de incoerência. A Constituição que garante os direitos dos cidadãos, não pode retirar destes o acesso a justiça.

Por final, vale citar os dizeres de Montesquieu, que perfeitamente aplicáveis à realidade atual:

Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e não fazer as que a lei permite.[37]

A Constituição Federal não pode de maneira alguma violar seus próprios princípios, inviabilizando o acesso à justiça ou interferindo na separação dos poderes. Nesta perspectiva, conclui-se que o instituto dos precatórios do pagamento das dívidas da Administração Pública, tal como esta regrado na Constituição da República, sobretudo pela sistemática de pagamento instituída pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009, está em manifesto descompasso com os princípios do Estado Democrático de Direito.


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notas

[1] Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 4357, nº 4372, nº 4400 e nº 4425.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Volume III. São Paulo. Malheiros Editores, 2002. 2ª Ed. Revisada e Atualizada, p. 104-105.

[3] GUSMÃO JÚNIOR, Maurício Santos. Aspectos relevantes da Fazenda Pública em Juízo. Revista do Tribunal Federal da 1ª Região, Brasília, v. 14, n. 7, p. 18-30, jul. 2002. Disponível em: <http://www.trf1.gov.br>. Acessado em: 17 de Julho de 2012.

[4] LEITE, Ezequias da Silva. O cidadão e a Fazenda Pública. Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 3, n. 2, p. 163-191, 2003.

[5] BRASIL. Decreto n. 3084, de 5 de novembro de 1898. Approva a Consolidação das Leis referentes á Justiça Federal. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=61849&tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB>. Acesso em 12 de ago. de 2012.

[6] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009-a.

[7] GIORA JUNIOR, Romeu. Os precatórios. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo , v.15,n.76, set. 2007, p.232.

[8] LOUREIRO FILHO, Lair da Silva. Considerações a respeito da EC nº 62/09 e a questão dos precatórios. Revista forense, Rio de Janeiro , v. 408, (mar. /abr. 2010) p. 256.

[9] DALLARI, Adilson Abreu. Precatórios judiciais. Genesis: Revista de Direito Administrativo Aplicado. Curitiba, 1995. nº 6, p. 696.

[10] DALLARI, Ibid.

[11] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 527.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 160486. Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, julgado em 11/10/1994, DJ 09/06/1995. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE+160486%29&base=baseAcordaos>. Acesso em: 30 de agosto de 2012.

[13] ARAGÃO, Raimundo Cezar Britto. A marcha contra o calote. Revista do Advogado, São Paulo , n. 111, abr. 2011, p. 13.

[14] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Artigo Publicado pela Folha de São Paulo, 07 dez. 2009.

[15] SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular, 2000, p. 233,  apud, BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 183.

[16] MENDES, Gilmar Ferreira. Limites da revisão: cláusulas pétreas ou garantias de eternidade. Possibilidade jurídica de sua superação. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris). Porto Alegre, v. 21, nº 60, mar. 1994, p. 215.

[17] Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 237.

[18] Bryde, Verfassungsentwicklung, cit., p. 242.

[19] Este foi também o entendimento do Ministro Ayres Britto no seu voto proferido na ADI 4.357/DF, que ainda resta pendente de julgamento. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4357.pdf>. Acesso em: 12 de agosto de 2012.

[20] É o que foi alegado pelas entidades autoras na ADI 4.357/DF, conforme refere o Ministro Ayres Britto em seu voto já proferido.

[21] Vedação expressa no § 8º, do art. 100, da CF/88.

[22] CALANDRA, Henrique Nelson. A Emenda Constitucional nº 62/2009 à luz do Princípio constitucional da Separação dos Poderes. Revista do Advogado, São Paulo , n. 111, abr. 2011, p. 24.

[23] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 2010, p. 537.

[24] Argumentos utilizados nas sustentações orais perante o STF nas ADIs já citadas.

[25] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 7ª ed. Malheiros: São Paulo, 2010, p. 537.

[26] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondatt. O espírito das leis. Coleção Os Pensadores. v. XXI. Trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Editor Victor Civita, 1973. p. 156.

[27] MONTESQUIEU, Ibid.

[28] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed. Ver. e atual.. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. Pág. 171.

[29] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. Universidade de Brasília. Brasília: 1984, p. 15.

[30] DELFINO, Lúcio. O projeto estatal, a paz social e o papel transformador do Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1328, 19 fev. 2007, pág. 3.

[31] SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha. Constituições do Brasil. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzato, 2002, p. 87.

[32] BOBBIO, Norberto: Direito e Estado no Pensamento de Emmanuel Kant. Universidade de Brasília. Brasília. 1984, p. 15.

[33] BOBBIO, Ibid.

[34] MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à efetividade da tutela jurisdicional na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Revista de Direito Processual Civil, n. 28, abr./jun. 2003, p. 303.

[35] ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Embargos à execução contra a Fazenda Pública: ausência de efeito suspensivo e expedição imediata do precatório, in Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, out./dez. 2009, p. 29.

[36] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Forense, Tomo I, 1987, p. 30.

[37] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Coleção Os Pensadores. v. XXI. Trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Editor Victor Civita, 1973, p. 156.


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GIRARDI, Christian Luís de Oliveira. Precatórios: a inconstitucionalidade da EC nº 62/2009, a esterilização do acesso à justiça e a ineficácia das execuções contra a Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3652, 1 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24822. Acesso em: 2 maio 2024.